Resumo
A hipótese deste ensaio é de que o romance “The Flamethrowers”, de Rachel Kushner (2013), tem como recursos de construção e estilo a adaptação, para a narrativa literária, de uma série de elementos e técnicas cinematográficas, bem como insere como conteúdo temático para o centro de consciência da obra a noção da base e da superestrutura. A análise tomou como referência o conceito de literatura como ato socialmente simbólico, de Fredric Jameson, bem como um dos muitos leitmotive presentes no livro: o fogo. Argumentamos que os elementos de construção e estilo são responsáveis tanto pela ancoragem histórica, quanto pela representação, nas camadas narrativas, do capitalismo tardio em sua capacidade de englobar todas as esferas da vida.
Palavras-chave
Literatura e cinema; ponto de vista narrativo; romance estadunidense; Rachel Kushner; ato socialmente simbólico
Abstract
The hypothesis of this essay is that the novel “The Flamethrowers”, by Rachel Kushner (2013), has as its construction and style principles the adaptation, for the literary narrative, of a series of elements and cinematic techniques, as well as inserts as thematic content for the center of consciousness of the work the notion of base and superstructure. The analysis brings as reference the concept of literature as a socially symbolic act, by Fredric Jameson, as well as one of the many leitmotifs present in the book: the fire. I argue that the elements of construction and style are responsible both for the historical anchorage and for the representation, in the narrative layers, of late capitalism in its ability to encompass all spheres of life.
Keywords
Literature and film; Narrative point of view; American novel; Rachel Kushner; social symbolic act
...ele [o texto, o corpo do texto] não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem (esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos dispostos no texto como sementes e que substituem vantajosamente para nós as semina aeternitatis, os zopyra, as noções comuns, as assunções fundamentais da antiga filosofia).
- Roland Barthes
1. Primeira faísca: De Nero a Reno
Suetônio e Dião Cássio, em suas versões historiográficas1 acerca do incêndio em Roma, contam que o imperador Nero, além de ser o responsável pelo crime, tomou seu tempo durante o incêndio para a prática artística de cantar versos, provavelmente compostos por ele, acerca da tomada de Ílion. A versão de Tácito é similar, embora assuma que tal alegação seria oriunda de rumores populares. Para o autor, Nero, enquanto o incêndio consumia Roma, teria se afugentado em seu teatro particular e “cantado a destruição de Tróia, comparando os desastres presentes às calamidades das antigas eras” (Ribeiro, 1985, p. 64). Enquanto a cidade era reduzida a cinzas, conta a lenda que Nero dedicava seu tempo à prática artística. A personagem Reno, de The Flamethrowers, obra objeto do presente ensaio, parece estabelecer uma atitude bem semelhante à de Nero, embora não fosse imperatriz, nem tivesse uma posição de centralidade política. Ainda que algumas críticas ao romance, como é o caso de Miller (2013), o compreendam como uma obra que tem como foco a personagem (por vezes narradora) Reno e o modo como não é ouvida, contesto essa perspectiva por meio do argumento de que isso é uma leitura que permanece na superfície da obra, e a construção complexa desta direciona para leituras mais críticas.
Em uma leitura mais aprofundada, é possível argumentar que Reno não ouve nem vê o que é mais relevante ou, ainda mais grave: ignora deliberadamente muito do que é politicamente substancial que se passa ao seu redor. Assim, o fato de ela não ser ouvida torna-se sintoma de um momento histórico em um contexto específico do qual ela faz parte, que se caracteriza por essa negação de olhar.
Algumas das críticas que fazem uma leitura feminista focada em Reno são as de Miller e de Miriello. Miller (2013) enfatiza o silenciamento da voz de Reno em relação ao apagamento da voz de Kushner em um ambiente ainda tomado majoritariamente pela crítica masculin(ist)a; enquanto Miriello alega que “Reno não apenas apresenta uma história, mas apresenta um momento no tempo, além de uma realidade que muitos homens [...] sabem muito pouco, isso se souberem algo: os ouvidos surdos que recebem a mente e as ambições de uma mulher” (2013, tradução nossa2). Parece que tanto Miller, quanto Miriello dão uma centralidade muito grande ao ponto de vista de Reno, equiparando-o à perspectiva da própria Kushner. Contudo, embora haja de fato algo de bastante feminista na obra, não se trata da exposição de uma suposta não audição do que Reno fala, mas de outras figuras femininas do romance, que aparecem em momentos restritos, como Anna ou Bene, ou ainda na crítica feita à construção da masculinidade em relação à violência da guerra. Além disso, o romance traz diferentes narradores que permitem, a partir de uma leitura mais aprofundada, mais de “fruição”, na acepção de Roland Barthes (2015), perceber uma necessidade de direcionar a leitura para muito além de Reno, exatamente por tudo o que é relevante e aparece apenas na periferia de seu discurso, ou melhor, de sua câmera. O centro de consciência da obra não seria, então, a narradora parcial Reno com sua câmera, mas tudo o que se passa na periferia da filmagem, ou o que não é captado diretamente pelo foco, pelo close up, da “câmera-Reno”.
“I told this friend of Nadine and Thurman’s that I was from Nevada and he started calling me Reno. It was a nice word, he said, like the name of a Roman god or goddess. Juno Or Nero” (Kushner, 2013, p. 57, grifos nossos). Reno, anagrama de Nero, por mais de uma vez vivencia momentos de ampla movimentação política e social, inclusive incêndios em Roma, como as luxuosas e seletivas lojas da Via del Corso, durante as demonstrações populares contra as políticas dos anos de Chumbo no final da década de 1970. No entanto, sua preocupação está em um fazer artístico supostamente “apolítico” – filmar balões brancos subindo ou fotografar as marcas que os pneus de sua moto fariam nas planícies de sal de Utah –, além de suas próprias querelas, pois seu modo de relação com o mundo é focado unicamente em si mesma, em suas intenções amorosas e em sua ambição de ser uma artista aceita no ambiente nova-iorquino dos anos 1970.
Assim como Tucker-Abramson (2019) critica a articulação das análises que sobrepõem o ponto de vista da narrativa ao ponto de vista de Reno, propondo, no lugar, “uma leitura que identifique Reno e sua constante tendência de achatar, mercantilizar, fragmentar e interpretar mal o mundo político e artístico dos anos 1970 não como uma operação, mas como problema do romance” (p. 75, tradução minha), procuro demonstrar neste ensaio como a obra se constrói como ato socialmente simbólico (Jameson, 1992), não apenas em termos de conteúdo temático, ou seja, a interpretação de mundo de Reno, mas também no que se refere à construção formal e estilística. Kushner estrutura a obra em camadas permeadas de referências a serem exploradas, desde a camada mais superficial, ou seja, a superestrutura – mundo artístico em que Reno tenta insistentemente se inserir—, às movimentações sociais e à base do sistema de produção – inúmeras referências ao trabalho escravo, ou, como diria o termo jurídico em voga, “trabalho análogo à escravidão”; além das relações entre as classes trabalhadoras e as classes burguesas, culminando no capitalismo recente.
Além das inúmeras referências cinematográficas diretas, como citações de filmes, presentes na narrativa, busca-se aqui mapear como Kushner constrói o romance com recursos advindos da “sétima arte”, engendrando cada passagem da obra, seja tematicamente, por meio do leitmotiv do fogo (Nero-Reno); seja formalmente, por meio de diferentes pontos de vista que procuram incorporar recursos cinematográficos; ou, ainda, na articulação entre fogo e cinema: os arquivos de filme que pegam fogo: “twice in the first few weeks of working at Bowery Film, a waste container of nitrate film spontaneously burst into flames”; e filmar na escada de incêndio: “scenes I filmed from the fire escape on Mulberry” (Kushner, 2013, p. 87).
Este ensaio, então, busca identificar como a Rachel Kushner articula, em The Flamethrowers, a teoria cinematográfica à teoria literária em um livro bastante metaliterário/metacinemático, além de propor uma análise da obra tomando como fio condutor o leitmotiv do fogo, que aparece no título, na epígrafe que dá nome a este ensaio, e em diversas outras passagens da narrativa, apresentando novos sentidos a cada recorrência.
2. Luzes, câmera, narração: Cinema na literatura?
I took out the camera and filmed
(Kushner, 2013).
A epígrafe desta seção é uma passagem do capítulo 15, “The march on Rome”, quando a personagem Reno está em Roma, na Itália, no meio de uma manifestação popular. Esse momento do livro tem uma dupla significação para o que se propõe neste ensaio: a primeira é a consideração de que, no lugar de filmar a manifestação, Reno filma balões brancos de hélio que sobem paralelamente às paredes dos edifícios:
Why this? I couldn’t say. But I watched through the viewfinder as the balloons went up, riding smoothly skyward on invisible elevators. Up, up, passing each floor of a tall building. Balloons pure and drifting, their stretched skin the sheer white of nurses’ stockings (Kushner, 2013, p. 281).
