É de praxe iniciar as respostas pelo começo, o que neste contexto seria começar a responder pelo primeiro artigo debatedor e terminar pelo último. Entretanto, encontramos diversas provocações reflexivas e questionamentos no último artigo, de Costa et al.1, o que nos levou a iniciar a réplica aos debates por ele. Iniciaremos, inclusive, respondendo à última provocação intelectual proposta pelos autores: não temos por objetivo encerrar as discussões sobre os caminhos ou garantir mudanças; assim, o objetivo primeiro deste artigo e desta experiência foi iniciar as discussões sobre esta temática tão urgente no contexto brasileiro. Aqui, observamos que tal objetivo, inclusive, foi muito bem contemplado, com uma sessão de debates mais ampla do que o habitual neste periódico. Aproveitamos para agradecer a todos que se dispuseram a contribuir neste debate. A construção de respostas e caminhos para uma questão tão urgente só é possível coletivamente, com questionamentos constantes dos que se dispõem a pensar uma sociedade verdadeiramente equânime.
O segundo questionamento que nos vemos fortemente impelidos a responder é sobre onde estão a(o)s estudantes LGBTIA+, que não (re)clamam por uma abrangência maior no cumprimento dos direitos preconizados no Código de Ética. Bem, estamos aqui, sobrevivemos até aqui. Entre todos os autores, ao menos três se identificam com sexualidades dissonantes da norma hegemônica heterossexual. Raimondi, em seu relato autoetnográfico2, conta-nos sobre suas dores e medos por ser um homem branco cis gay em uma faculdade de Medicina. Nunca é fácil se assumir dissonante da norma e em um ambiente tão elitista e hegemônico como os cursos de Medicina no Brasil. Inclusive, pode ser perigoso se assumir dissonante, quiçá clamar por mudanças. A perseguição e o ostracismo são realidades vivenciadas por muitos que ousam desafiar as normas. Ainda que seja preciso ter coragem de dizer, nem sempre possuímos estruturas (psíquicas e materiais) para fazê-lo.
Não acreditamos que incorporações meramente técnicas à formação médica sejam capazes de garantir uma formação médica adequada. Acreditamos inclusive que a reforma curricular promovida por Flexner3 e o amplo enfoque no modelo biomédico sejam os grandes responsáveis pelo cenário atual. É preciso vivenciar as transgressões da norma no ambiente do ensino superior, é necessário que o tripé universitário seja a realidade de todo cenário de formação do ensino superior. Justino et al.4 nos sugerem em seu artigo estratégias outras de ensino, como a extensão universitária, a fim de desarticular os separatismos impostos pela “historicidade acadêmica elitista, racista, machista, cisgênera e heteronormativa”. Aqui, gostaria de ressaltar a importância do currículo paralelo, ou oculto, na formação médica. Tal currículo se embrenha pela formação ao longo de todos os anos de graduação, sobretudo nos espaços não institucionais das vivências do ensino superior, relacionadas principalmente ao desenvolvimento de valores e atitudes, podendo ser considerado como o “pano de fundo” do processo de aprendizagem5. O relatório final6 da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – constituída pelo Ato n. 56, de 2014, com a finalidade de “investigar as violações dos direitos humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo ocorridas nos chamados ‘trotes’, festas e no seu cotidiano acadêmico” – contém diversos exemplos de como futuros médicos lidam com as violências que eles mesmos e colegas sofrem, perpetradas por outros colegas, às vezes já médicos. É interessante que o foco da CPI não foi somente as faculdades de Medicina, o que nos ajuda a entender que esses problemas extrapolam os muros das graduações de Medicina, o que nos leva, novamente, à resposta de que uma possível medida para manejar o desafio de formar profissionais compassivos, humanitários e éticos também extrapola os muros (sobretudo, concretos) do ambiente universitário.
Ao citar a pedagogia da desobediência7, Justino et al. nos convida a refletir sobre como a dissidência de gênero é abordada na formação médica e, por consequência, como aqueles que vivem tal dissidência passam a ser reconhecidas pela própria Medicina. Refletindo sobre esse ponto, observamos que, talvez no afã de mimetizar um cenário, ainda que real e cotidiano, acabamos contribuindo para a reprodução de estereótipos sobre a abordagem em saúde, sobretudo de travestis e transexuais. Hoje, já médicos atuantes e não mais estudantes de Medicina, conseguimos pensar em uma vastidão de cenários de acolhimentos de vítimas de violências de gênero ou relacionadas à sexualidade que não envolvam preceitos moralizantes e estereotipadamente venéreos. Ainda que sejam experiências individuais, corroboram a necessidade de imersão e aproximação dos estudantes com agentes sociais que podem contribuir na desconstrução de verdades preestabelecidas, inclusive materializando as potências das vivências travestis e transexuais, levando-nos muito além da ótica exclusiva das violações.
