Open-access O CINEMA POLÍTICO DE KEN LOACH: TRABALHO, PÓS-FORDISMO E SOFRIMENTO PSÍQUICO EM SORRY WE MISSED YOU (2019)

KEN LOACH'S POLITICAL CINEMA: WORK, POST-FORDISM, AND PSYCHIC SUFFERING IN SORRY WE MISSED YOU (2019)

Resumo

Embora o filme Sorry We Missed You (2019), de Ken Loach, tenha gerado discussões significativas sobre as configurações do trabalho no contexto contemporâneo, alguns aspectos cruciais de sua composição permanecem insuficientemente explorados. Este ensaio apresenta um trabalho de interpretação de um desses aspectos, a saber, a intersecção entre subjetividade e trabalho presente no modo como se configura a representação do cotidiano na composição narrativo-dramática do filme. Para este fim, partindo da noção de “fantasia social”, de Slavoj Žižek, tecemos uma série de comentários críticos com a intenção de refletir sobre a composição narrativo-dramática, à luz tanto do processo histórico-social pós-fordista, como de seus impasses, em perspectiva interdisciplinar. Entre as referências teóricas deste ensaio, estão os estudos de Arantes (2014), Bihr (1998), Harvey (1992), Safatle (2019) e Žižek (2014). De acordo com a interpretação aqui proposta, o filme estiliza uma experiência social de sofrimento característico de uma ordem simbólica na qual prevalece uma “violência sistêmica” (Žižek, 2014), que ocasiona um processo de “centralidade negativa do trabalho” (Arantes, 2014). A partir dessas condições, argumentamos ser possível acompanhar uma dialética de reconhecimento do desejo que estrutura a tensão social irresolvida, na qual o fracasso da fantasia conduz a personagem Ricky a um encontro traumático com o Real.

Palavras-chave
Cinema britânico; Classe trabalhadora; Centralidade negativa do trabalho; Precarização do trabalho; Cultura e colapso da modernização

Abstract

Although Ken Loach's Sorry We Missed You (2019) has sparked significant discussions about the configurations of labor in the contemporary context, some crucial aspects of its composition remain insufficiently explored. This essay offers an interpretation of one such aspect: the intersection between subjectivity and labor as represented in the film's narrative-dramatic composition of everyday life. To this end, drawing on Slavoj Žižek's notion of “social fantasy,” we present a series of critical reflections to examine the narrative-dramatic composition in light of both the post-Fordist historical-social process and its impasses, from an interdisciplinary perspective. The theoretical references for this essay include studies by Arantes (2014), Bihr (1998), Harvey (1992), Safatle (2019), and Žižek (2014). According to the interpretation proposed here, the film stylizes a social experience of suffering characteristic of a Symbolic order dominated by “systemic violence” (Žižek, 2014), which engenders a process of “negative centrality of labor” (Arantes, 2014). From these conditions, we argue that it is possible to identify a dialectic of desire recognition that structures the unresolved social tension, in which the collapse of fantasy leads the character Ricky to a traumatic encounter with the Real.

Keywords
British cinema; Working class; Negative centrality of labor; Labor precarization; Culture and the collapse of modernization

Considerações iniciais

A dialética demonstra como toda enunciação filosófica é sempre uma enunciação em situação. Ela se produz através do reconhecimento da forma específica do sofrimento em relação aos limites da situação em que os sujeitos da enunciação se encontram.

Vladimir Safatle (2019)

Sorry We Missed You (2019) põe em cena Ricky e sua família, conduzindo-nos a acompanhar os conflitos que emergem após sua decisão de aderir a um posto de trabalho plataformizado como motorista-entregador franqueado da empresa Parcels Delivered Fast (PDF Company). Poucos filmes recentes captaram de maneira tão sugestiva as metamorfoses do mundo do trabalho na contemporaneidade quanto essa produção de Ken Loach. Cineasta proeminente do cinema político da Grã-Bretanha, Loach definiu seu projeto estético-político como uma busca de “autenticidade do retrato da vida das classes trabalhadoras inglesas” (Soares, 2019, p. 251). Quando lançou Sorry We Missed You, em 20191, o Reino Unido enfrentava uma alta taxa de desemprego, agravada pela crise financeira de 2008 e por uma forte estagnação salarial causada pela austeridade neoliberal na política econômica (Wolf, 2019). Após anos de instabilidade profissional, Ricky acredita ter encontrado na PDF Company uma oportunidade de realização pessoal. “Seu pai vai começar seu próprio negócio”, diz Ricky a seus filhos, Liza e Seb (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa). O tom de sua voz é de quem está realmente empolgado e esperançoso, acreditando em uma falsa promessa que, ao longo do filme, veremos desmoronar traumaticamente.

Desde seu lançamento, o filme tem sido analisado em artigos que destacam sua capacidade de uma denúncia social aos efeitos das metamorfoses no mundo do trabalho, em particular a gig economy e seus efeitos de precarização do trabalho (Medina; Parra, 2020; Iael Souza, 2021; Barroso, 2021; Giordano; Tarrit, 2021; Souza, 2021). À primeira vista, a trama da diegese fílmica parece se concentrar na exposição quase documental de uma nova organização produtiva e de controle do trabalho. Contudo, a força do filme ultrapassa apenas o caráter de denúncia descritiva, avançando para uma compreensão mais profunda das relações entre o social e o subjetivo.

O que parece ter escapado à atenção é o conflito psíquico presente na estrutura diegética da composição narrativo-dramática do filme. Mais do que mero pano de fundo afetivo, esse conflito pode ser compreendido como decisivo, tendo em vista que concordamos com Safatle (2019) quando defende que “a crítica da economia política deve ser seguida de uma crítica da colonização da subjetividade para que a atividade crítica seja uma operação fundamental da ação política” (Safatle, 2019, p. 37). Nesse sentido, o presente ensaio propõe um trabalho de interpretação sobre a intersecção entre subjetividade e trabalho presente no modo como se configura a representação do cotidiano na composição narrativo-dramática da obra Sorry We Missed You (2019). Quais condições históricas e materiais levaram o protagonista, Ricky, a se sujeitar à armadilha da ilusão de autonomia empreendedora prometida pelo neoliberalismo? Como interpretar as relações de precarização e exploração não apenas como fenômenos econômicos, mas como forças que reconfiguram subjetividades? De que modo a composição narrativo-dramática do filme, cujo conflito se situa no espaço da intimidade familiar, consegue formalizar a dimensão épica das estruturas político-econômicas que determinam as condições de trabalho e de vida das personagens?

Essas são algumas das questões que orientam a abordagem interpretativa aqui proposta, fundamentada em uma perspectiva teórico-crítica materialista que compreende a prática artística como expressão formal de processos histórico-sociais. Retomando também a formulação de Xavier (2003), segundo a qual o “filme narrativo-dramático” exige atenção à maneira como os acontecimentos e as ações das personagens são organizados no interior da diegese — já que, como afirma o autor, “narrar é tramar, tecer” (Xavier, 2003, p. 64) —, foi possível conceber que, na composição narrativo-dramática da obra de Loach, os acontecimentos e ações são estruturados em função de uma elaboração que implica os conflitos psíquicos e os processos de subjetivação mobilizados em uma relação triangular entre trabalho, desejo e linguagem, frente às mutações do trabalho sob o atual padrão de acumulação flexível e sua política neoliberal. Isso significa uma compreensão de que as transformações no capitalismo (acumulação e trabalho), nas subjetividades (subjetivações e desejo) e nas formas de discurso (linguagem) não são eventos separados, mas partes de uma mesma reconfiguração histórica e social, que na composição do filme emergem como esferas de tensão cruciais de expectativas frustradas e formas de reconhecimento negadas dentro de uma sociabilidade neoliberal.