Essa sequência reflete um vazio de conteúdo que perpassa a narrativa enquanto direciona o olhar do leitor à câmera de Reno: os balões brancos que sobem, contrapondo-se às manifestações populares, às lojas incendiadas, aos saques, à distribuição de produtos antes destinados a poucos: “’Furs for the people!’ Plastic hangers dropping behind them as they ran. […] A shop was on fire, black smoke pouring out from the rectangle of darkness where the door’s glazing had been. There were Molotovs and Moka bombs” (Kushner, 2013, p. 280-281). Ironicamente, as peles foram saqueadas da loja “Luisa Spagnoli”, de onde Reno recebeu de seu namorado Sandro Valera vestidos caros para adequá-la aos jantares aristocráticos oferecidos por sua mãe, Alba Valera, no ambiente concomitantemente luxuoso e desconfortável da Villa Valera. Além disso, o próprio título do capítulo já apresenta uma contradição: a “Marcha sobre Roma”, de 1922, foi a manifestação fascista que culminou na ascensão de Benito Mussolini ao poder. No romance, o capítulo com esse nome traz tanto o sentido do passado fascista que perdura, conforme veremos na sequência do ensaio, quanto à relação de oposição a essa permanência pelas manifestações comunistas, feministas e estudantis da segunda metade da década de 1970. Por outro lado, o fato de Reno mostrar-se alheia a toda demonstração popular no momento de sua “marcha individual” sobre Roma, a coloca nesse ponto de intersecção da contradição, o que a faz pender para a alienação (balões brancos no lugar do incêndio à propriedade privada).
A segunda razão da escolha da epígrafe desta seção é a relação que ela estabelece com a forma do romance, mais especificamente com a teoria cinematográfica e com o ponto de vista da narrativa. Há diversos recursos cinematográficos adaptados à construção do romance, sendo a presença de diferentes pontos de vista quiçá o mais explícito, pois eles funcionam como câmeras em variadas técnicas de enquadramento, movimentação ou perspectiva. Mas, além desse, bastante estruturante, elementos como placas, grafites, pichações e até mensagens escritas com urina aparecem como marcadores semelhantes aos recursos gráficos do cinema; as referências constantes a filmes e a elementos cinematográficos, como o emprego de Reno como China Girl e os frames de filmes que Kushner insere entre os capítulos provocam essa leitura inter-relacional. Para compreendermos como esses elementos cinematográficos permeiam e até estruturam a obra de Kushner, torna-se necessária a articulação de conceitos advindos de teorias cinematográficas e literárias.
Sergei Eisenstein (2002), no ensaio “Dickens, Griffith e Nós”, traça uma genealogia do estilo cinematográfico de David Griffith, alocando-o como herdeiro da estética literária de Dickens: “essa vinculação é realmente orgânica, e a linha ‘genética’ de descendência é bastante consistente” (Eisenstein, 2002, 176). O teórico e cineasta continua, demostrando como a contradição entre velocidade e parada e a técnica da montagem paralela, presentes na obra de Griffith, são também herdeiras da literatura: “Dickens parece ser a fonte de ambas as linhas do estilo de Griffith” (Eisenstein, 2002, p. 178). A montagem paralela seria a alternância de sequências que se passam em espaços diferentes, porém no mesmo momento, muitas vezes culminando em um “encontro” espaço-temporal. Xavier (2021) explicita que esse recurso consiste na focalização de acontecimentos simultâneos, como acontece em sequências de perseguições:
Neste esquema, um tipo de situação que solicita uma montagem que estabeleça uma sucessão temporal de planos correspondentes a duas ações simultâneas que ocorrem em espaços diferentes, com um grau de contiguidade que pode ser variável. Um elemento é constante: No final, será sempre produzida a convergência entre as ações e, portanto, entre os espaços (Xavier, 2021, p. 29)
A montagem paralela foi um importante modo de desenvolvimento da narração cinematográfica, assim como a mudança do ponto de vista na apresentação de uma única cena. O autor ainda especifica a relação que Chklovski traça entre a teoria narrativa cinematográfica e a literária. O “enquanto isso...” produzido pela montagem paralela tem raízes literárias, mas é trabalhado de maneira distinta no cinema em decorrência da movimentação imagética. O efeito de suspense é fornecido através da suspensão, da expectativa, mas há também presença da profundidade, que se deu antes da utilização do movimento de câmera.
Xavier ainda estabelece uma classificação de planos de maneira bastante clara e didática. Para o autor, um plano é a extensão de filme entre dois cortes e seu ponto de vista específico em relação ao seu objeto filmado. O plano geral diz respeito a cenas localizadas em cenários amplos quando a câmera mostra todo o espaço da ação. No plano médio, a câmera mostra o conjunto de elementos envolvidos na ação e abrange um campo de visão um pouco inferior ao geral. O plano americano corresponde ao ponto de vista em que figuras humanas são mostradas da cintura para cima pela proximidade. No close-up ou primeiro plano a câmera apresenta apenas um rosto ou detalhe que ocupa quase a totalidade da tela. É o que acontece quando Reno focaliza nos balões brancos: há um fechamento da objetiva, antes em Plano Geral, para focalizar apenas aquele elemento.
Essa teoria dos planos colabora para que percebamos elementos do filme a partir de um ponto de vista específico. Xavier ainda descreve como esses planos e ângulos constituem os traços básicos da decupagem clássica. Um dos elementos principais dessa convenção é que a montagem só vem quando a descontinuidade é indispensável para representação de eventos separados no espaço e no tempo: “permanece aceitável e natural porque a descontinuidade temporal é diluída numa continuidade lógica” (Xavier, 2021, p.28).
O primeiro plano surge como uma necessidade de oferecer uma informação indispensável, ou, como disse Eisenstein, uma unspoken hint. Se os balões brancos são focalizados quando tanta coisa relevante acontece, inclusive mortes e espancamentos pelos carabinieri, temos aí um indício forte de que olhar ou focalizar determinados elementos no lugar de outros é um ato deliberado da parte da personagem-câmera.
Além desses efeitos, Xavier explicita o surgimento histórico de diversas outras técnicas, como as panorâmicas e os travellings. A montagem elaboraria, com a utilização dessas técnicas, uma continuidade espaço-temporal reconstruída. É aí que o autor chega ao conceito que determinará o que é a decupagem clássica:
O que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível. (2021, p.32, grifo no original)
Comparativamente, na literatura, esses efeitos dizem respeito à organização diegética e à estrutura da obra. A diferença é que, como propõe Pasolini (1988), enquanto a literatura se utiliza de material linguístico, o cinema lança mão de um tipo específico de composição imagética e sonora. Assim como na narrativa literária, algum elemento formal pode ser manipulado para produzir um efeito diferente dessa “invisibilidade” da técnica clássica, que tem a função de fazer com que o leitor/espectador “mergulhe” na obra de maneira acrítica, muitas vezes se identificando com personagens. No cinema com uma tendência à elaboração artística, podemos perceber elementos de construção que explicitam uma diferença dessa noção de decupagem clássica para trazer à tona aspectos inicialmente invisíveis ao mero enredo. Contudo, podemos pensar esses elementos em termos de recepção: um espectador que tenha uma percepção voltada ao cinema de “entretenimento” pode não captar esses elementos de construção, pois seu foco está na superfície do enredo.
Percebemos que há, então, um paralelismo na construção das obras cinematográficas com foco no entretenimento e das obras literárias que buscam meramente uma identificação do leitor a determinada personagem e o antagonismo à outra, “escondendo” seus recursos técnicos para atingir o objetivo de verossimilhança interna, o que resulta em uma leitura fluída e despreocupada. Por outro lado, há obras com inserção visível de elementos técnicos e estilísticos, que estão lá para serem percebidos e produzirem uma leitura mais crítica e complexa, talvez até mais desconfortável, algo próximo do que Barthes classifica como a verticalidade da leitura em um texto de fruição3, em oposição à horizontalidade de um texto de prazer:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (Barthes, 2015, p. 20-21)
Assim, um texto de prazer estaria para um filme construído por meio da decupagem clássica ou da “montagem invisível” (Xavier, 2021, p. 41), assim como um texto de fruição estaria para um filme construído deliberadamente para explicitar algum elemento da forma, produzindo uma sensação de estranhamento ou desconforto. The Flamethrowers, o romance aqui em estudo, explicita esse último tipo de construção e apresenta tanto elementos de “montagem invisível” nas passagens em que Reno ignora o caos à sua volta e foca em elementos que parecem, em um primeiro momento, isentos; por outro lado, o romance explicita diversas outras estratégias cinematográficas e efetiva uma montagem bem distinta da clássica.
