Acessibilidade / Reportar erro

HEADS OF THE COLORED PEOPLE, DE NAFISSA THOMPSONSPIRES: SUBJETIVIDADES FEMININAS NEGRAS EM DIÁLOGO

HEADS OF THE COLORED PEOPLE, BY NAFISSA THOMPSON SPIRES: BLACK FEMALE SUBJECTIVITIES IN DIALOGUE

Resumo

Este artigo aborda a literatura afro-americana feminina por meio da coletânea de contos Heads of the Colored People, de Nafissa Thompson-Spires, publicada originalmente em 2018. As narrativas nesse livro, que perpassam questões étnico-raciais, retratam uma multiplicidade de vivências de sujeitos negros nos Estados Unidos na atualidade. Em primeiro lugar, são apresentadas algumas considerações sobre construção de identidades, especialmente em relação a mulheres negras. Em seguida, é proposta uma análise dos contos “Fatima, the Biloquist: A Transformation Story” e “The Body’s Defenses Against Itself” com o objetivo de verificar de que modos se constroem as subjetividades da protagonista Fatima a partir de diálogos consigo mesma e com outras personagens femininas negras.

Palavras-chave
Heads of the Colored People ; Nafissa Thompson-Spires; Literatura afro-americana feminina; Subjetividades femininas negras

Abstract

This article discusses African-American female literature through the collection of short stories Heads of the Colored People, by Nafissa Thompson-Spires, originally published in 2018. The narratives in this book, which address ethnic-racial issues, portray a multiplicity of experiences of Black subjects in the United States nowadays. First, some considerations about identity construction are presented, especially in relation to Black women. Then, an analysis of the short stories “Fatima, the Biloquist: A Transformation Story” and “The Body's Defenses Against Itself” is proposed in order to verify in which ways the subjectivities of the protagonist Fatima are constructed from dialogues with herself and with other Black female characters.

Keywords
Heads of the Colored People ; Nafissa Thompson-Spires; African-American female literature; Black female subjectivities

Introdução

A literatura afro-americana é marcada tanto por sua herança cultural africana e europeia quanto por sua tradição oral e escrita. Tais duplicidades se refletem nas obras de autores negros estadunidenses que, historicamente, percorreram um longo caminho para que aos poucos adquirissem seu espaço no mercado editorial e fossem reconhecidos pela crítica e pelo público em geral. Especificamente no que diz respeito à literatura afro-americana de autoria feminina, de acordo com Mari Evans, no livro Black Women Writers (1985EVANS, Mari. Black Women Writers. Londres: Pluto, 1985.), essa vertente literária se expandiu a partir dos anos de 1970 com o trabalho de autoras como Toni Cade Bambara, Maya Angelou, Alice Walker e Toni Morrison, as quais contribuíram para o resgate de textos de escritores afro-americanos silenciados no passado e a ampliação da visibilidade de mulheres negras, que foram continuamente relegadas a uma posição de marginalidade no contexto de uma sociedade patriarcal, colonialista e racista. No que diz respeito às temáticas das obras de autoras afro-americanas, questões como a experiência compartilhada dos indivíduos negros estadunidenses, o racismo, a produção de subjetividades, as representações femininas, os relacionamentos, a maternidade e a comunidade costumam ser frequentemente discutidas.

Contemporaneamente, novas vozes representativas da literatura afro-americana feminina têm surgido no cenário cultural estadunidense e, mais do que isso, colaborado de forma significativa para uma renovação desse campo. É o caso da escritora Nafissa Thompson-Spires, cujo trabalho vem chamando a atenção da crítica literária por seu estilo singular e conectado à atualidade ao tratar de diferentes vivências relativas a indivíduos negros, por meio de uma variada gama de personagens e de enredos que consideram interseções de raça, gênero e classe. Nascida em San Diego, California, com mestrado em Escrita Criativa pela Universidade de Illinois e doutorado em Língua Inglesa pela Universidade Vanderbilt, Thompson-Spires tem escrito diversos textos para jornais e, em 2018, teve sua primeira (e até o momento única) obra publicada: a coletânea de contos Heads of the Colored1 1 Segundo Katherina Unkelbach (2012), o termo “colored” foi muito usado nos Estados Unidos entre a segunda metade do século XIX e os anos de 1950, tendo caído em desuso após esse período. People [Cabeças das pessoas negras], cujo título é inspirado em uma série de histórias curtas de autoria do médico e abolicionista negro James McCune Smith. Publicadas no Frederick Douglass’ Paper entre 1852 e 1854, tais narrativas buscavam retratar aspectos das vidas de trabalhadores negros da classe operária em Nova York àquela época. O que Thompson-Spires faz em sua obra é revisitar, atualizar e ampliar os escritos de Smith, a partir de uma abordagem contemporânea de personagens que representam sujeitos negros de classe média alta, os quais convivem com inúmeros desafios por frequentarem espaços majoritariamente brancos.

Em entrevista a Tyrese L. Coleman (2018COLEMAN, Tyrese L. Nafissa Thompson-Spires Is Taking Black Literature in a Whole New Direction. Electric Lit, 08 jan. 2018. Disponível em: https://electricliterature.com/nafissa-thompson-spires-is-taking-black-literature-in-a-whole-new-direction/. Acesso em: 01 jun. 2020.
https://electricliterature.com/nafissa-t...
), Thompson-Spires relata que a decisão de escrever seu primeiro livro partiu da percepção de que as histórias que costumava ler quando era mais jovem geralmente se concentravam na dor e no sofrimento do povo negro, representado por personagens economicamente desfavorecidos. Ela afirma que nunca havia tido contato com outras perspectivas: “Eu não vi nada sobre uma menina negra que estava presa em uma escola branca, algo com o que eu estava lidando, e como lidar com o fato de ser diferente nessa dimensão, e ser de classe média ou classe média alta e não se encaixar realmente em lugar algum” (THOMPSON-SPIRESTHOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019.apudCOLEMAN, 2018COLEMAN, Tyrese L. Nafissa Thompson-Spires Is Taking Black Literature in a Whole New Direction. Electric Lit, 08 jan. 2018. Disponível em: https://electricliterature.com/nafissa-thompson-spires-is-taking-black-literature-in-a-whole-new-direction/. Acesso em: 01 jun. 2020.
https://electricliterature.com/nafissa-t...
, n.p., minha tradução2 2 No original: “I didn’t see anything about a Black girl who was stuck in a white school, which is what I was dealing with, and how to deal with being different at that level, and on being middle class or upper-middle class and not really fitting in anywhere” (THOMPSON-SPIRES apudCOLEMAN, 2018, n.p.). ). Em Heads of the Colored People, a escritora procura preencher essa lacuna através de múltiplos personagens, os quais, apesar de terem a negritude como uma característica em comum, diferem nos modos como lidam socialmente com suas identidades e com as opressões raciais a que são submetidos.

No livro em questão, a autora lança mão de um gênero literário – o conto – muito presente em uma longa e rica tradição da escrita afro-americana feminina devido à sua acessibilidade, bem como ao fato de ele proporcionar às escritoras “uma oportunidade de experimentar com estilo e forma, voz e linguagem” (LUCKY, 2009LUCKY, Crystal J. African American Women Writers and the Short Story. In: MITCHELL, Angelyn; TAYLOR, Danille K. (Orgs.). The Cambridge Companion to African American Women’s Literature. Nova York: Cambridge University Press, 2009. p. 245-261., p. 245, minha tradução3 3 No original: “an opportunity to experiment with style and form, voice and language” (LUCKY, 2009, p. 245). ). Considerando-se os modos de construção dos personagens e a constante interação entre eles através de diálogos (internos e/ou externos), a literatura de Thompson-Spires ilustra o seguinte pensamento de Mae Gwendolyn Henderson (2000)HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368.:

O que é, ao mesmo tempo, característico e sugestivo da escrita das mulheres negras é seu caráter interlocutório ou dialógico, refletindo não apenas uma relação com o/a(s) ‘outro/a(s)’, mas também um diálogo interno com os aspectos plurais do eu que constituem a matriz da subjetividade feminina negra

(HENDERSON, 2000HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368., p. 349, minha tradução4 4 No original: “What is at once characteristic and suggestive about black women’s writing is its interlocutory, or dialogic, character, reflecting not only a relationship with the ‘other(s)’, but an internal dialogue with the plural aspects of self that constitute the matrix of black female subjectivity” (HENDERSON, 2000, p. 349). ).

Neste artigo, proponho uma discussão dos contos “Fatima, the Biloquist: A Transformation Story” [“Fatima, a ventríloqua: uma história de transformação”] e “The Body’s Defenses Against Itself” [“As defesas do corpo contra ele mesmo”], nos quais Fatima é a protagonista. Advinda de classe média alta, ela convive constantemente com a pressão e o desafio de ser a única mulher negra na maioria dos ambientes que frequenta ao longo de sua vida. Desse modo, busco verificar como se desenvolve o processo de construção de subjetividades por Fatima a partir de sua relação consigo mesma e com outras personagens femininas negras. Para tanto, a primeira seção traz algumas reflexões sobre questões de identidade, com foco nas particularidades relativas a mulheres negras e, posteriormente, a segunda seção apresenta uma análise dos referidos contos da obra Heads of the Colored People.

Considerações sobre identidades: um olhar sobre mulheres negras

Ao tratar da construção de identidades na contemporaneidade, parto do pressuposto de que o sujeito não é constituído por uma identidade única e estável que o define desde o nascimento e o acompanha durante toda a vida. Essa é uma noção falaciosa na visão de Stuart Hall. Segundo ele, o sujeito “[...] está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2004HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004., p. 12). Somos formados por múltiplas identidades, as quais são marcadas por um processo de contínua transformação. Também, conforme o autor, com relação ao que costumamos chamar de “nossas identidades”, elas “são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais” (HALL, 1997HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Tradução e Revisão de Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez., 1997., p. 26).

No que diz respeito à identidade nacional, costuma-se reproduzir uma ideia ilusória de que todos os sujeitos pertencentes a uma nação específica, chamada de comunidade imaginada por Benedict Anderson (1983)ANDERSON, Benedict. Imagined Communities. Londres: Verso, 1983., formam um único povo na medida em que são cidadãos de determinado país. Isso significa que as culturas nacionais – que são um discurso, uma forma de construir sentidos – insistem em nos representar como um conjunto de indivíduos dotados de uma única identidade nacional, independentemente de particularidades relativas à classe, ao gênero, à raça e a outras categorias. No entanto, trata-se de um mecanismo fantasioso. Especificamente no que se refere à raça, é ainda muito mais difícil unificar a identidade nacional, de acordo com Hall (2004)HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.. Nesse contexto, é importante destacar que raça não é um conceito biológico, mas sim uma construção discursiva. Conforme Hall,

ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo do outro

(HALL, 2004HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004., p. 63).

No âmbito da representação de uma identidade nacional, essas marcas simbólicas são determinantes para os modos como os sujeitos são vistos, considerados e tratados nas diferentes sociedades. Outro ponto relevante a se considerar é a maneira como normalmente é concebida a relação entre raça e racismo. Como argumenta o escritor e jornalista Ta-Nehisi Coates no prefácio do livro A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura (2019), de Toni MorrisonMORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., “nós materializamos a ideia de que raça é de alguma forma um elemento do mundo natural, e o racismo seu resultado previsível” (COATES, 2019COATES, Ta Nehisi. Prefácio. In: MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 7-19., p. 12). Todavia, prossegue coates, “apesar de toda a literatura acadêmica demonstrar que essa formulação está no sentido contrário, que o racismo precede a raça, os norte-americanos ainda não entenderam direito” (COATES, 2019COATES, Ta Nehisi. Prefácio. In: MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 7-19., p. 12).

Ainda sobre questões raciais nos Estados Unidos, no início do século XX, o sociólogo W. E. B. Du Bois chamou a atenção para uma barreira racial existente entre negros e brancos no país, através da qual indivíduos pertencentes a esses grupos eram separados por um “véu”. No livro The Souls of Black Folk, publicado originalmente em 1903, Du Bois explica que esse véu seria responsável pelo fato de não ser possível para os negros a construção de uma consciência de si por eles próprios, visto que esse processo só poderia acontecer por meio de uma perspectiva branca. Surge, a partir de então, a ideia de dupla consciência relativa aos negros na sociedade estadunidense:

É uma sensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos dos outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre a sentir sua duplicidade – americano, e negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce

(DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Editora Lacerda, 1999., p. 54).

Essa passagem de Du Bois demonstra o quanto é conflituosa e específica a relação dos sujeitos negros com a elaboração de suas identidades em um mundo dominado pela hegemonia branca, o que se reflete como uma das temáticas principais de textos da literatura afro-americana. Somando ao espectro racial a questão de gênero, as mulheres negras ficam em uma situação ainda mais complexa quando são levadas em conta as “normas míticas” que formam as diferentes identidades nacionais. De acordo com Audre Lorde (2019)LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019., “nos Estados Unidos, essa norma geralmente é definida como branco, magro, homem, jovem, heterossexual, cristão e financeiramente estável. É nessa norma mítica que residem as armadilhas do poder nessa sociedade” (LORDE, 2019LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019., p. 143). Não pertencer a essa norma mítica e, mais do que isso, não ter qualquer uma de suas características significa estar relegado, como indivíduo, a uma posição de inferioridade.

Existe um pensamento binário em que ideias e pessoas são categorizadas conforme a importância e o valor dados a elas socialmente. É o que ocorre com pares como “razão/emoção”, “fato/opinião”, “homem/mulher”, “branco/negro”, entre outros. Nessa conjuntura em que se apresenta uma dicotomia, cada elemento só passa a ter significado quando é relacionado ao componente oposto. Além disso, a constituição dos pares é pautada por valores hierárquicos: o primeiro aspecto, geralmente é visto como superior e pertencente a um ideal de “universalidade”, enquanto o segundo, tende a ser inferiorizado e marcado discursivamente. Por exemplo, ao se considerar o pensamento binário “branco/negro”, o termo “branco” é dado como universal, referindo-se a um sujeito favorecido em uma estrutura social de poder, e o vocábulo “negro”, por sua vez, traz em si uma ideia de que o mesmo é diferente e excluído desse sistema e, por isso, pode ser objetificado e ter sua identidade racial evidenciada.

Trazendo essa reflexão para o momento atual, podemos ilustrá-la com o assassinato do segurança negro George Floyd provocado pelo policial branco Derek Chauvin, na cidade de Minneapolis, em Minnesota, Estados Unidos, em 25 de maio de 2020. Na ocasião, Chauvin ajoelhou-se no pescoço de Floyd por alguns minutos, enquanto ele estava imobilizado, de bruços, sem causar qualquer risco ao policial em questão5 5 Para mais informações, acesse o artigo de Greta Kaul, publicado no site do jornal MinnPost, “Seven days in Minneapolis: a timeline of what we know about the death of George Floyd and its aftermath”. Disponível em: https://www.minnpost.com/metro/2020/05/what-we-know-about-the-events-surrounding-george-floyds-death-and-its-aftermath-a-timeline/. Acesso em: 03 de junho de 2020. . Nesse caso, em que Floyd faleceu após não conseguir mais respirar, ficou nítida uma relação de poder em que Chauvin representa o lado superior (policial e branco) e Floyd, o lado inferior (cidadão comum e negro). Tal episódio de violência contra os negros, que ocorre cotidianamente não só nos Estados Unidos, como também em outros países, incluindo o Brasil, remete à seguinte afirmação do filósofo martinicano Frantz Fanon: “Nenhuma chance me é oferecida. Sou sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da ideia que os outros fazem de mim, mas da minha aparição” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 108). A morte de George Floyd vem desencadeando uma série de manifestações contra o racismo ao redor do mundo, as quais têm sido veiculadas pela mídia. Um exemplo disso é a ampla cobertura que o canal de televisão CNN Brasil tem feito dos referidos protestos, cobertura essa que vem utilizando manchetes como “Protestos contra a morte de negro”, para descrever essa repercussão. A utilização de “negro” no enunciado mencionado conduz aos seguintes questionamentos – George Floyd não é um ser humano? Ele não tem uma identidade? Apenas a cor de sua pele o define? – e acaba reforçando a desumanização a que as pessoas negras são sujeitas.

Na visão da escritora e artista portuguesa Grada Kilomba, existe uma norma branca segundo a qual “todas/os aquelas/es que não são brancas/os são construídas/os então como ‘diferentes’. A branquitude é construída como ponto de referência a partir do qual todas/os as/os ‘Outras/os’ raciais ‘diferem’” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 75). Em consequência desse padrão social branco, as/os “Outras/os raciais” são estigmatizada/os e submetida/os a diversos mecanismos de opressão. Voltando à ideia de norma mítica apontada por Audre Lorde (2019)LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019. e trazendo à luz uma perspectiva de gênero e raça, enquanto as mulheres são o segundo elemento do par dicotômico que posiciona os homens em primeiro lugar, sendo, portanto, vistas como “a/o Outra/o”, as mulheres negras são caracterizadas por uma condição ainda mais específica: a de “a/o Outra/o da/o Outra/o”. Esse atributo em particular demonstra a dimensão do apagamento das mulheres negras em discursos que se distanciam de suas peculiaridades: “um debate sobre racismo no qual o sujeito é o homem negro; um discurso genderizado no qual o sujeito é a mulher branca; e um discurso de classe no qual ‘raça’ não tem nem lugar. Nós ocupamos um lugar muito crítico dentro da teoria” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 97).

Além de habitarem um espaço singular que ultrapassa as margens das categorias de raça e gênero, as mulheres negras estão subordinadas a um sistema de imagens controladoras, criado por quem está no papel de autoridade, com o objetivo principal de mantê-las em seu lugar de “a/o Outra/o da/o Outra/o”. Patricia Hill Collins (2016COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Tradução de Juliana de Castro Galvão e Revisão de Joaze Bernardino-Costa. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan.-abr., 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
https://doi.org/10.1590/S0102-6992201600...
, 2019)COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019. mostra algumas dessas imagens a respeito das mulheres negras, no contexto dos Estados Unidos: 1) “mammy”: serviçal fiel e obediente que aceita passivamente sua submissão aos indivíduos brancos; 2) “matriarca negra”: mulher que é agressiva com seu companheiro e negligente com seus filhos, recusando-se a uma posição de subjugação; 3) “mãe dependente do Estado”: mulher pobre que faz uso de benefícios sociais; 4) “dama negra”: profissional de classe média que trabalha mais do que os outros e não sabe lidar com os homens por ser vista como muito assertiva em seus posicionamentos; 5) Jezebel: mulher considerada agressiva sexualmente; 6) Sapphire6 6 Trata-se de uma referência à personagem Sapphire Stevens, representada pela atriz Ernestine Wade, no programa de rádio e TV The Amos n’ Andy Show, na década de 1930. : mulher raivosa, de difícil convivência. Diante de imagens que buscam identificá-las de forma estigmatizada, as mulheres negras têm que lutar constantemente por sua autodefinição, ou seja, pelo seu poder de definir suas próprias realidades com base em outras formas de produção de subjetividades. Collins afirma que:

Quando nós, mulheres negras, nos autodefinimos, rejeitamos claramente o pressuposto de que aqueles em posição de autoridade para interpretar nossa realidade têm o direito de fazê-lo. Independentemente do conteúdo real das autodefinições das mulheres negras, o ato de insistir em nossa autodefinição valida nosso poder como sujeitos humanos

(COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 206).

Considerando o que foi exposto até aqui, na próxima seção, serão discutidos dois contos do livro Heads of the Colored People, com o objetivo de verificar como são construídas as subjetividades da personagem Fatima a partir de diálogos estabelecidos consigo mesma e com outras personagens femininas negras.

Vozes femininas negras em foco: Fatima sob uma perspectiva dialógica

Na visão de Mae Gwendolyn Henderson (2000)HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368., a posição social ocupada por autoras negras permite que sua escrita seja composta por uma multiplicidade de vozes, que dialogam com “as/os Outras/os” interna e externamente, bem como por uma pluralidade de discursos. A escritora Nafissa Thompson-Spires exemplifica esse pensamento a partir de personagens femininas como Fatima, protagonista dos contos “Fatima, the Biloquist: A Transformation Story” e “The Body’s Defenses Against Itself”, em uma jornada de auto(re)conhecimento construída por intermédio de dialogismos implícitos e/ou explícitos consigo mesma e com outras mulheres negras, conforme veremos a seguir.

Fatima, the Biloquist: A Transformation Story”: fase da adolescência

Esse conto é estruturado por uma técnica narrativa em que a história se inicia no meio, havendo, desse modo, uma ruptura na ordem cronológica dos acontecimentos. O/a narrador/a em terceira pessoa começa afirmando que “em 1998, Fatima se sentiu pronta para se tornar negra, negra por completo” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 65, minha tradução7 7 No original: “by 1998 Fatima felt ready to become black, full black” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 65). ). Antes desse processo, “ela tinha existido como um tipo de gás incolor” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 65, minha tradução8 8 No original: “she had existed like a sort of colorless gas” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 65). ), visto que não se (re)conhecia como negra. Esses enunciados relativos à personagem em questão remetem ao pensamento de Hall (2004)HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. de que não existe uma identidade fixa, mas sim uma variedade de identidades possíveis que são construídas e desconstruídas de tempos em tempos. Soma-se a isso o fato de raça, gênero e classe serem importantes marcadores identitários, os quais, em conjunto com a questão etária, atuam de forma específica na produção de subjetividade.

Nessa época, Fatima estava na adolescência, fase da vida geralmente marcada por aspectos como a importância das amizades, a necessidade de aceitação em grupos, os interesses amorosos, os modos de se relacionar com o corpo, entre outros. Ela cursava o 11º ano, o que corresponderia ao 3º ano do Ensino Médio no Brasil, em uma escola na qual era uma entre somente duas alunas negras matriculadas. Ser diferente em um espaço dominado por brancos levava Fatima a passar por algumas situações em que se sentia ignorada e isolada. Certo dia, ela apresentou o poema “An Address to the Ladies, by Their Best Friend Sincerity”, do escritor branco Charles Brockden Brown, considerado um dos grandes nomes da literatura estadunidense do final do século XVIII e início do século XIX, como atividade durante uma aula. Preocupou-se em se arrumar para a ocasião, já que estaria diante de sua turma, “porém os outros alunos mal olharam para ela [...]. Eles bateram palmas tediosas por alguns segundos enquanto Fatima voltava amuada para a sua carteira” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 65, minha tradução9 9 No original: “but the other students barely looked at her [...]. They clapped dull palms for a few seconds as Fatima sulked back to her desk” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 65). ). Por outro lado, na mesma ocasião, quando o colega branco Wally “The Wigger10 10 “Wigger” se refere a um homem branco que deseja mostrar uma intimidade com a cultura afro-americana. O termo é uma junção de “white” com “nigger”. Arnett recitou “Incident”, do poeta afro-americano Countee Cullen, que contém a palavra “nigger” (considerada ofensiva aos negros quando é proferida por brancos), a turma inteira prestou atenção nele. Após sua apresentação, “as mãos bateram palmas para um herói enquanto Wally se dirigia ao seu assento ao lado de Fatima, parecendo que ele esperava um ‘bate aqui’. Ela revirou os olhos para ele, mas não conseguiu articular sua indignação com algo mais específico” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 66, minha tradução11 11 No original: “The hands pounded a hero’s applause as Wally headed back to his seat next to Fatima looking like he expected a high five. She rolled her eyes at him, but she couldn’t articulate her wrath into something more specific” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 66). ).

Nesse ambiente, Fatima percebia a diferença de tratamento dos colegas em relação a ela (jovem negra), frequentemente menosprezada, e a Wally (jovem branco), comumente enaltecido. Wally buscava sempre se aproximar dela, perguntando, por exemplo, se a colega gostava dos rappers da gravadora No Limit, trazendo, com isso, referências vinculadas à cultura afro-americana. Fatima procurava explicar que, mesmo que Wally gostasse de expressões artísticas, musicais e culturais negras, ele jamais se tornaria negro. Nesse cenário, Fatima se sentia entristecida, revoltada e injustiçada não só pelos colegas, mas também pela coordenação da escola, tendo em vista alguns episódios como o fato de ter recebido uma advertência do/a diretor/a Lee por “‘parecer que ela poderia se tornar violenta’ quando Wally disse ‘nigger’ e foi aplaudido” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 66, minha tradução12 12 No original: “‘looking like she might become violent’ when Wally said ‘nigger’ and got applause” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 66). ).

Nesse acontecimento, fica evidente como Fatima era vista pelo/a coordenador/a da escola como uma estudante ameaçadora, que poderia agir com agressividade – representando, assim, a imagem controladora de Sapphire – a qual deveria ser dominada e colocada em uma posição de silenciamento. Todo esse processo a que as mulheres negras são submetidas é fruto do racismo genderizado13 13 Trata-se de uma forma de opressão que ocorre devido a questões de raça e de gênero. O termo “racismo genderizado”, que ainda não se encontra nos dicionários de língua portuguesa, foi escolhido por Jess Oliveira como tradução para “gendered racism” na versão brasileira do livro Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (2008), de Grada Kilomba, publicada no Brasil em 2019. Outro vocábulo em português, utilizado mais frequentemente como tradução para o referido termo em inglês, é “racismo gendrado”. (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), a partir do qual as categorias discursivas de gênero e de raça se entrecruzam. E, levando-se em consideração o contexto social em que Fatima está inserida, é necessário acrescentar a questão de classe, na medida em que sua família pertencia à classe média alta, tendo, portanto, uma situação financeira confortável que a distanciava da realidade da maioria dos poucos negros com os quais tinha contato.

Ainda afetada pelo incômodo em relação a Wally, Fatima foi a uma loja de cosméticos e ficou na dúvida sobre duas cores de batom. A atendente, que estava atrás do balcão conversando com uma colega, ignorou-a “e em situações como essa, Fatima geralmente comprava alguma coisa cara só para mostrar à vendedora que ela podia [comprar]” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 67, minha tradução14 14 No original: “‘and in situations like this, Fatima usually bought something expensive just to show the salesperson that she could” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 67). ). A atitude da funcionária, ao deixar de dar atenção a Fatima, ilustra o racismo cotidiano (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) vivenciado pelos sujeitos negros, ressaltando, mais uma vez, o pensamento de Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. de que o negro é automaticamente julgado pelo seu exterior, pela sua aparência. Provavelmente, ao se deparar com Fatima, a vendedora concluiu que ela: 1) não merecia ser atendida, afinal era apenas uma adolescente negra; 2) não teria condições financeiras para pagar pelos produtos disponíveis na loja. Nessa cena, uma garota, com cabelos loiros, aproximou-se de Fatima e sugeriu uma cor de batom: “Fatima viu perifericamente o cabelo primeiro, então não tinha expectativas sobre o resto do pacote. Uma garota voluptuosa – realmente, essa era a única palavra que funcionaria – com um nariz largo e características negras estava ao seu lado” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 67, minha tradução15 15 No original: “Fatima peripherally saw the hair first, so she didn’t expect the rest of the package. A voluptuous – really, that was the only word that could work – girl with a wide nose and black features stood next to her” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 67). ).

Era Violet, uma adolescente negra albina, que continuou a interagir com Fatima dizendo que em outra loja os cosméticos eram mais baratos. Imediatamente a vendedora decidiu perguntar se elas precisavam de alguma ajuda. Violet pediu algumas amostras à atendente, que estava nitidamente irritada com tamanha ousadia. Ao ver o comportamento dessa garota que falava alto, em inglês afro-americano16 16 Segundo Lisa J. Green (2007), o inglês afro-americano (African American English) é uma variante da língua inglesa utilizada por negros no contexto dos Estados Unidos com padrões fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos e lexicais próprios. Estes são alguns exemplos do AAE usados pela personagem Violet: “You have a boyfriend?” (em que o verbo auxiliar “do” está ausente) / “I can see I’ma have to teach you a lot of things.” (em que “I’ma” aponta para um futuro próximo, em contraste com “I’m going to”). , e demonstrava uma postura insolente, Fatima tentou se afastar dela. Tal não-identificação de Fatima com Violet sugere que, embora ambas sejam negras, elas têm suas próprias individualidades, isto é, orientam-se por diferentes formas de produção de subjetividades, o que remete ao pensamento de Hall (1997)HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Tradução e Revisão de Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez., 1997.. Por um lado, Fatima é de classe média alta e se comporta como se fosse uma jovem branca, conforme aponta a própria Violet. Esta, por sua vez, advém de outro contexto social e sua postura reflete um outro modo de lidar com sua negritude, somando-se a isso o fato de ser albina. Mesmo com tantas diferenças entre si, as duas se aproximam e constroem uma relação de amizade.

Antes dos comentários de Violet, Fatima já havia sido acusada em diferentes contextos de “trair a raça”, por não se comportar como uma garota tipicamente negra: quando se apresentava no grupo de jovens de sua igreja ou visitava seus familiares em Southeast San Diego (“Southeast” é um marcador geográfico para uma região de gueto) ou via garotos se distanciarem dela após confirmarem que ela estudava em uma escola particular. Nesse sentido, o universo em que Fatima vivia era dominado por brancos e, talvez, por esse motivo, ela não tinha amigos negros e se preocupava com a possibilidade de nunca arranjar um namorado. Apesar de as acusações mencionadas ofenderem Fatima, as únicas reações da adolescente eram chorar em seu quarto sem que ninguém soubesse ou alimentar sua crença de que a escola onde estudava e os empregos bem pagos de seus pais eram de certa forma responsáveis pelo seu distanciamento em relação às pessoas negras. Nesses momentos, Fatima escutava músicas vinculadas aos estilos musicais ska e punk e lia textos de Charles Brockden Brown, buscando, portanto, conectar-se com o mundo com o qual se identificava: o dos brancos. Como aponta o/a narrador/a, “se as pessoas negras não a aceitassem, ela se agarraria àquilo que conhecia” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 69, minha tradução17 17 No original: “If black people wouldn’t accept her, she would stick to what she knew” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 69). ).

Violet sempre lembrava Fatima de que, mesmo que tivesse a pele escura, não era negra o suficiente. Embora insistisse em afirmar que não estava tentando ser branca, já que apenas se comportava de acordo com o contexto social a que estava vinculada, Fatima sempre escutava o que Violet, uma garota negra, tinha a dizer. Violet dirigiu a ela questionamentos como: Você não tem amigos na igreja? Você é adotada? Seus pais também se comportam como brancos? Onde você mora não há negros? Essas provocações tiveram um grande impacto em Fatima, a ponto de ela começar um processo de transformação em sua subjetividade.

Com a ajuda da amiga, Fatima passou a ter contato com um universo sociocultural afro-americano, que ela desconhecia anteriormente, e a incorporar novos elementos dessa natureza em sua vida: desde elementos linguísticos, programas e séries de TV como Fresh Prince of Bel-Air (No Brasil, Um maluco no pedaço) e Yo! MTV Raps até o estilo de se vestir e de moldar seu cabelo. Fatima ficava feliz quando Violet aprovava suas atitudes em prol de sua busca pela afirmação de uma identidade negra: “a pálida Violet se tornou a árbitra da negritude de Fatima, a provedora de todas as coisas autênticas” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 71, minha tradução18 18 No original: “Pale Violet became the arbiter of Fatima’s blackness, the purveyor of all things authentic” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 71). ). Os encontros com Violet, em que palavras, gírias e pronúncias eram ensinadas, passaram a ocorrer com frequência, o que conduziu Fatima a desenvolver, à maneira do personagem Carwin, The Biloquist, criado pelo escritor Charles Brockden Brown, a habilidade de ser ventríloqua, de poder manipular suas identidades de acordo com os próprios interesses, a depender do ambiente e dos interlocutores envolvidos.

As conversas entre Violet e Fatima também tocavam em questões mais complexas, como o racismo enfrentado por elas. Quando Violet perguntou a Fatima se as pessoas da sua escola, a Westwood Prep, eram racistas, ela disse que não sabia em um primeiro momento, mas depois relatou que, muitas vezes, tinha uma constante sensação de desconforto, uma espécie de não-pertencimento àquele local. Sobre o corpo negro feminino, ambas se identificavam, por exemplo, com o fato de dormirem com o cabelo envolvido em um lenço de seda para mantê-lo no lugar e de terem sempre disponível um tubo de creme hidratante para evitar que as mãos ficassem ressecadas e a pele como um todo se tornasse acinzentada. Violet, especificamente, tinha um complexo em relação ao seu albinismo, já que sua aparência chamava a atenção das pessoas: tratava-se de um corpo excêntrico na medida em que os traços que a aproximavam de um universo de branquitude – cor da pele, do cabelo e dos olhos – acabavam sendo desconstruídos ao se observar seu fenótipo tipicamente negro.

Retomando a visão de Mae Gwendolyn Henderson (2000)HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368. sobre a especificidade da expressão literária de escritoras negras, formada por múltiplas vozes que dialogam com as/os Outras/os interna e externamente, no conto em análise, a partir das personagens Fatima e Violet, Thompson-Spires transpõe para a literatura o modo como Patricia Hill Collins (2019)COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019. enxerga a relação entre as mulheres negras:

Para as afro-americanas, o ouvinte mais capaz de romper a invisibilidade criada pela objetificação das mulheres negras é outra mulher negra. Esse processo de confiança umas nas outras pode parecer perigoso, porque somente as mulheres negras sabem o que significa ser mulher negra. Mas se não escutarmos umas às outras, quem vai nos escutar?

(COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 190).

Com os constantes diálogos com Violet e a progressiva descoberta de uma identidade negra, a partir de sua autodefinição (COLLINS, 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.), Fatima se sentiu mais segura e confiante, o que teve consequências em sua postura no ambiente escolar. Quando Wally demonstrava qualquer tipo de aproximação, Fatima o distanciava apenas com um olhar de reprovação. Segundo o/a narrador/a, “havia alguma coisa mais bonita nela agora também, e as pessoas pareciam enxergar isso antes que Fatima o fizesse, porque um rapaz chamado Rolf, da Westwood, [...] pediu a ela o seu número de telefone” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 75, minha tradução19 19 No original: “There was something prettier about her now, too, and people seemed to see it before Fatima did, because a guy named Rolf at Westwood [...] asked her for her phone number” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 77). ). Apesar dessa transformação, intimamente Fatima ainda tinha inseguranças sobre sua autoestima, sentindo-se feia e alimentando um processo de autopiedade. Tais sentimentos da personagem se relacionam com a ideia de dupla consciência dos negros estadunidenses e do véu que representa uma barreira racial existente no país (DU BOIS, 1999DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Editora Lacerda, 1999.). Além disso, essa condição conflituosa de Fatima ilustra, no campo literário, esta afirmação da intelectual bell hooks (2019)HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Editora Elefante, 2019. sobre os sujeitos negros:

[...] para as pessoas negras, a dor de aprender que não podemos controlar nossas imagens, como nos vemos (se nossas visões não forem descolonizadas) ou como somos vistos, é tão intensa que isso nos estraçalha. Isso destrói e arrebenta as costuras de nossos esforços de construir o ser e de nos reconhecer

(hooks, 2019HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Editora Elefante, 2019., p. 35).

Os esforços de Fatima em se (re)conhecer negra por meio de diálogos consigo mesma e com Violet teve um certo recuo quando ela começou a namorar Rolf, um garoto branco, de cabelos escuros. Na primeira ligação telefônica, os dois conversaram sobre skates e a banda The Smiths, que são vinculados a um contexto sociocultural branco. Isso ocorreu em um momento no qual Fatima já havia adquirido condições para explorar o universo afro-americano através da utilização de determinados modos de falar e do conhecimento de nomes de vários membros de grupos musicais. Com o novo namorado, Fatima suprimia o que havia aprendido tanto com Violet, como através de pesquisas que ela mesma fazia a respeito da cultura negra estadunidense, além de deixar evidente uma subjetividade pautada em referenciais tipicamente brancos. Quanto a Rolf, algumas de suas posturas apontavam para um racismo velado: ele foi apresentado à família de Fatima, porém, o contrário não aconteceu; no primeiro jantar na casa da namorada, Rolf disse que achava interessante o fato de a família dela ser negra, mas ter tido sucesso na vida; ao ser perguntado por Fatima se ele via problemas por ela ser negra, Rolf respondeu que não considerava a questão de cor da pele, destacando o seguinte: “‘De qualquer forma, não parece que você é negra, negra’” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 80, minha tradução20 20 No original: “‘Anyway, it’s not like you’re black black’” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 80). ). Com esse comentário, Fatima se recordou de sua visão em relação à vida antes de Violet e da sensação de parecer como um gás incolor, tentando interpretar as palavras de Rolf como um elogio.

Após esconder de Violet seu relacionamento com Rolf por três meses, Fatima se deparou com ela e o namorado Mike na entrada de um cinema. Violet a chamou e se aproximou. Quando Violet foi apresentada a Rolf, ele riu e comentou com Fatima que até as amigas negras dela eram brancas, ou seja, o ideal de branquitude permeava todas as suas relações – internas e externas. Fatima se viu em uma situação desconfortável, buscando se desculpar com Violet pelo fato de ter ocultado seu relacionamento com Rolf e dizendo que não tinha a intenção de magoá-la. Em uma atitude inconsciente, antes de Violet decidir ir embora, “ela [Fatima] estava ventrilocando o que havia aprendido, tudo de uma vez, mas a partir de muitos lugares e tudo na hora errada” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 81, minha tradução21 21 No original: “she was ventriloquizing what she’d learned all at once, but from many places and all at the wrong time” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 81). ), o que ilustra o quanto a subjetividade é individual, mas ao mesmo tempo coletiva, multifacetada e atravessada em diversas direções. O conto termina apontando para a confusão mental de Fatima, evidenciada por seu comportamento diante de Violet.

Em “Fatima, the Biloquist: A Transformation Story”, acompanhamos o processo de auto(re)conhecimento de Fatima durante a adolescência e a importância de sua relação dialógica com Violet, também adolescente, para a ruptura de uma sensação de solidão presente desde a infância, a melhora de sua autoestima e, sobretudo, a descoberta de sua identidade negra. Além disso, no conto analisado, vimos que os referenciais das culturas branca e negra no contexto estadunidense, entrelaçados com as categorias de faixa etária, gênero e classe social, atuam diretamente na produção de subjetividade de Fatima, rompendo, desse modo, com imagens pré-estabelecidas sobre o que é ser uma jovem negra nos Estados Unidos e mostrando a complexidade desse processo de construção identitária pelo recorte da literatura.

The Body’s Defenses Against Itself”: fase adulta e algumas memórias de infância

Assim como o conto anterior, “The Body’s Defenses Against Itself” subverte a ordem linear dos eventos. Nesse novo cenário, a personagem Fatima está na idade adulta e algumas lembranças de sua infância entrecortam a narrativa. O conto se inicia com um/a narrador/a em terceira pessoa, que faz referência a uma mulher durante sua primeira aula de yoga na turma de Fatima. Segundo ele/a, essa nova aluna, que estava em pé na frente de Fatima, virou-se para trás e sorriu. Na sequência, o/a narrador/a passa a ser de primeira pessoa: “Desvio os meus olhos, irritada por sua expectativa de familiaridade [...]. Vejo o seu rosto no espelho. Ela poderia ser uma prima distante, seu nariz não muito diferente do meu, mas é gorda” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 51, minha tradução22 22 No original: “I avert my eyes, annoyed by her expectation of familiarity [...]. I watch her face in the mirror. She could be a distant cousin, her nose not unlike mine, but she is fat” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 51). ). Fatima, que assume o papel de narradora a partir de então, sente-se incomodada com aquela mulher, em quem vê semelhanças – por também ser negra – mas, ao mesmo tempo, diferenças – ela estava acima do peso e vestia roupas largas, inadequadas para uma aula de yoga. Também chamou a atenção de Fatima uma postura de autoconfiança demonstrada pela nova colega. Quando reparou que a mulher também a observava através do espelho, Fatima fechou os olhos. Essa cena remete a este pensamento de Fanon (2008)FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. ao tratar da construção de identidades pelo sujeito negro:

Tento ler nos olhos do outro a admiração e se, infelizmente, o outro me devolve uma imagem desagradável, desvalorizo este espelho [...]. Eu não quero sentir o choque do objeto. O contato com o objeto é conflitante. Sou Narciso e quero ler nos olhos do outro uma imagem de mim que me satisfaça

(FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 176).

Após a reação de Fatima, que sugere uma sensação de incômodo em relação à sua nova colega de turma, ela começou a se lembrar de que, quando tinha 11 anos de idade, suava excessivamente. Por esse motivo, seus colegas de classe a apelidaram de Fatima Sweatima23 23 “Sweatima” é uma palavra criada a partir de “sweat”, que significa “suor” em português. , o que a deixava extremamente constrangida. Quando sua mãe a levou a uma consulta para verificar possíveis razões para a hiperidrose, o médico constatou que se tratava de um quadro de ansiedade, perguntando se havia ali alguma história traumática. As duas se entreolharam e Fatima levantou a seguinte reflexão: “Talvez isso tivesse a ver simplesmente com o fato de eu estar naquele corpo específico, um corpo tão diferente de qualquer outro naquela escola” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 53, minha tradução24 24 No original: “Maybe it just had to do with being in that specific body, a body so different from everyone else’s at school” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 53). ). Fatima era marcada por sua negritude em um contexto escolar no qual os brancos faziam parte da norma mítica (LORDE, 2019LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.).

Sentir-se diferente e ser excluído por essa razão é algo muito comum especialmente para os sujeitos negros que ascenderam socialmente. A violência contra esses corpos pode ser observada desde a infância, fase em que meninas e meninos negros costumam receber apelidos preconceituosos, ser alvos de xingamentos e ter poucos amigos. Segundo Souza (1983)SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, 1983., “a diferença não abriga qualquer vestígio de neutralidade e se define em relação a um outro, o branco, proprietário exclusivo do lugar de referência, a partir do qual o negro será definido e se autodefinirá” (SOUZA, 1983SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, 1983., p. 26). Nesse sentido, a relação dos sujeitos negros com seus próprios corpos será determinante no processo de construção de suas identidades nos contextos sociais aos quais estiverem vinculados.

Voltando ao conto de Thompson-Spires, a mãe de Fatima sempre a ensinava a não evidenciar uma postura combativa aos insultos e comentários racistas. Em contraposição à imagem de um termômetro, Fatima deveria ser como um termostato, ou seja, exercer o controle de suas emoções a todo custo e aguentar firmemente qualquer tipo de situação negativa que tivesse que enfrentar. Com essas orientações maternas, a menina buscava manter um comportamento não-responsivo às provocações dos colegas de escola. Christinia, a única menina negra da turma além de Fatima, era a que mais a desafiava ao lhe dirigir apelidos, principalmente o de “Fatima Sweatima”, e falar mal de suas roupas. Certo dia, por exemplo, durante uma aula, Christinia se levantou de sua carteira para supostamente apontar um lápis. No trajeto, aproximou-se de Fatima e cheirou o casaco que ela usava ininterruptamente, mesmo que a sala não estivesse tão fria, para disfarçar seu suor excessivo. Seguida por outros colegas, Christinia fez uma cara de nojo, deixando Fatima completamente envergonhada. Cansada de ser o alvo principal das afrontas de Christinia, Fatima deixou de lado os ensinamentos de sua mãe e reagiu à altura:

Quando me veio a coragem de menosprezá-la, eu fiz questão de ostentar a minha magreza – a única coisa desejável sobre o meu corpo – sobre a sua tendência a ser gordinha. As pessoas podiam inventar os seus apelidos, mas eu tinha certeza de que ninguém nunca me chamaria de Fati, Fatty25 25 “Fati, Fatty” seria algo como “Fati, a gorda”, em português.

(THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 55, minha tradução26 26 No original: “When I got up the courage to look down on her, I made a point of flaunting my thinness – the only desirable thing about my body – over her tendency toward chubby. People could make up their nicknames, but I made sure no one would ever call me Fati, Fatty” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 55). ).

Por meio de atitudes como essa, Fatima buscava se diferenciar de Christinia, ressaltando um atributo físico valorizado socialmente. Embora as duas colegas fossem consideradas “a/o Outra/o da/o Outra/o” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.)27 27 O debate teórico do corpo feminino negro como sendo a/o/outra/o da/o outra/o já havia sido abordado, antes de Kilomba (2019), por Gayatri C. Spivak e Chandra Talpade Mohanty nos anos de 1980, sendo posteriormente retomado com a noção do corpo duplamente colonizado na crítica pós-colonial de Edward Said, Ella Shohat e Anne Fausto-Sterling, ao tratar do corpo negro violado e explorado de Sarah Baartman, a Venus Hotentote. por serem negras, especificamente em um ambiente dominado por brancos, Fatima teria como vantagem social o fato de ser magra.

Com o passar do tempo, quando completou 19 anos de idade, Fatima já havia conseguido superar a hiperidrose que tanto a incomodava na infância e na adolescência. Entretanto, ela tinha distúrbios alimentares e não suportava a ingestão de grandes quantidades de comida. Em suas palavras, “o meu corpo encontrou outras formas de expurgar; ele aprendeu a se castigar” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 61, minha tradução28 28 No original: “my body found other ways to purge; it learned how to punish itself” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 61). ). Essa passagem faz alusão ao título do conto: a partir de vivências marcadas pela dor e pelo sofrimento resultantes de um múltiplo mecanismo de opressão – raça, gênero e classe – o corpo de Fatima apresentou defesas contra ele mesmo, como as que foram mencionadas. Além disso, aos 33 anos, ela passou a ter um sangramento constante, algo que já havia ocorrido anteriormente, quando era mais jovem. O ressurgimento desse quadro reativou a ansiedade e, consequentemente, a hiperidrose.

Retornando à aula de yoga que abre o conto, enquanto Fatima tentava se concentrar nas posições ensinadas pelo professor, continuava a observar aquela nova aluna negra. Quando seus olhares se cruzaram novamente, Fatima desviou o seu olhar. Ao tentar fazer a pose de roda, na qual é exigida uma grande flexibilidade da coluna vertebral, ela se desequilibrou e caiu. Após isso, a personagem-narradora traz a seguinte passagem:

Estou impressionada com a clareza de todas as coisas. Eu vejo as cores mais brilhantemente, por pouco tempo. Eu compreendo. Às vezes, o inimigo que se parece com você é apenas uma preparação para o inimigo que é você. A violência dirigida para dentro acalma a violência que vem de fora. Prepara você, cria calos, tapa buracos

(THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 63, minha tradução29 29 No original: “I am struck by the clarity of all things. I see colors more brightly, briefly. I understand. Sometimes the enemy who looks like you is but a preparation for the enemy who is you. The violence directed inside mitigates the violence that comes from outside. It prepares you, creates calluses, fills holes” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 63). ).

Aquela mulher, apenas com sua aparição, exerceu um papel fundamental nos processos de auto(re)conhecimento, autodefinição (LORDE, 2019LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.) e construção de identidade de Fatima. Naquela situação, em que parecia enxergar a si mesma através do espelho, houve uma autodescoberta dolorosa – a inimiga estava em seu interior – mas ao mesmo tempo reveladora e com potencial para ajudar em seu crescimento pessoal.

Por fim, todos os participantes daquela aula de yoga, incluindo a nova aluna, aproximaram-se de Fatima para checar sua situação depois da queda. Aquela mulher, que era enfermeira, tomou a iniciativa de verificar a respiração de Fatima e, depois de colocá-la deitada, constatou que aquele quadro parecia ser de uma concussão. Fatima foi levada para o hospital. Após seis meses, foi diagnosticada com endometriose: “o meu corpo me reprovou novamente. Apesar de eu tê-lo atacado, ele não irá se conformar” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 63, minha tradução30 30 No original: “my body has failed me again. Though I have buffeted it, it will not conform” (THOMPSON-SPIRES, 2019, p. 63). ). Mais uma vez, seu corpo reagia a todas as emoções negativas que havia tido ao longo da vida. O conto finaliza com uma reflexão de Fatima sobre sua consciência corporal: mesmo que fizesse aulas de yoga desde a infância, ela esperava ter superado os desafios enfrentados pelo seu corpo – negro, rfeminino e frequentador de espaços predominantemente brancos – o que não aconteceu. Esse cenário em que Fatima olha para dentro de si, a partir da imagem de outra mulher refletida em um espelho, remete ao que Fanon afirma sobre a relação complexa dos indivíduos negros com seus próprios corpos:

No mundo branco, o homem de cor enconta dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas

(FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 104).

Em “The Body’s Defenses Against Itself”, a construção de subjetividade da personagem Fatima se deu a partir de diálogos consigo mesma e com outras mulheres negras com quem interagiu ao longo de sua vida. Entre elas estão a sua própria mãe que, para protegê-la diante de um contexto social racista, lhe ensinava a suprimir suas reações emotivas; a colega de escola Christinia, cujas provocações tinham como objetivo incitar uma disputa entre elas – as únicas alunas negras da turma; e a mulher na aula de yoga, na qual Fatima enxergou algumas semelhanças, mas preferiu se concentrar nas diferenças entre elas, distanciando o seu olhar toda vez que a colega parecia demonstrar qualquer forma de aproximação.

Considerações finais

Incertezas, conflitos, desafios: é o que sujeitos negros vivenciam cotidianamente, em um mundo no qual ainda prevalece a hegemonia branca. Nafissa Thompson-Spires, em sua obra de estreia Heads of the Colored People, constrói narrativas ambientadas entre os anos de 1990 e os dias atuais ao “adentrar as cabeças” e representar as vivências de diferentes indivíduos negros de classe média alta nos Estados Unidos. Ao entrecruzar essas características de raça e classe, abordando os desafios e pressões sofridos por pessoas negras em espaços marcados pela branquitude na contemporaneidade, a autora traz inovações para o campo da literatura afro-americana, utilizando um gênero literário acessível aos leitores e favorável a experimentações de estilo, linguagem e forma. É o que ocorre, por exemplo, com a subversão da ordem linear dos acontecimentos; a representação do inglês afro-americano pela adolescente Violet, em contraste com a variante padrão da língua inglesa utilizada por Fatima; e as referências vinculadas ao contexto sociocultural relativo aos negros estadunidenses, tais como a série de TV Fresh Prince of Bel-Air e a gravadora No Limit.

Neste artigo, usei como base as ideias de que as múltiplas identidades não são fixas e estão em constante mudança (HALL, 2004HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.) e as mulheres negras, apesar de suas individualidades, encontram-se em uma situação particular por serem consideradas “as/os Outras/os das/os Outras/os” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.). Busquei, então, a partir de Henderson (2000)HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368., verificar de que maneira a escrita feminina negra de Thompson-Spires é marcada por um caráter interlocutório ou dialógico. Para tanto, selecionei a personagem Fatima para analisar como as referidas questões foram abordadas, tendo em vista que ela costumava transitar em ambientes nos quais era uma das poucas (ou a única) pessoas negras e lidava com suas subjetividades por meio de diálogos consigo mesma e com outras personagens femininas negras.

No conto “Fatima, the Biloquist: A Transformation Story”, a amizade com Violet foi significativa para uma mudança na trajetória de Fatima durante a adolescência, pois ela passou a mergulhar em aspectos referentes ao universo afro-americano, procurando (re)conhecer-se como negra, pelo menos provisoriamente. Seu namoro com Rolf e, consequentemente, seu reencontro com Violet após um distanciamento de três meses, acabaram reforçando sua confusão mental e emocional em torno de seus “eus”, conforme aponta o desfecho do conto em questão. Já em “The Body’s Defenses Against Itself”, Fatima havia chegado à fase adulta e estava em uma aula de yoga. A partir da entrada de uma nova aluna na turma, negra como ela, a protagonista iniciou uma viagem para dentro de si mesma. Não houve qualquer diálogo explícito entre as duas, no entanto, apenas a presença daquela mulher, cuja imagem se refletia no espelho, era suficiente para que Fatima acionasse memórias de sua infância. Vieram-lhe à mente a sua mãe, que sempre a orientou a não reagir agressivamente em situações em que era insultada, e Christinia, uma colega dos tempos de escola, que insistia em fazer-lhe provocações e deixá-la constrangida diante dos demais estudantes. Fatima se recordou de situações traumáticas que desencadearam reações negativas em seu corpo, as quais tiveram continuidade no decorrer dos anos. Por meio de quadros como hiperidrose, distúrbios alimentares e sangramentos, seu corpo negro feminino procurava formas de se defender de si mesmo, já que era submetido a diversas situações de dor e sofrimento causados por outras pessoas ou por ela própria.

Os dois contos analisados demonstram, a partir da personagem Fatima, como os diálogos consigo mesma e com outras personagens femininas negras exerceram um papel fundamental na produção de sua subjetividade. Tais narrativas, nesse sentido, constituem-se como importantes referências não só para o campo da literatura afro-americana feminina na atualidade, como também para um conjunto de discussões acerca das incertezas, dos conflitos e dos desafios vivenciados por sujeitos negros, especialmente mulheres que ascenderam socialmente e estão vinculadas a contextos majoritariamente brancos. Portanto, a escrita dialógica de Nafissa Thompson-Spires possibilita uma abertura de espaços para que outras vozes de autoras negras sejam ouvidas e ecoadas e contribuam, assim, para a ampliação de um espectro anti-patriarcal, contra-hegemônico e antirracista da literatura.

Notas

  • 1
    Segundo Katherina Unkelbach (2012)UNKELBACH, Katharina. The Historical Development of the Terms “Colored”, “Negro”, “Black” and “African-American”. Munich: Grin Verlag, 2012., o termo “colored” foi muito usado nos Estados Unidos entre a segunda metade do século XIX e os anos de 1950, tendo caído em desuso após esse período.
  • 2
    No original: “I didn’t see anything about a Black girl who was stuck in a white school, which is what I was dealing with, and how to deal with being different at that level, and on being middle class or upper-middle class and not really fitting in anywhere” (THOMPSON-SPIRES apudCOLEMAN, 2018COLEMAN, Tyrese L. Nafissa Thompson-Spires Is Taking Black Literature in a Whole New Direction. Electric Lit, 08 jan. 2018. Disponível em: https://electricliterature.com/nafissa-thompson-spires-is-taking-black-literature-in-a-whole-new-direction/. Acesso em: 01 jun. 2020.
    https://electricliterature.com/nafissa-t...
    , n.p.).
  • 3
    No original: “an opportunity to experiment with style and form, voice and language” (LUCKY, 2009LUCKY, Crystal J. African American Women Writers and the Short Story. In: MITCHELL, Angelyn; TAYLOR, Danille K. (Orgs.). The Cambridge Companion to African American Women’s Literature. Nova York: Cambridge University Press, 2009. p. 245-261., p. 245).
  • 4
    No original: “What is at once characteristic and suggestive about black women’s writing is its interlocutory, or dialogic, character, reflecting not only a relationship with the ‘other(s)’, but an internal dialogue with the plural aspects of self that constitute the matrix of black female subjectivity” (HENDERSON, 2000HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368., p. 349).
  • 5
    Para mais informações, acesse o artigo de Greta KaulKAUL, Greta. Seven days in Minneapolis: a timeline of what we know about the death of George Floyd and its aftermath. MinnPost, Minneapolis, 29 mai 2020. Disponível em: https://www.minnpost.com/metro/2020/05/what-we-know-about-the-events-surrounding-george-floyds-death-and-its-aftermath-a-timeline/. Acesso em: 03 jun. 2020.
    https://www.minnpost.com/metro/2020/05/w...
    , publicado no site do jornal MinnPost, “Seven days in Minneapolis: a timeline of what we know about the death of George Floyd and its aftermath”. Disponível em: https://www.minnpost.com/metro/2020/05/what-we-know-about-the-events-surrounding-george-floyds-death-and-its-aftermath-a-timeline/. Acesso em: 03 de junho de 2020.
  • 6
    Trata-se de uma referência à personagem Sapphire Stevens, representada pela atriz Ernestine Wade, no programa de rádio e TV The Amos n’ Andy Show, na década de 1930.
  • 7
    No original: “by 1998 Fatima felt ready to become black, full black” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 65).
  • 8
    No original: “she had existed like a sort of colorless gas” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 65).
  • 9
    No original: “but the other students barely looked at her [...]. They clapped dull palms for a few seconds as Fatima sulked back to her desk” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 65).
  • 10
    Wigger” se refere a um homem branco que deseja mostrar uma intimidade com a cultura afro-americana. O termo é uma junção de “white” com “nigger”.
  • 11
    No original: “The hands pounded a hero’s applause as Wally headed back to his seat next to Fatima looking like he expected a high five. She rolled her eyes at him, but she couldn’t articulate her wrath into something more specific” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 66).
  • 12
    No original: “‘looking like she might become violent’ when Wally said ‘nigger’ and got applause” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 66).
  • 13
    Trata-se de uma forma de opressão que ocorre devido a questões de raça e de gênero. O termo “racismo genderizado”, que ainda não se encontra nos dicionários de língua portuguesa, foi escolhido por Jess Oliveira como tradução para “gendered racism” na versão brasileira do livro Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.), de Grada Kilomba, publicada no Brasil em 2019. Outro vocábulo em português, utilizado mais frequentemente como tradução para o referido termo em inglês, é “racismo gendrado”.
  • 14
    No original: “‘and in situations like this, Fatima usually bought something expensive just to show the salesperson that she could” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 67).
  • 15
    No original: “Fatima peripherally saw the hair first, so she didn’t expect the rest of the package. A voluptuous – really, that was the only word that could work – girl with a wide nose and black features stood next to her” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 67).
  • 16
    Segundo Lisa J. Green (2007)GREEN, Lisa J. African American English: A Linguistic Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., o inglês afro-americano (African American English) é uma variante da língua inglesa utilizada por negros no contexto dos Estados Unidos com padrões fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos e lexicais próprios. Estes são alguns exemplos do AAE usados pela personagem Violet: “You have a boyfriend?” (em que o verbo auxiliar “do” está ausente) / “I can see I’ma have to teach you a lot of things.” (em que “I’ma” aponta para um futuro próximo, em contraste com “I’m going to”).
  • 17
    No original: “If black people wouldn’t accept her, she would stick to what she knew” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 69).
  • 18
    No original: “Pale Violet became the arbiter of Fatima’s blackness, the purveyor of all things authentic” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 71).
  • 19
    No original: “There was something prettier about her now, too, and people seemed to see it before Fatima did, because a guy named Rolf at Westwood [...] asked her for her phone number” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 77).
  • 20
    No original: “‘Anyway, it’s not like you’re black black’” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 80).
  • 21
    No original: “she was ventriloquizing what she’d learned all at once, but from many places and all at the wrong time” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 81).
  • 22
    No original: “I avert my eyes, annoyed by her expectation of familiarity [...]. I watch her face in the mirror. She could be a distant cousin, her nose not unlike mine, but she is fat” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 51).
  • 23
    “Sweatima” é uma palavra criada a partir de “sweat”, que significa “suor” em português.
  • 24
    No original: “Maybe it just had to do with being in that specific body, a body so different from everyone else’s at school” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 53).
  • 25
    Fati, Fatty” seria algo como “Fati, a gorda”, em português.
  • 26
    No original: “When I got up the courage to look down on her, I made a point of flaunting my thinness – the only desirable thing about my body – over her tendency toward chubby. People could make up their nicknames, but I made sure no one would ever call me Fati, Fatty” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 55).
  • 27
    O debate teórico do corpo feminino negro como sendo a/o/outra/o da/o outra/o já havia sido abordado, antes de Kilomba (2019)KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., por Gayatri C. Spivak e Chandra Talpade Mohanty nos anos de 1980, sendo posteriormente retomado com a noção do corpo duplamente colonizado na crítica pós-colonial de Edward Said, Ella Shohat e Anne Fausto-Sterling, ao tratar do corpo negro violado e explorado de Sarah Baartman, a Venus Hotentote.
  • 28
    No original: “my body found other ways to purge; it learned how to punish itself” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 61).
  • 29
    No original: “I am struck by the clarity of all things. I see colors more brightly, briefly. I understand. Sometimes the enemy who looks like you is but a preparation for the enemy who is you. The violence directed inside mitigates the violence that comes from outside. It prepares you, creates calluses, fills holes” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 63).
  • 30
    No original: “my body has failed me again. Though I have buffeted it, it will not conform” (THOMPSON-SPIRES, 2019THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People. Nova York: 37Ink Atria, 2019., p. 63).

References

  • ANDERSON, Benedict. Imagined Communities Londres: Verso, 1983.
  • COATES, Ta Nehisi. Prefácio. In: MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 7-19.
  • COLEMAN, Tyrese L. Nafissa Thompson-Spires Is Taking Black Literature in a Whole New Direction. Electric Lit, 08 jan. 2018. Disponível em: https://electricliterature.com/nafissa-thompson-spires-is-taking-black-literature-in-a-whole-new-direction/ Acesso em: 01 jun. 2020.
    » https://electricliterature.com/nafissa-thompson-spires-is-taking-black-literature-in-a-whole-new-direction/
  • COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Tradução de Juliana de Castro Galvão e Revisão de Joaze Bernardino-Costa. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan.-abr., 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006
  • COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.
  • DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Editora Lacerda, 1999.
  • EVANS, Mari. Black Women Writers Londres: Pluto, 1985.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • GREEN, Lisa J. African American English: A Linguistic Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Tradução e Revisão de Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez., 1997.
  • HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
  • HENDERSON, Mae Gwendolyn. Speaking in Tongues: Dialogics, Dialectics, and the Black Woman Writer’s Literary Tradition. In: NAPIER, Winston. African American Literary Theory: A Reader. Nova York: New York University, 2000. p. 348-368.
  • HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
  • KAUL, Greta. Seven days in Minneapolis: a timeline of what we know about the death of George Floyd and its aftermath. MinnPost, Minneapolis, 29 mai 2020. Disponível em: https://www.minnpost.com/metro/2020/05/what-we-know-about-the-events-surrounding-george-floyds-death-and-its-aftermath-a-timeline/ Acesso em: 03 jun. 2020.
    » https://www.minnpost.com/metro/2020/05/what-we-know-about-the-events-surrounding-george-floyds-death-and-its-aftermath-a-timeline/
  • KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
  • LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
  • LUCKY, Crystal J. African American Women Writers and the Short Story. In: MITCHELL, Angelyn; TAYLOR, Danille K. (Orgs.). The Cambridge Companion to African American Women’s Literature Nova York: Cambridge University Press, 2009. p. 245-261.
  • MORRISON, Toni. A origem dos outros: seis ensaios sobre racismo e literatura. Tradução de Fernanda Abreu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, 1983.
  • THOMPSON-SPIRES, Nafissa. Heads of the Colored People Nova York: 37Ink Atria, 2019.
  • UNKELBACH, Katharina. The Historical Development of the Terms “Colored”, “Negro”, “Black” and “African-American” Munich: Grin Verlag, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2020
  • Aceito
    31 Ago 2020
Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Bloco B- 405, CEP: 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil, Tel.: (48) 37219455 / (48) 3721-9819 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ilha@cce.ufsc.br