Resumo
Neste trabalho1, se desenvolve o tema da reescrita de mitos femininos em Borderlands/La frontera: The new mestiza, publicado em 1987 pela escritora Gloria Anzaldúa. A partir de seu posicionamento como mulher, chicana, lésbica e queer, a autora propõe uma jornada simbólica para uma nova consciência mestiça, cujo início se dá em um ponto físico: a fronteira geográfica imposta entre os Estados Unidos e o México. Através de um mergulho na psique humana, são invocados mitos femininos pré-colombianos e pertencentes ao imaginário mexicano e chicano, que são ressignificados na obra. Esses mitos questionam os sujeitos das representações tradicionais e propõem outro caminho para redizer os vários nomes da Mulher que foram esquecidos pelos sistemas tradicionais de representação.
Palavras-chave
Literatura de fronteira; literatura chicana; feminismo interseccional; Gloria Anzaldúa; mitos femininos
Abstract
In this work we discuss the theme of the rewriting of female myths in Borderlands/La frontera: The new mestiza, a book published in 1987 by Gloria Anzaldúa. Based on her position as a woman, Chicana, lesbian and queer, the writer proposes a journey towards a new mestizo consciousness, which begins at a physical point: the geographic boundary imposed between the United States and Mexico. Through a dive into the human psyche, pre-Columbian female myths are invoked, belonging to the Mexican and Chicano imaginary, which are re-signified in the work. The female myths in Borderlands, in this sense, question the subjects of traditional representations and propose another way to retell the various names of Women that have been forgotten by traditional systems of representation.
Keywords
border writing; Chicano literature; intersectional feminism; Gloria Anzaldúa; female myths
Introdução
Borderlands/La Frontera — the new mestiza (1987) é um texto que tematiza a fronteira — tanto em sua concepção física e geográfica, quanto em suas dimensões psicológicas e simbólicas. Mais do que isso, ele o faz a partir da perspectiva de uma mulher; uma mulher chicana2, queer e feminista. Trata-se de Gloria Evangelina Anzaldúa (1942 - 2004), chicana de sexta geração, nascida no Vale do Rio Grande, no sul do Texas – EUA.
Dividido em duas partes, uma de textos predominantemente em prosa3 e outra apenas de poemas, Borderlands tem início com uma jornada para a transformação da nova mestiça partindo da fronteira geográfica imposta entre México e Estados Unidos, definida pela potente metáfora "ferida aberta" (Anzaldúa 2012, 25). Aos poucos, a travessia da fronteira física é interceptada por outras – psicológicas, sexuais e espirituais, de los otros atravessados4 –, que se incorporam ao processo de criação de uma nova consciência.
Nesse percurso, ocorre a "invocação" de mitos femininos, tanto do universo pré-colombiano, na figura das deusas ligadas à fertilidade – Tonantsi, Cihuacoatl, Tlazolteotl e Coatlicue –, quanto do imaginário mexicano, nas figuras da Virgem de Guadalupe, Malinche e Llorona: "Eu escrevo os mitos em mim, os mitos que sou, os mitos que quero me tornar" (Anzaldúa 93). Os mitos podem ser analisados de acordo com perspectivas diversas e complementares, dentre as quais podemos citar aquela desenvolvida pela psicologia analítica de Carl Jung, autor com o qual Gloria Anzaldúa estabelece um diálogo produtivo. O autor parte do princípio de que o mito consiste em um ensinamento tribal transmitido oralmente de geração em geração. Nas sociedades tradicionais, ele não era inventado, mas vivenciado como revelações originárias de uma mentalidade pré-consciente.
Em sua definição de arquétipo, Jung (2000) afirma que se trata de uma "imagem primordial", uma tendência instintiva que se manifesta como fantasia e só pode revelar sua presença por meio de imagens simbólicas. Sendo inatos, eles não se originam em experiências ou aquisições pessoais. Em outras palavras, são uma forma imaterial e inconsciente, que se repete constantemente durante gerações em todos os lugares do mundo. Sua concepção se torna mais clara quando associada ao mito, pois este seria uma de suas expressões: "os arquétipos ocorrem a nível etnológico, sob a forma de mitos" (Jung 2000, 79).
O mitólogo estadunidense Joseph Campbell (1989) é um dos principais estudiosos da figura do herói – o mito mais comum e mais conhecido mito no mundo, como afirma Jung (1969). A aventura do herói segue um padrão nuclear que se espelha na fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno. Isso implica um "afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida" (Campbell 1989, 20). A jornada da mestiça em Borderlands contempla essa estrutura. Vejamos.
Hijas de la Chingada: Malinche
Em geral, os relatos dos cronistas espanhóis – considerados como as primeiras fontes de dados sobre a figura histórica de Malinche – coincidem ao descrevê-la como uma índia pertencente à nobreza asteca, da região de Paynala. Sua mãe teria simulado sua morte e a vendido aos maias Xicalango a fim de sagrar seu irmão como herdeiro da família após a morte de seu pai. Posteriormente, Malinche passou a pertencer à tribo de Tabasco, que a ofereceu como “presente” a Hernán Cortéz – o conquistador espanhol que derrubaria o Império Azteca em 1521 –, junto com outras vinte mulheres (Díaz Del Castillo 1960, 119).
Malinche também era reconhecida como "a língua" devido à função de intérprete que exercia por conta das habilidades poliglotas desenvolvidas durante os deslocamentos físicos pelos quais passou. Além de atuar como tradutora, Malinche gerou um filho de Hernán Cortéz, Martin, que posteriormente passou a simbolizar o primeiro mexicano membro de uma nova raça, mestiça. Após a época da Conquista, houve um "esquecimento" da figura de Malinche, como observado por Fernanda Núñez (1992), que afirma: “uma vez terminada a conquista, fundada a Nova Espanha e casado Cortéz com uma insigne descendente da nobreza espanhola, [Malinche] regressa ao nada e desaparece da história” (Núñez 42).