No entanto, a obra de Kushner ultrapassa a ideia de exposição da forma. As concepções de relação entre forma literária e cinematográfica em Pasolini, Eisenstein e Xavier apresentam uma relação de derivação da primeira para a segunda, talvez em decorrência da história da literatura anteceder à do cinema. Assim como para Eisenstein a técnica da montagem paralela, por exemplo, é herdeira do “enquanto isso” da literatura (em Dickens, mais especificamente), Pasolini coloca essa derivação de maneira ainda mais estrutural, propondo que a imagem literária inspira a cinematográfica. O autor também propõe a concepção de “cinema de poesia” por meio de uma desobediência à ordenação narrativa proposta pelo cinema hollywoodiano e pelo neorrealismo italiano. Kushner se apropria dessas ideias e inverte a lógica, fazendo com que a obra literária lance mão de técnicas cinematográficas, mas sem reduzi-las a tal. Funciona como uma espécie de retroalimentação, em que a técnica literária inspira a cinematográfica, que passará a inspirar a literária e assim por diante, em um movimento esférico:
Embora antes da publicação já houvesse algo de teorização acerca da apropriação de elementos cinematográficos pela literatura, como é o caso da concepção de “narrador câmera” de Norman Friedman (1955), o romance de Kushner radicaliza essa noção. Para Friedman, o ponto de vista da câmera implica na completa exclusão autoral/de narrador na literatura, além de ser um ponto de vista passivo, que apenas mostra o que se passa à sua frente. Reno, por vezes, age como uma câmera assim, passiva, mas a construção do romance atinge altíssima complexidade e insere inúmeras dimensões à narrativa.
Tomemos como exemplo a noção de decupagem clássica, que é usada para a construção do paradigma da continuidade narrativa espaço-temporal no cinema hollywoodiano, que tem o intuito de articular os acontecimentos um após o outro e assim trazer conforto ao espectador, que assume certa passividade, pois esse tipo de construção exige uma recepção menos crítica. Ao ser atravessado por um pathos construído deliberadamente através do vínculo dos efeitos de imagem e som (trilha sonora triste em cenas tristes, canções românticas em cenas de amor, batidas eletrônicas em cenas de ação etc.), ele é direcionado a aderir à câmera e seus efeitos. Em The Flamethrowers, esse movimento é completamente subvertido, pois Kushner desestabiliza a montagem sequencial em duas dimensões: a primeira se dá na sequenciação dos capítulos; a segunda, na alternância de tempos, nas analepses e prolepses.
Um exemplo desse primeiro mecanismo de desestabilização é a sequência do capítulo 12. The Sears Mannequin Standard, seguido de 13. The trembling of the leaves. Isso porque, no capítulo 12, Reno narra conversas com Ronnie (o primeiro rapaz com quem se relaciona sexualmente ao chegar a NY), trechos de encontro com Sandro, o momento em que Sandro atira em um assaltante, além de conversas na casa dos Kastle, momento em que citam o fetiche por armas; enquanto o capítulo 13 traz a relação do pai de Sandro, três décadas antes, com a extração de borracha na Amazônia brasileira, seguido de uma cena em plano-sequência de um seringueiro fugindo, cena essa que será tratada com maior profundidade na seção “Do que resta das cinzas”. A desestabilização não se dá apenas pela reversão da ordem cronológica, recurso usualmente trabalhado em obras literárias, mas pelas sequências “montadas” no capítulo 12, representando a superestrutura, enquanto o plano sequência no capítulo 13 explicita o realismo da base. Alocados um na sequência do outro, emanam certo desconforto, ignorado apenas por um leitor desatento.
Assim, a montagem paralela no romance subverte a lógica sincrônica do “enquanto isso”, que proporia duas ou mais ações simultâneas em espaços diferentes convergindo para um mesmo espaço. O paralelismo cronológico é quebrado ao inserir o “enquanto isso” décadas antes, na vivência de um seringueiro tentando fugir do trabalho escravo que fornece matéria-prima para a própria indústria pela qual Reno consegue uma espécie de “patrocínio”: a Valera Motorcycle Company. Esse enquanto isso busca mostrar, assim, base e superestrutura pela montagem paralela, como se dissesse: essa história perdura e marca tudo isso que está acontecendo aqui, no presente de Reno. Poderíamos chamar essa montagem de paralelismo diacrônico, ou, ainda, anacrônico, se pensarmos que esse passado modela o presente por meio dos escombros deixados pelas guerras, pelos processos colonizatórios, pelo trabalho escravo e análogo à escravidão, pelas políticas fascistas e pela ressurgência anacrônica de todas essas questões formadoras da sociedade como ela é hoje. Assim, essa adaptação da montagem paralela aparece como uma teorização metaliterária e metacinemática do ato socialmente simbólico como proposto por Jameson.
Para o autor, a História só pode ser apreendida pela mediação de textos a serem interpretados, pois ela é inacessível senão por meio de uma “retextualização”: “esta História só pode ser apreendida por meio de seus efeitos, e nunca diretamente como uma força reificada” (Jameson, 1992, p. 46). Assim, a literatura é vista como um ato socialmente simbólico, que deixa transparecer uma espécie de “inconsciente político” dessa História:
A História é a experiência da Necessidade, e só esta pode impedir sua tematização ou reificação como simples objeto de representação ou como um código-mestre entre outros. A necessidade, nesse sentido, não é um tipo de conteúdo, mas a inexorável forma dos acontecimentos; portanto, é uma categoria narrativa no sentido amplo de um inconsciente político verdadeiramente narrativo que aqui defendemos, uma retextualização da História que não a propõe como uma nova representação ou “visão”, como um novo conteúdo, mas como os efeitos formais daquilo que Althusser, seguindo Spinoza, chama de “causa ausente” (Jameson, 1992, p. 93).
O método de análise e interpretação de Jameson pressupõe três “molduras concêntricas”, que correspondem a:
uma ampliação do sentido do campo social de um texto por meio das noções, em primeiro lugar, de história política, no sentido estrito do evento pontual e de uma sequência semelhante a uma crônica dos acontecimentos ao longo do tempo, e, em seguida, da sociedade, no sentido agora já menos diacrônico e sujeito ao tempo de uma tensão e uma luta constitutivas entre as classes sociais, e, por fim, da História agora concebida em seu mais amplo sentido de sequência de modos de produção e da sucessão e destino das várias formações sociais humanas (Jameson, 1992, p. 68, grifos nossos).
Essas “molduras” propostas por Jameson fazem emergir a ideia de que há algo, um inconsciente político, subjacente ao texto, que fica oculto à mera superfície narrativa. Assim, apegar-se à perspectiva de Reno e olhar apenas para onde ela direciona nosso olhar, significa ignorar com ela todo conteúdo político, social e histórico subjacente na obra.
A maior parte dos capítulos é narrada por essa personagem sem nome que é chamada, na narrativa, de Reno. Apesar de ser comumente considerada protagonista da obra, ela narra as cenas e os acontecimentos como se fosse apenas uma testemunha de eventos que não estão acontecendo diretamente com ela. Assim, ela é uma espécie de testemunha da história, em vez de protagonizá-la. Se retomarmos a teoria do ponto de vista da narrativa de Norman Friedman, a perspectiva dos capítulos narrados por ela se aproxima mais do conceito de “Eu como testemunha” do que de “Narrador protagonista” (Friedman, 1955, p. 1174). Ao mesmo tempo, como explícito nos parágrafos anteriores, temos como hipótese de que a narração de Reno também funciona como uma câmera. Ela mesma estudou cinema e por vezes está gravando cenas. Contudo, mesmo quando ela não está carregando sua câmera, o modo como a narrativa é construída replica esse olhar por trás da lente. Ela narra um conjunto de fragmentos que, unidos, contribuem para a montagem de um todo.
Embora os eventos sejam filtrados por sua experiência subjetiva, como é comum no caso de narradores-protagonistas e testemunhas, ela não parece ter reflexões significativas sobre o que retrata nas cenas. Ela apenas descreve e as compara a seus afetos, como na passagem em que ela aguarda por Gianni no capítulo 20. Her velocity: “Wind gusted, stirring the snow-laden branches of the pine trees that clustered along the sides of the slope. The wind moving those trees sent an exhilarating loneliness through me. I looked up, waiting to see the red jacket.” (Kushner, 2013, p. 382). Essas imagens retratadas por Reno não são organizadas de forma aleatória, mas amalgamadas em uma montagem, que estabelece diversos paralelismos e leitmotive que podem ser interpretados como elementos simbólicos, a exemplo do fogo, que será analisado na próxima seção.
