Open-access HORROR BIOMÓRFICO: O CORPO GÓTICO NA OBRA DE J. G. BALLARD

BIOMORPHIC HORROR: THE GOTHIC BODY IN THE WORK OF J. G. BALLARD

Resumo

Com esse artigo, gostaríamos de ilustrar como o corpo e suas extensões tecnológicas são concebidas na obra de ficção científica do autor inglês J. G. Ballard. Para tanto, iremos analisar duas de suas principais obras: The Atrocity Exhibition (2014) e Crash (2007). Nossa hipótese de leitura é a de que, no alvorecer do neoliberalismo (período que Jameson se presta a chamar também de Capitalismo Tardio), Ballard (de)compõe um tipo de discurso corpóreo destinado a construir um corpo gótico – um corpo que se desviaria das idealizações de integração aos circuitos tecnológicos contemporâneos. Como, através de circuitos que passam pela morte, a tecnologia, o prazer e a espetacularidade, Ballard seria capaz de conceber tal corpo?

Palavras-chave
J. G. Ballard; Gótico; Baudrillard; Tecnologia; Body Horror

Abstract

With this article, we would like to illustrate how the body and its technological extensions are conceived in the science fiction work of the English author J. G. Ballard. To do so, we will analyze two of his main works: The Atrocity Exhibition (2014) and Crash (2007). Our reading hypothesis is that, at the dawn of neoliberalism (a period that Jameson also calls Late Capitalism), Ballard (de)composes a type of corporeal discourse destined to construct a gothic body – a body that would deviate from the idealizations of integration into contemporary technological circuits. How, through circuits that involve death, technology, pleasure and spectacularity, would Ballard be able to conceive such a body?

Key words
J. G. Ballard; Gothic; Baudrillard; Technology; Body Horror

Introdução

Ao fazer o levantamento sobre o início do neoliberalismo em sua coletânea de ensaios Simulacros e Simulações (1991), Baudrillard dedica um capítulo inteiramente ao livro Crash, de J. G. Ballard. No ensaio, Baudrillard defende a ideia de que

Crash é o primeiro grande romance do universo da simulação, aquele com que todos teremos de nos haver a partir de agora — universo assimbólico mas que, por uma espécie de voltar do avesso da sua substância mass-mediatizada (néon, concreto, carro, mecânica erótica), aparece como se fosse percorrido por uma intensa força iniciática.

(Baudrillard, 1991, p. 149)

Para Baudrillard, o universo do capitalismo tardio (como o chama Jameson (1992) e, portanto, do neoliberalismo, é inteiramente composto por simulacros, imagens e tipos de discurso que indeterminam indefinidamente a diferença entre o verdadeiro e o falso, o original e a cópia, o real e o virtual. Tal confusão seria tamanha que, ao fim, a própria ideia de realidade estaria posta em xeque, esfumaçar-se-ia: “as diferenças evaporam dentro da in-diferença das simulações; o outro colapsa no mesmo” (Botting, 2008, p. 10, tradução minha). Como veremos, afirmar, portanto, que Crash pertence ao universo da simulação é afirmar que o romance confunde as barreiras entre aquilo que pode ser considerado o corpo orgânico e o corpo inorgânico, entre o corpo molhado do humano e o corpo seco da máquina, bem como entre aquilo que pode ser considerado o espaço interior da mente e o espaço exterior do corpo. Essa será uma leitura central neste artigo, na medida em que entendemos, junto com Fisher (2013), que é justamente essa confusão de barreiras entre o inorgânico e o orgânico, entre o inumano e o humano, entre o dentro e o fora, uma das principais características do gótico.

É nesse ponto que encontramos a obra de Ballard. Segundo Pringle (1979), os textos do autor sci-fi inglês podem ser divididos em três segmentos: Um primeiro, que compreende sua série de romances catastróficos; um segundo, que compreende seus romances mais experimentais, que lidam principalmente com paisagens interiores; e um terceiro, que apresenta características mais românticas e normativas em relação aos outros dois1. As obras que analisaremos neste artigo pertencem a sua segunda fase, e mais precisamente a seu momento mais dark: The Atrocity Exhibition (1969) e Crash (1973).

Neste artigo, pretendemos analisar como Ballard concebe o corpo humano em suas obras, mirando precisamente na ideia de que tal (de)composição tem como fim a formação de um “corpo gótico”, característica que pertenceria de maneira inerente ao sujeito ocidental contemporâneo. A linha de leitura que iremos propor neste artigo parte da ideia da qual Ballard entende que isto que chamamos de corpo gótico é um resíduo indesejado, porém inevitável, da interação entre os discursos positivo-tecnocráticos e as superfícies corpo humano-tecnologia. Para Reyes, “[...] o corpo é endêmico ao discurso gótico em várias de suas encarnações atuais e, embora nem sempre seja o único objeto de interesse, coloca questões importantes sobre a natureza da existência humana [...] (2014, p.27). É, portanto, através do tropos do corpo (e dos discursos que o sustentem), que iremos defender a ideia de que as obras citadas de Ballard são um curioso exemplo do gênero gótico em um mundo tecnologicamente dominado.

Outra concepção importante do gótico para nós virá de Mark Fisher, mais precisamente sua ideia de materialismo gótico. Primeiro porque, como defende Fisher, o materialismo gótico “é uma tentativa deliberada de retirar o Gótico de tudo aquilo que é sobrenatural, etéreo ou de outro-mundo” (Fisher, 2013, p.2, tradução minha). Tal leitura histórica é uma ferramenta funcional para enxergarmos a relação entre o capitalismo tardio e o discurso gótico, (para Deleuze e Guattari, por exemplo, “o capital é trabalho morto que como um vampiro2 se reanima sugando o trabalho vivo e quanto mais o suga mais forte se torna” (2011, p.56) principalmente aquele construído pela literatura. E segundo porque o materialismo gótico de Fisher entende que o regime de corpos humanos no capitalismo tardio está intimamente associado à produção e às agências de corpos não humanos, inorgânicos e maquínicos. Como afirma Haraway,

As máquinas do final do sec. XX tornaram completamente ambígua a diferença entre o natural e o artificial entre a mente e o corpo, aquilo que se autocria e aquilo que é extremamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.