No fim do período colonial, o humanista Francisco Xavier Clavijero retomou os testemunhos das crônicas de Díaz del Castillo ao produzir sua Historia Antigua de México (1780-81). Influenciado pelo Pré-Romantismo europeu e em condição de exílio, como um dos jesuítas expulsos da América Latina pela política do Marquês de Pombal, uma vez na Itália Clavijero descreveu “a célebre india doña Marina” como jovem, bonita e espirituosa. Tratava-se de uma das primeiras sementes do americanismo. Com a independência mexicana e a criação de uma cultura nacional, surgiu, no entanto, a associação da figura de Malinche com o mito da traição, demonstrando haver um salto, portanto, das primeiras menções nas Crônicas de Conquista até sua reinterpretação no século XIX. Sua imagem foi marginalizada a ponto de ilustrar os livros de história como amante de Cortéz e responsável pela vitória dos espanhóis em território asteca. Malinche seria a mãe violada e seus filhos, os mexicanos, uma raça ilegítima.
Spinoso de Montandon (2007) observa que alguns discursos do século XIX já condenavam Malinche, como o de José Fernando Ramírez, que a definiu como "barragã de Cortez a quem lembramos com indignação" (apud Montandon 2007, 142). No entanto, teria sido obra de Ignácio Manuel Altamirano (1834-93) a construção da imagem de Malinche como traidora, disseminada principalmente por conta do prestígio político e cultural que este possuía como deputado liberal, escritor, jornalista e educador.
Em suma, o discurso nacionalista mexicano converteu o personagem histórico de Malinche em mito formador de uma identidade nacional, inserindo-a no imaginário coletivo como uma figura ambígua: símbolo de traição e ao mesmo tempo da mestiçagem. A seu lado estão as figuras canonizadas no panteão dos heróis nacionais: Cualhtémoc e a Virgem de Guadalupe. Ambos representam, ainda que de diferentes maneiras, a virtude e a honra. A maldição de Malinche foi selada pelo termo “malinchista”, que designa todo e qualquer opositor da ideologia oficial do Estado. O malinchismo insere Malinche na história como um mito negativo, associado à ilegitimidade da Conquista e de repulsa pela mexicanidade, que, segundo autores como Octavio Paz, não se reconhece como espanhola nem como indígena. Em seu célebre artigo “Los hijos de la Malinche” (1959) o ensaísta reforça a perspectiva depreciativa da personagem histórica.
Na contramão dessas apropriações negativas, perspectivas críticas começaram a surgir nas últimas décadas resgatando a complexidade ignorada pelas visões tradicionais sobre Malinche, nos campos ficcional e teórico. Aqui se destaca a obra editada por Margo Glantz (1994), na qual uma plêiade de autoras promove um debate historiográfico a partir da perspectiva de gênero, e reivindica o lugar de Malinche na História, alertando para as implicações da perpetuação dos mitos como representantes de modelos a serem seguidos e valores preservados.
Em Borderlands, Gloria Anzaldúa desconstrói a culpa atribuída a Malinche pela vitória da Conquista e realiza longa discussão sobre a dominação asteca nos territórios ocupados por outras tribos. Uma vez modificada toda uma visão de mundo compartilhada por séculos pelas antigas tribos mesoamericanas pelo projeto militarista asteca, seu poder, embora parecesse impenetrável, se viu fragilizado diante de tantos inimigos entre os próprios indígenas. Além disso, por meio de relatos autobiográficos mesclados a uma discussão teórica, a autora discorre sobre a cultura como um elemento modelador de crenças e sobre o caráter violento e tirânico que ela pode assumir: "'Y cuando te casas, Gloria? Se te va a pasar el tren'". Y yo les digo: "Pos si me caso, no va a ser con un hombre". Se quedan calladitas. Sí, soy hija de la Chingada. Siempre he sido su hija5" (Anzaldúa 39).
Nesse sentido, Anzaldúa assume o termo Chingada como forma de resistência à imposição cultural de sua comunidade de origem no tocante a sua sexualidade. O que antes possuía uma conotação negativa e dizia respeito à condição passiva da mulher é ressignificado como forma de afirmação identitária: não há mais passividade; pelo contrário, a filha da Chingada é aquela que não se subordina aos padrões culturais por medo de ser acusada de traição. Isto pode ser observado no poema "Arriba mi gente”, em que Anzaldúa convida as novas mestiças a agir. Novamente, o termo Chingada é "reocupado" e, longe de demonstrar qualquer tipo de passividade, é utilizado para descrever as mulheres como guerrilheiras, fortes e destemidas: “Hijas de la Chingada/ born of the violated india/ guerrilleras divinas – mujeres de fuego ardiente/ que dan luz a la noche escura/ dan lumbre al Mundo Zurdo6” (Anzaldúa 214).
Em Borderlands, portanto, o mito de Malinche, embora não apareça com tanta expressividade quanto os de Llorona, da Virgem de Guadalupe e de Coatlicue, vai na contramão da construção nacionalista mexicana, a qual gerou um obscurecimento contínuo da política de fragmentação iniciada pelos astecas – ainda no período pré-colombiano, quando destruíram o equilíbrio e os aspectos duais das deidades femininas – e ratificada pelos espanhóis, quando inseriram a imagem da Virgem de Guadalupe no imaginário colonial como a mãe santa e casta.
Ver Coatlalopeuth na mãe Guadalupe: Guadalupe e Tonantsi
De forma poética, Gloria Anzaldúa reconta a história da aparição da Virgem de Guadalupe ao índio Juan Diego, que pertencia à base da pirâmide social da tribo chichimeca. Após o encontro em que Juan Diego levou consigo o manto com a imagem pintada, a Virgem de Guadalupe começou a eclipsar todas as figuras religiosas masculinas e femininas do México, América Central e parte dos Estados Unidos: "Desde entonces para el mexicano ser Guadalupano es algo esencial" (Anzaldúa 51).