Para alcançar o objetivo, este ensaio procura acompanhar as próprias linhas de força que organizam a sociabilidade estilizada no filme de Ken Loach. Partimos da análise da cena inicial, na qual temos a enunciação de um desejo que vai estruturar o andamento dramático da composição. Pois se Ricky expõe, logo nos primeiros minutos, o seu desejo, formulando o enunciado de “ser meu próprio chefe”, concebemos que há aqui reverberação de uma fantasia social, tal como definida por Žižek (1992), em que o desejo já compareceu colonizado, ajustado à gramática neoliberal. Ao iniciar sua atuação como motorista-entregador, a cidade, fragmentada em pedaços de ruas, depósitos e vans, serve de metáfora para a desintegração do trabalho como princípio de mediação e reconhecimento social. O declínio do pacto fordista implicou uma “traumática mutação” (Arantes, 2014) na sociabilidade. Em Sorry We Missed You, não há mais espaço para totalidades: trabalho, desejo e linguagem aparecem como sintomas da mesma impossibilidade histórica de uma nova forma social colapsada, por isso Loach alcança um diagnóstico do contemporâneo que vai muito além de ser apenas uma denúncia social da precariedade do trabalho. Daí que argumentamos ser possível reconhecer a inscrição de uma “violência sistêmica” (Žižek, 2014) no percurso da família Turner, na qual o sofrimento psíquico emerge como uma expressão concreta dessa violência.

A fantasia social de “Ser meu próprio chefe”

A cena de abertura do filme inicia-se com o recurso off-screen. Antes mesmo que qualquer imagem se projete, ouvimos uma voz relatando uma trajetória profissional. Em seguida, surge outra voz com perguntas que marcam inflexões. A sequência de abertura se completa com o enunciado de um desejo: “ser meu próprio chefe”. Essa expressão, recorrente no discurso empreendedor, se estabeleceu como um dos slogans mais eficazes, operando como uma artimanha ideológica que obscurece as relações entre capital e trabalho ao recobrir a exploração com a promessa vazia de autonomia. Desde o início do filme, é possível observar um processo de interação entre trabalho, desejo e linguagem, que atua como subordinação. Nesse sentido, o uso do off-screen desvela tanto uma ordem simbólica marcada pelo déficit de reconhecimento quanto a conformação de nossos desejos às normas sociais e expectativas que, frequentemente, escapam à nossa consciência. Não por acaso, essa enunciação emerge no escuro: com a tela inteiramente negra e sem qualquer manipulação sonora, o filme faz com que o diálogo ocupe o espaço central da abertura, expondo uma subjetividade já capturada. Por isso, vale a pena deter-se nele por um momento:

Ricky: Já fiz de tudo. Geralmente trabalho de pedreiro. Preparação do alicerce. Esgoto. Cavar, fazer demarcação. Vedar paredes e telhados. Pavimentação, conserto de piso. Serviços de encanamento, marcenaria. Já até cavei covas, de tudo mesmo.

Maloney: Então, por que desistiu?

Ricky: Bom, sempre tem alguém enchendo o saco, não é? [...] acaba sendo um pouco demais. Sabe, é que eu sou trabalhador. Pena que o pessoal com quem eu trabalhava não era. Imbecis preguiçosos. Então... prefiro agora trabalhar sozinho. E ser meu próprio chefe (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

Até este momento, não sabemos quem fala, quem ouve, nem por que falam. Em breve, o espectador descobrirá que as vozes são de Maloney e Ricky Turner, o protagonista da obra. Foi este que relatou a experiência profissional. A enumeração das funções desempenhadas revela a instabilidade da trajetória de Ricky, além de seu discurso implicar um tensionamento entre individualidade e coletividade expresso na frustração com antigos colegas (“imbecis preguiçosos”). A intervenção de Maloney (“Então, por que desistiu?”) introduz um contraste marcante: Ricky se justifica, Maloney avalia. Inicialmente, não está claro qual é a função específica dessa personagem, entretanto, ao longo da diegese fílmica, torna-se claro que sua posição pode ser compreendida como de gerente, sendo responsável por impor e monitorar as rigorosas exigências e metas da empresa sobre os motoristas-entregadores. Se nos atentarmos bem, percebe-se que o relato indica uma demanda de reconhecimento expressa em posição de vulnerabilidade.

Outro ponto de inflexão do diálogo se estabelece quando Maloney indaga se Ricky já teria recebido seguro-desemprego: “Rick: Não. Não, não. Tenho meu orgulho. Prefiro passar fome. / Maloney: Música para meus ouvidos, Ricky” (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa). As implicações da resposta de Ricky são pungentes. Enquanto I, Daniel Blake, lançado em 2016, centra sua narrativa na experiência de desamparo e resistência frente à burocracia governamental para se ter direito ao acesso ao direito social (equivalente ao “auxílio-doença” do INSS brasileiro), Sorry We Missed You pontua essa mesma problemática de forma deslocada, apresentando um trabalhador que rejeita enfaticamente a assistência social estatal.

Lembrar de I, Daniel Blake (2016) como referência comparativa nos permite pensarmos na continuidade do projeto cinematográfico de Ken Loach e na maneira como ambos os filmes articulam a crítica ao desmonte do Estado de bem-estar social sob a hegemonia neoliberal. Se em I, Daniel Blake (2016) emos uma produção marcada por uma montagem que enfatiza o confronto entre o indivíduo e a máquina estatal, evidenciando como a estrutura burocrática impõe obstáculos quase intransponíveis ao acesso a direitos básicos, por sua vez, em Sorry We Missed You (2019), a montagem expõe a lógica de fragmentação e isolamento do trabalhador precarizado, que internalizou um discurso que, na prática, o impede cada vez mais de realizar algum confronto. Lembrarmos de I, Daniel Blake (2016) em perspectiva comparativa, ainda que brevemente, permite observamos peças complementares em um estudo do diretor sobre a desconstrução do mundo do trabalho e a ideologia neoliberal. Enquanto I, Daniel Blake (2016) se concentra na exclusão de um trabalhador pelo Estado, Sorry We Missed You (2019) avança na problematização ao mostrar como essa exclusão não apenas persiste, mas se torna um elemento estruturante de um novo modelo de trabalho, no qual o trabalhador precarizado passa a rejeitar o próprio conceito de proteção social. Destaque-se, por exemplo, que podemos identificar na resposta de Ricky a reprodução da ideologia conservadora da noção de uma “cultura da dependência do bem-estar social”, que, inclusive, se atrela ao falseamento de que desempregados são responsáveis por sua situação. Discursivamente, essa noção sempre foi reiterada por parlamentares conservadores, como neste exemplo de William Hague: “Vamos libertar as pessoas da cultura da dependência do bem-estar social com uma Revolução do Bom Senso. É hora de insistir que aqueles que podem trabalhar, devem trabalhar” (Hague apud Okoroji; Gleibs; Jovchelovitch, 2021, p. 212, grifo dos autores). Com efeito, um princípio central do thatcherismo era procurar ativamente uma mutação de afetos, alterando a forma como as pessoas pensavam e sentiam sobre a classe e a sociedade em busca de remodelar inclusive a mentalidade popular da classe trabalhadora. Conforme a própria afirmativa célebre de Margaret Thatcher: “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”2.

No diálogo de abertura do filme, a assertiva de Maloney (“Música para meus ouvidos”) marca o momento de transição do recurso off-screen. É o instante em que os interlocutores aparecem na tela e descobrimos que o diálogo, na verdade, trata-se de uma espécie de entrevista de emprego. A tela acende em esquema plano/contracampo. Embora o uso convencional dessa técnica implique um diálogo muitas vezes em dimensão igualitária (Bordwell; Thompson; Smith, 2008), o que a cena apresenta é justamente o contrário. No nível da montagem, o plano/contraplano visa a assimetria: Ricky está posicionado de costas para o espectador, em evidente tensão, enquanto Maloney, com sua postura relaxada e intimidadora, ocupa o centro do enquadramento. A assimetria na construção visual já opera, então, como um índice formal da hierarquia ideológica que estrutura a cena. Maloney encarna o discurso neoliberal da autonomia empreendedora, enquanto Ricky, embora convencido de sua independência, já se encontra posicionado como um sujeito subordinado. A própria encenação da entrevista revela o engodo da fantasia social: a liberdade que acredita ter se dissolve no enquadramento que o captura como um trabalhador vulnerável, cujo destino está à mercê das forças que o avaliam.

Nesse momento, um novo ponto de inflexão do diálogo ocorre com a apresentação das condições de prestação de serviço na franquia PDF Company. A mise-en-scène reforça a assimetria, com Maloney enquadrado de ângulo superior enquanto descreve:

Nós não te contratamos, você embarca. Chamamos isso de onboarding. Não trabalha para nós, trabalha conosco. Você não dirige para nós, realiza serviços. Não há contrato, não há metas de desempenho. Tem que atender às normas. Não há salário, senão comissões por serviços prestados. Não tem cartão de ponto, só exigimos disponibilidade. Uma vez admitido, torna-se um motorista franqueado, dono do seu futuro. É o que diferencia os perdedores dos lutadores. [...] Trará sua própria van, ou alugará uma conosco? [...] Como tudo aqui, a escolha é sua (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

Se, conforme assinalamos acima, no plano da montagem a hierarquia já se consolidou pela composição da mise-en-scène, no plano discursivo, observamos a assimetria se acentuar na própria estrutura da linguagem. O close-up do rosto de Ricky captura uma expressão na qual a tensão se mescla com atenção às orientações recebidas. Ricky acredita estar negociando sua independência e o vocabulário empresarial cuidadosamente escolhido — “onboarding”, “trabalha conosco”, “franqueado”, “dono do seu futuro”, “não há metas de desempenho” — reforça a noção de autonomia, alimentando o imaginário de Ricky da ausência de subordinação. A operação retórica de Maloney nega veementemente o vínculo empregatício, como estratégia que reproduz essa fantasia de autonomia (“Não trabalha para nós, trabalha conosco. [...] Não há contrato, não há metas de desempenho. [...] dono do seu futuro”) nessa conversa inicial, enquanto a exigência de “disponibilidade” (“tem que atender às normas. [...] Não tem cartão de ponto, só exigimos disponibilidade”) já implica o controle estrutural subjacente, tornando o Ricky um gerente de si mesmo condenado a ajustar-se constantemente a regras que não controla, conforme será encenado ao longo da diegese fílmica. De acordo com estudo de Abílio (2020), podemos perceber que a PDF Company deseja um trabalhador just-in-time. Segundo a socióloga, “a condição do trabalhador just-in-time é estar disponível para ser imediatamente utilizado, mas ser remunerado unicamente pelo que produz”, de maneira que a ausência de vínculo formal não significa maior autonomia, mas sim uma forma de controle mais insidiosa, na qual o trabalhador se torna responsável pela própria reprodução social (Abílio, 2020, p. 116-117).

A edição e montagem da abertura culmina na afirmação categórica de Maloney: “a escolha é sua”. De certa maneira, a decisão de Ricky é o que desencadeará a ação dramática que veremos ao longo da composição narrativo-dramática. Assim, identificamos na abertura o “ato de decisão”, conforme refletiu Szondi (2001) sobre o drama moderno, assinalando justamente que a ação dramática no drama moderno é instituída por “decisões” autônomas das personagens. Segundo o autor, “o ato de decisão” era o gesto que manifestava a interioridade do sujeito, transformando-a em uma presença significativa no plano dramático (Szondi, 2001, p. 29). Contudo, em se tratando de relações de trabalho, a liberdade de decisão é infundada e ilusória, desafiando roteirista e diretor no sentido de que as relações objetivas que motivaram a decisão de Ricky demandam um tratamento épico. Como discute Szondi (2001), esse tratamento busca evidenciar a interdependência entre sujeito e estrutura social, deslocando a ênfase da interioridade psicológica para uma abordagem que realça os condicionantes históricos e coletivos da ação.

A construção do filme enfrenta o desafio para a armação de um ponto de vista político e realista, já que a ilusão de autonomia mobilizou um processo de subjetivação contemporaneamente no plano da realidade histórica. Não se trata meramente de considerar que Ricky estivesse agindo de forma insincera ou buscando apenas agradar Maloney com suas respostas. Trata-se, antes, de compreender como o processo de consolidação da hegemonia do neoliberalismo thatcherista trouxe profundas consequências para o mundo do trabalho, ocasionando um cenário de fragmentação da luta e de crise de identidade de classe. No plano subjetivo, o interesse não é por coerção, mas surge por uma adesão gerada pela convicção. Como alcançar uma “postura realista”3 para formalizar estrategicamente os impasses e as perspectivas desse novo cenário?

Compreendemos que a operação de construção fílmica mantém a dimensão da ilusão da autonomia no plano narrativo-dramático da produção. Com a intenção de aprofundar a compreensão aqui proposta, a noção de “fantasia social” de Žižek é valiosa para a condução do nosso movimento interpretativo. Partindo da teoria psicanalítica de Lacan, essa noção em Žižek é uma reformulação que conecta os domínios da psicanálise e da crítica ideológica. Essa noção possibilita promover uma articulação entre fantasia, ideologia, desejo e a tríade Real, Simbólico e Imaginário (RSI), proporcionando uma perspectiva teórico-crítica para lançar luz sobre a constituição subjetiva de Ricky, marcada por processos de socialização próprios de uma cultura pós-fordista. Isso ocorre porque o próprio interesse atua como ponto de clivagem que define sua relação com o trabalho e sua identidade, revelando as contradições estruturais que permeiam o reconhecimento, o desejo e a ideologia. Quando Ricky afirma, no diálogo com Maloney, que deseja “ser seu próprio chefe”, Ricky expressa um desejo de autonomia e independência, moldado pelas frustrações das funções desempenhadas no passado. Compreender esse desejo é crucial. Žižek (1992) chama a atenção para o fato de que o desejo é estruturado pela ordem simbólica. Ou seja, longe de ser uma manifestação espontânea do sujeito, o desejo constitui um efeito dos significantes que organizam sua relação com a realidade. Aquilo que desejamos é previamente articulado pelo contexto simbólico, entendido como um conjunto de determinações materiais e coordenadas discursivas e ideológicas que, embora históricas e exteriores ao sujeito, operam como instância constitutiva de sua subjetividade. Dessa forma, não apenas delimitam o que se pode desejar; determinam, ainda, os modos pelos quais esse desejo se articula. Esse modo de estruturação do desejo implica também em como a fantasia social atua, direcionando as ações individuais: “a fantasia ideológica funciona como uma ‘ilusão’, um ‘erro’ que estrutura a própria ‘realidade’, que determina nosso ‘fazer’, nossa atividade’” (Žižek, 1992, p. 63).

Desde os primeiros momentos do filme, a economia da montagem e da narrativa fílmica já torna manifesta a forma como Ricky concebe a prestação de serviço na PDF Company: como uma oportunidade de realização pessoal. A fantasia social será para Žižek (1992; 2010) justamente a criação de um espaço de sentido que legitima a ordem existente, possibilitando apreender a economia libidinal que subjaz às ideologias. De acordo com o filósofo esloveno, “é a própria fantasia que, por assim dizer, fornece as coordenadas de nosso desejo, isto é, constrói o contexto que nos permite desejar algo” (Žižek, 1992, p. 116). Resumidamente, Žižek (1992) busca pôr em evidência, dentro de suas reflexões no campo da filosofia política, que a fantasia do sujeito se estabelece a partir da ordem Simbólica para agir no Imaginário, configurando ideologicamente a maneira de sustentar na subjetividade os modos de adesão social.

Com base nessa perspectiva, agora conseguimos caracterizar, na interação entre Ricky e Maloney, a materialização de uma fantasia que regula a ordem simbólica da trama diegética; e que tem correspondência no processo histórico-social contemporâneo. A promessa de autonomia mobilizou o Imaginário de certa fração da classe trabalhadora, redefinindo os processos de racionalidade de um investimento libidinal. É precisamente do Imaginário que se alimenta a ideologia, nos ensina Žižek (1992; 2010). Essa ordem Simbólica na composição narrativo-dramática é a própria estrutura do trabalho sob a condução da política neoliberal, que organiza a vida e oferece regras para a sobrevivência. Lembremos como o desejo pelo posto de trabalho na PDF Company é concebido como oportunidade de realização pessoal, como Ricky também reproduz um discurso contra o estado de bem-estar social, tudo isso após anos de instabilidade em sua trajetória como trabalhador. Žižek (2003, p. 32) esclarece que, na vida cotidiana, estamos “imersos na ‘realidade’ (estruturada e suportada pela fantasia)”; ou seja, nossa percepção do mundo é organizada por fantasias que fornecem uma coerência simbólica e imaginária à experiência vivida. Por isso, assistimos a Ricky inicialmente como um indivíduo que realmente acredita que esse posto na PDF Company lhe trará a estabilidade desejada. Posteriormente, Ricky explicou entusiasmado à esposa: “Eles garantem 155 libras por dia, mas se eu for mais rápido e competitivo que todos os outros posso vencer as melhores rotas e chegar a 200”. Estava convencido e buscava convencer também Abbie: “acabaremos no aluguel para sempre. Queremos nossa própria casa”. Além de confiar na viabilidade de concretizar a aquisição da casa própria, para a família não mais depender do aluguel, Ricky vislumbrava também que, em doze meses na PDF Company, conseguiria dinheiro para expandir sua “própria franquia” (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

A impossibilidade de contar as implicações da decisão de Ricky somente a partir de um plano individual (dramático) leva ao uso de memórias e diálogos para explorar a dimensão político-econômica dos conflitos. Dentro dessa perspectiva, é importante destacar uma cena da composição narrativo-dramática em que Abbie, esposa de Ricky, está conversando com Mollie, uma idosa que recebe serviços de home care fornecidos pela empresa na qual Abbie trabalha. Enquanto trocam fotos como lembranças da juventude, Abbie mostra uma imagem da família Turner (ainda incompleta, pois Abbie estava grávida da filha mais nova) diante de uma casa. Mollie pergunta: “Sua casa?”. Abbie responde, revelando uma ruptura decisiva em suas vidas:

Era para ser. Mas há dez anos o banco Northern Rock entrou em falência. Já tínhamos a hipoteca, tudo pronto. Depois de tudo acertado, Ricky perdeu o emprego na construtora. Não conseguiu arranjar emprego [...]. Aconteceu com um monte de gente (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

A cena pública pós-crise financeira de 2008 reflete-se na crise doméstica. Pelo diálogo mais intimista entre Abbie e sua cliente, Mollie, surge a memória em intersecção com a vida social, no que se refere aos créditos hipotecários subprime. Mecanismo utilizado nos EUA, posteriormente adotado na Europa, no caso dos empréstimos imobiliários. O derivativo subprime é uma espécie de crédito disponibilizado pelos bancos a tomadores de alto risco, que não precisam comprovar renda. Conforme Coggiola (2012, p. 66) esclarece, “o subprime era, na verdade, um sistema de confisco das pequenas poupanças e da população mais pobre”. Abbie então ao responder possibilita ao espectador compreender que a situação da família apresentava uma estabilidade maior até o colapso financeiro da Northern Rock, instituição bancária sediada na cidade de Newcastle, que ocorreu em 2008, enquanto ela estava grávida de Liza.

Note-se que, ainda no relato de Abbie, é mencionado que Ricky “perdeu o emprego [lost his job]”. Embora a expressão implique uma conotação mais neutra e abrangente em comparação com termos mais diretos como “fired” ou “dismissed”, podemos inferir que se trata de uma situação diretamente ligada aos eventos da crise. Chamou nossa atenção o fato de ela ter indicado que Ricky “não conseguiu arranjar emprego”. Não conseguiu obter um emprego com a mesma qualidade anterior? Ou implica o fato de que apenas exerceu funções no setor informal? Esse aspecto não fica evidenciado. Tendo em vista a abertura do filme, com o relato de Ricky com a enumeração de diferentes funções, foi possível inferir que Ricky já está em um processo de instabilidade há dez anos. Forrester (1997) formulou de maneira precisa uma dimensão que geralmente ficava em segundo plano: “não é o desemprego em si que é nefasto, mas o sofrimento que ele gera [...]” (Forrester, 1997, p.10). No estudo sobre o mercado de trabalho no Reino Unido pós-crise de 2008, produzido por Wolf (2019), o autor expôs uma queda brusca em termos qualitativos, explicando que a política econômica, em busca de reduzir o nível de desemprego, recorreu a um “processo [que] se deu à custa do aumento da participação dos empregos de menor remuneração e menores garantias” (Wolf, 2019, p. 11).

Crucial é não esquecer que o neoliberalismo já havia destruído o pacto fordista antes mesmo da crise de 2008. Portanto, esta surgiria para acentuar o mal-estar da família Turner, marcando traumaticamente com a perda da casa recém-financiada e uma demissão que levou Ricky a um provável processo de informalização. Logo, somos levados a associar que o desejo de escapar da instabilidade econômica foi estrategicamente capturado pelo discurso neoliberal. O declínio do pacto fordista implicou uma “traumática mutação” (Arantes, 2014) na sociabilidade contemporânea. A partir da Era Thatcher houve a transformação do Reino Unido em um dos mais brutais laboratórios do neoliberalismo. Especificamente no caso do Reino Unido, Antunes (1999) localiza, “durante os quase 20 anos de vigência do neoliberalismo pela via clássica”, um intenso processo de desindustrialização articulado a privatizações drásticas, que reconfiguraram de forma “irreversível” a composição e a organização do trabalho, atingindo setores produtivos historicamente centrais. Em termos numéricos: “A produção industrial no Reino Unido contava, em 1979, com mais de 7 milhões de trabalhadores empregados, ocorrendo uma redução para 3,75 milhões em 1995” (Antunes, 1999, p. 38). Consequentemente, a potência da obra fílmica não é somente a presença específica do tema da plataforma e gerenciamento algorítmico do trabalho. Inclusive, a própria política de desregulamentação do mercado de trabalho tematizada já surge na diegese fílmica tendo colonizado as subjetividades, sendo internalizada, no caso de Ricky, como uma fantasia social na forma de liberdade que ressoa a busca por reconhecimento social, mobilizando seu desejo e linguagem.

Por isso, o que não podemos perder de vista é que essa fantasia social surgiu como expectativa emancipatória, uma maneira de lidar com essa “traumática mutação” ocasionada pelo colapso do pacto fordista. Cabe lembrar, como destaca Safatle (2020, p. 14), a importância de se compreender “as formas de sofrimento psíquico como múltiplas modalidades de déficit de reconhecimento”, que expressam impossibilidades sociais de reconhecimento. A partir dessa perspectiva, podemos propor como leitura desses elementos até aqui expostos uma tensão social, na qual a fantasia social é um ponto de inflexão, estruturando uma complexa interação subjetiva entre trabalho, desejos e linguagem socializados.

Colapso do pacto fordista e crise doméstica

No plano narrativo, a focalização se configura pelo cotidiano da família Turner. A encenação dramática é a família, com uma crise doméstica que possui os conflitos e tensões filmados nos espaços internos da casa, especialmente na sala de estar. Logo após a abertura, ocorre o diálogo entre o casal sobre as vantagens do investimento em trabalhar na PDF Company. Abbie questiona Ricky enquanto estão na sala de estar: “Seriam 14 horas por dia e seis dias por semana. Eu nunca te vejo. Nós nunca nos veremos” (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa). Assim, na indagação de Abbie está justamente o pressuposto da dinâmica de trabalho, especialmente no seu amálgama de tempo/precarização, que será encenado como fator desestruturador das relações familiares ao longo da obra fílmica.

De fato, ao longo da filmagem não é o espaço doméstico que possui prevalência na construção da diegese, implicando justamente a condição de ausência de Ricky e Abbie em casa. Ao mesmo tempo, na montagem do filme, o tempo dentro da empresa é mínimo, apenas no início da manhã para carregar a van sob a vigilância de Maloney. Nos depósitos da PDF Company, a câmera frequentemente utiliza planos gerais para enquadrar o ambiente, preenchido por pilhas de pacotes e a movimentação incessante de outros trabalhadores. O ritmo é frenético para Ricky organizar suas entregas, rapidamente já passando para cenas de distribuição.

Observa-se, assim, que Sorry We Missed You não constrói sua espacialidade como um cenário estático. A chave da nossa compreensão implica que a própria organização espacial surge diretamente vinculada à reconfiguração das relações entre espaço e trabalho no capitalismo contemporâneo, por isso recuperamos as noções de “dispersão” (Harvey, 1992) e de “difusão” (Bihr, 1998) do modo de produção. É nesse sentido que concebemos que a coordenada espacial possui resultado para dimensionar a nova morfologia do trabalho contemporâneo. Isso porque há no longa-metragem a tendência de um tratamento da cidade, a partir de uma montagem paralela, alternando entre as rotinas de Ricky e Abbie. Tal tendência permite uma configuração em que a cidade se deixa entrever apenas na medida em que é percorrida por corpos singulares, atravessados pelas injunções dos trabalhos flexíveis, cujos deslocamentos cotidianos expõem as determinações estruturais de sua inserção na lógica difusa da cultura pós-fordista. Compreendemos também que essa dinâmica surge estilizada, em busca de um resultado artístico que articula a dimensão temporal, que será o fator do abalo nos alicerces domésticos da família Turner, uma vez que Ricky e Abbie, comumente, chegam a trabalhar até 14 horas por dia. A alternância incessante entre a jornada de Ricky e a de Abbie, sem que haja jamais um verdadeiro encontro no fluxo narrativo, figura cinematograficamente que o tempo foi cada vez mais capturado pela lógica da produtividade. Essa montagem, ao tornar visível a sobreposição inconciliável das rotinas, instaura uma contradição perceptiva que nos leva a reconhecer na própria estrutura do filme a mesma fragmentação que destrói a coesão da família Turner.

A existência de um mercado de trabalho altamente flexibilizado e desregulamentado constituiu-se como traço distintivo da reestruturação produtiva do capital pós-fordista. “Pós-fordismo” designa o conjunto de condições de sociabilidade cada vez mais globais que surgiram com a crise dos padrões fordistas de produção e suas implicações político-econômicas. Seguindo os passos de Harvey (1992), é quando começa uma transição do fordismo-keynesiano (hegemonia do capital industrial) para a acumulação flexível do capital, implicando uma alteração decisiva na lógica político-econômica entre as décadas de 1970 e 1980 e resultando, por exemplo, no abandono, pelo estado, dos compromissos anteriores com o pleno emprego. Tratando sobre a reestruturação produtiva britânica, Antunes (2009) sintetiza que “as formas mais estáveis de emprego, herdadas do fordismo, foram desmontadas e substituídas pelas formas flexibilizadas, terceirizadas”, o que resultou em um mundo do trabalho totalmente desregulamentado, um desemprego maciço, além da implantação de reformas legislativas nas relações entre capital e trabalho (Antunes, 2009, p. 78).

Assim surgiu o que Harvey (1992) denominou de “organização através da dispersão”, o modelo contemporâneo que combina a fragmentação e expansão das cadeias produtivas com uma rígida racionalização da produção e distribuição. O scanner que Ricky usa para registrar as entregas e o monitoramento em tempo real de sua localização são exemplos de como o capital mantém essa racionalização estrita descrita por Harvey (1992), mesmo em um modelo disperso. Conforme o autor, esse modelo envolve um movimento de concentração do capital e espraiamento das relações de produção e distribuição, implicando uma nova operação por meio de “uma complexa variedade de arranjos de subcontratação” que conecta pequenas empresas a “operações de larga escala, com frequência multinacionais” (Harvey, 1992, p. 150). Essa condição remete à definição de Bihr (1998) sobre a “fábrica difusa”. Segundo argumenta o autor, “a ‘centralidade’ da grande indústria não é abolida: ela simplesmente se transforma” (Bihr, 1998, p. 87). Com base nisso, podemos conceber que Ricky é parte de uma "fábrica difusa". Nesse sentido, conforme propomos a partir de Bihr (1998, p. 88), “o capital tende hoje [...] a espalhar a produção e o poder através de todo o espaço social”, uma vez que o trabalho de Ricky não se limita a um espaço único, como ocorria na fábrica fordista. Trata-se de uma atividade que se difunde pelas ruas e bairros da cidade, transformando o próprio espaço social em local de produção.

Note-se que, na composição narrativo-dramática, essa dispersão espacial é acompanhada por uma dimensão temporal amplificada na jornada de trabalho. Com isso, a dimensão temporal possui implicações muito além apenas da necessidade de entregar rapidamente as encomendas. É como se o tempo se concretizasse como mecanismo de exploração na coordenada espacial da composição narrativo-dramática. As personagens Ricky e Abbie sentem mais sofrimento em função de uma diminuição de tempo para estarem com a família. A montagem aqui não apenas articula planos, mas denuncia um tempo fraturado, um espaço disperso e uma subjetividade esgarçada sob a lógica da acumulação flexível. Ao longo de toda a construção diegética do filme, testemunhamos Ricky e Abbie saírem de casa ao amanhecer e retornarem apenas tarde da noite, quando os filhos já estão dormindo.

Consequentemente, ser menor a quantidade de cenas domésticas na composição, expressando essa ausência prolongada das personagens em casa. Se a montagem espacial estrutura a dispersão, é na dimensão temporal que inscreve o desgaste: repetições de jornadas que sucedem e diálogos interrompidos pelo cansaço. Há, no encadeamento das cenas, um tempo que não flui, mas pesa, e cujo sintoma maior é a própria rarefação dos momentos de encontro familiar, embora seja justamente nas cenas em espaço doméstico que vemos os conflitos dramáticos acontecerem. Pensemos no local simbólico da “sala de estar”, que é o local principal que vemos a família reunida. Quando surge a sala de estar da família Turner, sempre está acontecendo algum diálogo importante, para encenar conflitos de pressões e contradições que emergem das crises econômicas e sociais mais amplas, como elementos centrais da experiência, rompendo com o isolamento simbólico da sala de estar. Por exemplo, é na sala de estar que acontece uma importante conversa após os pais descobrirem que Seb vendeu a sua jaqueta para comprar sprays de tinta para o grafitti:

Ricky: Não sei mesmo o que aconteceu com você. Você é inteligente, como a Liza. Costumava ser o melhor. O que está acontecendo? Aproveite as chances, cara.

Abbie: Seb, já conversamos sobre você ir pra faculdade!

Seb: E acabar como o irmão do Harpoon, pendurado com 57.000 libras, trabalhando em call center e tomando porre todo final de semana só para esquecer seus problemas? Claro.

Ricky: Não precisa ser assim. Tem muito emprego bom por aí.

Seb: Empregos bons, quais?

Ricky: É só você se esforçar. Escolha alguma coisa. Senão vai acabar como... [O filho interrompe e indaga]

Seb: Como você? Acha que eu quero isso, de verdade?

Ricky: Sim.

Seb: Óbvio que quero, né? Quero ser como você.

Ricky: Sim, cada emprego pior que o outro, trabalhando 14 horas por dia, ouvindo desaforos dos outros, sempre na merda. Vai acabar como um trabalhador servil (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

É possível apreender que a tensão que o diálogo demanda é uma exposição objetiva de um processo histórico-social. Seb não responde ao pai de modo a engendrar apenas um conflito de vontades ou de perspectivas subjetivas. Ricky tenta projetar no filho uma esperança no diálogo, que se choca com a dura realidade do colapso das expectativas e com a formação de um novo “mundo do trabalho”, marcado pelo desemprego e pelo processo de informalização que o novo regime de acumulação impõe. Pode-se até caracterizar que Ricky não dialoga com o filho; repete, como quem se obriga a acreditar, os fragmentos ideológicos que lhe restam, mesmo que estes neguem sua própria experiência concreta. O suposto confronto entre pai e filho, ao invés de tensionar posições que pudessem alterar o curso do diálogo, é rapidamente submerso por um consenso amargo, mesmo que indiretamente. No momento em que Ricky, encurralado pela lógica implacável que a própria experiência lhe impôs, busca orientar o filho da situação – “Cada emprego pior que o outro, trabalhando 14 horas por dia, ouvindo desaforos dos outros, sempre na merda” –, o que deveria soar como advertência torna-se confirmação: nada escapa ao circuito fechado do trabalho precário, da dívida impagável, do desamparo programado. Quando Seb rejeita a faculdade, não o faz em nome de um projeto outro, mas simplesmente porque acredita já conhecer o desfecho. Percebemos, assim, que o horizonte de expectativas de Seb está bloqueado, como indicação do rebaixamento da sociedade salarial. O caso que menciona (“o irmão do Harpoon”) exemplifica sua perspectiva de dissolução das expectativas e a falência da promessa de mobilidade social, características centrais na análise de um mundo do trabalho em crise, expressando que o trabalho assalariado, fulcro da mediação social na era capitalista, perdeu sua centralidade, e com ele esgarçou-se a própria tessitura da modernidade, cujo horizonte de expectativas sempre esteve calcado na promessa de um futuro progressivamente mais promissor.

A incidência do processo histórico depreende-se da própria intimidade familiar, uma vez que o método utilizado na produção cinematográfica, característico de grande parte do trabalho do diretor, é uma espécie de refuncionalização do melodrama, focado em uma situação familiar. As atitudes de Seb ao longo da trama diegética se tornam um contraponto doméstico do foco na rotina de trabalho. Quando a polícia faz sua detenção por furto de latas de spray, a situação gera uma incômoda falha na fantasia social de Ricky, pois percebe que não possui autonomia na prestação de serviço da PDF Company. Além de não conseguir se ausentar, a situação é agravada pelas multas impostas pela empresa sempre que ele não pode trabalhar. A penalidade é de 100 libras por dia de ausência, seja por questões de saúde ou problemas familiares.

Quando acontece o assalto, a violência física que Ricky experimenta ao ser agredido possui um resultado impactante. Os assaltantes inclusive despejam uma garrafa PET cheia de urina sobre o rosto de Ricky. Contudo, a cena é utilizada como estratégia para encenar que muito mais violento e humilhante é toda a situação à qual Ricky tem se assujeitado. No pronto-socorro, a esposa, Abbie, toma o smartphone das mãos de Ricky para falar com Maloney: “Ele pode estar com o pulmão perfurado e nem olharam as feridas de sua cabeça. E você está falando em multas e aparelhos de mil libras? [...] Como ele é autônomo? Ele trabalha catorze horas por dia, seis dias por semana para você” (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

Ao longo do filme, no que se refere à função na PDF Company, assistimos obviamente a uma desregulamentação completa do trabalho, aprofundando a precarização ao transformar o Ricky em trabalhador just in time, que precisa se responsabilizar pelos riscos em uma gestão individualizada e subordinada. Distante da figura do empreendedorismo ou da autonomia, trata-se de um autogerenciamento subordinado (Abílio, 2020). Contudo, é preciso lembrar que os dilemas das personagens são anteriores, isto é, não surgem apenas com o fato de Ricky ter se tornado um motorista-entregador autônomo, mas precedem essa atuação na empresa. Assim como Abílio (2020) defende que “a flexibilização do trabalho não pode ser entendida como mero resultado da inovação tecnológica” (Abílio, 2020, p. 113). Inclusive, além de uma "atualização e mudanças qualitativas de processos em curso há décadas", torna possível a “visibilização” da materialização de décadas de flexibilização, informalização e precarização do trabalho, agora reorganizadas em uma nova lógica de gestão e controle (Abílio, 2020, p. 113). A própria PDF Company surgiu capturando o desejo de Ricky como resultado de uma lógica construída ao longo de décadas. Acentua-se a crise doméstica na encenação dramática, contudo chamamos atenção para o conflito psíquico que é anterior ao fato de Ricky ter decidido ingressar no modelo de trabalho plataformizado. A responsabilização pela sobrevivência e pela reprodução da vida é individualizada. As condições sociais que estruturam essa responsabilização foram naturalizadas — um gesto de violência simbólica por excelência, já sedimentada, como discutido anteriormente a partir da cena inicial, quando Rick recusa o seguro-desemprego e afirma “preferir passar fome a perder o orgulho”, manifestando seu desejo de 'ser meu próprio chefe”. Ademais, Abílio (2020) destaca que as formas dominantes da precarização contemporânea são reconfigurações estratégicas de lógicas antigas, agora incorporadas ao núcleo das economias de países centrais: “Está em jogo a tendência de uma generalização em nível global de características persistentemente invisibilizadas e fortemente associadas à marginalidade, ao trabalho informal e, mais genericamente, ao mundo do trabalho da periferia” (Abílio, 2020, p. 113). Aquilo que se apresenta como o ápice da inovação — o algoritmo, a plataforma, a flexibilização — é, na verdade, a racionalização e subsunção ativa de práticas historicamente periféricas. O bico, o corre, o trabalho à peça, a ausência de direitos, a instabilidade contratual — outrora tratadas como desvios em relação ao “modelo pleno” fordista — tornam-se o modelo hegemônico, agora legitimado por um vocabulário de eficiência e liberdade, igual vimos, por exemplo, no diálogo entre Ricky e Maloney.

Violência sistêmica, centralidade negativa do trabalho e um encontro traumático com o Real

A partir da consideração conjunta dos elementos já destacados, percebe-se que a postura individual é de um sentimento social cuja regulação da ordem simbólica deve ser encarada como um dispositivo de violência. A análise e a interpretação apresentadas deram atenção aos diálogos, articulados ao foco narrativo e à composição dramática. A observação nos leva a encontrar relações entre trabalho, desejo e linguagem. Foi nesse contexto que identificamos, por exemplo, que a principal via de acesso às palavras das personagens demonstrando insatisfação é o espaço doméstico, no interior de um diálogo, onde o sofrimento se revela, conforme já verificamos nos casos entre Abbie e Rick, Abbie e Mollie, e Ricky e o filho Sab. A dimensão político-econômica inflexionou violentamente o núcleo familiar. Nesse sentido, em termos de conceituação, podemos pensar na contribuição de Žižek (2014) com sua noção de “violência sistêmica”, conforme tipologia estabelecida pelo autor em sua obra Violência.

De acordo com o filósofo esloveno, a violência sistêmica visa “a criação de indivíduos excluídos e dispensáveis” (Žižek, 2014, p. 25), sendo concebida como as “consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas econômico e político” (2014, p. 17). Justamente por estar ancorada no que é “regular”, essa forma de violência costuma ser invisível, naturalizada como parte da ordem social vigente, conforme destaca Žižek (2014), argumentando que “[...] essa violência não pode ser atribuída a indivíduos concretos e às suas ‘más’ intenções, mas é puramente ‘objetiva’, sistêmica, anônima” (Žižek, 2014, p. 26).

Isso implica afinar nosso olhar crítico para figurações da violência sistêmica e anônima na forma e no conteúdo da composição narrativo-dramática. A trajetória de instabilidade profissional relatada no início do filme, já é concebida como algo “regular” na realidade social. A jornada exaustiva também é concebida por Ricky como condição inevitável, de modo que observamos a violência sistêmica se manifestar através das estruturas do próprio sistema político-econômico da sociedade, como partes constitutivas da vida cotidiana.

Ao longo da composição narrativo-dramática, outro aspecto significativo que evidencia como a violência sistêmica está operando silenciosamente na vida cotidiana é, pois, o sentimento de desamparo que corrói o casal. Assistimos a uma experiência de trabalho que intensifica o desamparo de Ricky e Abbie. No espaço de intimidade do quarto do casal, a montagem da cena cria uma atmosfera de tensão emocional, uma condição que concebemos, justamente, para ressaltar a intersecção entre trabalho e subjetividade:

Abbie: Três noites por semana não dá. Preciso cuidar dos meus filhos.

Ricky: Eu nunca achei que seria tão difícil, Abbie.

Abbie: Eu sei.

Ricky: Parece que tudo está errado.

Abbie: hum!

Ricky: Entende o que eu digo?

Abbie: Sim. Eu tenho sonhos horríveis. Estou afundando numa areia movediça e as crianças estão tentando nos salvar com um galho. Mas parece que quanto mais trabalhamos, mais nos afundamos neste buraco. (Sorry We Missed You, 2019, tradução nossa).

A câmera está aproximada dos rostos das personagens, destacando suas expressões faciais, como se buscasse captar toda a apreensão e o sofrimento subjacentes nessa interação do casal. O início da conversa aborda justamente o desgaste emocional provocado pela luta contínua de ambos em termos de educação dos filhos e dificuldades financeiras. É frequente o equívoco de se acreditar que o trabalho é limitado ao tempo físico em que se realizam as atividades laborais. Nada seria mais errôneo do que desconsiderar essa intersecção, negligenciando, afinal, como as práticas sociais das relações de trabalho são cruciais para a construção de afecções, em suas dimensões pulsionais e libidinais, mobilizando o processo de subjetivação por completo.

Do ponto de vista da composição narrativo-dramática, novamente encontramos um diálogo decisivo, a ponto de compreendermos, afinal, que os diálogos são reflexivos do processo histórico-social internalizado nos conflitos que expressam, estabelecendo uma “predominância da expressão verbal sobre a ação visual” (Bazin, 1991, p. 168). No que tange à montagem da filmagem do trabalho e aos conflitos enunciados, recorre-se à própria linguagem como uma inscrição épica para expressar as contradições ideológicas e sofrimentos resultantes das experiências nas relações de trabalho.

No diálogo, a metáfora da areia movediça usada por Abbie é instigante. Não é descabido pensarmos na desagregação da própria mediação através do trabalho, resultando na “centralidade negativa do trabalho”, conforme expressão formulada por Arantes (2014, p. 100). A metáfora reforça o sentimento de desamparo coletivo, de uma luta contínua que não leva a lugar algum, nem mesmo permite escapar da areia movediça. Nesse aspecto, relacionamos com a formulação de Arantes (2014), pois se trata de uma transformação que envolve uma “recentralização negativa do trabalho”, demarcada pelo autor como “imposição traumática de uma grande mutação” que inaugurou o “atual ciclo de intensificação do sofrimento social no e pelo trabalho” (Arantes, 2014, p. 148). O termo indica que a centralidade do trabalho na atualidade atua de forma destrutiva. Arantes (2014) sugere ainda que o sofrimento não é apenas material, mas também simbólico e subjetivo.

Ocorre, assim, um modo de reconhecimento e de sensibilização que abre um horizonte estético capaz de induzir sobre os impasses e conflitos psíquicos ocasionados pelo novo regime de acumulação. Pensamos que os sonhos persistentes de Abbie indicam essa centralidade negativa do trabalho, implicando o sofrimento de uma experiência de encurtamento de expectativas, características da reconfiguração do papel do trabalho na mediação social sob a violência sistêmica. Uma contribuição relevante para o aprofundamento do processo de significação é a relação refletida por Žižek (2010) entre o Real traumático e os sonhos, possibilitando-nos compreender os sonhos rotineiros de Abbie como sintomáticos de uma condição em que as relações de trabalho, dentro do contexto de violência sistêmica, são elevadas a um Real traumático que busca ser evitado. De acordo com o autor, os sonhos podem ser o lugar onde nos confrontamos diretamente com o “Real traumático”. Isso acontece justamente porque a realidade que os indivíduos vivenciam nunca é um dado objetivo, sendo uma construção mediada pela fantasia social. Por isso, o autor concebe que “a fantasia está do lado da realidade, e é em sonhos que nos defrontamos com o Real traumático” (Žižek, 2010, p. 73).

Considerando essa perspectiva, o sonho de estar afundando pode ser aquilatado como reiterados sinais de um retorno do Real, próprio da dimensão traumática do colapso da mediação do trabalho e da sociedade salarial, configurando um bloqueio de expectativas emancipatórias. O mesmo vale para Rick. A sua fala no diálogo, “Eu nunca achei que seria tão difícil, Abbie”, pode ser lida como uma expressão do desamparo e desse mesmo bloqueio. É difícil no que tange especificamente ao serviço na PDF Company? Difícil dentro de um contexto mais amplo, como trabalhador em uma cultura pós-fordista? Dado o teor da conversa, consideramos a segunda opção mais plausível. No âmbito dessa discussão, destaca-se também a maneira como podemos interpretar o desfecho da composição narrativo-dramática. Enquanto o Real dá sinais de retorno para Abbie na forma de sonhos que denunciam o colapso das promessas do trabalho, Ricky, por sua vez, terá um confronto traumático com o Real, um confronto com o fato de perder o alicerce da sua fantasia, havendo a desestruturação do Simbólico e do Imaginário do seu objeto de desejo, que brutalmente se revela no choque de percepção no interior do colapso da sociedade salarial.

A construção final elimina qualquer noção de potência individual em Ricky, evitando, assim, o efeito dramático convencional. Subverte-se o sacrifício na dimensão do trágico encarnado nos heróis. Inicialmente, temos o choro embargado, representativo de uma percepção que se revela assustadora: não mais o suposto privilégio de ser “autônomo”, como seu Imaginário concebia. Em seguida, ocorre o rompante. No rosto de Ricky, o choro desesperado crava um movimento interior da personagem, contrastando com sua postura na entrevista com Maloney, na primeira cena, em que surgia esperançoso, acreditando que o trabalho como motorista-entregador na PDF Company garantiria reconhecimento e estabilidade para sua família.

Nesse sentido, observa-se que, para Žižek (1992; 2010), a função da fantasia social não é proporcionar uma fuga da realidade, mas apresentar a própria realidade social como uma forma de escapar de “um núcleo real traumático”. Desde o início da trama diegética do filme, deparamo-nos justamente com Ricky expressando um sofrimento com sua instabilidade profissional — que, como vimos, está associada à centralidade negativa do trabalho —, demandando um processo de reconhecimento no interior das relações de trabalho que, em última instância, é uma percepção da violência sistêmica da qual está buscando escapar. A dimensão traumática que refletimos aqui está além de características específicas do cotidiano do serviço realizado por Ricky na PDF Company ou do episódio em que ele foi agredido durante o assalto. Percebemos a dualidade na construção da personagem, que ressalta a ambiguidade do investimento libidinal de Ricky na sua fantasia, pois a mesma lógica que prometeu recompensá-lo é a que o aniquila, evidenciando a contradição e fazendo com que o antagonismo irrompa como um trauma.

O Real, para Lacan, não pode ser compreendido como a realidade cotidiana: trata-se de um excesso que não cabe nessa realidade, de modo que Real e Trauma se associam, no discurso lacaniano, implicando um evento inassimilável, incapaz de ser simbolizado totalmente. Destaque-se que uma das características da releitura de Žižek (2014) desse conceito é articular o Real diretamente com a noção de violência sistêmica, estabelecendo uma distinção fundamental entre realidade e Real. Segundo o filósofo esloveno, a partir dessa distinção, a realidade é compreendida como a “realidade social dos indivíduos efetivos implicados em interações e nos processos produtivos”, enquanto o Real implica “a inexorável e ‘abstrata’ lógica espectral do capital que determina o que se passa na realidade social” (Žižek, 2014, p. 26). Ken Loach, ao refuncionalizar o melodrama – que foi seu ponto de partida –, evita a construção de um vilão específico, refletindo a violência sistêmica de forma objetiva, sem personificá-la. É com essa lógica que Ricky se encontra, passando pelo encontro traumático com o Real. Se o Real não pode ser simbolizado, isso não implica que ele não afeta os sujeitos de forma profundamente impactante. Žižek (2014) argumenta que o capitalismo opera no nível do Real, moldando a realidade sem que os sujeitos percebam diretamente sua lógica, de maneira que a violência sistêmica não se reduz a episódios concretos de exploração ou coerção, mas opera como um princípio estruturante, que condiciona as próprias possibilidades da experiência subjetiva, ao mesmo tempo é compreendido como uma falha na ordem de simbolização regida pelo Simbólico e Imaginário. Logo, o Real se impõe precisamente no ponto em que toda tentativa de simbolização fracassa, onde Ricky se depara com a ruína das promessas da sociedade salarial. O trabalho, que no período fordista figurava como princípio de integração social, dissolve-se em sua própria negação, convertendo-se em vetor de precarização e aniquilamento subjetivo. A violência do sistema não se manifesta apenas como coerção externa, mas como um processo que captura a subjetividade na própria lógica de sua desintegração. Ricky, como um trabalhador contemporâneo, ao tentar afirmar sua autonomia, possui um encontro traumático com o Real ao se deparar com a lógica de que esse próprio gesto já está antecipadamente absorvido pelo colapso estrutural do trabalho assalariado.

Dessa maneira, podemos compreender o desfecho da cena final como algo que vai além de uma simples quebra na convenção do recurso melodramático. Trata-se de um momento de encontro traumático com o Real, que, ao desestruturar o Imaginário, desvela a verdade insuportável do colapso da sociedade salarial. Nesse sentido, para encerrarmos, cabe destacar que, à luz do que foi discutido, é possível apreender que os processos subjetivos são, ao mesmo tempo, meios de sujeição e potenciais de emancipação. A irresolução do conflito é uma qualidade cinematográfica de Sorry We Missed You. Como esse encontro traumático poderá ser ressimbolizado? Supomos que Ricky continuará trabalhando para a PDF Company, pelo menos até pagar o dispositivo de escaneamento portátil, mas como serão seus afetos daqui em diante? Conforme insiste Safatle (2019, p. 29), “tanto a superação dos conflitos psíquicos quanto a possibilidade de experiências políticas de emancipação pedem a consolidação de um impulso em direção à mutação dos afetos”. Isso nos leva a novos temas de discussão que atravessam nossa realidade político-social. Ken Loach, por meio do cinema, opera uma intervenção política, embora o filme não ofereça respostas nem previsões. Retomando, portanto, a própria tessitura formal que estrutura Sorry We Missed You, cabe insistir que não se trata apenas de um relato sobre o modelo de trabalho plataformizado, mas de uma produção estética que, ao nível da composição narrativo-dramática, converte a experiência histórica do colapso em forma sensível. Em Ken Loach, não há possibilidade de redenção estética dissociada do impasse que configura a própria experiência social que se encena. Ao contrário, a composição dramática, ao reiterar a circularidade exaustiva das jornadas, ao encerrar os diálogos no ponto em que o sentido ameaça emergir, ao sobrepor os espaços da intimidade e do trabalho até que já não seja possível distingui-los, recusa-se a oferecer ao espectador a ilusão de uma síntese conciliatória. As próprias contradições permanecem irresolutas, em vista de uma violência sistêmica como um limite que obstrui a emergência de novas possibilidades no espaço social. Ao fim, podemos pensar na vida cotidiana como disputa de processos de subjetivação e afetos, percebendo como o sofrimento das personagens é singularizado nas condições históricas, culturais e simbólicas, assumindo forma única que dialetiza com as limitações objetivas de reconhecimento impostas por essas condições.

Considerações finais

Quando lançou Sorry We Missed You, em 2019, Ken Loach já havia alcançado praticamente 60 anos de carreira como diretor, tendo produzido um extenso trabalho artístico — incluindo filmes, dramas televisivos e documentários. Atrelando reflexão política à sua obra ao longo de sua carreira de seis décadas4, poucos diretores foram tão consistentes em seus temas e estilo cinematográfico quanto Ken Loach. Procurando um eixo organizador da construção da narração em Sorry We Missed You, reconhecemos que a montagem do espaço íntimo da vida familiar, para sua plena elaboração, aborda com pertinência um conflito psíquico gerado por décadas de transformações políticas e econômicas desde a consolidação da hegemonia thatcherista, que trouxe profundas consequências para o mundo do trabalho. Em entrevista após o lançamento de Sorry We Missed You, Loach declarou:

O mundo do trabalho se transformou e queríamos mostrar isso. A segurança que muitas profissões ofereceram no passado, quando os trabalhadores não tinham medo de ficar sem emprego de um dia para o outro e conseguiam planejar melhor suas vidas, acabou para muitas pessoas (Balthazar, 2020).

Como procuramos demonstrar, a intersecção entre trabalho e subjetividade implica um processo de socialização no interior de uma ordem Simbólica, com regulação ideológica do Imaginário. Essa regulação estabelece na composição narrativo-dramática da obra fílmica um conflito psíquico marcado por uma relação triangular entre trabalho, desejo e linguagem, que possibilita uma formalização estética que ultrapassa a superfície de uma força de trabalho just in time desregulamentada. Desse modo, fomos levados a identificar na abordagem um significativo índice de centralidade negativa do trabalho como dinâmica subjacente à construção narrativo-dramática. A montagem, ao desagregar e recombinar os fragmentos do cotidiano precarizado, também privilegiou uma irresolução final — a cena suspensa, a jornada inacabada, o retorno à van de Ricky mesmo visivelmente debilitado, ainda sob os efeitos da agressão — que pode ser compreendida como inscrição formal de um impasse histórico-social. O estudo de Giordano e Tarrit (2021) é um exemplo analítico em que a experiência subjetiva das personagens foi relegada para segundo plano. Os autores buscaram analisar o filme no horizonte da luta de classes e da reatualização da figura proletária, como gesto analítico que restitui ao filme uma dimensão histórica ampla. Contudo, há uma desconsideração da materialidade psíquica da experiência cotidiana, como se a constituição histórica da subjetividade no presente pudesse ser deduzida identicamente àquela que, desde o século XIX, conformou o operário como figura paradigmática da exploração. O que se perde, nessa redução, é precisamente aquilo que o filme procura expor em sua camada mais íntima: a inscrição cotidiana do sofrimento de uma violência sistêmica naturalizada, não apenas como mera decorrência da desregulamentação das relações de trabalho, mas como forma internalizada do colapso da modernização. A historicidade de tal característica não pode ser captada apenas pela repetição dos antagonismos de classe, como assinalam os autores; exige ser pensada pela mutação das formas de subjetivação que acompanham as formas objetivas de dominação, cujas injunções estruturais reconfiguram características pelas quais o antagonismo se torna cognoscível.

Tendo em vista ainda que McKnight (1997) já havia considerado ser possível demarcar os trabalhos de Ken Loach como “parábolas sem moral” (Mcknight, 1997, p. 97), então de início até pensar-se-ia em Sorry We Missed You como uma parábola da ilusão da autonomia empreendedora prometida pelo neoliberalismo “como norma da conduta do sujeito-empresa” (Dardot; Laval, 2016). No entanto, para que isso ocorra, a dimensão da história social já é uma mediação interna, ganhando materialização nos conflitos psíquicos. É neles que apreendemos o efeito traumático da incidência de uma violência sistêmica do processo histórico-social no plano da intimidade familiar. Pensar a subjetividade, com seus conflitos psíquicos e disposições afetivas, de modo algum é argumentar sobre alguma forma de déficit político. Tampouco implica conceber na diegese uma degradação mental ou distúrbios depressivos para as personagens. Trata-se, antes, de considerar os conflitos psíquicos relacionados com as contradições sociais, que se inscrevem na própria constituição do desejo, da identidade e da linguagem. Ao longo deste ensaio, foi possível perceber como o filme estrutura um cotidiano com uma lenta e contínua sobreposição entre as demandas do trabalho, as expectativas frustradas, o esvaziamento dos vínculos familiares e a inscrição do sofrimento como rotina silenciosa, compondo um circuito fechado em que o tempo não avança, apenas retorna como variação de uma mesma violência do just-in-time. Nesse contínuo, o drama não se organiza por clímax ou reviravoltas, porque é marcado por um estado permanente de esgotamento que atravessa corpos, espaços e falas, numa temporalidade sem respiro, em que o doméstico e o profissional, o íntimo e o econômico, colapsam uns sobre os outros. A composição narrativo-dramática do filme constrói-se, assim, como reprodução formal do esgotamento social que tematiza: as cenas domésticas são interrompidas antes de qualquer resolução possível, os diálogos entre pai e filho não culminam em reconciliação, os turnos de trabalho não conduzem ao descanso, mas apenas à renovação da fadiga. Em tal estrutura, a ausência de horizonte das personagens na narração constitui a inscrição mesma de um mundo em que o futuro bloqueado — e é essa inscrição que permite que a dimensão subjetiva do sofrimento ultrapasse o registro psicológico, localizando-se como efeito formal do próprio processo social em que o trabalho ocupa uma centralidade negativa após o colapso da sociedade salarial, núcleo duro do Real do qual irrompe a experiência traumática.

Notas

  • 1
    A narrativa foi roteirizada por Paul Laverty. O filme é uma produção da Sixteen Films e Why Not feita com o apoio da BFI e BBC Films, também em coprodução com Les Films du Fleuve. No Brasil o título foi traduzido como “Você não estava aqui”, sendo lançado em 2020 com distribuição da Vitrine Filmes.
  • 2
    Disponível em: <https://bit.ly/3ohckLZ>. Acesso em: 11 nov. 2024
  • 3
    A expressão é inspirada em Williams (2002), que concebe o realismo além de convenções de escola. Trata-se, então, de uma postura de pesquisa e conhecimento; não requer qualquer aderência a uma forma já estabelecida, sendo, isto sim, um modo de compreensão estética do mundo social. Cf. WILLIAMS, Raymond. A lecture on realism. Afterall: A Journal of Art, Context and Enquiry, Issue 5, The University of Chicago Press, London, p. 106-115, 2002.
  • 4
    Para uma discussão ampliada sobre as heranças do Naturalismo no cinema de Ken Loach e seus métodos colaborativos, como fundamento do seu trabalho político, cf. Soares, 2019.

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  • Editora Responsável:
    Magali Sperling Beck

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2025
  • Aceito
    24 Mar 2025
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