(Haraway, 2000, p. 46)

Assim, o sistema do capitalismo tardio, como queria Baudrillard ao associá-lo à ideia de simulação, indeterminaria indefinidamente a relação entre o vivo e o morto, o corpo orgânico e o inorgânico. Tal noção de que o corpo humano é constantemente assombrado e reformulado pelo seu duplo maquínico-inorgânico nos aproxima também das ideias de Baudrillard a respeito da profilaxia e virulência presente em nosso sistema. Nessas duas obras de Ballard, podemos entender que a tecnologia, seguindo a interpretação de Baudrillard, pode ser concebida como um tipo de profilaxia gerada pela modernidade. Para o filósofo francês, a modernidade gera um tipo de hiperimunidade destinada à eliminação de toda a intervenção do outro (Baudrillard, 2008). Um tipo de transparência excessiva e lisa, na qual todo e qualquer outro seja absorvido pelo mesmo. Paradoxalmente, tal profilaxia é ela mesma a causa principal das maiores "maldades" e fantasmas que atormentam a realidade contemporânea. Assim, “Nossa sociedade se empenha, então, em fazer com que tudo vá bem, que a cada necessidade corresponda uma tecnologia. Nesse sentido, toda tecnologia está do lado do bem, isto é, da realização de um desejo geral, de um estado de coisas unificado” (Baudrillard, 2001, p. 36).

No entanto, tal unificação é ilusória, pois é a perseguição dela mesma que gera sua própria destruição, sua virulência. Como exemplo de virulência, Baudrillard (2008) propõe que a aids e o Câncer seriam doenças inerentemente ligadas ao nosso sistema, por ele produzidas (a primeira como uma resposta ao excesso de regulamentos sexuais e a segunda aos excessos de interações do corpo humano com redes de tecnologias inorgânicas essenciais para nosso sistema, a exemplo dos raios X)3. Quanto maior a necessidade de controle, maior a necessidade de transgressão. Botting (2008) nos apresenta uma ideia semelhante a respeito do gótico. Seguindo a noção foucaultiana de que desde o iluminismo a modernidade está (a)fundada em dualidades irreconciliáveis, propõe que, paradoxalmente, foi durante tal período que as narrativas Góticas encontraram um território fértil para seu nascimento. Afirma o autor:

A duplicidade apega-se à modernidade: se se inventa as liberdades, também produzem-se uma série de mecanismos disciplinares; se se procura iluminar, também evocam-se reinos de escuridão para penetrar a iluminação; se se realiza um espírito de progresso humano, também imaginam-se espectros de regressão.

(Botting, 2008, p. 9; tradução minha)

Assim, a ideia da tecnologia como uma forma profilática fica clara na obra do autor de sci-fi inglês em um comentário que Ballard realiza numa adaptação televisiva que a BBC realizou de Crash nos anos de 1970: "Se o homem no carro é a chave para o século XX, a batida de carro é seu mais significativo trauma" (Harely, 1970). Essa será uma linha de leitura crucial para nós neste artigo. Ballard compreende de maneira profunda a relação entre certas tecnologias, essenciais e profiláticas para o ocidente contemporâneo (o carro, a mídia e os suportes de comunicação em massa no geral), e uma certa virulência e violência por elas liberada. A tal violência, a tal tipo de resíduo fantasmático produzido pelas tecnologias contemporâneas, portanto, daremos o nome de corpo gótico. Ou seja, uma noção corpórea que, ao contrário da extrema profilaxia pregada pelos discursos positivos tecnocráticos, que teriam como destino ideal a produção de um corpo totalmente integrado ao bem e às suas tecnologias de maneira limpa, desembocaria na verdade em um tipo de corpo inumano, muito mais próximo àqueles produzidos nas narrativas de recorte gótico e de horror, como no caso daquelas associadas ao movimento do cinema do body horror.

Para compreendermos como exatamente podemos traçar tais linhas de associação, gostaria de começar com uma tentativa de rastrear em qual momento exatamente Ballard passa a se interessar por essa interação corpo-tecnologia e como, ao fim, o autor constrói um tipo de corpo transgressor e gótico, revelando a virulência inerente às próprias tecnologias extensamente utilizadas em nossa sociedade.

O inner space e o body horror

A ficção científica dos anos 1950-1960 é conhecida por incorporar aspectos heroicos do pós-guerra: viagens espaciais e explorações intergalácticas, para citar algumas imagens. Um exemplo clássico dessa linha de ficção é a série Star Trek, que tem início no alvorecer dos anos 1960. Diante de tais narrativas positivamente fantásticas, o recorte da obra de Ballard que nos dispusemos a analisar aqui apresenta um contraste radical.

De fato, o autor reconhecia que sua obra não era exatamente famosa entre os leitores de sci-fi mainstream dos anos 60. A explicação para essa falta de circulação estaria em muitas características de sua obra, que vão desde a sua composição formal, até os temas por ela assumidos. The Atrocity Exhibition, seu romance condensado, como a crítica se acostumou a chamá-lo, por exemplo, apresenta recursos formais que estariam muito mais próximos de obras complexas do modernismo europeu e norte-americano – como aquelas de Samuel Beckett ou Gertrude Stein – do que de obras do sci-fi mainstream da época (as conhecidas Pulp Novels etc.). No entanto, provavelmente o elemento seminal que distanciaria a obra de Ballard de um certo mainstream da ficção científica seriam os temas aos quais o autor estaria interessado em se debruçar.