A relação dialética entre a velocidade e a lentidão é retratada na montagem da obra, como se fosse uma narrativa cinematográfica, com a “conexão dos fragmentos como um todo coeso” (Eisenstein 2010, p. 12, em tradução livre). Para conectar esses elementos, é necessário que a narrativa reflita na técnica, ou seja, tenha ressonância na forma da obra: “Ski racing was drawing in time, I said to Sandro. I finally had someone listening who wanted to understand: the two things I loved were drawing and speed, and in skiing I had combined them.” (Kushner, 2013, p. 9, grifo no original). Desenhar “no tempo” pode ser interpretado como inscrever uma imagem no próprio tempo, como o conceito de “imagem-tempo” que Deleuze (2005) desenvolve em sua teoria do cinema. A imagem-tempo retrata a concepção bergsoniana de “tempo puro” ou Aion adaptada à teoria do cinema. Reno ama a velocidade e está sempre buscando por ela, mas seu olhar-câmera é comumente esvaziado e lento, o que traz à tona outro elemento simbólico: a cor branca. Além da sequência dos balões em Roma e do momento em que ela aguarda por Gianni, a brancura está presente em diversos momentos: ela esquia na neve logo no começo da narrativa. Quando já mora em Nova Iorque, decide competir na planície de sal (Bonneville Salt Flats), no intuito de filmar as marcas deixadas pelos pneus da moto na brancura do chão.
Nessas cenas e sequências, o elemento cinematográfico da iluminação também está presente por meio de descrições: “At the flats, the sun conspired with the salt to make a gas of brightness and heat pouring in from all directions, its reflected rays bouncing up from the hammered-white ground and burning the backs of my thighs right through my leathers” (Kushner, 2013, p. 24 – grifos nossos).
Reno busca pela velocidade, mas suas cenas são difusas e lentas. Mesmo a cena do seu acidente na planície de sal tem diversas referências à lentidão, embora ela afirme que tudo aconteceu simultaneamente:
What happens slowly carries in each part the possibility of returning to what came before. In an accident everything is simultaneous, sudden, irreversible. It means this: no going back. I know the wind gusted and that I crashed. What came after was slower, but I wasn’t there for it. The lights were out. (Kushner, 2013, p. 31, grifos nossos).
O fim da cena em “lights out”, ao mesmo tempo em que reflete o desmaio da personagem, é uma referência ao cinema, ao começo ou fim de uma cena ou filme.
A lentidão é representada de maneira ainda mais potente nas cenas em que Didi Bombonato está esperando para competir e os trabalhadores da equipe Valera fazem operação-tartaruga “in solidarity with the Valera workers back in Milan” (Kushner 2013, 122). Eles começam a fazer tudo lentamente e isso se reflete na narrativa, que se torna também lenta e repetitiva:
The six technicians and their team manager emerged from the tool and equipment trailer with extreme slowness, as if the baking white salt were a kind of thick gel that offered great resistance, as they moved toward the workbench onto which the Spirit had been wheeled for a maintenance check. The team manager picked up a drill in curious slow motion (Kushner, 2013, p. 121, grifos nossos).
A ansiedade de Didi por bater o recorde e ao mesmo tempo depender dos empregados que apoiam a greve da fábrica na Itália é outro momento em que há a construção de um olhar direcionado para algo que ignora a relevância do momento político. Essa cena, narrada por Reno, cita o enfado de Didi e a ansiedade por bater o recorde mundial em Bonneville Salt Flats, classificando a greve como um “azar”, assim como no episódio de seu grande ídolo Flip Farmer, que alega que as enormes manifestações de Watts4, em 1965 em Los Angeles, somadas à chuva na planície de sal eram má sorte aleatória. “What a year of random bad luck”, consta em sua autobiografia, que Reno atribui a um ghost writer.
Além dos capítulos narrados por Reno, há outros com um narrador aparentemente heterodiegético. Contudo, uma análise mais detalhada faz-nos perceber que esse outro (ou outros) narrador também funciona como uma câmera dentro da narrativa. No entanto, ele assume perspectivas e focos distintos dos de Reno, que tem uma visão mais restrita. O primeiro capítulo, “He Killed Him with a Motorbike Headlamp (What He had in his Hand)”, conta a história do velho Valera (pai de Sandro), quando mata um alemão com a lâmpada da moto. Essa sequência não tem cortes e apresenta mais ação do que quaisquer outras sequências narradas por Reno, por descrever a ação em si, em oposição a “desenhar no tempo”:
Valera pulled the heavy brass casing free and went for a dump tackle. The German was down. Valera tumbled after him. The German scrambled to his knees and tried to grab the headlamp, which was just about the size and shape of a rugby ball but heavier, with a braid of cut wires trailing it like a severed optic nerve. Valera struggled to regain control of the headlamp. Twice he grubber-kicked it but somehow the German ended up in possession. Valera grounded him, kneed the German in the face, and pried his fingers from the headlamp. There was, after all, no penalty here for foul play, no one to flash him a red card in the quiet woods. His own platoon was miles ahead, and somehow this lone German was loosed from his pack, lost among the poplars. The German reared up, trying to shoulder-charge him. Valera brained him with the headlamp (Kushner, 2013, p. 12).
Essas cenas de ação do narrador das histórias do passado também estabelecem um contraponto às cenas em “câmera lenta” de Reno. Além de trazer a primeira referência ao título do livro: os lança-chamas da primeira guerra mundial.
3. Fac ut ardeat: (retro)futurismo?
Afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida, com seu capô adornado com grandes tubos semelhantes a cobras com respiração explosiva... um carro rugindo, que parece correr em metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia. Marinetti (Manifesto Futurista)5
Fac ut ardeat é a epígrafe do livro, que reaparece na narrativa diretamente em dois momentos. A tradução direta do latim seria “faz para que arda”, mas tem sentido de “deixa queimar”, assim como Nero, diz a lenda, “deixa Roma queimar”. No entanto, o verbo ardere assume diversas significações conotativas: o arder do fogo pode também simbolizar o arder da paixão sexual. Desde as literaturas clássicas e helenísticas houve inúmeras referências a Eros relacionando-o a uma ardência do amor, como é o caso do Idílio 2, de Teócrito, em que Simaeta faz um katadesmos, ou feitiço de amor, em uma fogueira, ou ainda no incipit de um dos mais conhecidos sonetos camonianos “Amor é fogo que arde sem se ver”. No entanto, esse arder pode também significar o amor em termos “divinos”, o amor religioso, como na autobiografia de Santa Teresa D’Ávila: “eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus”. Em italiano, o verbo assumiu também o significado de coragem, de ardor da ação. O pai de Sandro Valera, inclusive, fez parte dos arditi, uma divisão do exército italiano na primeira guerra mundial. O adjetivo ardito significa também audaz, ousado. Uma das armas dos arditi era o lança-chamas (flamethrower), que nomeia a obra.
Além disso, o fogo e a noção de fac ut ardeat, em suas diferentes conotações, também estabelece no livro uma conexão com a epígrafe desta seção, um elemento ambivalente que compõe os aspectos históricos e ideológicos apresentados em “The Flamethrowers”: a “beleza da velocidade”, a exaltação de uns à guerra, à máquina e a um nacionalismo bastante exacerbado. A personagem Reno com sua motocicleta Valera e dirigindo o “Spirit of Italy”, carro de Didi Bombonato, apresenta uma relação eufórica com essa tendência, tornando-se a mulher mais rápida do mundo: “I was, improbably, the fastest woman in the world, at 308.506 miles an hour” (Kushner, 2013, p. 135). No entanto, a obra também mostra o que está subsumido nessa paixão pela velocidade vivenciada por Reno e indicada por Marinetti no Manifesto Futurista, ao estabelecer uma montagem que articula os capítulos do tempo presente de Reno (década de 1970), com capítulos em que T. P. Valera, o pai de Sandro, vivencia o nascimento do futurismo nas primeiras décadas do século XX, a primeira guerra mundial e a ascensão do fascismo. Se por um lado Reno se coloca de maneira “apolítica” na narrativa, seus gostos e movimentos a aproximam mais do futurismo-fascismo do Valera-pai do que do mundo artístico minimalista de seu namorado Sandro, que acreditava que “he was born on the wrong side of things” (Kushner, 2013, p. 373).
Há, na obra, referências diretas e indiretas ao movimento futurista. O nome do carro de Flip Farmer, o corredor velocista que Reno idolatrava, quando mais nova, era Vitória de Samotrácia: “Growing up, I loved Flip Farmer like some girls loved ponies or ice skating or Paul McCartney. I had a poster above my bed of Flip and his winning car, the Victory of Samothrace” (Kushner, 2013, p. 20). A Vitória de Samotrácia é uma escultura da deusa grega Nike (Νίκη), a deusa da Vitória. Quando Marinetti estabelece uma comparação superlativa entre um carro rugindo em alta velocidade e a escultura da deusa (que foi encontrada no século XIX sem cabeça, diga-se de passagem), enaltece a máquina como a verdadeira vitória e questiona o valor histórico. O carro de Flip Farmer se parece bastante com a descrição do desejo de Marinetti: “The Victory of Samothrace was just behind him on the salt. It was painted the same lavender as the refracting undertone of Flip’s flameproof suit, hand-rubbed color lacquered to a fine gleam, silver accents on the intake ducts and tail wing” (Kushner, 2013, p. 20).
Outra referência direta ao futurismo (e ao fascismo) acontece com T. P. Valera, pai de Sandro, que depois de morto, em 1958, tem gravado em sua lápide: “T. P. VALERA, ARDITO, FUTURISTA, PADRE, MARITO” (Kushner, 2013, p. 221-222, grifos nossos). Sua atuação como ardito aparece no primeiro capítulo do livro, quando ele luta após ter se alistado com seu grupo de amigos motoqueiros na primeira guerra mundial e mata um alemão com o farol da moto de seu amigo Copertini, que havia morrido ao trombar com uma árvore. A construção não linear da narrativa e a montagem dos acontecimentos passados alocados depois de acontecimentos futuros – não apenas na relação Valera-pai no passado e Reno no futuro, mas também na própria ordem narrativa das histórias de Valera-pai e das vivências de Reno – traz uma dupla significação nesse caso. Iniciamos a leitura com uma cena bastante violenta em plano sequência. Não temos muitas informações além da morte de Copertini, da presença das motos e do próprio lança-chamas que dá nome ao livro: “He heard the faint whoosh of a flamethrower and the scattered echo of shelling” (Kushner, 2013, p. 1). Isso já deveria ser um indício de que, para adentrar no centro de consciência do livro, é necessária uma interpretação que ultrapasse a perspectiva de Reno como narradora, pois a cena do Valera ardito é a “primeira impressão”, o incipit da narrativa. Mas há uma segunda questão nessa organização que tem relação com o próprio “trabalho de montagem”. Para Eisenstein, a montagem não seria apenas um recurso cinematográfico, mas o conceito primeiro do pensamento humano. Um fenômeno característico do comportamento, como pontua o autor (2010, p. 133), é que a natureza humana é incapaz de comunicar um evento com total objetividade. A montagem se dá na junção de fragmentos da memória, formando a concepção de um todo.
No caso de The Flamethrowers, cabe ao leitor fazer o esforço de unir os fragmentos e reconstruir a narrativa, assim como a leitura feita por Eisenstein (2010) do conto “The crime of Captain Gahagan”, de Chesterton. A cada episódio ou capítulo há a elaboração de uma nova camada, que constrói a narrativa verticalmente. O esforço de (re)construção dessa verticalidade permite que se percebam inúmeras “unspoken hints”, outro termo utilizado por Eisenstein. Temos aquela primeira informação sobre T. P. Valera lutando na primeira guerra mundial como ardito, matando a sangue frio um soldado alemão e não demonstrando nenhum tipo afeto por seu colega morto (ironicamente) não em batalha, mas em um acidente de moto. Tempos depois, teremos mais camadas de construção desse personagem, como nos capítulos 3 “He had come a long way to that moment of quick violence” e 5 “Valera is dead”, quando Valera-pai conta o início de sua paixão pelas motos, que se dá após uma decepção amorosa com a moça Marie, que morava no convento vizinho à sua casa. Curiosamente, Valera morava, nessa época, final do século XIX, em Alexandria, no Egito, mesma origem de Marinetti, o “pai” da estética futurista italiana citado na epígrafe desta seção. A paixão pela moto nasce quando Valera vê Marie montar na garupa de uma, algo novo naquele momento da história, sendo levada por um homem com quem provavelmente também estava se relacionando. A decepção amorosa somada ao desejo de ser como aquele rapaz que levava Marie parece ter despertado a necessidade de também ser “motorizado”. Já de volta à Itália, acaba ingressando no grupo de motociclistas liderado por Lonzi.
A paixão pelos veículos motorizados e a infância em Alexandria não são as únicas referências que aproximam Valera de Marinetti: o modo como a mulher é reificada (e metonimizada, como se fosse restrita a um pedaço de corpo) e o apoio à guerra também contribuem para esse paralelismo. O item 9 do Manifesto Futurista propõe: “Queremos glorificar a guerra – a única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pelas mulheres” (Marinetti 1914, 6, tradução nossa). Assim como Marinetti, Valera e sua gangue exaltavam o armamento militar, a concepção eugenista e colonialista de que a guerra é a única “higiene do mundo” e demonstravam desprezo pelas mulheres, a começar por Marie, a quem passa a se referir como um “pé”, para fazer parte daquele grupo “viril e metalizado”:
As Valera became a part of Lonzi’s gang, the image of Marie’s young foot, summoned by Lonzi’s performance of mock amputations, stayed with him. The foot belonged to Valera, an appropriation that had something to do with being virile, metalized, and part of a group of men also virile and metalized. (KUSHNER, 2013, p. 76)
O fetiche pelo pé de Marie ainda é menos degradante que o “ideal futurista de mulher” de Lonzi, que, assim como a deusa Nike da estátua Vitória de Samotrácia, não necessita de uma cabeça:
Standing on a chair at the front of the café, Lonzi said that in the future women would be reduced to their most essential part, a thing a man could carry in his pocket. [...] Women will be pocket cunts, Lonzi said. Ideal for battle, for a light infantryman. Transportable, backpackable, and silent. You take a break from machine-gunning, slip them over your member, love them totally, and they don’t say a word. (KUSHNER, 2013, p. 76)
Essa violência que replica o “ideal futurista” de “desprezo pelas mulheres” parece uma reificação tão absurda no momento da leitura que produz um efeito de distanciamento (Verfremdungseffekt) nos termos brechtianos (1991): “The foot was his. Yes, Lonzi, you understand, thought Valera. Woman reduced to parts” (Kushner, 2013, p. 76). Esse é um dos elementos da obra de Kushner que poderíamos chamar de feminista, muito mais do que o fato de Reno não ser ouvida, como citamos anteriormente.
Embora Valera não chegue a reduzir a mulher à vagina, como Lonzi, no decorrer da construção de sua história percebemos como ele efetiva na prática os ideais de Marinetti: ignora sua esposa Alba (inclusive sexualmente): “His father had looked at his mother, at the dress she had on [...] “You should take a lover,” he’d said. Then he went into his study, to the right of the stairs. Shut the door and latched it” (Kushner, 2013, p. 352); e se coloca como um ser etnicamente superior quando define os seringueiros indígenas amazonenses como “Stupidest people on earth” (Kushner, 2013, p. 372).
Sandro, por sua vez, embora tente escapar de sua ascendência fascista, tem o capítulo 19 “The day Rome was founded, April 21,” dedicado à reconstrução de sua infância e de sua relação com os pais e o irmão Roberto, que replica a violência paterna com o irmão caçula. Uma questão formal interessante que ratifica a interpretação do tempo que perdura e a montagem no sentido de Eisenstein são capítulos, como esse, que reconstituem o passado histórico e de memórias e que estabelecem um enjambement entre o título e o início do capítulo. Esse recurso poético, usualmente utilizado na poesia lírica para imprimir circularidade e continuidade, é adequado aqui à narrativa, imprimindo a circularidade que o tempo histórico insere na narrativa, o que faz-nos interpretar como uma inscrição ideológica no centro de consciência da obra claramente oposta às concepções futuristas das personagens (da narrativa e da história): o título The day Rome was founded, April 21, é seguido do início do capítulo “but April 21, 1937” (Kushner, 2013, p. 355) . A fundação de Roma em 21 de abril é alocada em paralelo com o dia 21 de abril de 1937, “and so it was movies and Rome and babies and Mussolini and Papa the great industrialist, all together for a fotograph” (Kushner, 2013, p. 355). Valera pai, então, é relacionado diretamente a Mussolini, em uma clara alusão a Pirelli, colaborador do regime fascista6, inclusive em suas estratégias culturais: o Cinecittà, por exemplo, que será citado na seção “Do que resta das cinzas”.
Na infância, Sandro, inspirado pelo passado de ardito de seu pai, tinha uma coleção de bonecos de papel de unidades de arditi e de alpini da primeira guerra. Enquanto brincava, era criticado pelo pai e pelo irmão, pois talvez fosse “humano demais”, pois queria médicos para cuidar dos feridos. O pai responde que não havia médicos, era necessário carregar seu parceiro, de forma que seria “easier if he died” (Kushner, 2013, p. 359). Além disso, o pai também minimiza a grande atração de Sandro pelos lança-chamas:
The flamethrowers could have been from a different century, both brutal and ancient and at the same time horribly modern. The flame oil in the twin tanks they carried was five parts tar oil and one part crude, and they had a little canister of carbon dioxide and an automatic igniter and a belt pouch with spare igniters. The flamethrower was never, ever defensive. He was pure offense, overrunning enemy lines. He surged forth, a hulking creature with huge tanks on his back, a giant nozzle in his hand, hooked to the tanks. He was a harbinger of death (KUSHNER, 2013, p. 360).
Embora a narrativa nesse momento seja em terceira pessoa, o discurso indireto livre traz o modo como Sandro se interessava por esse “prenúncio da morte”, especialmente em sua dimensão estética, que articula passado e futuro, por serem “brutos e antigos”, ao mesmo tempo em que eram “terrivelmente modernos”. Essa contradição, no entanto, direciona para o subtítulo da presente seção: (retro)futurismo?. O título do livro carrega esse sentido, a destruição, o prenúncio da morte, por parte daqueles que parecem ao mesmo tempo brutos, antigos, e terrivelmente modernos. No entanto, os próprios lança-chamas eram apenas peões no tabuleiro da guerra, tanto que T.P. Valera extermina o sonho do filho: “But then his father told him the flamethrowers were a hopeless lot. [...] That’s not a thing you want to be, his father said” (Kushner, 2013, p. 360), enquanto o irmão, Roberto, elimina materialmente sua possibilidade de manter o imaginário:
Roberto had dumped gas from a bottle he snuck from the garage, and then lit a match. The little dolls and their cardboard tabs. The tiny asbestos sweater. The scabbard for the file-handled dagger, which fitted itself in easily because Sandro had been so careful not to bend or crease it. All carbonized to ash” (Kushner, 2013, p. 361).
O irmão mais velho precisa mostrar ao mais novo a lógica do “vencedor” eliminando o “inimigo” a cinzas: “Ardito! Your name means courage, as their first commandment went. Run into battle! Victory at any cost!” (Kushner, 2013, p. 361), mais uma referência aos ideais futuristas: glorificar a guerra, o movimento agressivo, a supremacia da violência, do masculino e sua ligação com a máquina.
No entanto, a reverência a esses valores futuristas e pró-guerra alcança outra esfera no plano ideológico do romance. T.P. Valera enxerga a possibilidade de capitalizar sobre a guerra, no lugar de ficar apenas no enaltecimento estético como faz o grupo de Lonzi, que passa a produzir poemas sobre velocidade e metal e poemas com som de armas. Valera tem um olhar que colabora com a produção de “máquinas para a guerra”, mais um sentido para o fogo: “Lonzi and the others scribbled poems that made the sounds of guns, while Valera was busy designing cycle mounts for actual guns. He himself never wanted to enlist in war again. But he saw money in designing the machines for it” (Kushner, 2013, p. 79).
Sandro cresce, assim, nesse contexto. Contraditoriamente, ele mantém sua paixão por armas, mas critica os valores da família, sem, no entanto, conseguir escapar deles. Seu irmão ingressa em um grupo de fascistas e, durante as manifestações da década de 1970 (não) documentadas por Reno, ele é sequestrado e morto pelo “julgamento brechtiano”, o que produzirá o retorno de Sandro a Milão, pois sua mãe havia perdido o filho preferido (Roberto): “Roberto. For his death Sandro felt something. For his mother, who would be so alone now. You should take a lover. He had always felt he could never go back there to live. But he would go back. He was going” (Kushner, 2013, 368). Quando o narrador descreve o momento que Sandro vê a inscrição sobre a lareira da casa na Villa Valera, FAC UT ARDEAT, insere, em discurso indireto livre, sua reflexão sobre os significados da expressão:
A phrase his father put above the hearth. A clever command, To make burn. And wood was deposited there. But probably it was not merely a joke, and related to his father’s own past as an Ardito. An ardent one. Who had burned with the ardor that made him dash into war, toward death, and then toward money and power. The phrase could not be reduced to its imprisonment in the literal, above the hearth (Kushner, 2013, p. 365).
Essa passagem indica outro redirecionamento do olhar do leitor atento, ou seja, o que está por trás dessa expressão: a ida à guerra, a proximidade da morte e, principalmente, o ardor pelo dinheiro e pelo poder, que o insere como aquele que domina os meios de produção, inclusive enganando trabalhadores no outro lado do oceano: “It was important to keep these Indians on edge, so the patrão had to find ways. They needed to be afraid.[...] The job is not going to finish in the sense of an accounting and a payment. Someone says, Let’s burn it. But then you really won’t get paid” (Kushner, 2013,p. 214).
A inscrição sobre a lareira já havia aparecido antes, quando Reno havia visitado a Villa. No entanto, nessa segunda aparição do fac ut ardeat, o leitor já tem elementos para compreender sua complexidade, pois os capítulos que falam sobre o passado de T.P. Valera, a exploração de trabalhadores na plantação de borracha e nas fábricas, o fascismo e a relação de reificação das mulheres estão alocados antes dessa repetição. Assim, uma nova camada de leitura se insere nessa repetição da epígrafe.
No entanto, ela ainda tem outra camada, dessa vez relacionada com a questão da religiosidade. A família Valera era católica, e Sandro rememora a infância, quando ouvia o hino sacro Stabat Mater (dolorosa) na igreja, que tem como verso “Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum”, que significa algo como “Faça meu coração arder de amor por Cristo Deus”. O hino trata das dores de Maria por ver seu único filho ser crucificado. O fogo (arder) aqui mantém sua dimensão violenta, e a imagem passiva da mulher que sofre a perda de seu único filho reflete o ideal da mulher casta e passiva. No entanto, a relação feita por Sandro é de que sua mãe perdeu o filho (Roberto), então seria obrigação dele voltar, ainda que alegasse não ter carinho pela mãe, nem a mãe por ele. Assim, a obra traz outro recurso cinematográfico: a trilha sonora. O hino tem inúmeras versões, desde canto coral até para orquestras, como a versão de Giovanni Battista Pergolesi. Enquanto filmes voltados para o entretenimento buscam inserir uma trilha que adere ao enredo e promova a intensificação do pathos do espectador (músicas tristes em cenas tristes, por exemplo), aqui o hino estabelece uma relação contraditória com o momento e com a personagem de Alba, considerando que ela nada tinha de semelhante àquela imagem de Maria, como prova o exemplo de sua piscina construída com “as ferramentas da existência de um camponês”:
“A splendid aspect,” he said to me, “the swimming pool. Wonderful that you’re getting the opportunity to use it. Notice the patio stones. That was Alba’s idea. La signora, I mean, ha-ha. The stones are actually for grinding polenta. They’re the tools of a peasant’s existence, a peasant’s meager fare, bland mush you cook in a copper pot. (Kushner, 2013, 237)
Além disso, o filho morto, Roberto, estava longe da imagem de Cristo: era capitalista e fascista. Esse recurso “musical” cria um deslocamento de sentido, que por sua vez provoca a sensação de desconfiança com relação aos pontos de vista inseridos na narrativa.
Outra mulher que perde o filho no livro é Anna, que pode ser entendida aqui em paralelismo com Alba Valera, por ser, nesse momento, a stabat mater dolorosa. Ela é uma mulher grávida que sai de um hospício e passa a morar nas ruas de Roma. É usada em nome do experimentalismo cinematográfico, quando dois cineastas a “recolhem” e oferecem o teto de seu apartamento para gravar seu dia-a-dia. Esse “ato de bondade” implica em relações sexuais forçadas, gravações extenuantes e objetificação de Anna em nome do cinema. Por fim, Anna é levada novamente ao hospício e um dos cineastas fica com a criança. A dedicatória de Kushner no livro é para ela: “for Anna, wherever she is (and probably isn’t)”. O “probably isn’t” entre parênteses carrega a crítica da autora aos procedimentos e ao fim que ela leva. O filme de Anna é real, o que ancora a obra de Kushner em aspectos de uma realidade muito densa, embora seja uma obra ficcional. Esses detalhes (como a dedicatória) também são elementos que não podem ficar de lado na análise, pois indicam qual será o “centro de consciência” da obra.
4. Do que resta Das cinzas
That’s the Walter Reder, I mean, who blazed across central Italy, Pisa, Lucca, Caprara, Casaglia, killing almost two thousand people, according to the ‘winners’ who wrote the history books, as you might call them, my ardent Alba. Reder burned men, women, and children alive under gasoline and straw. Strange fellow, Reder. Missing a hand, wore a fake one covered in a black leather glove. Anyhow, the suffering of others must surely serve some purpose, right? But what is that purpose? No one is ever sure of the answer. All I can tell you is that history is a goddamned dangerous place. (Kushner, 2013, 246-247)
Chesil Jones, um escritor bastante egocêntrico que estava se relacionando com Alba Valera, tem um raro momento de lucidez sobre as relações violentas do mundo na epígrafe acima, que consta no capítulo 14. The rules of violence, quando Reno vai à Itália com Sandro. Walter Reder, citado por ele, foi um comandante austríaco da SS, responsável pelo massacre de Marzabotto, na Itália, durante a segunda guerra mundial. De acordo com Jones, ele se aloja na Villa Valera. A relação dos Valera com a violência, então, não se restringe ao fascismo, mas atinge o nazismo e os procedimentos neocolonialistas (como exploração de borracha na Amazônia brasileira). Em seu momento de lucidez histórica, Chesil fala do fogo que queimou homens, mulheres e crianças vivos sob gasolina e palha. Ele ainda ressalta que quem escreveu a história foram os vencedores. A obra de Kushner permite que observemos a perspectiva dos herdeiros desses “vencedores”, mas mostra também a violência sofrida por aqueles que foram largados nos escombros da história.