Damasio8 encerra nos questionando se a Medicina e demais áreas da Saúde seguirão a reproduzir violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe as normas de gênero. Moretti-Pires9 observou, por meio de grupos focais, discriminações sofridas por gays, lésbicas e mulheres bissexuais no ensino médico e pode concluir que há uma naturalização das violações entre os estudantes, praticadas por seus pares ou superiores (docentes e staff). Junqueira10 é taxativa:
A falta de solidariedade por parte de profissionais, da instituição e da comunidade escolar diante das mais corriqueiras cenas de assédio moral contra estudantes LGBTI+ pode produzir ulteriores efeitos nos agressores e nos seus cúmplices. (p. 27)
Assim, a autora nos lembra que, ainda que seja responsabilidade dos cursos de Medicina readequar as percepções e práticas distorcidas sobre gênero e diversidade sexual, o problema inicia e extrapola o ensino superior. As violações de pessoas LGBTI+ nos ambientes acadêmicos iniciam ainda na formação básica e os preconceitos são incutidos ao longo de toda sociabilização, intra e extraescolar. Não basta pensar e cobrar mudanças apenas nos cursos de Saúde, sendo necessárias também mudanças concretas na sociedade como um todo. Não existe resposta efetiva e concreta de curto prazo para uma questão secular que tem como base a desumanização daqueles que não se enquadram no perfil construído de normalidade: masculino, heterossexual, monogâmico, cristão, branco e produtivo na lógica capitalista. Respondendo a Damásio, a Medicina e os demais cursos de Saúde continuarão a violentar pessoas que rompem com as normas, sobretudo de gênero, enquanto a sociedade seguir identificando tais vidas como abjetas, passíveis da morte e indignas de luto.
Finalizamos por onde começamos: tentando responder aos questionamentos de Costa et al. Sobre a pontuação acerca do montante de estudantes que optaram por não participar da experiência educacional, acreditamos que as ausências não só dizem por si mesmas, como também são muito mais esclarecedoras que a própria presença dos que vivenciaram esta experiência acadêmica. Como relatado no artigo de Moretti-Pires:
Nas relações entre os estudantes, assumir-se homossexual é motivo de rejeição, seja dos grupos em sala assim como da oportunidade de convivência extraclasse, o relato de que um estudante, que fazia trabalhos com outros homens heterossexuais e, ao assumir-se gay foi excluído dos grupos reitera tal afirmativa. ‘Nunca mais apresentaram seminário com ele. Quando uma pessoa se assume como homossexual ela é automaticamente excluída’ (GFG)9. (p. 9)
No caso de nossa experiência acadêmica, o fato de os principais autores serem vastamente conhecidos, no ambiente acadêmico no qual a experiência foi desenvolvida, como pessoas combativas no que diz respeito à garantia de direitos humanos de diversos grupos sumariamente excluídos da comunidade médica, a ausência se apresenta até mesmo como mais uma forma de violência, como se não fosse permitido à essas pessoas produzirem ciência. É inegável cogitar as ausências como boicotes.
Contudo, boicotes à parte, trouxemos os resultados da experiência e sua discussão para os holofotes dessa seção e reiteramos que, para além do “não” como resposta à nossa pergunta se estamos preparando os futuros médicos para atendimentos de situações de violência com enfoque em gênero e em sexualidades não heterossexuais, a gênese do problema extrapola os muros da academia e requer posições mais efetivas de toda a sociedade.
Referências
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1 Costa FD, Carvalhaes FF, Moreira R. O manejo de alguns futuros médicos diante de situações de violência: algumas inquietações. Interface (Botucatu). 2023; 27:e230049. doi: 10.1590/interface.230049.
» https://doi.org/10.1590/interface.230049 -
2 Raimondi GA. “O mundo está ficando tão chato... não se pode mais falar nada!”: um ensaio autoetnográfico sobre os “mimimis” que insistem em incomodar a formação médica. Interface (Botucatu). 2023; 27:e230024. doi: 10.1590/interface.230024.
» https://doi.org/10.1590/interface.230024 -
3 Flexner A. Medical education in the United States and Canada: from the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, Bulletin Number Four, 1910. Bull World Health Organ [Internet]. 2002 [citado 30 Maio 2023];80(7):594-602. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12163926/
» https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12163926/ -
4 Justino J, Rego C, Flor A. Por onde caminha a dissidência de gênero no Brasil? Pela urgência de uma formação médica travestilizada. Interface (Botucatu). 2023; 27:e230012. doi: 10.1590/interface.230012.
» https://doi.org/10.1590/interface.230012 - 5 Silva TT. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2a ed. Belo Horizonte: Autêntica; 2004.
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6 Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Comissão Parlamentar de Inquérito constituída pelo Ato nº 56, de 2014, com a finalidade de “investigar as violações dos direitos humanos e demais ilegalidades ocorridas no âmbito das Universidades do Estado de São Paulo ocorridas nos chamados ‘trotes’, festas e no seu cotidiano acadêmico”: relatório final [Internet]. Diário Oficial do Estado de São Paulo. 15 Abr 2015 [citado 30 Maio 2023]; 125(67 Supl):1-2656. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/arquivoWeb/com/com3092.pdf
» https://www.al.sp.gov.br/repositorio/arquivoWeb/com/com3092.pdf - 7 Odara T. Pedagogia da desobediência: travestilizando a educação. Salvador: Devires; 2021.
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8 Damasio AC. A formação médica e o cuidado com condições sensíveis: entre técnica e ética. Interface (Botucatu). 2023; 27:e230025. doi: 10.1590/interface.230025.
» https://doi.org/10.1590/interface.230025. -
9 Moretti-Pires RO, Grisotti M. O lugar (do) errado: discriminações contra lésbicas, gays e mulheres bissexuais no ensino médico. Saude Soc. 2022; 31(3):e180349pt. doi: 10.1590/S0104-12902022180349pt.
» https://doi.org/10.1590/S0104-12902022180349pt - 10 Junqueira RD. Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada; Alfabetização e Diversidade; UNESCO, 2009. Homofobia nas escolas: um problema de todos; p. 13-49.
Editado por
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Editor: Antonio Pithon CyrinoEditor de debates: Sérgio Resende Carvalho
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
14 Ago 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
12 Jun 2023 -
Aceito
05 Jul 2023