Temos uma importante pista a esse respeito em um ensaio que Ballard publicou na revista de sci-fi inglesa New Worlds no ano de 1962, Which Way to Inner Space? (Ballard, 2023). Neste texto, Ballard se posiciona a respeito dos rumos que sua ficção tomaria dali em diante. Para o autor, a ficção científica estaria fadada a repetir interminavelmente o tropos da viagem espacial se continuasse a ignorar os avanços tecnológicos presentes na sociedade contemporânea. “Em primeiro lugar, acho que a ficção científica deveria virar as costas ao espaço, às viagens interestelares, às formas de vida extraterrestres, às guerras galácticas e à sobreposição destas ideias que se espalha pelas margens de nove décimos das revistas de sci-fi” (Ballard, 2023, p. 30). A saída que Ballard apresenta àquilo que ele chama de outer space, ou seja, o espaço produzido pelas ficções interessadas pelas viagens interestelares, seria o inner space.

Para Ballard, o inner space seria justamente aquele espaço aberto pelos desenvolvimentos das ciências e das tecnologias contemporâneas, notadamente a psicanálise e as tecnologias midiáticas e dos aparatos médicos, respectivamente:

Gostaria de ver mais ideias psicoliterárias, mais conceitos metabiológicos e metaquímicos, sistemas de tempo privados, psicologias sintéticas e espaços-tempos, mais meio-mundos remotos e sombrios que se vislumbram nas pinturas de esquizofrênicos, em suma, uma completa poesia especulativa e fantasia da ciência.

(BALLARD, 2023, p. 32; tradução minha).

Como afirma o autor, ainda nesse ensaio, “Os maiores desenvolvimentos do futuro imediato ocorrerão, não na Lua ou em Marte, mas na Terra, e é o inner space, e não o exterior, que precisa ser explorado. O único planeta verdadeiramente alienígena é a Terra.” (BALLARD, 2023, p. 33; tradução minha). O conceito de inner space viria, portanto, de uma certa leitura irônica e às avessas que Ballard realizava do estado da ficção científica de então. O espaço a ser explorado, aquele que verdadeiramente o interessava, não é o interestelar, mas o espaço interno e psicológico do humano, “onde o mundo interior da mente e o mundo exterior da realidade se encontram e se fundem” (BALLARD, 2023, p. 34; tradução minha).

Ballard, parece-nos, tenta acenar para a importância cada vez maior que o espaço interno, não só o da mente (psicoliterários), mas também aquele dos processos dos nossos próprios corpos, metabiológicos e metaquímicos, assumiria no imaginário ocidental em meio ao cenário do pós-guerra. De fato, seu prognóstico pareceu apenas se confirmar em um mundo dominado cada vez mais pela “aleatoriedade do DNA”, como nos diz Baudrillard, tentando condensar em uma expressão o controle cada vez mais monstruoso dos diversos programas (tecnobiológicos e algorítmicos) sobre nossa sociedade (BAUDRILLARD, 1996, p. 9).

Assim, é importante termos em mente que, diferente do programa de um certo modernismo literário, ao qual podemos associar o desenvolvimento da técnica do fluxo de consciência, o programa literário de Ballard, ao menos nas duas obras que nos dispusemos a analisar, encontra no corpo e nas técnicas de construção do corpo humano um elemento central. O corpo, tanto quanto a mente, seria uma plataforma de interação definitiva na contemporaneidade e nas tecnologias que nela se fariam centrais. Não à toa, por exemplo, em The Atrocity Exhibition (que daqui em diante tratarei por A.E.), a indústria midiática e particularmente seu aspecto espetacularizante assumem um papel ímpar.

A obra é ambientada em um hospital psiquiátrico4 e tem como alguns de seus personagens centrais dois médicos, Dr. Talbot e Dr. Nathan, e suas amantes, Catherine Austin e Karen Novotny. Como indica o título, a narrativa funcionaria como uma espécie de exibição de atrocidades, colocando o leitor diante das maiores tragédias que estavam ocorrendo ou que haviam ocorrido num passado imediatamente anterior à composição do texto. Assim, traumas relacionados à Segunda Guerra Mundial ou à Guerra do Vietnã são constantemente reencenados ao longo da narrativa, bem como as mortes de estrelas do cinema ou da cultura popular no geral, principalmente aquelas que ocorreram de maneira não natural, como as de James Dean, Albert Camus, Jayne Mansfield, Buddy Holly, Marilyn Monroe e John Kennedy (todos, nessa lista, que não morreram em acidentes automobilísticos ou aéreos, foram assassinados ou cometerem suicídio).

Tal obra, conhecida dentro do panorama das obras do autor como uma composição complexa, apresenta, em seu método de estruturação, a influência marcante de William Burroughs (também ele um autor outsider do sci-fi anglófono) e principalmente de seu método de composição em cut-ups5. Tal método consistiria na decupagem, no recorte e na posterior recomposição de um dado texto, criando assim uma narrativa que não possuiria uma linearidade submetida ao tempo factual, mas ao tempo psicológico, de ordem interna e aleatória. A personagem de Talbot por exemplo, no quadro narrativo, é a encarnação dessa ausência de linearidade factual, uma vez que morre em diversos capítulos (algumas vezes assassinado, outras vítima de seus próprios experimentos), mas sempre retorna à narrativa com nomes diversos, como uma espécie de trauma fantasmático impossível de ser completamente metabolizado pelo romance6. Assim, ao fazer morrer e retornar constantemente à narrativa tal personagem, Ballard parece acenar para a ideia de que a causalidade é apenas um fenômeno produzido mentalmente. Assim, não sem razão, o texto se passa em um hospital psiquiátrico, local habitado por pacientes que teoricamente não saberiam distinguir aquilo que é ou não real.7

