Open-access Por uma institucionalidade transformadora e contra-hegemônica: reflexões sobre o inédito viável da Política de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS)

Por una institucionalidad transformadora y contrahegemónica: reflexiones sobre la viabilidad inédita de la Política de Educación Popular en Salud en el Sistema Brasileño de Salud (PNEPS-SUS)

Manifesto minha satisfação em ter a oportunidade de participar dessa reflexão coletiva sobre a Educação Popular em Saúde (EPS) e a Política de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS) que construímos com tanto afeto, participação e compromisso, assim como saborear novamente as provocações do nosso José Ivo1.

Refletir sobre a EPS é profundamente necessário diante do momento atual pelo qual passa nossa democracia, em que direitos da classe trabalhadora têm sido abolidos, políticas de grande relevância para a saúde e qualidade de vida das populações têm sido desconstruídas. Vivenciamos um real desmonte do projeto de Estado de Bem-Estar Social, regado pela pregação de uma cultura político-social de cunho fascista que persegue as minorias, estimula ódio e preconceitos, destrói o nosso meio ambiente em prol de um projeto de poucos, um projeto ultraneoliberal conservador.

Para fazermos a reflexão sobre as justificativas e viabilidades da PNEPS-SUS no contexto atual, o primeiro passo é a necessidade de resgatar e reafirmar a concepção de institucionalidade que nos orientou a apostar na inclusão da EPS no Ministério da Saúde (MS). Tal aposta foi iniciada em 2003, com movimentos de luta pelo reconhecimento e pela valorização institucional da Educação Popular nas políticas públicas de saúde no SUS no início da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e culminou na conquista da PNEPS-SUS em 2013, na gestão da presidenta Dilma Rousseff.

O histórico e o referencial que nos amparou no processo de formulação dessa política nunca nos promoveu ilusões, pois sabíamos das contradições que permeavam essa aposta. Entretanto, tínhamos consciência da importância de disputar o espaço instituído da política pública da saúde na gestão federal naquele cenário democrático popular. Quando aponto contradições, quero dizer que tínhamos clareza de que, embora tivéssemos construído uma correlação de forças favorável para eleger um governo aberto à democratização e à participação popular, assim como à própria EPS, ainda tínhamos um Estado bastante conservador.

Por ser a EPS um campo “molhado de ideologia”, como referia Paulo Freire, refratária às opressões, aos autoritarismos e à mercantilização da vida, era evidente que encontraríamos resistências ao instituí-la como política pública, pois se contrapõe a interesses de setores que dominam a cena política2.

Nossas intencionalidade e concepção de política pública orientadora da formulação da PNEPS a indicavam como um dispositivo proporcionador de encontros, de abertura de novos canais de diálogo, de escuta e construção compartilhada, seja entre usuários do SUS, cuidadores populares, entre serviços e comunidades, seja entre as gestões da saúde pública e cidadãos. Esses espaços são permeados pela perspectiva político-pedagógica da EPS, que visa à leitura crítica da realidade, à problematização, à identificação das questões que interferem na determinação social da saúde. Tal perspectiva, quando reconhecida e empregada, acaba gerando transformações nos modos de fazer, de gerir, de cuidar etc.

Assim, embora tivéssemos governos comprometidos com a construção de um “projeto democrático popular de sociedade”, parafraseando nossa PNEPS-SUS, era conhecido que as forças do capital ainda estavam sob domínio do espaço público nacional, via o poder instituído da minoritária elite brasileira.

Os interesses avessos à real participação do poder popular na definição dos destinos nacionais, na escolha sobre qual projeto de desenvolvimento apostar, seja na saúde, na economia, na comunicação, seja na justiça, entre tantos outros setores, foram revelados na perseguição pública promovida pela mídia, fomentada pelas representações conservadoras presentes na Câmara Federal, à proposta de instituição da Política Nacional de Participação Social (PNPS) indicada pelo Governo Federal em 2014, “centralidade da cultura na práxis política pela transformação do Estado em busca de uma sociedade de todos, onde a liberdade seja não só um direito, mas uma experiência coletiva”3,4.

Sendo assim, a perspectiva sobre a qual nos alicerçamos para ousar institucionalizar esse campo de práticas, originário dos saberes e modos de organizar a vida das classes populares, que é a EPS, pouco íntimo da institucionalidade gerencial do Estado, nunca foi a tradicional. A institucionalidade que nos moveu não foi a legalista burocrática, embora não renunciássemos à sua importância, pois possibilitou a existência de princípios e diretrizes da EPS oficializados no arcabouço jurídico que orienta a implementação do SUS. Disputamos e conquistamos, sim, a institucionalização da PNEPS-SUS via instrumento legal, o qual propiciou que seus princípios viessem a se somar ao conjunto daqueles já conquistados constitucionalmente, idealizados no Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB). Contudo, nossa principal aposta sempre foi em uma institucionalidade fluida e subjetiva ao considerar que sua materialização principal seria por meio do processo dialógico, do convencimento ou da mobilização dos atores, sejam eles trabalhadores da saúde, estudantes, participantes de movimentos sociais, educadores, cuidadores, conselheiros. Esse convencimento não seria algo meramente impositivo, oriundo da força legal, mas sensível ao desejo, à visão de mundo que se desejava imprimir ao acolher tais princípios, práticas, metodologias e intencionalidades na ação cotidiana, ou seja, ao assumir o protagonismo com os processos de transformação necessários indicados nessa política.