Quando Sandro descreve a foto do pai com Mussolini, a camada da narrativa que mostra o fascismo da família é construída de maneira multidimensional: no “trabalho” do pai, explorando trabalhadores e alegando superioridade étnica; na vivência com diversos empregados na Villa Valera que eram vistos como escravos por Alba:
“It isn’t how things used to be. When you have a staff and they live on the grounds, you don’t pretend you don’t see them on Sundays! If they are there and something needs to get done, it used to be they would simply do it. They certainly wouldn’t claim arbitrarily that because it was Sunday, they could not. Or worse, pretend not to see me, or think they don’t have to answer when I ring them. Everyone is counting their hours and overtime now. They want to buy a stupidity box,” she said, meaning a television, like the one she watched many hours of each night. (Kushner, 2013, p. 253)
Mas há outra camada de construção menos direta, que se dá no campo cultural, mais especificamente, no cinema. Sandro lembra que sua mãe gostava dos filmes do tipo “Telefoni Bianchi”, uma espécie de imitação italiana de comédias estadunidenses, com temáticas e estilísticas bastantes conservadoras, valores familiares, respeito a autoridades e ideologia do regime fascista. A memória de infância de Sandro, da mãe assistindo a esses filmes, direciona o fluxo de pensamento ao Cinecittà, uma série de estúdios inaugurada durante a ditadura de Mussolini. A intenção era clara: a produção de produtos culturais que fossem “adequados” aos valores do regime, o que é reflexo da famosa expressão do ditador: “Cinema é a arma mais poderosa”. No entanto, o Cinecittà foi bombardeado pelas forças alemãs na segunda guerra, e passa a ter refugiados vivendo em seus escombros. Sandro questiona a razão do lugar ter sido bombardeado:
His mother loved the telefoni bianchi, and young Sandro had felt that the Allies bombing Cinecittà, the Germans looting it, were attacks on her, and possibly on them, because the people in the films, the vulgar escapist fantasies that Sandro later understood them to be, depicted more or less his own reality (Kushner, 2013, p. 356).
Essa passagem ratifica a alegação dele, de que havia nascido “do lado errado” das coisas. A realidade de Sandro difere muito daquela dos que vivem nos escombros, nas ruínas da História:
After the war ended the movies were different. The directors went out in the streets to film “real” life. Which was convenient, because Cinecittà was destroyed, and in addition to that problem there were people living in its ruins. From 1945 to 1950 displaced people, mostly children, lived in the film studios (Kushner, 2013, p. 356).
Aqui há uma crítica clara ao cinema “realista”, que passa a se interessar pela vida “real”, enquanto a vida daqueles que se refugiam nos estúdios passa a ser invisível. As crianças vivendo no Cinecittà usam elementos de cena usados em filmes sobre a Roma antiga, e quando Sandro questiona o pai sobre aquilo, a resposta do pai é que eles são figurantes de filmes de Rossellini.
A contradição da família Valera é ainda maior quando se trata da mão de obra. Roberto, após a morte de T.P. Valera, quando assume a fábrica, passa a usar os mesmos “mecanismos” que o pai usava:
The workers, he said, came from the south, lived in miserable conditions. Their wives and children put together Moto Valera ignition sets at the kitchen table, working all night because they were paid by the piece, whole families contracted under piecework, which was practically slave labor (Kushner, 2013, p. 356).
Mas a dimensão da narrativa que explicita de maneira mais densa essa relação desigual é trazida por outra perspectiva assumida por um narrador que não é Reno, mas também não é esse narrador em terceira pessoa. Trata-se de uma mudança da terceira para a segunda pessoa, o que reflete a diferença entre as técnicas de montagem e de plano sequência. O capítulo treze, “The trembling of the leaves”, se passa na Amazônia brasileira e foca na experiência dos seringueiros que vivem em regime análogo à escravidão. Eles são sumariamente assassinados, mas a causa mortis relatada é a febre amarela: “A rubber worker with a .22-caliber hole in his head: Yellow fever, it’s written in the booklet” (Kushner, 2013, p. 213). Quando um dos seringueiros tenta fugir, a perspectiva do narrador muda para a segunda pessoa do singular (you), acompanhando o homem em sua revolta e últimos momentos de vida. Como em um plano sequência (filmagem sem cortes) em câmera subjetiva (enxergamos o que a personagem enxerga), o leitor/espectador é arrastado para dentro da sequência e do fluxo de consciência do personagem:
Your bare feet had gone numb with running. It was important to try to run lightly to keep quiet, but you could not feel your feet, like you were bobbing on two rubber bounce balls instead of feet, deep in a jungle four months’ journey from your village. Running on feet you could not feel. Bounce balls. And working with the numbness, pulling your legs up to step lightly, because small cracks and rustlings echo in the jungle. Sound travels cleanly, is made louder as it relays through the spaces among the trees, like through those bullhorns they put on the trucks on Sundays to get everyone herded into church, back in your village, which seems not so bad a life now, drought and God and stomachaches from unripe fruit. [...] The green tree ferns pound into and out of view, branches scrape you, your feet are numb. You trip, you fall, you get up, you keep running (Kushner, 2013, p. 216-217, grifos nossos).
O fluxo de consciência é construído paralelamente à fuga. Além disso, a cena não tem cortes e, consequentemente, não usa a técnica da montagem, trazendo a segunda pessoa no lugar da terceira como um recurso estilístico que permite um efeito similar a uma cena gravada em plano sequência, com a câmera subjetiva. O recurso funciona de modo a fazer com que nós (leitores/espectadores) acompanhássemos o seringueiro em sua fuga ao mesmo tempo em que sentimos que nos tornamos ele, pois a segunda pessoa inscreve o leitor na narrativa. Ao mesmo tempo, é importante perceber que a passagem tem também uma alternância de tempo verbal para intensificar o recurso: começa com past perfect (“had gone”) e termina com present continuous (“you keep running”). O present continuous é o tempo verbal que traz uma noção de continuidade, como se a cena se passasse no momento em que é lida. Esse é um modo muito sofisticado de adaptação da técnica cinematográfica para a narrativa escrita.
Sobre o plano sequência, Brian Henderson (1980) explica que a teoria de Bazin considera que essa técnica deve ser usada para trazer “uma camada extra de realismo à tela... Ela é, na verdade, o critério mais importante para delimitar o realismo dos estilos de filmagem” (Bazin apud Henderson 1980, p. 192). Assim, da mesma forma que funciona no cinema, a adaptação da técnica do plano sequência para o romance feita por Kushner traz uma camada de realismo à narrativa. Esse é um elemento de contraste, uma vez que as partes narradas por Reno estabelecem, em sua maioria, uma separação da realidade, como se fossem ilusões que refletem o vazio de significado. Assim, enquanto a “câmera-Reno” filma as performances de seus amigos (Giddle, Sandro, Ronnie) e as suas próprias, os outros pontos de vista narrativos estabelecem uma dimensão realista, mostrando os seringueiros em condição análoga à escravidão, a primeira guerra mundial, o nascimento do fascismo e do capitalismo tardio por meio da história da fábrica Valera, culminando na imagem simbólica que dá nome ao livro: os Flamethrowers:
The flamethrowers could have been from a different century, both brutal and ancient and at the same time horribly modern. [...] The flamethrower was never, ever defensive. He was pure offense, overrunning enemy lines. He surged forth, a hulking creature with huge tanks on his back, a giant nozzle in his hand, hooked to the tanks. He was a harbinger of death (Kushner, 2013, 360, grifos nossos).
Como “mensageiros da morte”, os Flamethrowers são sempre ofensivos, colocam fogo em tudo e em todos, passam por cima dos “inimigos”. Mas, ao mesmo tempo, eles são “antigos” e “terrivelmente modernos”. Essa descrição engloba o conceito benjaminiano (1987) de história capitalista, vista pelo anjo da história como “uma catástrofe única” que “acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”. Ele gostaria de parar para acordar os mortos, mas é carregado por uma tempestade que o impele ao futuro, “essa tempestade é o que chamamos progresso” (Benjamin, 1987, p. 226).