Talbot é, de certa maneira, a epítome do cientista maluco, tropos explorado a torto e a direito no imaginário gótico (o Dr. Frankenstein de Mary Shelley, por exemplo). Figura marcada pelos horrores de uma época, essa personagem parece representar o ideal da boa política do pós-guerra às avessas: em um dos trechos da narrativa, vemos Talbot criando um plano para dar início a uma terceira guerra mundial, por exemplo. Tudo aquilo que se esperaria do modelo de um bom cidadão à época, e principalmente do American way of life, é estranhamente assimilado por Talbot. A nosso ver, a personagem seria uma representação caricatural deste tipo de modelo, a um só tempo excessivo e marcado pelos horrores de sua época. É quase como se Ballard nos dissesse que, exposto a tais atrocidades, seria impossível esperar de um humano um comportamento moralmente saudável.

Está ideia é melhor trabalhada no seguinte trecho do romance A.E.:

Horror Biomórfico. Com esforço, o Dr. Nathan desviou o olhar de Catherine Austin enquanto ela mexia nos dedos. Sem saber se ela o ouvia, ele continuou: “O problema de Travers é como lidar com a violência que perseguiu sua vida – não apenas a violência do acidente e do luto, ou os horrores da guerra, mas o horror biomórfico de nossa vida, nossos próprios corpos, a estranha geometria das posturas que assumimos. Travers percebeu finalmente que o verdadeiro significado destes atos de violência reside noutro lugar, naquilo que poderíamos designar como “a morte do afeto”. Considere todos os nossos prazeres mais reais e ternos – nas emoções da dor e da mutilação; no sexo como a arena perfeita, como um leito de cultura de pus estéril, para todas as verónicas das nossas próprias perversões, no voyeurismo e na auto-aversão, na nossa liberdade moral para perseguir as nossas próprias psicopatologias como um jogo, e na nossa poderes de abstração cada vez maiores. O que os nossos filhos devem temer não são os carros nas auto-estradas de amanhã, mas o nosso próprio prazer em calcular os parâmetros mais elegantes das suas mortes. A única maneira de estabelecermos contato uns com os outros é em termos de conceitualizações. A violência é a conceituação da dor. Da mesma forma, a psicopatologia é o sistema conceitual do sexo.'

(Ballard, 2014, p. 116, tradução minha)

Nesse trecho, retirado de um dos subcapítulos do A.E., Dr. Nathan pondera com a amante de Travers (uma das reincarnações de Talbot), Catherine Austin, os motivos que atormentam seu colega, e que posteriormente o levariam a assumir uma postura maníaca e paranoica ao longo da narrativa. Além dos traumas psicológicos criados por fenômenos de massa, como as guerras, interessa para nós aqui a ideia de que Travers enfrentaria aquilo que Dr. Nathan chama de “horror biomórfico”, ou seja, um horror que seria desperto a partir de nossos próprios corpos. Nessa perspectiva, a exibição de cenas truculentas pelos suportes midiáticos do período – como a morte de JFK, que na época foi televisionada – não seria exatamente absorvida de maneira pacífica e alienada, como se esperaria de um espectador integrado de maneira saudável ao circuito televisivo. Pelo contrário. Tais horrores seriam absorvidos pelo corpo do espectador de maneira reflexiva, e a possibilidade de que sua morte pudesse também ser um evento exposto pela televisão assombraria sua própria composição corporal.

Assim, o A.E. pode ser considerada uma narrativa que, à guisa da ideia de profilaxia e virulência proposta por Baudrillard, tenta lidar com os traumas não os omitindo, mas expondo-os ao máximo, acelerando-os de maneira vertiginosa e extremamente delirante, criando assim uma associação entre as tecnologias midiáticas que surgiam na sociedade dos anos de 1960 (marcadamente a televisão doméstica) e uma leitura psicológica da psique do pós-guerra. Lembremos de Botting: Ballard, a sua maneira, estaria lidando com os traumas causados por uma mídia crescentemente violenta, mas ao invés de interditá-los sob um peso moral incapaz de lidar com tais traumas, exagera-os8. Tal exagero, excesso, o aproximaria do discurso gótico: “o discurso gótico desenvolve horrores que falam com as ansiedades de seu tempo” (Reyes, 2014, p. 53).

O horror biomórfico, visto por essa lente, se aproximaria de maneira direta à ideia de Ballard do inner space. Ora, como vimos, tal instância se interessaria também pelos aspectos metabiológicos e metaquímicos dos corpos, ou seja, naquilo que poderia ser considerada a própria constituição de um corpo normal. Reyes, ao falar do clássico sci-fi gótico de H. G. Wells, a ilha do Doutor Moreau, reflete que os corpos góticos são justamente aqueles que colocam em xeque noções de normatividade corporal “porque produzem medo através da sua intersticialidade: são assustadores, porque recusam taxonomias humanas absolutas ou desestabilizam noções recebidas sobre o que constitui um corpo em situação “normal” ou socialmente inteligível.” (Reyes, 2014, p. 5). No caso de Ballard, expostos a tecnologias de comunicação que registrariam a morte corporal de maneira cada vez mais técnica e detalhada, como a televisão, estaríamos também nos expondo, de maneira indesejada, a violências que poderiam ser produzidas em nossos próprios corpos.

