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Gramáticas morais, riscos mortais

Gramáticas morales, riesgos mortales

O artigo de Richard Miskolci e Pedro Paulo Gomes Pereira traz luzes importantes para pensar o cenário político presente, desde os campos educacional e da saúde. As categorias discutidas no texto nos ajudam a compreender o difícil ambiente atual no qual as lutas políticas demandam elementos cada vez mais complexos para a reflexão.

A percepção dos autores a respeito de retrocessos políticos dos últimos anos e daquilo chamaram de “agendas anti-igualitárias” não apenas aperfeiçoa nosso léxico analítico como também permite que possamos seguir os passos por meio dos quais a complexa paisagem que se define em torno dos ataques a direitos conquistados por movimentos feministas, LGBTs, negros, indígenas, entre outros conforma parte de uma intrincada rede de elementos que trazem sérias ameaças para as relações sociais envolvidas em saúde e educação.

O histórico apresentado no artigo traz para a discussão uma sequência de eventos que colocam em relação à chamada “ideologia de gênero” a problemática do abortamento, a união civil igualitária e as relações étnico-raciais no horizonte de defesas de agendas neoliberais de mercado. Embora não tenha sido esta uma chave analítica explicitada pelos autores, podemos visualizar no texto uma boa apresentação de uma ambiência que exige uma análise articulada entre os diversos eixos de opressão que estão em jogo na atuação dos grupos anti-igualitários, favorecendo o uso de ferramentas interseccionais de interpretação e análise11. Collins PH. Intersectionality’s definitional dilemmas. Annu Rev Sociol. 2015; 41:1-20..

As análises realizadas no artigo desenham um quadro que mostra que, embora atuando em diversas frentes, os movimentos anti-igualitários se movem em torno de uma gramática moral comum, promovendo ações e discursos que fragilizam as precárias, mas importantes, conquistas de direitos no campo social para populações que sofreram e sofrem históricos de violência e discriminação por não serem ajustadas a normas construídas em ideários hegemônicos dos projetos de sociedade. Com isso, o artigo coloca como problema importante a ser pensado, em chaves interseccionais, a questão do poder de determinar quem tem direitos, exibindo a frágil manutenção da universalidade desses direitos.

Assim, observamos a construção de uma agenda moral a serviço de uma orientação política que, acima de qualquer coisa, insere-se na disputa política pelo poder de decisão sobre a existência e extensão de direitos que impactam fortemente o funcionamento das políticas de saúde e educação.

Noto, em consonância com o artigo, que essa gramática moral se insere em uma movimentação intensa de setores à direita do pensamento e políticas mundiais, de tendência radicais, que unem diversas questões políticas em torno de um inimigo comum virtual: o “comunista”. Grande parte do pânico moral provocado por esses setores parte da premissa de que há um conjunto de males provocados pelo comunismo ou pelo marxismo na experiência social contemporânea, que precisa ser combatido por frentes econômicas, políticas e morais22. Jamin J. Cultural marxism and the radical right. In: Jackson P, Shekhovtsov A, editores. The post-war Anglo-American far right: a special relationship of hate. Londres: Palgrave Pivot; 2014. p. 84-103..

Não importando que os analistas dessa vertente teórica a tenham considerado como teoria da conspiração, efetivamente, o “marxismo cultural” – bem como uma de suas consequências (as acusações de doutrinação ideológica) – é parte importante das estratégias políticas dessa direita radical e tem se fortalecido nos espaços políticos de poder nos últimos anos.

Uma das importantes dimensões dessas estratégias políticas é o ataque à ciência como produto ideológico que estaria em defesa de partes vulnerabilizadas da sociedade, como mulheres, LGBTs, negros, indígenas, etc. Se a própria ciência é entendida como arma ideológica instrumentalizada por uma esquerda que se instala nas universidades, deve ser igualmente combatida. Nesse combate, observamos os estudos sobre relações raciais serem convertidos em racismo intelectual que separa a população por raças; assim como vemos as pesquisas sobre gênero serem convertidas em ideologia de gênero. Assim, toda política pública que tiver sido fundamentada em tais estudos fica sob suspeita e, usualmente, é também rechaçada.

A defesa de uma ciência neutra que fundamente políticas públicas esconde que a neutralidade é já a afirmação de uma posição política, normalmente a favor do status quo. Assim, menos que uma ciência sem ideologia, o que vemos, nesses casos, é a afirmação de uma ideologia que se oculta sob o pretexto da neutralidade ou objetividade radical. O mesmo ocorre no contexto educacional no qual se insere o projeto Escola Sem Partido (ESP), discutido pelo artigo.

No contexto brasileiro, a afirmação explícita do ministro da Educação do governo Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, de que “‘As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica [do país]’”33. Passareli H. ‘Ideia de universidade para todos não existe’, diz ministro da Educação. Valor Econ [Internet]. 2019 [citado 28 Jan 2019]. Disponível em: https://www.valor.com.br/brasil/6088217/ideia-de-universidade-para-todos-nao-existe-diz-ministro-da-educacao
https://www.valor.com.br/brasil/6088217/...
, no mesmo contexto em que critica a ideologia de gênero, deixa inequívoca a relação entre o que esse setor da direita entende como elitização da universidade e o enfrentamento dessa marca do marxismo cultural, que seria a ideologia de gênero. Os ideais de família heteronormativa (confundida e generalizada como toda e qualquer forma de família heterossexual), valores cristãos e um nacionalismo exacerbado também têm sido marca desse mesmo movimento. Uma contradição curiosa é que esses modelos nacionalistas estão sempre invocando a experiência de outros países como parâmetros de afirmação, sobretudo Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. Não obstante, os avanços – ainda que precários – das agendas de direitos humanos ocorridos nesses países não é algo a ser seguido.

Apesar de não estar seguro de que “o alvo mais visível desses movimentos está nos direitos sexuais e reprodutivos” (p. 5), penso que esses direitos têm sido um dos mais atacados, em uma trama complexa que articula essa gramática moral de modo que a experiência de pessoas não brancas, não heterossexuais, não cristãs, não pertencentes a estratos econômicos médio-elevados, mulheres (transgêneras e cisgêneras) e não residentes em grandes centros urbanos tenham suas vidas lastreadas por ódio, violência e dificuldades de acessos a bens e direitos fundamentais.

Seguindo a argumentação de Bell Hooks44. Hooks B. Outlaw culture: resisting representations. 2a ed. Nova Iorque: Routledge; 2006., percebemos que essa agenda anti-igualitária é uma resposta desta estrutura que ela denomina de “patriarcado capitalista da supremacia branca”44. Hooks B. Outlaw culture: resisting representations. 2a ed. Nova Iorque: Routledge; 2006. (p. 7) – que também é heterossexista, cisgenerista, capacitista, colonialista e cristanocêntrico, acrescentaríamos – frente a uma suposta ameaça que essa dimensão organizativa da sociedade brasileira (e de parte do contexto internacional) percebe como avanços das agendas de direitos humanos. Pode ser considerada também como uma espécie de contrarresistência aos contextos de fortalecimento dos movimentos sociais com agendas igualitárias de gênero, sexualidade, relações raciais e de classe.

Curiosamente, a universalidade dos direitos humanos é contraposta por uma reivindicação da universalidade por parte de movimentos anti-igualitários. Discursos como os da meritocracia apelam para uma universalidade das capacidades, ocultando que há entraves sociais causados pela desigualdade de oportunidades para os sujeitos que se encontram fora de uma determinada norma social hegemônica, seja ela de raça, gênero, sexualidade ou outra.

Outra dimensão tencionada com relação à universalidade reivindicada pelos movimentos anti-igualitários vincula-se com uma espécie de moralidade universal que estaria na base dos discursos de neutralidade, sobretudo na escola. Muitos dos apoiadores de projetos como o ESP agora defendem o retorno da Educação Moral e Cívica (EMC) – sem explicar ao certo que moral é essa. Novamente, um ideal de família é evocado para sustentar esses argumentos.

Um exemplo dessa proximidade entre a educação moral nas escolas e o ESP, sob a tutela de um ideal de família, é a proposição da deputada federal Dayane Pimentel, do PSL da Bahia, que é militante do ESP(b b Ver afirmação da própria deputada quanto à adesão ao projeto em https://youtu.be/F3foxQq49wk ) e que apresentou como seu primeiro projeto de lei na Câmara Federal uma proposta de inserção da disciplina EMC nos currículos das escolas de ensino fundamental(c c Verificar a tramitação do projeto de lei em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191278 ).

As agendas anti-igualitárias parecem ser parte de um projeto necropolítico de relação com as parcelas da sociedade que experimentam o racismo, o sexismo, as LGBTfobias e o classismo, sobretudo em suas dimensões institucionais. Essa política de morte55. Mbembe A. Necropolitcs. Public Cult. 2003; 15(1):11-40., que expõe a riscos e acirra a vulnerabilidade, atravessa de modo importante as pessoas que estão sujeitas a essas forças sociais destrutivas. Educação e saúde são palcos fundamentais para a atuação das forças necropolíticas. As políticas públicas têm sido ferramentas na execução do necropoder, que, mesmo quando não extermina o corpo físico, cria as possibilidades para que pessoas sejam “[...]submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’”55. Mbembe A. Necropolitcs. Public Cult. 2003; 15(1):11-40. (p. 40).

É uma necessidade premente termos ferramentas para compreender esse fenômeno complexo da ascensão de forças de direita radical, que unem a agenda econômica com pautas morais e políticas muito danosas em termos de direitos humanos. É também um passo importante para que as ciências humanas e sociais estejam atentas às transformações recentes no espectro político e tenham categorias precisas para entender e buscar estratégias para intervir neste processo.

Referências

  • 1
    Collins PH. Intersectionality’s definitional dilemmas. Annu Rev Sociol. 2015; 41:1-20.
  • 2
    Jamin J. Cultural marxism and the radical right. In: Jackson P, Shekhovtsov A, editores. The post-war Anglo-American far right: a special relationship of hate. Londres: Palgrave Pivot; 2014. p. 84-103.
  • 3
    Passareli H. ‘Ideia de universidade para todos não existe’, diz ministro da Educação. Valor Econ [Internet]. 2019 [citado 28 Jan 2019]. Disponível em: https://www.valor.com.br/brasil/6088217/ideia-de-universidade-para-todos-nao-existe-diz-ministro-da-educacao
    » https://www.valor.com.br/brasil/6088217/ideia-de-universidade-para-todos-nao-existe-diz-ministro-da-educacao
  • 4
    Hooks B. Outlaw culture: resisting representations. 2a ed. Nova Iorque: Routledge; 2006.
  • 5
    Mbembe A. Necropolitcs. Public Cult. 2003; 15(1):11-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2019
  • Aceito
    17 Mar 2019
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