Quando nos interrogamos sobre os frutos daquela fase do processo de institucionalização que vivenciamos até 2014, identificamos sua contribuição na democratização do acesso à saúde e do próprio espaço do controle social em saúde. Ao resgatarmos a historicidade, percebemos que as iniciativas do diálogo e da escuta, bem como as da aproximação e a do reconhecimento das demandas de segmentos desfavorecidos na sociedade, como populações do campo, LGBTQI+, negra, foram originadas nos espaços que desenvolvemos nesse processo de construção e formulação da EPS no MS. Essa aproximação se configurou em um movimento por direitos, que se fortaleceu e acabou se desenhando na institucionalização dos Comitês de Promoção da Equipe, os quais vieram a elaborar as Políticas de Promoção da Equidade. Em relação ao controle social, é evidente a diversificação das representações da sociedade civil promovida democraticamente no Conselho Nacional de Saúde (CNS), que se expandiu para a rede de conselhos municipais e estaduais ao acolher representações desses segmentos historicamente alijados do processo decisório e de participação no SUS. A inserção das Tendas Paulo Freire nas conferências nacionais de saúde a partir da 14ª Conferência Nacional de Saúde simboliza também quanto a EPS se aproximou e foi reconhecida pelo espaço do controle social nos processos de busca por democratização.

Percebe-se, também, quanto a aposta contribuiu para a democratização ou a publicização da própria EPS. Com certeza, esse processo se construiu pari passu ao desenvolvimento e às conquistas da era digital, a qual tem trazido novos modos de participação e acesso à informação e ao conhecimento que, embora contraditória, não pode ser desconsiderada. É explícito quanto a EPS foi pulverizada, acontecendo e servindo de referência, chegando em lugares antes improváveis, se não tivéssemos um educador (a) já engajado (a) no movimento da Educação Popular. Não era comum, como vivenciamos na atualidade, encontrar um jovem trabalhador desconhecido em nossas rodas, trazer o referencial da EPS como base e inspiração de suas práticas.

Temos de apontar, também, a contribuição que a PNEPS-SUS trouxe ao campo progressista na gestão das políticas públicas. Ter a amorosidade, o diálogo, a emancipação como princípios orientadores do SUS inspira outros setores. Recentemente, essa contribuição ficou evidenciada em uma palestra do grande jurista Zé Geraldo, ex-reitor da UNB, em um seminário sobre democracia e política no contexto da 16ª CNS, ao afirmar que, quando conheceu a PNEPS-SUS, teve um grande encantamento, pois encontrou a mais radical e bela construção no contexto das políticas públicas. Sua fala nos instiga a reidentificar nossa potência, acreditar em nossa capacidade de transformação e ação.

Atualmente, a PNEPS-SUS encontra-se abandonada pela atual gestão do MS, na qual a EPS vem sendo coibida, ou melhor, censurada e proibida de aparecer como conceito em publicações institucionais, até mesmo a área técnica responsável pela sua implementação foi eliminada da estrutura ministerial. Neste momento, repensar essa institucionalidade é importante para nos ajudar a quebrar as barreiras, superar medos e frustrações que esse período caótico possa nos causar, contribuindo para nos estimular a continuar fortalecendo nossas práticas e a esperançar, instigados pela potência de nossas ações e práticas.

Logo, parece-me que devemos, sim, continuar defendendo e promovendo a PNEPS-SUS, porém por meio de outras formas de institucionalidade, mais alinhadas com o processo de construção da contra-hegemonia da qual somos historicamente alinhados. Essa institucionalidade nos provoca à ação, a fortalecer a organicidade de nossos coletivos e movimentos, a intensificar a nossa produção e a sistematização do conhecimento, seja nos espaços instituídos das universidades, centros de formação, seja em nossos movimentos etc. Além disso, nos estimula a buscar formas de diálogo também com os serviços, com os trabalhadores e usuários, assim como com gestões municipais e estaduais que se identifiquem com a EPS.

Penso que as justificativas que embasam a importância da PNEPS-SUS no atual cenário se apresentam mais que evidenciadas; seu referencial aponta para um projeto de sociedade e de ser humano que se contrapõe ao que atualmente domina o espaço público nacional. Promover a PNEPS-SUS é defender a democratização da saúde, das políticas, das relações sociais.

  • Bonetti OP. Por uma institucionalidade transformadora e contra-hegemônica: reflexões sobre o inédito viável da Política de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS). Interface (Botucatu). 2021; 25: e200660 https://doi.org/10.1590/Interface.200660

Referências

  • 1 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 2.761, de 19 de Novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPSSUS). Brasília: Ministério da Saúde; 2013.
  • 2 Freire P. Pedagogia do oprimido. 42a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.
  • 3 Simionatto I. O social e o político no pensamento de Gramsci [Internet]. Juiz de Fora: Acessa.com - mais comunicação; 1997 [citado 20 Jun 2020]. Disponível em: http://www.acessa.com/gramsci/?id=294&page=visualizar
    » http://www.acessa.com/gramsci/?id=294&page=visualizar
  • 4 Brasil. Presidência da República. Decreto nº 8.243, de 23 de Maio de 2014. Institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 26 Maio 2014.

Editado por

  • Editor Antonio Pithon Cyrino Editor associado Pedro José Santos Carneiro Cruz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    08 Out 2020
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