Um aspecto central do A.E., portanto, seria o uso das tecnologias contemporâneas e sua associação com os corpos, particularmente em como elas podem modificá-los. Ora, se é na medida em que a exposição ao assassínio e à mutilação corporal pela mídia que temos uma espécie de horror biomórfico, ou seja, um horror que passa a se instaurar na própria constituição interna de nossos corpos, entendemos que o tipo de corpo que Ballard pretende construir em seu texto é um corpo atormentado sempre já em si mesmo. O horror não viria de fora, de um medo instaurado a partir de um outro, mas sempre a partir de si mesmo, e em última instância da morte que habitaria em nossos próprios corpos, ou melhor, da absorção daquela imagem televisiva que nos expõe a mudança de um corpo vivo para um corpo morto.

Essa aproximação entre morte, tecnologia e mídia espetacular aproximaria a ideia do inner space ballardiano à noção de body horror, uma narrativa que segundo Reyes coloca “o corpo no centro da experiência gótica: torna-se um catalisador de mudanças excessivas, monstruosas e libertadoras, e um símbolo claustrofóbico da impossibilidade escapar da consciência encarnada” (2014, p.65). O body horror desponta como um gênero cinematográfico em meados dos anos de 1970, e está estreitamente associado à obra do diretor de cinema canadense David Cronenberg9. O que mais nos interessa no termo é a leitura proposta por Reyes de que ele funcionaria como um tipo de reação alérgica às tecnologias contemporâneas, como “um tipo de medo de sermos subsumidos por um sistema esmagadoramente poderoso como a comoditização, a tecnociência ou a hegemonia que transforma o corpo em um local grotesco de híbridos humanos-tecnológicos” (Reyes, 2014, p. 54).

Essa ideia nos é particularmente interessante, pois passamos a entender que o body horror é uma ramificação do gótico situada em uma sociedade tecnocêntrica. Como no A.E., vemos que o horror que emerge do próprio corpo é ele mesmo um reflexo dos usos da tecnologia, justamente aquilo que na introdução chamávamos de resíduo indesejado da profilaxia tecnológica. O horror biomórfico, portanto, pode ser considerado como um termo alternativo ao gênero gótico do body horror; um termo que, bem feitas as contas, ocorreria avant la lettre na obra de Ballard.

Ballard compreende, assim, de maneira profunda o tipo de horror que o uso das tecnologias contemporâneas (e, no caso do A.E., as tecnologias de comunicação) era capaz de despertar na própria constituição de nossos corpos. A interação entre as interfaces tecnologia-corpo humano, portanto, gerariam um tipo de desespero porque colocam “o foco na indeterminação e estranhamento do próprio corpo” (Reyes, 2014, p. 54). A interação tecnologia-corpo humano colocaria em dúvida os discursos de normatividade daquilo que o próprio corpo humano poderia ser, indeterminando e desestabilizando sua integridade na medida em que o coloca em contato com aquilo que existe de não-humano (e, portanto, de mal) na tecnologia, ou seja, sua própria inorganicidade. Como afirmamos mais acima, todo tipo de corpo desviante, de corpo monstruoso, é também ele um corpo gótico.

Todavia, no A.E., vemos um corpo gótico que de certa maneira teme pela mudança que ele pode causar a si mesmo diante da tecnologia, em Crash, romance de 1973, temos uma visão estrategicamente diferente.

A violência, o erotismo e a (de)composição do corpo

Se, da citação do A.E. demonstrada acima, podemos retirar a ideia de que o consumo de mídias que espetacularizam a morte produz o horror no próprio corpo, manufaturando assim um tipo de corpo gótico, um outro trecho dessa mesma citação pode ser utilizado para ilustrarmos o que se quer trabalhar nessa sessão: “O que os nossos filhos devem temer não são os carros nas autoestradas de amanhã, mas o nosso próprio prazer em calcular os parâmetros mais elegantes das suas mortes”. Novamente, o par profilaxia e virulência tecnológica se faz presente na obra de Ballard. Em si, a tecnologia pode não necessariamente representar um perigo para o corpo. Por outro lado, seus usos estariam sempre contaminados, no caso de certas tecnologias de transporte como o automóvel, pelo “nosso próprio prazer em calcular os parâmetros mais elegantes” de nossas próprias mortes. Se, como ilustramos acima, uma das características do corpo gótico na obra de Ballard é seu traço de body horror, gostaríamos de propor que tal noção também se estende àquilo que, dentro do gótico, Fisher se presta a chamar de flatline – ou seja, uma indistinção entre o corpo orgânico e o corpo inorgânico.

Tal ideia, que aparece de maneira seminal ao longo do A.E., será estendida no outro romance de Ballard que nos dispusemos a analisar aqui, Crash (1973). De fato, a relação entre as duas obras é evidenciada através de um capítulo chave do A.E., também ele chamado Crash. Nele, vemos o aparecimento do antagonista principal do romance de 1973, Vaughan. No romance de 1969, Vaughan, retratado como um paciente do Dr. Talbot, possui, como seu médico, uma clara obsessão pela conjunção formada pelo universo da mídia, do erotismo e da morte. Infere-se, inclusive, que foi Dr. Talbot quem o ajudou a escapar da instituição psiquiátrica. A partir de sua fuga, Vaughan aparece cada vez mais na narrativa do A.E., sempre associado a cenas de extrema violência.

A personagem de Vaughan, portanto, já pertencia ao universo ballardiano quando o autor compôs Crash e, em certo sentido, ele é o link com o romance de 1969 que nos permite entender que, como as ressureições de Talbot, tal personagem seria ela mesma um elemento traumático10, que constantemente reaparece nas narrativas ballardianas para representar o produto às avessas de uma sociedade contaminada pela violência. Em Crash, no entanto, não possuímos nenhuma pista a respeito desse passado de internações de Vaughan.