Além do poema, Gloria Anzaldúa aborda o mito da Virgem de Guadalupe em forma ensaística, recorrendo a inúmeras fontes literárias e históricas, mesclando-as a relatos pessoais sobre a relação de sua família com a fé guadalupana. Sinaliza que a designação indígena para Guadalupe é Coatlalopeuh, "aquela que reina sobre serpentes". Embora haja controvérsias em relação às origens do termo, Anzaldúa dialoga com autores para os quais o nome nahuatl, que também era escrito "Coatlaxopeuh" e se pronunciaria "Cuatlashupe", soava como o espanhol "Guadalupe", e por isso ela foi identificada como a virgem morena Guadalupe de Estremadura, protetora de parte da Espanha.
Assumindo a denominação indígena Coatlalopeuh, a autora estabelece uma discussão sobre sua relação com diferentes deusas ancestrais ligadas à maternidade e à fecundidade. A mais antiga seria Coatlicue, "Saia de serpentes", deusa criadora e mãe das deidades celestiais. Outra representação é Tonantsi, para quem a tribo tonalteca – cansada dos sacrifícios humanos dos astecas a deuses masculinos –, prestava culto, sacrificando pássaros e pequenos animais.
Ao tratar das principais deidades adoradas no antigo México, Bernardino de Sahagún, em sua Historia general de las cosas de Nueva España, do século XVI (1938, 18), dedicou um capítulo a Tonantsi. Para o cronista, ela também estabelece relação com outra deidade ancestral, Cihuacoatl, a mulher serpente. Tonantsi seria um símbolo polissêmico devido às múltiplas funções a que estava ligada: germinação, produtividade, fecundidade, maternidade, saúde, crescimento dos cultivos. Ela teria sido, ainda, responsável por dar ao México o cacto, para que não lhe faltasse leite e pulque7. Tonantsi era uma das várias representações de uma força divina, simultaneamente una e múltipla. Antes de ser "convertida" pelos espanhóis em Guadalupe, Tonantsi já havia passado por um processo de fragmentação causado pelos astecas, que relegaram Coatlicue e suas representações obscuras Tlazolteotl e Cihuacoatl ao submundo, enquanto Tonantsi se tornou a boa mãe para qual os mexicanos prestavam “muitos sacrifícios solenes” perto dos montes.
Inicialmente, a política evangelizadora encontrou no culto a Tonantsi uma oportunidade para dar continuidade à prática de substituição dos cultos indígenas pelos cristãos, como instituído pelo Concílio de Lima em 1552. O próprio nome pelo qual a deusa era chamada, "Nossa Mãe", era oportuno para a difusão da devoção mariana e a conversão de Tonantsi em Guadalupe. Apesar de a superposição de cultos ter aberto margem para uma desavença dentro da própria Igreja, quando se notou que os indígenas chamavam Guadalupe de Tonantsi e a visitavam em seu templo como nos velhos tempos, as práticas sincretistas foram toleradas e desde então nunca deixaram de existir.
Poderíamos pensar que, sendo a Virgem de Guadalupe um símbolo construído pela Igreja e pelos conquistadores para apagar tradições indígenas, seria rejeitada em Borderlands. Entretanto, não é o que acontece. Tal como em sua reflexão sobre Malinche, a autora refaz o percurso histórico da criação do mito e reconhece seu impacto para a cultura mexicana e chicana, mencionando, inclusive, a relação de sua própria família com a fé em Guadalupe.
Seu papel de mediadora e síntese entre o Novo e o Velho Mundo é ressaltado, além da potência como um símbolo de fé e esperança para aqueles que sobrevivem nas fronteiras. É deste modo que ela também aparece nos poemas “sobre piedras con lagartijos”, no lamento de um trabalhador que atravessa a fronteira de forma ilegal e pede proteção à santa: “Por mis hijos estoy aqui echado como animal/ em el regazo de la madre tierra/ Ojalá que la Santisima Virgen me tenga en sus manos8” (Anzaldúa 143); e em “La curandera”, quando o sujeito poético à beira da morte afirma querer estar com a santa. O poema narra a transformação de uma mulher enferma que se torna curandeira. Em uma experiência de “quase-morte”, ela conversa com um amigo: “’I want to be with her, la virgen santisima.’ ‘But you are with her’, he said, eyes clear like a child’s. ‘She is everywhere9.’” (Anzaldúa 199) Essa representação de força e proteção ao povo desassistido ocupa uma grande dimensão na identidade chicana, sendo explorada principalmente durante os períodos de efervescência dos movimentos sociais.
No entanto, se por um lado ela reconhece o status da Virgem de Guadalupe como a imagem religiosa mais poderosa entre os chicanos e mexicanos, acolhe Coatlalopeuh, sua versão indígena, e enxerga na figura materna e casta fornecida pela Igreja uma ferramenta para institucionalizar a opressão, tornando dóceis índios, mexicanos e chicanos. Se Anzaldúa descartasse a figura de Guadalupe, reafirmaria a dicotomia que tanto rejeita. Em vez de estabelecer uma oposição, entretanto, ou enaltecer a deusa indígena em detrimento do símbolo de poder de uma cultura dominante, ela reconhece Guadalupe como um símbolo ambivalente, capaz de unir povos, religiões e linguagens distintos.
A postura de retomar a narrativa tradicional e transformá-la é fundamental na proposta de construção de uma nova mestiça, dentro daquilo que Anzaldúa considera como um trabalho constante de reconstrução das formações habituais e de desenvolvimento da tolerância em relação às ambiguidades e contradições: um verdadeiro "juggle cultures10" (Anzaldúa 101). Neste jogo, nada se descarta, não existe o lado bom e o mau, mas as ambivalências são transformadas em outra coisa. É por isso que ela considera um passo determinante "unlearn the puta/virgen dichotomy and to see Coatlalopeuth-Coatlicue in the Mother Guadalupe" (Anzaldúa 106)11.
Black Angelos: Llorona e Cihuacoatl
Llorona une as pontas em que se situam as outras duas mães chicanas: como uma combinação entre a Virgem de Guadalupe e Malinche, é a mãe que procura seus filhos perdidos. A pesquisadora brasileira Rosa Montandon (2007) adverte que uma das maiores dificuldades enfrentadas ao abordar o mito de Llorona é a tentativa de historicizar uma figura impalpável. Isso porque, diferentemente de Malinche e da Virgem de Guadalupe, que tiveram a existência registrada, não há muitas fontes históricas sobre sua origem. Um resgate histórico sobre o tema só foi realizado no século XIX, quando a tradição escrita passou a se interessar por sua investigação (Montandon 2007).
Isso não significa que a história tenha sido criada neste período. Ao que tudo indica, já circulava durante o período colonial, sendo transmitida pela cultura oral. Após transformações e desdobramentos diversos, se instalou no imaginário social, gerando as inúmeras versões do mito conhecidas por mexicanos e chicanos atualmente.
Clarissa Pinkola (1999) menciona algumas versões do mito da Llorona, sendo a principal a que a descreve como uma mulher pobre e bonita que engravida de um rico fidalgo após ser seduzida. Ele, porém, a rejeita e comunica que voltará à Espanha para se casar com outra mulher, levando consigo seus filhos. Fora de si, ela rasga suas vestes e corre para um rio próximo, onde joga as crianças, que são levadas pela correnteza e morrem afogadas. Llorona então morre de tristeza às margens do rio. Para que sua alma descanse em paz, precisa resgatar as almas das crianças das águas. Despenteada e vestida de branco, vaga como um fantasma flutuante durante a noite à procura dos filhos por encruzilhadas e locais próximos aos rios; "Aiiii!! Meus filhos, que será de vocês?" é o seu tradicional grito de dor (Montandon 7820). A maioria das versões registradas apresenta elementos em comum, como as águas do rio ou as encruzilhadas, a relação conflituosa com um homem rico, os cabelos longos e desarrumados, a roupa branca e fantasmagórica, o pranto de dor. Por vezes, a história ainda se funde ao mito de Malinche.
Gloria Anzaldúa observa que a construção histórica de Llorona também é resultado das transformações culturais iniciadas pelo Estado militarista asteca. Ela relaciona o grito e o choro, por exemplo, às cerimônias de luto realizadas pelas mulheres quando seus entes queridos partiam para as “guerras floridas”. Esta modalidade de combate, o xochiyaoyotl, fora criada durante o reino de Montezuma I (1440-1468) e tinha por objetivo obter vítimas para o sacrifício a Huitzilopochtli. Ainda que o choro esteja relacionado com a passividade, Gloria Anzaldúa concorda com a antropóloga feminista June Nash (1978), para a qual essas cerimônias eram um sinal de resistência das mulheres indígenas, que transformavam seu choro em forma de protesto contra as guerras que levavam seus familiares. Posteriormente, outros elementos foram amalgamando a figura que atualmente é conhecida por Llorona. Como um mito impulsionado sobretudo pelo relato oral e mantido pela memória coletiva, é através da narrativa autobiográfica que Gloria Anzaldúa evoca suas memórias relacionadas às crenças populares e relaciona Llorona à divindade Cihuacoatl: "Serpent Woman, ancient Aztec goddess of the earth, of war and birth, patron of midwives"12 (Anzaldúa 57).
Cihuacoatl é caracterizada como uma mulher branca, cujos cabelos formam dois chifres cruzados sobre a testa, representados como facas pelos astecas. Seu rosto possui uma mandíbula desnuda que simbolizava a morte e sobre suas costas há um berço com um punhal envolvido por uma manta, como se fosse seu bebê. Isso significava um bebê morto no nascimento e a convertia em uma devoradora de vítimas para sacrifícios. De uma poderosa deusa protetora das mulheres durante o parto, ela se tornou, assim, um monstro devorador e, posteriormente se converteu na figura de Llorona, uma mulher que mata os próprios filhos por ressentimento.
Em entrevista, Anzaldúa afirma que Llorona foi a primeira figura cultural que conheceu por meio das histórias que as avós lhe contavam na infância: "She was the horrific, the terror, the woman who killed her children, who misplaced her children (Blake and Ábrego 1995, 20)13". Essa versão era utilizada principalmente para amedrontar as meninas, para impedi-las de sair de casa à noite e para controlá-las, pois, se fizessem "algo errado", Llorona viria à noite para buscá-las. Por isso, a autora a vê como uma força motivadora para quebrar o silenciamento sofrido pelas mulheres desde a infância: "Of all the figures in the Mexican mythology, she empowered me to yell out, to scream out, to speak out, to break out of silence, to write" (Blake and Ábrego 20)14. Dessa forma, observa-se como essas histórias foram justificadas culturalmente como tentativas de proteger as mulheres para que não se tornassem independentes, pois inúmeras eram as versões que mencionavam assombrações ou figuras diabólicas que as atraíam para se aproveitarem delas: "There's an ancient Indian tradition of burning the umbilical cord of an infant girl under the house so she will never stray from it and her domestic role15" (Anzaldúa, 58).
Constata-se, portanto, que as figuras de Llorona e Cihuacoatl são ressignificadas em Borderlands a partir de múltiplos caminhos: primeiro com a discussão teórica sobre os processos históricos de inferiorização da mulher na sociedade asteca de base militarista e seus reflexos no processo de desempoderamento de uma deusa que antes era protetora e posteriormente se converte em assassina de crianças; depois, observando como a cultura moderna ocidental apela para a racionalização, ignorando o papel da dimensão espiritual nas experiências humanas.
O prelúdio para a travessia: Coatlicue
A última "presença" a ser analisada neste trabalho ocupa um papel central no pensamento de Anzaldúa, articulando-se com importantes conceitos teorizados pela autora em Borderlands. Trata-se de Coatlicue, "saia de serpentes", a mais antiga representação das deusas ligadas à fertilidade e à terra. Sobre suas origens, Anzaldúa menciona apenas que ela era a deusa criadora, mãe das deidades celestiais, de Huitzilopochtli e de sua irmã, Coyolxauhqui, decapitada pelo próprio irmão.
Nas crônicas de Sahagún (1938), também é identificada como Toci, "mãe dos deuses", "coração da Terra" e "nossa avó". Serge Gruzinski (2006 145) observa que, do mesmo modo como os indígenas identificaram Guadalupe em Tonantsi, Toci estabeleceu uma relação de sincretismo com Santa Ana, avó de Jesus, para a qual prestavam cultos em Tlaxcala.
Sobre sua aparência, Anzaldúa destaca que possuía pés com formato de garras, portava um colar de corações humanos e uma saia de serpentes trançadas. No lugar de sua cabeça, possuía um crânio humano ou uma serpente. Se observarmos a estátua de quase três metros que se encontra no Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México, podemos perceber mais alguns detalhes: o colo descoberto, os braços também em formato de serpentes e duas serpentes maiores que se enrolam em seu pescoço e se encontram, dando a impressão de formarem um único rosto com uma língua bifurcada.
Em Borderlands, Coatlicue representa sobretudo um estado da psique. Se antes, ao abordar os outros mitos femininos, Gloria Anzaldúa partiu de informações históricas para discutir as construções e desdobramentos dessas figuras, com Coatlicue ela se limita a descrever sua imagem, narrar uma pequena parte do mito que envolve o nascimento de Huitzilopochtli e informar a propriedade dual que a deusa detinha antes de a dominação asteca se fortificar: "Coatlicue, Lady of the Serpent Skirt, contained and balanced the dualities of male and female, light and dark, life and death"16 (Anzaldúa 54). Dessa forma, a abordagem de Coatlicue na obra está mais centrada em experiências psíquicas descritas em textos de predominância autobiográfica e em conceitos formulados por Anzaldúa, na primeira parte do livro, ou por imagens e símbolos remetendo a essas experiências, presentes na segunda parte. Nesse sentido, ela afirma que Coatlicue é um dos arquétipos mais poderosos que habitam sua mente.
Antes de apresentar propriamente a deidade, ela é "invocada" paulatinamente, surgindo em curtas referências ao universo temático da serpente. É como se essa presença fosse surgindo de forma gradual, até que ocorresse o "penetrar da serpente", que marca a passagem de um estado a outro, do estado consciente ao estado inconsciente, da fronteira física para a fronteira dos outros atravessados.
De acordo com o antropólogo Alessandro Lupo (1999), no mundo asteca se destacavam algumas crenças vinculadas às relações entre seres humanos e o mundo animal. O nahualismo dizia respeito à convicção de que alguns indivíduos poderiam ser investidos de poderes espirituais singulares, que lhes permitiriam transformar-se em animais e realizar, assim, ações prodigiosas. Já o tonalismo estava relacionado à crença de que cada sujeito carregava, desde o nascimento, uma relação de coessência espiritual com algum animal, planta ou elemento da natureza, seu duplo. As propriedades específicas de cada um destes determinavam a essência, a espiritualidade, o caráter e mesmo o destino do indivíduo.
No poema "Ella tiene su tono", pode-se observar a transformação do sujeito poético após sua mãe ter matado uma cobra que a tentou picar, enquanto trabalhavam nos campos de algodão do Rancho Jesús María. Nesse poema, o nahualismo e o tonalismo podem ser percebidos com precisão, quando esse sujeito, ao assumir sua contraparte animal, sente-se imune: “In the morning I saw through snake eyes, felt snake blood course through my body. The serpent, mi tono, my animal counterpart. I was immune to its venom. Forever immune17” (Anzaldúa 48). Em outra passagem, há um relato pessoal sobre o encontro com uma cobra durante passeio por um bosque. A direção para a qual o animal se movia, suas cores e o ambiente ao redor "diziam algo" para ela, ou seja, possuíam um certo significado. Essa observação atenta às mensagens transmitidas por realidades mais profundas está relacionada com o conceito de facultad desenvolvido em Borderlands. Trata-se de uma capacidade, uma técnica de sobrevivência ou uma percepção rápida e prévia a um raciocínio elaborado e consciente. Geralmente, essa habilidade de defesa é desenvolvida pelas pessoas mais vulneráveis e expostas a processos de opressão. Uma vez que precisam estar sempre atentos, fazem uso da facultad para "sentir o violador quando ele está a metros de distância"18 (Anzaldúa 61).
Essas primeiras menções à figura da serpente sinalizam, assim, o início de um pensamento que se desenvolve gradualmente em direção à temática psicológica que envolve Coatlicue. A facultad é a habilidade necessária para que finalmente seja possível estar na presença da deusa e ultrapassar o "estado de Coatlicue". Do mesmo modo que a facultad representa uma estratégia de sobrevivência, o estado de Coatlicue envolve um movimento de desaceleração diante do medo. Essa paralisação, ainda que vista como necessária, precisa ser ultrapassada para que haja crescimento. É por meio desse processo que a psique assimila experiências prévias e processa as mudanças. Se a resistência persistir e não houver movimento em busca de transformação, Coatlicue, por meio de seus aspectos terrestres, se abre e devora o indivíduo.
Se observarmos alguns poemas presentes no penúltimo capítulo da parte poética de Borderlands, poderemos compreender com clareza os conceitos estabelecidos por Anzaldúa. Em todos eles, os sujeitos poéticos estão submersos, escondidos ou estagnados. É o caso de “mujer cacto”, uma mulher do deserto que se esconde dentro de si, buscando apenas se proteger com as agulhas e pontas afiadas de seu corpo: “La mujer del desierto/se entierra en la arena con los lagartos/se esconde como rata/pasa el día bajo tierra/tiene el cuero duro/no se reseca en el sol/vive sin agua19” (Anzaldúa 202).
“Creature of Darkness”, por sua vez, revela a impotência de um sujeito poético que permanece dias isolado na escuridão; mesmo revelando a vontade de romper com esse estado de inércia, é impedido por sua (...) “Three weeks I’ve wallowed/ in this deep place (...) a part of me cries Stop Stop/ Behind that voice/ shadows snicker/ No, we like it here in the dark/ we like sitting here with our grief/ and our longing20” (Anzaldúa 208).
Em "Cuyamaca", o sujeito poético conhece uma mulher pertencente a uma tribo indígena em extinção, que ao final é revista em uma exposição em um museu. Neste contexto, é evidente que o aniquilamento da mulher está diretamente ligado a um fator social: o massacre indígena promovido pela cultura ocidental. As imagens recorrentes no poema revelam a oposição entre velocidade e estagnação. Desse modo, o sujeito poético que inicia uma viagem de carro pelas montanhas encontra essa indígena de nome sugestivo: “Driving around the mountain/ inside the car/ fighting for silence (...) I met a woman from a nearly extinct tribe,/ the Kumeyaay./ Her name was Til’pu,/ meaning Roadrunner21”. Til'pu significa "papa-léguas", ave do deserto estadunidense conhecida por sua rapidez. No entanto, a imobilidade faz-se evidente quando essa mulher se torna apenas um objeto de museu: There’s a forest fire in the Cuyamaca Peaks,/ a sign: 4 Parcels For Sale,/ the Indians locked up in reservations/ and Til’ pu behind glass in the museum22” (Anzaldúa 204).Todos eles ilustram as consequências individuais e coletivas, sociais e culturais da falta de ação diante do terror: "This stopping is a survival mechanism, but one which must vanish when it’s no longer needed if growth is to occur” (Anzaldúa 68)23.
No emblemático poema "Matriz sin tumba o ‘el baño de la basura ajena'" 158), por outro lado, percebe-se uma transição de imagens relacionadas a espaços concretos para cenários mais simbólicos. Por meio de uma das representações de Coatlicue, é possível observar a articulação entre o “estado de Coatlicue" e a facultad na dolorosa experiência de confronto entre um espaço hospitalar e o espaço de um ritual nahuatl, enquanto ocorre a perda de uma matriz – o útero, se pensarmos na etimologia da palavra "matrix": “La bestia noche entra armada con navajas,/ se me arrima muy cerquita,/ me manotea, me agujera dos veces, tres veces./ Miro que me saca las entrañas,/ que avienta la matriz en la basura –/matriz sin tumba24” (Anzaldúa 158).
É significativo que este seja o último da seção de poemas sobre o trabalho nos campos. Apenas quando se cumpre o ritual um outro espaço pode ser acessado, o percorrido pelos "otros atravesados”, aqueles que vivem nas demais fronteiras mencionadas por Anzaldúa, nos níveis espiritual, sexual e psicológico. Vê-se que tanto a facultad quanto o "estado de Coatlicue" significam processos dolorosos e por vezes contraditórios, mas necessários para a construção de uma nova consciência mestiça, uma vez que são imprescindíveis para que ela reaja às condições de subalterna a que é submetida na zona de fronteira – daí a afirmação de que Coatlicue é um "prelúdio para a travessia" (Anzaldúa 70).
They are one: a consciência da nova mestiça
Em Borderlands, torna-se claro que a mestiça se encontra em constante desassossego e instabilidade emocional. Por conta de sua personalidade múltipla, está sempre travando uma luta interior consigo mesma. O conceito de "entre-lugar", cunhado por Silviano Santiago (1978), é retomado por Gloria Anzaldúa por meio da expressão nahuatl "nepantla". A mestiça, dessa forma, vive num estado de "nepantlismo mental", um estado intermediário, de transições e atravessamentos frequentes:
la mestiza is a product of the transfer of the cultural and spiritual values of one group to another. (...) speaking a patois, [she] faces the dilemma of the mixed breed: which collectivity does the daughter of a darkskinned mother listen to?25 (Anzaldúa 100).
Por ser fruto de várias culturas, a mestiça recebe mensagens cruzadas e muitas vezes contraditórias. Como enfatiza Gloria Anzaldúa, tanto as crenças individuais quanto as coletivas de origem chicana por vezes condenam as da cultura branca; essas, por sua vez, entram em conflito com crenças muito restritas da cultura mexicana. Ambas tendem a desconsiderar a cultura indígena. Todos esses choques estabelecem um ataque interno contra as identidades da mulher mestiça. Por isso, Borderlands propõe uma ação das mulheres para combater as práticas de dominação cultural. Diante de todas as possibilidades de atuação, a mais comum costuma ser a reação antagônica, que coloca de um lado o opressor e de outro o oprimido. Mas, em algum momento, adverte que, no caminho para uma nova consciência, um desses extremos terá de ser abandonado: "so that we are on both shores at once and, at once, see through serpent and eagle eyes26" (Anzaldúa 101).
Nesse ponto, é rejeitada a noção corrente de resistência que pressupõe um agente de poder a ser confrontado por uma força externa e, por sua vez, se torna evidente que não existe um fora versus um dentro. Ao contrário, Anzaldúa desconstrói essa lógica dicotômica, posto que as relações entre poder hegemônico e resistência ocorrem mediante constantes conflitos e negociações. Vê-se que a dinâmica entre opressão e resistência se faz presente, sobretudo, no campo das identidades. Tal como Stuart Hall (2002), que percebe a identidade como um fenômeno em constante formação e transformação, Gloria Anzaldúa não a compreende de forma essencialista, como algo sólido e definido. Trata-se de um processo que envolve a mestiça na busca por uma nova consciência por meio de práticas diversas de sobrevivência, práticas em que "nothing is thrust out, the good the bad and the ugly, nothing rejected, nothing abandoned. Not only does she sustain contradictions, she turns the ambivalence into something else" (Anzaldúa 101)27. Neste campo, são realizadas constantes negociações e incorporações de lutas diante das assimetrias observadas neste entre-lugar físico e mental em que se situa a mestiça. Nesse sentido, para Anzaldúa, a rigidez significa a morte. Apenas se mantendo flexível, é possível expandir a "psique horizontal e verticalmente". A ambiguidade possibilita entender por que, em vez de estabelecer a tradicional oposição entre a virgem e a impura (Guadalupe/Malinche), ou enaltecer a figura indígena em detrimento do símbolo de poder da cultura dominante, a imagem de Guadalupe, em Borderlands, é tratada como um símbolo ambivalente.
Torna-se possível compreender por que Coatlicue é "invocada" como uma das presenças mais importantes, marcando todo o pensamento da obra. Ao representar a vida e a morte, é a síntese de dualidades e, além disso, anunciadora de uma terceira perspectiva – algo além de mera dualidade ou de síntese de dualidades. Por estar além das oposições binárias tão questionadas pela reflexão de fronteira, representa o estágio inicial da travessia, do deslocamento para uma nova consciência mestiça, que se dá de forma intensa, por vezes dolorosa, mas necessária para "saltar da escuridão", metáfora tão utilizada por Anzaldúa.
Considerações Finais
O caminho traçado em Borderlands perpassa a rasura e a criação de uma nova mitologia que evidencia a necessidade de uma mudança na forma de percepção da realidade e a ruptura com o pensamento dualista que aprisiona todos os sujeitos atravessados. Não se trata de mera junção de peças separadas, ou da sugestão de um equilíbrio entre poderes opostos. O terceiro caminho significa uma nova consciência: "a mestiza consciousness — and tough it is a source of intense pain, its energy comes from continual creative motion that keeps breaking down the unitary aspect of each new paradigm28 (Anzaldúa 102).
Trata-se principalmente da noção de que as táticas de sobrevivência passam pela noção de diferença, pois é neste campo que os binarismos criados pelo pensamento ocidental podem ser repensados. Esse terceiro elemento é o caminho que configura a nova consciência mestiça, que desafia as dualidades que condenam os viventes (principalmente mulheres) de fronteira ao lugar de não pertencimento e às exclusões múltiplas – históricas, políticas e sociais. Livre das classificações e dos paradigmas de oposição, das sínteses e dos lugares-comuns, a nova mestiça convive com contradições e ambiguidades, transita entre múltiplas culturas e dilui os aspectos redutores dos conceitos pré-concebidos.
Essas experiências se unem na elaboração de um texto que transita por códigos discursivos diversos e apresenta, seja através da reflexão teórica, seja através do testemunho individual, a luta de fronteira sob uma perspectiva de gênero. Borderlands, é preciso ressaltar, é um texto sobre a fronteira, que parte da fronteira e se encerra na fronteira. E é um texto sobre a mulher, que parte de uma mulher e é dedicado à mulher. Os elementos que constituem o livro, tanto nos temas abordados quanto na forma discursiva, estabelecem a transgressão das mitologias pré-colombianas e cristãs para articular uma discussão dessa luta, ressaltada diversas vezes, da mulher fronteiriça.
Trata-se de uma luta na carne, uma luta do corpo – individual e social –, ao qual se aplica a metáfora da "ferida aberta", anteriormente atribuída à fronteira física. Em todos os poemas de Borderlands, há metáforas e referências a partes do corpo e a dores físicas. Embora o trabalho para a transformação de consciência seja, sobretudo, interno, como menciona Anzaldúa, e por isso uma parte do livro seja dedicada ao mergulho na psique, o trabalho com os mitos não se desvia da questão social. Pelo contrário: ele afirma a união entre as dimensões espiritual e racional, consciente e inconsciente, como fundamental para o processo de deslocamento e anuncia o rompimento das fronteiras entre mundo interno e externo.
Desse modo, os mitos femininos em Borderlands atuam em vários sentidos: questionam as versões históricas das representações tradicionais por meio de longas discussões teóricas, como ocorre em relação à culpa histórica de Malinche pela queda dos astecas na Conquista; apropriam-se de expressões e versões que outrora foram difundidas de forma pejorativa, como o termo Chingada, para afirmar resistência; retomam a parte indígena rejeitada e demonizada das representações "cristianizadas", como com Tonantsi, Cihuacoatl e Coatlalopeuh; enfim, rasuram e redizem os vários nomes da Mulher que não constam nos sistemas canônicos pela criação de uma memória coletiva feminina.
Os paradoxos e as contradições construídos pelas culturas de tirania são colocados em discussão, bem como a necessidade de repensá-los e de combater as práticas dominantes responsáveis por inúmeras formas de violência. Gloria Anzaldúa desperta, por meio de sua escrita performática e da incorporação e rasura de mitos de diferentes origens, as potências de cada área, recuperando as forças de cada cultura e reorganizando o movimento de sobrevivência nas fronteiras.
Notas
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1
Este artigo está relacionado à dissertação de mestrado de Camila Montinho da Silva, bolsista da CAPES, desenvolvida e defendida em novembro de 2020 junto ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas (Área de Estudos Literários, opção Literaturas Hispânicas) da UFRJ, sob orientação da Professora Doutora Cláudia Luna, e co-orientação do Professor Doutor Luciano Prado da Silva, compreendendo o quarto capítulo do trabalho.
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2
Com a anexação pelos EUA de grandes territórios do México no século XIX, seus antigos habitantes passam a ser chamados de “chicanos”, termo que passará a designar posteriormente todos aqueles que têm ascendência mexicana e vivem nos EUA, assumindo um caráter pejorativo e discriminatório. Nos anos sessenta do século XX, no bojo das lutas pelos direitos civis, surge o Movimento Chicano, visando a combater o racismo estrutural e valorizar a identidade cultural mexicano-americana. É nesse novo contexto que Anzaldúa utiliza o termo, atribuindo-lhe, portanto, qualidades afirmativas.
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3
Há nessa primeira parte trechos e alguns poemas completos que "atravessam" os textos de caráter ensaístico e autobiográfico. Parecem indicar pequenas intervenções que se avolumam até "tomarem conta" completamente do livro na segunda parte, que é composta apenas por poemas.
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4
“Os atravessados”. No primeiro capítulo da primeira parte de Borderlands, eles são definidos como os perversos, os queer, os problemáticos, os vira-latas, os mulatos, os mestiços, enfim, todos aqueles que atravessam os confins do "normal".
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5
"'E quando você se casa, Gloria? Você vai perder o bonde'". E eu digo a eles: "Bem, se eu me casar, não será com homem". Eles ficam calados. Sim, eu sou filha da Chingada. Sempre fui sua filha". Tradução nossa.
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6
“Filhas da Chingada/ nascidas da índia violada,/guerrilheiras divinas – mulheres de fogo ardente/que dão luz à noite escura/ iluminam o Mundo Zurdo”
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7
Bebida alcoólica fermentada feita com ágave, um tipo de cacto mexicano.
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8
“Pelos meus filhos estou aqui deitado como um animal/ no colo da mãe terra/ Oxalá que a Santíssima Virgem me tenha em suas mãos”. Tradução nossa.
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9
“’Eu quero estar com ela, a virgem santíssima.’ ‘Mas você está com ela’, disse ele, com os olhos limpos como os de uma criança. ‘Ela está em todo lugar.’”. Tradução nossa.
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10
"malabarismo com as culturas". Tradução nossa.
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11
"esquecer a dicotomia puta/virgem e ver Coatlalopeuth-Coatlicue na Mãe Guadalupe”. Tradução nossa.
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12
"A mulher serpente, a antiga deusa asteca da terra, da guerra e dos nascimentos, patrona das parteiras." Tradução nossa.
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13
"Ela era o horrível, o terror, a mulher que matou seus filhos, que perdeu seus filhos". Tradução nossa.
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14
"De todas as figuras da mitologia mexicana, ela me deu força para gritar, esbravejar, falar, quebrar o silêncio, escrever". Tradução nossa.
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15
"Existe uma antiga tradição indígena que consiste em queimar o cordão umbilical de bebês do sexo feminino embaixo de casa para que nunca se distanciem dela e de seu papel doméstico". Tradução nossa.
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16
“Coatlicue: a senhora da saia de serpente, possuía e equilibrava a dualidade entre o masculino e o feminino, entre a luz e a obscuridade, entre a vida e a morte". Tradução nossa.
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17
“Pela manhã, vi com olhos de serpente, senti sangue de serpente fluir pelo meu corpo. A serpente, mi tono, minha contraparte animal, Eu estava imune ao seu veneno. Imune para sempre”. Tradução nossa.
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18
Tradução nossa. No original: “We’ll sense the rapist when he’s five blocks down the street”.
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19
“A mulher do deserto/ enterra-se na areia com os lagartos/ esconde-se como um rato/ passa o dia debaixo da terra/ tem a pele dura/ não seca ao sol/ vive sem água”. Tradução nossa.
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20
“Três semanas tenho me afundado/ neste lugar profundo (...) uma parte de mim grita Pare Pare/ Por trás dessa voz/ sombras dizem sorrindo/ Não, nós gostamos daqui, desse escuro/ nós gostamos de ficar sentados aqui com nossa tristeza/ e nossa saudade.” Tradução nossa.
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21
“Dirigindo pela montanha/ dentro do carro/ lutando pelo silêncio (...) Conheci uma mulher de uma tribo quase extinta,/ os Kumeyaay./ Seu nome era Til’pu,/ que significa Papa-léguas”. Tradução nossa.
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22
“Há um incêndio florestal em Cuyamaca Peaks/ uma placa: A venda em 4 parcelas,/ os indígenas presos em reservas/ e Til’ pu atrás do vidro em um museu”. Tradução nossa.
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23
“Essa paralisação é uma estratégia de sobrevivência, mas deve desaparecer quando deixa de ser necessária se queremos crescimento”. Tradução nossa.
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24
“A fera da noite entra armada de facas,/ chega bem perto de mim,/ me apalpa, me perfura duas, três vezes./ Vejo ele arrancar minhas entranhas,/ joga o útero no lixo -/ matriz sem tumba”. Tradução nossa.
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25
"a mestiça é um produto da transferência dos valores culturais e espirituais de um grupo a outro (...) fala um patois (...), enfrenta o dilema da raça mesclada: a que coletividade escuta a filha de uma mãe de pele escura?". Tradução nossa.
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26
"estaremos em ambas as margens e ao mesmo tempo veremos com olhos de águia e de serpente". Tradução nossa.
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27
“Nada é eliminado, o bom, o ruim e o feio, nada rejeitado, nada abandonado. Ela não só sustém contradições como também transforma as ambivalências em uma outra coisa". Tradução nossa.
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28
"uma consciência mestiça – e ainda que seja uma fonte de dor intensa, sua energia procede de um movimento contínuo de criação que rompe constantemente o aspecto unitário de cada novo paradigma" Tradução nossa.
DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS
Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.
Referências
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Editado por
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Editoras Convidadas:
Alinne Balduino P. Fernandes, Melissa Sihra
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Jul 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
16 Out 2024 -
Aceito
30 Abr 2025