5. Atrás da porta verde: I willed myself to that state
I woke to a red sun pouring into my curtainless windows, the electricity still out. My night came back to me in pieces almost as if I’d been drunk, the people behind the green door and the way the movie’s mysteries, unveiled, gave way to a night of suspended time, a city unmasked by darkness. (Kushner, 2013, p. 353, grifos nossos)
Atrás da porta verde é um filme pornográfico que aparece em três capítulos do romance The Flamethrowers: 10. Faces, 15. The march on Rome e outro que leva o nome do filme 18. Behind the green door. A primeira aparição se dá quando Reno, Sandro, Ronnie, Talia e outras pessoas estão caminhando na Times Square e topam com o cartaz do filme. Dessa vez Reno não assiste ao filme, pois “vai com a maioria”, que se recusa. Quando passa pela experiência na Itália, quando deveria ser garota propaganda para as Motos Valera, mas a fábrica enfrenta a greve e Didi Bombonato é sequestrado; Reno descobre a traição de Sandro com Talia. Fugindo com Gianni, ela passa pelo cartaz do filme com o grupo de revolucionários: “Dietro la porta verde” (287), para então voltar a NY e vivenciar o apagão de 13 de julho de 1977. Nessa noite ela estava passeando pela cidade sozinha e resolve entrar no cinema e assistir ao filme. O conteúdo em si não parecia ter nada de muito relevante, mas Reno começa a enumerar o que havia “atrás da porta verde”:
These things were behind the green door:
Rules and codes.
Crotchless white stretch-Lycra tuxedos. Somehow not funny, not meant to be.
Fat people in masquerade ball masks. […] What the masked masturbators behind the green door watched:
Live sex, the soap-flakes model and a man in tribal makeup. She and the man both seemed deep in the moment but also hyperalert to how they looked deep in the moment (Kushner, 2013, p. 346).
O fato de ela começar a enumerar as coisas que havia atrás dessa porta verde e as conectar a questões relacionadas às vivências dela e que ela assume ter ignorado, mostra que o significado de “atrás da porta verde” ultrapassa a mera referência ao filme. O que está atrás da porta verde é o obsceno, no sentido de ob-scaenam, ou seja, aquilo que fica fora da cena na tragédia grega em razão da necessidade de manter o decoro, como cenas de sexo e de violência, como o suicídio de Jocasta e o ato de Édipo furar os olhos quando encontra o seu destino na peça de Sófocles. Esses atos são enunciados, mas não são mostrados, ficam fora da cena. Nesse capítulo, “Behind the green door”, Reno enuncia coisas que haviam ficado ob-scaenam de sua câmera, ou seja, fora do seu foco. Curiosamente, esse acontecimento converge com o blackout de NY, quando a cidade fica no escuro e perde suas “regras e códigos”, apesar de essa ser a primeira coisa que Reno enuncia que havia atrás da porta verde: “a city unmasked by darkness”. Esse desmascarar da cidade oferece outra chance ao leitor de enxergar além daquela câmera alienada que direcionava os capítulos narrados por Reno: “A Chemical Bank had burned on First Avenue” (Kushner, 2013, p. 353). O banco, ícone do capitalismo, desta vez é o que é incendiado, invertendo o foco da violência, das chamas. Esse é o momento de consolidação do centro de consciência da obra, que carrega como elemento do inconsciente político essa necessidade de insurreição contra um sistema que continuamente mantém a pressão contra os despossuídos. Não enxergar, nesse momento, o que está ob-scaenam, ou seja, o inconsciente político da obra, significa aderir à alienação carregada por Reno no decorrer de (quase) todos os capítulos narrados por ela.
Na escuridão da cidade, ressurge o ato dos Motherfuckers. Reno reconhece Burdmoore atrás de sua máscara (mais uma referência aos mascarados do filme pornô):
The man dressed all in black was leading a chant, holding his weird pike or pole aloft, jabbing it upward, the children chanting with him, “El pueblo! Armado! Something something something.”
He was chanting with the kids but his eyes met mine. He was looking directly at me, his face covered. I stared back, sure now of who he was.
I walked closer. The bright, sad eyes.
“What did I tell you, sister?” (Kushner, 2013, p. 352)
Burdmoore, que havia comandado o movimento dos Motherfuckers na década anterior (anos de 1960), retoma a liderança de um movimento. O fato de ele chamá-la de “sister”, como se ela fosse também parte daquilo, a insere, finalmente, na insurreição, além de marcar uma mudança na perspectiva do próprio Burdmoore, que havia assumido que o movimento dos Motherfuckers era absolutamente misógino, tanto quanto os futuristas. Incluir Reno como uma irmã do movimento, marcaria um deslocamento daquela concepção anterior. Assim como Burdmoore, Reno finalmente começa a enxergar algo atrás da porta verde:
People knew what they were doing. Like they’d been waiting for the lights to go out. You had to believe in the system, I thought, to feel it was wrong to take things without paying for them. You had to believe in a system that said you can want things if you work, if you are employed, or if you were just born lucky, born rich. (Kushner, 2013, p. 349)
Embora perceba nesse antepenúltimo capítulo algo de significativo, ela precisou ignorar o movimento revolucionário na Itália e filmar balões bancos; ficar mais preocupada se ainda poderia ir a Monza representar a equipe Valera do que com toda violência de classe que presencia; vivenciar Anna grávida sofrendo todo tipo de violência e criticar os cineastas, mas não fazer nada e subir para o apartamento de Gianni:
She had to be convinced, and finally assented, leaning into the water, soap running over her slippery pregnant form. I remembered suddenly that I was watching, right along with this crew, all male, fixated on her, their subject. I left to go upstairs, ashamed (Kushner, 2013, p. 287).
Se observarmos as construções “I should have” e “I willed” no decorrer do livro percebemos a escolha deliberada de Reno por assumir uma postura passiva diante dos acontecimentos: “I willed myself to that state” (p. 279); “I should have said but didn’t” (p.306); “I should have gotten up to speak with her, but I stayed where I was” (p. 166); e, por fim, o momento em que ela afirma que gravar o movimento dos trabalhadores não era interessante para ela: “I knew I’d made a mistake, that I should have gone with them. I should have filmed. The point was to have interesting footage. I could have decided later what to do with it” (p. 256 – grifo nosso).
Dessa forma, percebemos que Reno não é o centro de consciência da obra, embora narre a maior parte dos capítulos. O centro de consciência é o inconsciente político: a insurgência dos movimentos sociais, a crítica à permanência do fascismo e, principalmente, às mutações do sistema capitalista, que engloba os discursos e as produções culturais, mas que se sustenta sobre a injusta divisão de riquezas, mantendo muitos, até hoje, sob um regime trabalho análogo à escravidão, seja na indústria, no extrativismo, no trabalho doméstico ou, mais recentemente, na “uberização” do trabalho. Se fizermos uma leitura de fruição do livro, nos termos de Barthes, percebemos como Rachel Kushner consegue explicitar, por meio de uma construção extremamente complexa, que articula recursos cinematográficos aos literários, o leitmotiv do fogo e a alternância de pontos de vista, esse momento formativo do capitalismo tardio, em suas dimensões políticas, sociais e culturais.
Notas
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1
O intuito aqui não é estabelecer um caráter de veracidade, mas compreender, de maneira resumida, o que se propagou de informação sobre a relação de Nero com o incêndio de Roma a partir de três fontes historiográficas clássicas: Suetônio, Dião Cássio e Tácito. É importante ressaltar que a concepção de historiografia, naquele momento, diferia muito da concepção contemporânea.
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2
No original: Reno doesn’t simply present a story, she presents a moment in time, and a reality most men […] know very little of, if at all: the deaf ears that receive a woman’s mind, a woman’s ambition.
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3
No original em francês, os termos são plaisir e juissance. A escolha pela tradução de “fruição” para “juissance” foi explicitada por Ginsburg, tradutor da edição em uso, por articular o sentido de prazer físico à sonoridade da palavra em francês. Alguns estudiosos de Barthes discordam, e optam pela tradução “gozo”.
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4
As manifestações ou “tumultos de Watts” se iniciaram em Agosto de 1965, após um episódio de violência policial contra um homem negro, Marquette Frye. Como essa era uma cena corriqueira e a comunidade preta de Los Angeles estava farta de tanta violência, iniciou-se uma série de manifestações e atos. Curioso é que, em grande parte das páginas que se encontra sobre o assunto, inclusive da Wikipedia (acesso em 26/07/2024), o foco é sobre os prejuízos à propriedade privada e não às mortes de 34 pessoas e aos mais de 1000 feridos pela repressão policial e inclusive da Guarda Nacional do Exército. Também costuma-se deixar de lado o fato de que havia sido aprovada, apenas alguns dias antes, em 6 de agosto de 1965, o “Voting Rights Act”, que finalmente permitia que as pessoas negras votassem.
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5
Publicado pela primeira vez na Gazzetta dell'Emilia em 5 de fevereiro de 1909, ganhou maior evidência quando publicado no jornal parisiense “Le figaro”, 15 dias depois. Há um fac-símile em italiano deste e de outros manifestos futuristas, publicado em 1914: “I Manifesti del futurismo” disponível em
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6
Cf. FERRANDINO e SGRO. “Associazionismo industriale e corporativismo: l’American chamber of commerce in Italy nell’epoca fascista” disponível em: https://revpubli.unileon.es/ojs/index.php/Pecvnia/article/view/3584/2587
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Editado por
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Editoras Convidadas:
Alinne Balduino P. Fernandes, Melissa Sihra
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
16 Out 2024 -
Aceito
30 Abr 2025