Com efeito, no primeiro encontro que a personagem principal, também chamada James Ballard,11 tem com Vaughan, ela o reconhece como o Doutor Robert Vaughan,

um antigo especialista em computação. Precursor de um novo estilo para os cientistas na TV, Vaughan combinara um alto grau de encanto pessoal – densos cabelos pretos emoldurando um rosto cheio de cicatrizes e um blusão de combate americano - com uma postura teatral agressiva e uma crença absoluta no seu assunto, a aplicação de técnicas computadorizadas no controle de todos os sistemas internacionais de tráfego.

(Ballard, 2007, p 101)

As verdadeiras intenções de Vaughan são, no entanto, rapidamente expostas pelo narrador, o retirando de uma atmosfera docilizada que a imagem do “médico especialista” poderia nos suscitar: “Para Vaughan, o desastre de carro e sua própria sexualidade tinham celebrado seu casamento final” (Ballard, 2007, p. 14). E acrescenta, num parágrafo que para nós é aqui essencial:

Vaughan me expôs todas as suas obsessões com o misterioso erotismo das lesões: a perversa lógica de painéis de instrumentos encharcados de sangue, cintos de segurança lambuzados de excrementos, quebra-sóis cobertos de tecido cerebral. Para Vaughan, cada desastre de carro desencadeava um tremor de excitação, nas complexas geometrias de um paralamas amassado, nas inesperadas variações de grades esmagadas de radiador, na grotesca projeção de um painel em direção ao ventre do motorista, como num ato programado de felação mecânica. O tempo e o espaço íntimos de um ser humano único tinham sido fossilizados para sempre naquela teia de lâminas de cromo e vidro esmigalhado.

(Ballard, 2007, p.16-17)

Nesse trecho, além de encontrarmos uma explícita aproximação entre os projetos expostos pelo Dr. Talbot no A.E., temos o desdobramento entre os elementos do corpo, do desastre automobilístico e o binômio erotismo/sexualidade. Para Baudrillard, em Crash não existiria uma unidade ideal entre tecnologia e corpo, como gostariam, por exemplo, as teorias clássicas da cibernética ou as de McLuhan sobre as mídias como extensões dos sentidos humanos. “De Marx a McLuhan, a mesma visão instrumentalista das máquinas e da linguagem: são intermediários, prolongamentos, media-mediadores de uma natureza idealmente destinada a tornar-se o corpo orgânico do homem. Nesta perspectiva “racional”, o próprio corpo é apenas um medium” (1991, p. 139).

Para o filósofo francês, teríamos em Crash uma visão muito diferente dessa interface corpo-tecnologia lisa e profilática, uma que passaria antes por uma

[...] desconstrução mortal do corpo — já não medium funcional, mas extensão de morte — desmembramento e fragmentação, não na ilusão pejorativa de uma unidade perdida do sujeito (que é ainda o horizonte da psicanálise), mas na visão explosiva de um corpo entregue às «feridas simbólicas», de um corpo confundido com a tecnologia na sua dimensão de violação e de violência, na cirurgia selvagem e contínua que ela exerce: incisões, excisões, escarificações, caracteres do corpo, cuja chaga e gozo «sexuais» não são senão um caso particular (e a servidão maquinal no trabalho, a caricatura pacificada) — um corpo sem órgãos nem gozo de órgão, inteiramente submetido à marca, ao corte, à cicatriz técnica — sob o signo resplandecente de uma sexualidade sem referencial e sem limites.

(Baudrillard, 1991, p. 139-140)

Subvertendo a fórmula de McLuhan dos meios tecnológicos como extensões do corpo humano, Baudrillard propõe que em Crash teríamos um movimento diametralmente oposto. Tal “extensão de morte” ocorreria porque, diante do desastre automobilístico, o corpo humano não possuiria mais uma divisão clara entre aquilo que pertence ao seu limite epidérmico e o limite dos componentes maquínicos e inorgânicos que formam a lataria do carro. Segundo a citação de Ballard que trouxemos mais acima, seria nessa indeterminação que Vaughan encontraria seu prazer erótico. A esse respeito, por exemplo, o autor afirma em um famoso prefácio ao livro, “Crash é o primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia”. Tal aproximação entre erotismo, morte e tecnologia é extremamente importante para entendermos o que Ballard parece estar propondo, uma vez que possuiríamos aí um tipo de aliança monstruosa entre corpos humanos e inumanos.

A esse respeito, Mark Fisher possuí uma aproximação do gótico e de sua relação com o capitalismo tardio que é extremamente importante para nós:

Um dos conceitos cruciais do Materialismo Gótico – talvez o único mais crucial – é o da linha plana (flatline). O conceito de linha plana tem pelo menos um duplo sentido. Em primeiro lugar, indica um termo vernáculo para a leitura do Eletroencefalograma (EEG) que sinaliza morte cerebral; uma representação, nos monitores digitais, de nada: nenhuma atividade. Para o Materialismo Gótico, porém, a linha plana é onde tudo acontece, o Outro Lado, atrás ou além das telas (da subjetividade), o local do processo primário onde a identidade é produzida (e desmantelada): a “linha de Fora”, como queria Deleuze. Ela delineia não uma linha de morte, mas um continuum que envolve, mas em última análise vai além, tanto a morte quanto a vida.

Em segundo lugar, a linha plana designa uma linha imanentizante: uma “linha de variação aerodinâmica, espiralada, ziguezagueante, serpenteante e febril “uma linha de direção variável que não descreve nenhum contorno e não delimita nenhuma forma [...]” No cyberpunk, isso emerge como uma recusa espinosista de distinguir a natureza da cultura, lembrando imediatamente uma das principais características do gótico reanimado pelo cinema expressionista alemão: a famosa continuidade do inorgânico no orgânico apresentada em filmes como O Gabinete do Dr. Caligari em que “substâncias naturais e criações artificiais, candelabros e árvores, turbina e sol não são mais diferentes.”

(Fisher, 2013, p. 27-28, tradução minha)

Um corpo flatline, ou seja, aquele em que não haveria mais uma distinção clara entre os materiais orgânicos do corpo humano e os inorgânicos que compõem o carro. Tal corpo orbitaria o espectro daquilo que mais acima trabalhamos como um corpo gótico, ou seja, aquele tipo de corpo no qual haveríamos não uma integração pacífica entre tecnologia e corpo, mas antes uma fusão, uma total confusão entre ambos, que teria como plano de fundo o desastre automobilístico e a mutilação corporal. Assim, acreditamos que Crash nos permita enxergar o verdadeiro destino dos corpos no capitalismo tardio: um regime que produz corpos não de maneira idealizada e integrada, mas antes através da violência e da mutilação do desastre.

Conclusão

Ao longo desse texto, tentamos mostrar como as obras do autor de sci-fi inglês J. G. Ballard lindam com o espaço assumido pelo corpo humano no ambiente do capitalismo tardio e de suas tecnologias. Ao contrário da visão proposta pelo discurso tecnocrático normativo (aqui chamado de profilático), em que corpo e tecnologia são duas entidades integradas de maneira equilibrada e harmônica, vimos que em Ballard o tipo de corpo que reina a partir de tal integração é o corpo gótico (apresentado aqui com alguns desdobramentos, como aquilo que chamamos mais ao fim também de corpo flatline).

Tal percepção para nós é importante porque fugimos assim do binômio forma-função, que como propõe Baudrillard (1991) seria um paradigma do sci-fi clássico. Em Ballard, no entanto, não é apresentada uma resolução, uma solução para o problema tecnologia-corpo humano. A técnica, na verdade, nunca revelaria seu verdadeiro propósito “senão no acidente” (Baudrillard, 1991, p. 140). Diante do uso das tecnologias aqui apresentadas, não existiria um uso pacifico e remido de ameaças que poderiam afetar a própria caracterização do corpo humano enquanto algo “normal”. Colocar-se em contato com essas tecnologias é necessariamente transgredir certas barreiras corporais estabelecidas.

Essa seria, a nosso ver, uma das maiores contribuições de Ballard para o discurso gótico. Se, diante de uma certa profilaxia, a tecnologia no capitalismo tardio é apresentada como uma forma de salvação e de redenção dos próprios limites formais dos humanos, o autor inglês nos mostraria o outro lado da moeda, sua face virulenta. A técnica não é salvação do ser ocidental. Ela é, antes, a própria violência que espreita o discurso ocidental de dentro de seu próprio corpo.

Notas

  • 1
    Interessa saber que a cada uma das fases corresponde um material elementar básico. A segunda fase, por exemplo, corresponderia ao concreto, pilar para as construções das cidades etc: um material produzido artificialmente, destinado a simular as rochas produzidas in natura.
  • 2
    O vampiro, claro, é uma imagem que pertence de maneira já estabelecida ao imaginário gótico, e sempre retorna como uma metáfora para a operação efetuada pelo capitalismo. Já em Marx, temos a presença de tal imagem ao longo do Capital: “Capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas sugando trabalho vivo, e quanto mais ele suga, mais ele vive.” (MARX, 2013, p. 307). MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • 3
    É necessário que leiamos o argumento de Baudrillard com extrema cautela aqui. Ainda que o autor possua uma leitura sóbria em relação às consequências do capitalismo tardio para a sociedade em algumas esferas (particularmente seus desdobramentos dentro do ciberuniverso), o filósofo é, hoje, lembrado como alguém que também propagava preconceitos de ordem sexual e homoafetiva. Para Paul Preciado, por exemplo, o livro A transparência do mal é um atestado da transfobia de Baudrillard, na medida em que o autor associa a transsexualidade a um tipo de “castigo” enfrentado pelas sociedades capitalistas em função dos supostos “desvios” sexuais que essas apresentam, usando um argumento semelhante a esse proposto em relação à aids/HIV. Assim, é sob essa lente que o comentário de Baudrillard a respeito da aids deve ser enquadrado: sob o estigma de um preconceito e de uma visão ambivalente. Vale lembrar, claro, que o governo Reagan, tendo início quase concomitante com a proliferação em massa do vírus do HIV, possuía de fato uma resposta, ainda que não oficial (pois Reagan foi omisso à pandemia do HIV até seu quinto ano de mandato, e mesmo quando a assume é sob a ótica da homofobia), relativamente austera em relação à abertura e experimentação sexuais que vinham sendo experienciadas desde o início dos anos 1960. Sua posição se tornaria reflexo no resto do mundo, em que de fato veríamos um aumento maior da austeridade sexual e política, marcada por um retorno a valores da família heteronormativa tradicional, que por sua vez estariam geralmente associados a governos no espectro da direita associados a uma “onda de neoconservadores”. Dito isso, é interessante repararmos, na verdade, como Baudrillard é vítima de seu próprio argumento. Assim, é ao tentar criticar a virulência da sociedade capitalista, que o autor Francês se vê emaranhada naquilo que essa possui de mais vil e tóxico: o preconceito e um ponto de vista que, ao fim e ao cabo, corre sempre o risco de permanecer raso. É um pouco por isso, inclusive, que se opta por manter o argumento de Baudrillard. O argumento do filósofo é, ele mesmo, fruto da virulência de um sistema que produz o preconceito como programa. Visto através desse ângulo, seria em Paul Preciado que encontraríamos uma leitura satisfatória do avatar macho-filosófico assumido por Baudrillard e o momento histórico ao qual pertence o livro A transparência do mal. Para o filósofo espanhol, entidades como nosso corpo ou as doenças que o contaminam, a exemplo da aids, “[...] de um ponto de vista filosófico possuem uma consistência ontológica estritamente necrobiopolítica e performativa, ou seja, eles existem através do conjunto de práticas políticas, culturais, epistemológicas, científicas, farmacológicas, econômicas, e midiáticas que os nomeiam e o representam” (ibidem, p. 147). Acredito que essa seria uma maneira mais produtiva de enxergar a virologia proposta por Baudrillard (e sua própria atuação como filósofo) a respeito de doenças como a aids: expondo que seria impossível dissociá-las de uma sociedade ela mesma embebida em preconceitos e estruturas necrobiopolíticas, como propõe Preciado. PRECIADO, Paul. Dysphoria Mundi: O som do mundo desmoronando. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
  • 4
    Tal cenário, vale dizer, é praxe do imaginário gótico, como no caso do Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, ou mesmo de algumas narrativas de Edgar Allan Poe. SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o Prometeu moderno. Tradução de André Campos. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2014.
  • 5
    Para saber mais a respeito de tal método, conferir o livro de Burroughs. William S.; Gyson, Brion. The Third Mind. Nova York: A Seaver Book / Viking Press, 1978.
  • 6
    Dentre os vários nomes que a personagem assume, além de Talbot, temos Travers, Talbert, Trabert, Tallis, Travis; praticamente um nome por capítulo. A morte, no romance, é conceitual, não linear. existe um ponto importante aí. O corpo torna-se, dessa maneira, rapidamente descartável. como um componente tecnológico, por exemplo. Uma vez danificado, pode ser facilmente substituído por outro. A morte, em Ballard, ocorre como um evento simulado. Nessa perspectiva, vida e morte tornam-se conceitos voláteis. Não existe uma clara diferença entre um e outro.
  • 7
    Em dado momento, a própria narrativa nos induz a duvidar da sanidade de Talbot, por exemplo.
  • 8
    Sobre a guerra do Vietinã, por exemplo, temos o seguinte trecho no AE: “Longe de nos repelir, nos atrai, em virtude de seu complexo de atos poliperversos” (2014, p. 119).
  • 9
    Lembremos que o diretor, durante os anos de 1990, irá fazer uma adaptação de Crash. Existe, portanto, um link direto entre a obra de Ballard e a de Cronenberg. Se podemos usar a noção do body horror como uma chave de leitura para a obra do último, faz sentido que possamos aplicar a mesma chave para as obras do primeiro.
  • 10
    A relação entre trauma e inconsciente é central na obra de Freud, embora sua conceituação sofra alterações substanciais ao longo do tempo. Nos Estudos sobre a histeria (1996 a), escritos com Breuer, o trauma é entendido como um evento externo que, por não ser adequadamente elaborado no momento de sua ocorrência, retorna de forma sintomática — nesse caso, ainda se vincula parcialmente à memória consciente. Contudo, a partir de Além do princípio do prazer (1996 b), Freud reformula essa noção, entendendo o trauma como um excesso de excitação que rompe a barreira protetora do aparelho psíquico e se inscreve pelo inconsciente. Ele afirma: “A essência do traumatismo reside na ausência de qualquer preparação por parte do aparelho psíquico para tal afluxo de excitação, isto é, na sua incapacidade para dominá-lo” (FREUD, 1920, p. 30). Nesse sentido, a marca traumática excede a consciência e tende a se repetir de forma compulsiva, revelando sua inscrição inconsciente. FREUD, Sigmund; BREUER, Josef. Estudos sobre a histeria (1895). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 2. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996 a. FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996 b.
  • 11
    Uma interessante diferença entre o A.E. e o Crash é sua configuração narrativa. Se, no primeiro, como já dissemos, temos um romance de recorte mais experimental (com uma narração impessoal, inclusive), no segundo temos um retorno ao formato romanesco tradicional, com um leve tom de autoficção. Tais elementos nos são apontados tanto pelo nome de sua personagem principal quanto pelo fato de que a primeira esposa de Ballard foi ela mesma vítima de um acidente automobilístico.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS

Os dados de pesquisa estão disponíveis no corpo do documento.

REFERÊNCIAS

  • BALLARD, J. G. Crash. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • BALLARD, J. G. Selected Nonfiction, 1962–2007. London: MIT press, 2023.
  • BALLARD, J. G. The Atrocity Exhibition London: Fourth Estate, 2014.
  • BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Trad. Estela dos Santos Abreu. Campinas: Papirus, 1996.
  • BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. Trad. Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1996.
  • BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
  • BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
  • BOTTING, Fred. The Limits of Horror. Manchester: Manchester University Press, 2008.
  • COKLISS, Harely. The Atrocity Exhibition (JG Ballard and the Motorcar) YouTube, 30 de jan. de 1970. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QRxpZ142lkI&list=LL&index=4. Acesso em: 28/04/24.
    » https://www.youtube.com/watch?v=QRxpZ142lkI&list=LL&index=4
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011.
  • FISHER, Mark. Flatline Constructs New York: Ex Military press, 2013.
  • HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
  • JAMESON, Fredric. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio São Paulo: Editora Ática, 1992.
  • PRINGLE, David. Earth is the Alien Planet: J. G. Ballard’s Four-Dimensional Nightmare. San Bernardino: Borgo P, 1979.
  • REYES, Xavier. Body Gothic: Corporeal Transgression in Contemporary Literature and Horror Film. Cardiff: University of Wales Press, 2014.

Editado por

  • Editora Responsável:
    Magali Sperling Beck

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    17 Jan 2025
  • Aceito
    01 Abr 2025
location_on
Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Bloco B- 405, CEP: 88040-900, Florianópolis, SC, Brasil, Tel.: (48) 37219455 / (48) 3721-9819 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ilha@cce.ufsc.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro