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Comercialização por agricultores familiares em feiras municipais: quantificação, participação, e localização no estado de Goiás

Family farmers commercialization in farmers' markets: quantification, participation, and location in the state of Goiás

Comercialización por campesinos en feiras municipales: cuantificación, participación, y ubicación en el estado de Goiás

Resumo:

O objetivo deste estudo é identificar a relevância das feiras municipais para a inserção comercial de agricultores familiares. A pesquisa, realizada em 201 municípios goianos, revela que 88% dos municípios estudados possuem feiras regulares. Destas, 67,16% contam com participação efetiva de agricultores familiares. Foram identificados clusters de municípios com maior presença de feiras da agricultura familiar.

Palavras-chave:
cadeias curtas; feira-livre; mercado; desenvolvimento local

Abstract:

This study aims to identify the importance of farmers' markets for family farmers. The survey carried out in 201 municipalities of the Brazilian state of Goiás reveals that 88% of the studied municipalities have regular farmers' markets. 67.16% of these markets have effective participation of family farmers. Clusters of municipalities with greater presence of farmers' markets were identified.

Keywords:
short supply chains; farmers' markets; marketing; local development

Resumen:

El objetivo de esta investigación es identificar la relevancia de las ferias municipales para la comercialización por campesinos. La encuesta, realizada en 201 municipios del Estado de Goiás, revela que el 88% de los municipios estudiados tienen ferias regulares. El 67,16% de las ferias cuentan con participación efectiva de agricultores familiares. Se identificaron clusters de municipios con mayor presencia de ferias de la agricultura familiar.

Palabras clave:
canales cortos; ferias libres; mercado; desarrollo local

1 INTRODUÇÃO

O fortalecimento do setor varejista, representado pelas grandes redes de supermercados, alterou a configuração do mercado agroalimentar e colocou tanto a indústria de alimentos quanto os agricultores em um papel secundário e com pouco poder de negociação (WILKINSON, 2002WILKINSON, John. Os gigantes da indústria alimentar entre a grande distribuição e os novos clusters a montante. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 18, p. 147-74, 2002. ). Dessa maneira, ao mesmo tempo em que as possibilidades de comercialização para os agricultores familiares se ampliam via mercados convencionais, essa modalidade de comercialização tem se mostrado excludente, pois demanda organização logística, padronização da qualidade e regularidade na oferta (WILKINSON, 2003WILKINSON, John. A agricultura familiar ante o novo padrão de competitividade do sistema agroalimentar na América Latina. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro v. 1, 2003.).

Por outro lado, surgem grandes oportunidades em outras modalidades de comercialização alternativas ao mercado convencional, e cada uma tem suas especificidades, riscos e potencialidades. Formas alternativas de comercialização como o comércio justo e a própria economia solidária podem incorrer nos mesmos problemas do sistema agroalimentar convencional, como a inserção de agentes e instituições alienígenas, perceptível no mercado que surgiu com o advento das certificações (SABOURIN, 2013SABOURIN, Eric. Comercialização dos produtos agrícolas e reciprocidade no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 5-33, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/259713930_Comercializacao_dos_produtos_agricolas_e_reciprocidade_no_Brasil. Acesso em: 7 mar. 2017.
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).

Para alguns pesquisadores, a inserção comercial dos agricultores de base familiar passa pela escolha dos circuitos de troca em que eles se inserem e, nessa perspectiva, tende a se afastar daqueles em que são tidos como meros fornecedores de mercadorias (CONTERATO et al., 2011CONTERATO, Marcelo Antônio; NIEDERLE, Paulo André; RADOMSKY, Guilherme; SCHNEIDER, Sérgio. Mercantilização e mercados : a construção da diversidade da agricultura na ruralidade contemporânea. In: SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. Os atores do desenvolvimento rural: perspectivas teóricas e práticas sociais. 1. ed. Porto Alegre: editora da UFRGS, 2011. Disponível em http://www.ufrgs.br/pgdr/publicacoes/producaotextual/marcelo-conterato/conterato-marcelo-niederle-paulo-andre-radomsky-guilherme-f-w-schneider-s-mercantilizacao-e-mercados-a-construcao-da-diversidade-da-agricultura-na-ruralidade-contemporanea-in-sergio-schneider-marcio-gazolla-org-os-atores-do-desenvolvimento-rural. Acesso em 20 fevereiro, 2018.
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). Esse movimento de reconexão entre produtor e consumidor associado ao princípio da construção de mercados está baseado na inserção da agricultura familiar nos mercados agroalimentares por meio de estratégias autônomas que se adéquem à realidade dos agentes econômicos de pequeno porte (MALUF, 2004MALUF, Renato. Mercados agroalimentares e a agricultura familiar no Brasil : agregação de valor , cadeias integradas e circuitos regionais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 299-322, 2004. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/277108037_Mercados_agroalimentares_e_a_agricultura_familiar_no_Brasil_agregacao_de_valor_cadeias_integradas_e_circuitos_regionais. Acesso em: 17 mar. 2017.
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).

O protagonismo dos atores sociais, a participação contínua nas instâncias de decisão, a sustentabilidade, a racionalidade no enfrentamento aos problemas e o senso de responsabilidade coletiva são os elementos fundamentais do conceito de desenvolvimento local (MORENO, 2011MORENO, Maria Luíza Gomez. Desarollo rural vs. desarollo local. Estudios Geográficos, Espanha, v. 72, n. 270, p. 77-102, 2011. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3682451. Acesso em: 19 mar. 2019.
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). Nesse contexto, surge a figura de um consumidor que demanda alimentos, mas também conservação ambiental, valorização do local e procedência. O surgimento de novos nichos de mercado e demandas por produtos diferenciados pode contribuir para o fortalecimento da agricultura familiar (MALUF, 2004MALUF, Renato. Mercados agroalimentares e a agricultura familiar no Brasil : agregação de valor , cadeias integradas e circuitos regionais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 299-322, 2004. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/277108037_Mercados_agroalimentares_e_a_agricultura_familiar_no_Brasil_agregacao_de_valor_cadeias_integradas_e_circuitos_regionais. Acesso em: 17 mar. 2017.
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). Nesse sentido, prioriza-se a regionalização de circuitos comerciais, em que se aproveitam as sinergias dos diferentes agentes sociais, econômicos e produtivos, em uma filosofia "ganha-ganha", na qual a proximidade e o vínculo territorial e cultural podem gerar vantagens competitivas e produção com valor agregado (PLOEG et al., 2000PLOEG, Jan, et al. Rural Development : From Practices and Policies towards Theory. Sociologia Ruralis, Oxford, v. 40, n. 4, p. 391-408, 2000. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/227786245_Rural_Development_From_Practices_and_Policies_Towards_Theory. Acesso em 19 março 2017.
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).

A partir dessa construção conceitual e empírica surge o debate sobre as cadeias curtas de comercialização. As cadeias curtas são definidas da seguinte forma: (1) venda direta "cara a cara", em que a confiança está na relação interpessoal; (2) "proximidade espacial", incluindo o que é produzido e distribuído numa região reconhecida pelos consumidores; e, (3) "espacialmente estendido", nesse caso, a confiança é transmitida por um processo de garantia da qualidade (certificação) (RENTING; MARSDEN; BANKS, 2003 apud SCHNEIDER; GAZOLLA, 2017SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas - negócios e mercados da agricultura familiar. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.). Já os canais longos são caracterizados pelo distanciamento entre produção e consumo, pela irrelevância da origem e pela necessidade de padronização dos produtos (SCHNEIDER; GAZOLLA, 2017SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas - negócios e mercados da agricultura familiar. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.). Dessa maneira, a abordagem de cadeias curtas de comercialização pode garantir que os ganhos econômicos e ambientais permaneçam nas comunidades e fortaleçam as economias locais (PLOEG et al., 2000PLOEG, Jan, et al. Rural Development : From Practices and Policies towards Theory. Sociologia Ruralis, Oxford, v. 40, n. 4, p. 391-408, 2000. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/227786245_Rural_Development_From_Practices_and_Policies_Towards_Theory. Acesso em 19 março 2017.
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; MALUF, 2004MALUF, Renato. Mercados agroalimentares e a agricultura familiar no Brasil : agregação de valor , cadeias integradas e circuitos regionais. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 25, n. 1, p. 299-322, 2004. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/277108037_Mercados_agroalimentares_e_a_agricultura_familiar_no_Brasil_agregacao_de_valor_cadeias_integradas_e_circuitos_regionais. Acesso em: 17 mar. 2017.
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).

Tradicionalmente, as feiras livres cumprem essa função de canal curto de comercialização em parte importante dos municípios brasileiros. As feiras podem fazer com que agricultores e consumidores interajam, criem vínculos e sociabilidades, gerando relações de confiança que possibilitam a alguns agricultores familiares não depender necessariamente de instituições de acreditação e certificação como, por exemplo, os selos de orgânicos (SABOURIN, 2013SABOURIN, Eric. Comercialização dos produtos agrícolas e reciprocidade no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 5-33, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/259713930_Comercializacao_dos_produtos_agricolas_e_reciprocidade_no_Brasil. Acesso em: 7 mar. 2017.
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). Apesar de serem antigas, as feiras não tiveram a visibilidade acadêmica necessária. Na década de 2000, a partir de um maior aprofundamento científico do conceito de cadeias curtas (principalmente na Europa), e de um estudo do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) sobre a Segurança Alimentar e Nutricional, o tema ganhou mais espaço e muitos pesquisadores se debruçam sobre as várias dimensões das feiras (CASSOL; SCHNEIDER, 2017CASSOL, Abel; SCHNEIDER, Sérgio. Construindo a confiança nas cadeias curtas: interações sociais, valores e qualidade na Feira do Pequeno Produtor de Passo Fundo-RS. In: SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas - negócios e mercados da agricultura familiar. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.).

No estudo do MDS, foi feito um levantamento da quantidade de feiras nos municípios pesquisados e verificada uma relevância maior das feiras na região Centro-Oeste (85,8 feiras para cada milhão de habitantes) se comparada às das regiões Sudeste, Sul, Nordeste e Norte (51,3, 42,9, 33,1 e 18,8 respectivamente). Foi verificado que, no âmbito da segurança alimentar e nutricional, as feiras desempenham um importante papel ao evitar o desperdício, já que são espaços de comercialização de produtos locais (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Mapeamento de segurança alimentar e nutricional nos estados e municípios: resultados preliminares. Brasília: MDS, 2014. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/seguranca_alimentar/mapa_san_resultados_preliminares.pdf. Acesso em: 3 jun. 2017.
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).

As feiras representam o "limiar difuso entre o rural e o urbano, fim da fase produtiva e início da fase de consumo" e, a partir do momento em que tornam consumidores e produtores protagonistas do processo de comercialização e da ressignificação das relações socioeconômicas, têm o poder de gerar oportunidades e viabilizar aqueles excluídos pelo sistema econômico moderno (GODOY, 2005GODOY, Wilson Itamar. As feiras-livres de Pelotas, RS: estudo sobre a dimensão sócio-econômica de um sistema local de comercialização. Orientador: Flavio Sacco dos Anjos. 2005. 268 p. Tese (Doutorado em Agronomia) - Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, 2005. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/consagro/files/2012/03/GODOY-Feiras-Livres-2005.pdf. Acesso em: 25 nov. 2017.
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, p. 5-6). Este é um dos aspectos a serem discutidos quando se busca entender como essa modalidade de comercialização tão antiga persiste na sociedade contemporânea (GODOY, 2005GODOY, Wilson Itamar. As feiras-livres de Pelotas, RS: estudo sobre a dimensão sócio-econômica de um sistema local de comercialização. Orientador: Flavio Sacco dos Anjos. 2005. 268 p. Tese (Doutorado em Agronomia) - Faculdade de Agronomia Eliseu Maciel, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, 2005. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/consagro/files/2012/03/GODOY-Feiras-Livres-2005.pdf. Acesso em: 25 nov. 2017.
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).

Este estudo tem como objetivo geral quantificar a relevância das feiras para o Estado de Goiás e o nível de participação de agricultores familiares nessa modalidade de comercialização. O trabalho busca agregar uma dimensão quantitativa a diferentes estudos qualitativos sobre canais curtos de comercialização (SABOURIN, 2013SABOURIN, Eric. Comercialização dos produtos agrícolas e reciprocidade no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 5-33, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/259713930_Comercializacao_dos_produtos_agricolas_e_reciprocidade_no_Brasil. Acesso em: 7 mar. 2017.
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). Os objetivos específicos desta pesquisa são: (1) quantificar as feiras existentes nos diferentes municípios de Goiás; (2) identificar a participação dos agricultores familiares nas feiras; e (3) caracterizar a dispersão geográfica das feiras com maior presença da agricultura familiar.

2 METODOLOGIA

Dos 246 municípios do Estado de Goiás, foram obtidos dados de 201. Do total, 45 municípios não entraram na pesquisa pela impossibilidade de estabelecer contato ou de identificar agentes locais que pudessem repassar as informações requeridas na entrevista ou pelo fato de os dados repassados estarem incompletos. O contato inicial se deu por meio de ligação telefônica para as prefeituras e para pessoas do município que pudessem responder às seguintes perguntas: (1) quantas feiras semanais existem no município?; (2) qual o dia da semana em que cada feira ocorre?; (3) quantas bancas no total existem em cada feira?; e (4) quantas dessas bancas de cada feira são de agricultores familiares?

Em cada município, o caminho para se chegar a essas informações apresentou especificidades. De modo geral, o contato se deu por meio de ligações telefônicas para as prefeituras para solicitar a indicação de pessoas que fossem referência ou que tivessem conhecimento empírico sobre a(s) feira(s) de cada município. Em alguns casos, os respondentes foram secretários ou funcionários ligados a pastas como agricultura, administração, meio ambiente, fiscalização e educação. Em outros casos, os representantes do poder público sugeriram lideranças locais das feiras ou de sindicatos, associações e cooperativas. Em alguns municípios, a mesma pessoa respondeu às perguntas de todas as feiras, em outros, houve a necessidade de ligar para vários atores sociais do município para coletar os dados das diversas feiras.

O estudo levantou apenas as feiras semanais. Feiras mensais, quinzenais e esporádicas não fazem parte do recorte do presente estudo. Como muitos feirantes fazem mais de uma feira durante a semana, as variáveis "número de bancas" e "número de bancas da agricultura familiar (AF)", quando somadas, não refletem o quantitativo de feirantes, mas sim de bancas. Após a coleta de dados primários, procedeu-se à coleta de dados secundários referentes às populações dos municípios. Os municípios com mais de 500 mil habitantes não entraram na pesquisa por dificuldade das prefeituras em sistematizar os dados de suas feiras e pelo grande número de feiras com dados que oscilam a todo instante. Por isso, foram excluídos os municípios de Goiânia e Aparecida de Goiânia.

A organização dos dados se deu de formas distintas, de acordo com os objetivos do presente artigo. Inicialmente foram criadas tabelas com dados gerais que subsidiaram a hipótese de que as feiras são relevantes para Goiás e que a agricultura familiar é relevante para as feiras. Em seguida, foram criadas as seguintes classes de municípios: (a) menos de 5 mil habitantes; (b) entre 5 e 10 mil habitantes; (c) entre 10 e 20 mil habitantes; (d) entre 20 e 30 mil habitantes; (e) entre 30 e 50 mil habitantes; (f) entre 50 e 100 mil habitantes; (g) entre 100 e 200 mil habitantes, e; (h) entre 200 e 500 mil habitantes.

Para atender ao segundo objetivo, foram feitas duas análises com diferentes classes populacionais e classes de participação de agricultores familiares por feira. Na primeira análise, tomou-se por base a quantidade total de feiras de cada classe populacional. Numa segunda rodada de análise, a base para os cálculos foi a quantidade total de feiras de todas as classes populacionais. Foram necessárias duas tabelas para apresentar tais dados, sendo na primeira analisados apenas os dados percentuais e utilizado como população o total de feiras de cada classe populacional. Na segunda tabela, adotou-se como população as 369 feiras levantadas, possibilitando assim identificar a ocorrência de cada tipo de feira de acordo com as duas variáveis (população e participação da agricultura familiar). O quadro 1 expressa as classes construídas para cada variável de acordo com as duas análises.

Quadro 1
Diferentes construções de classes populacionais e de participação de agricultores familiares

O mapa temático foi elaborado por meio de Sistema de Informação Geográfica (SIG) com o uso do software livre Qgis. Os dados coletados durante a pesquisa foram relacionados à base de dados do Sistema Estadual de Geoinformação de Goiás do Governo do Estado de Goiás (SIEG). Para a elaboração do mapa, os dados coletados foram tratados de maneira a destacar os municípios com feiras com maior participação de agricultores familiares. Como o objetivo do mapa é verificar espacialmente a ocorrência de feiras compostas por bancas majoritariamente da agricultura familiar e alguns municípios possuem mais de uma feira, tornou-se necessário selecionar em cada município a feira com maior participação desse segmento e desprezar as outras.

3 RESULTADOS

3.1 Quantificação das feiras existentes nos diferentes municípios de Goiás

As feiras estão presentes na grande maioria dos municípios goianos. Foram coletados dados de 201 dos 246 municípios do Estado de Goiás, e apenas 24 não possuem feira. Nos outros 177 municípios, existem feiras semanais em pleno funcionamento somando 369 feiras que abrigam 21.342 bancas (Tabela 1).

Tabela 1
Características gerais das feiras de acordo com as classes populacionais (em número de habitantes)

Por meio da tabela 1, é possível perceber que a grande maioria dos municípios amostrados aleatoriamente é de pequeno porte (até 30 mil habitantes), perfazendo 87,06 % da amostra. Apesar de a quantidade de municípios amostrados com mais de 30 mil habitantes ser baixa (26 municípios, ou 12,93% da amostra), a sua população total foi bastante representativa (2.301.674 habitantes, ou 61,6% da amostra). Existem 128 feiras e 13.180 bancas nesses municípios com mais de 30 mil habitantes, representando 34,68% e 60% da amostra respectivamente.

Excetuando a classe dos municípios com mais de 200 mil habitantes, a classe com o maior número de feiras e o menor número de bancas é a dos municípios com menos de cinco mil habitantes. Nota-se ainda um comportamento crescente do número de bancas e decrescente do número de feiras à medida que a classe populacional cresce. Essa característica de inversa proporcionalidade também é verificada (excetuando também a classe dos municípios maiores que 200 mil habitantes) ao analisar as linhas "número de municípios" e "população total".

No Estado de Goiás, 41,92% das bancas das feiras dos municípios com até 500 mil habitantes são de agricultores familiares. Este é um dado muito sintomático da relevância da agricultura familiar para a persistência e para o desenvolvimento das feiras. A recorrente presença dos agricultores familiares nas feiras dos diferentes municípios demonstra que esse agente social do campo não só é beneficiado com essa modalidade de comercialização, como também sustenta, dá legitimidade e operacionaliza esse canal curto.

A partir da tabela 1, é possível levantar algumas percepções preliminares no que se refere à participação da agricultura familiar. A participação dos agricultores familiares é mais relevante percentualmente nos municípios menores (até 20 mil habitantes), onde representam mais de 50% do total de bancas. Porém, nos municípios de médio porte (maiores que 20 e menores que 100 mil habitantes), os agricultores familiares, apesar de não estarem em maioria, também têm participação significativa, ocupando quase 50% do total de bancas das feiras. Nos municípios das duas últimas classes (considerados nesta pesquisa como de grande porte), percebe-se que a participação de agricultores familiares nas feiras decresce, chegando a 16,17% do total de bancas nos municípios com mais de 200 e menos de 500 mil habitantes. Essas duas classes foram as únicas que apresentaram menor participação de agricultores familiares nas feiras do que a média do Estado. Esse dado demonstra que é nos pequenos e médios municípios que se dá a inclusão comercial da agricultura familiar via feira em maior proporção.

3.2 Relação entre o índice de participação dos agricultores familiares nas feiras e as classes populacionais dos municípios

A participação dos agricultores familiares é quase uma regra nas feiras, desde aquelas com caráter mais gastronômico até as feiras livres. Essa relação feira-agricultura familiar é tão relevante que se constatou a ocorrência de feiras exclusivas de agricultores familiares em 30 municípios. Ou seja, 16,94% dos municípios que possuem feira têm ao menos uma que é exclusiva da agricultura familiar. Outro dado importante é que apenas seis municípios apresentam somente feira(s) sem agricultores familiares, representando 2,98% do total da amostra e 3,38% dos municípios amostrados que possuem feira(s). Analisando o quantitativo total de bancas da agricultura familiar em relação ao total de bancas, obteve-se a informação de que 41,92% de todas as bancas das feiras do Estado são de agricultores familiares. Após a análise da presença de feiras nos municípios, é necessária uma interpretação dos dados em um âmbito geral das feiras quantificadas. O panorama geral demonstra o quanto as feiras estão presentes no Estado e o quanto os agricultores familiares estão presentes nas feiras.

A tabela 2 apresenta dados referentes aos diferentes índices de participação de agricultores familiares nas variadas classes populacionais dos municípios. Dentre as classes de índice de participação da agricultura familiar, as que mais ocorreram nos municípios com menos de 100 mil habitantes foram as referentes ao intervalo entre 26 e 74% do total de bancas. Já nos municípios com mais de 100 mil habitantes as classes que mais ocorreram foram aquelas referentes ao intervalo entre 1 e 25% do total de bancas. Dessa forma, nas feiras dos municípios pequenos e médios existe uma tendência de ocorrer maior participação de agricultores familiares.

Tabela 2
Ocorrência de diferentes índices de participação da agricultura familiar em feiras de municípios de diferentes classes populacionais (1ª análise)

Dentre os municípios entre 50 e 100 mil habitantes, 33,34% das feiras têm mais do que 75% de bancas da agricultura familiar, e dentre aqueles com população entre 100 e 200 mil habitantes, 29,17% das feiras têm mais do que 75% de bancas da agricultura familiar. Por outro lado, os municípios com mais de 200 mil habitantes apresentaram um índice muito baixo de participação da agricultura familiar, sendo que apenas 2,33% das feiras têm mais do que 75% de agricultores familiares. Percebe-se, assim, que existe uma tendência da agricultura familiar perder o protagonismo nas feiras das grandes cidades, porém, mesmo nas cidades de médio porte esse protagonismo parece resistir. Algo a se atentar é que feiras que são exclusivas da agricultura familiar ocorrem em todas as classes populacionais com ênfase àqueles municípios com menos de 30 mil habitantes.

Na tabela 3, foi feita uma reconfiguração das classes populacionais e de índices de participação de agricultores familiares, com o objetivo de facilitar a visualização de tendências. Na variável índice de participação da agricultura familiar, mantiveram-se as classes "zero% de bancas de agricultores familiares" e 100% de bancas de agricultores familiares", fundiram-se as outras duas classes com índices menores que 50%, bem como as outras duas com índices maiores que 50 e menores que 100%. As classes populacionais também foram alteradas. Nessa tabela, estão presentes os valores relativos e absolutos.

Tabela 3
Ocorrência de diferentes índices de participação da agricultura familiar em feiras de municípios de diferentes classes populacionais (2ª análise)

Ao analisar as feiras de Goiás cruzando essas duas variáveis, observa-se que a maior ocorrência é de feiras em municípios com até 10 mil habitantes e com 50 a 99% de bancas da agricultura familiar, perfazendo 67 feiras o que representa 18,16% do total de feiras do Estado. As menores ocorrências verificadas foram as de feiras sem a presença de nenhum agricultor familiar. A maior ocorrência de feiras 100% da agricultura familiar se deu nas classes populacionais "até 10 mil" (20 feiras ou 5,42%) e "10 a 30 mil" (12 feiras ou 3,25%). Chama a atenção a percentagem de feiras, 100% da agricultura familiar no Estado, 10,3%, perfazendo 38 feiras distribuídas nos mais diversos municípios.

A maior ocorrência na variável índice de participação da agricultura familiar foi da classe entre 1 e 50% (167 feiras ou 45,26%), e a maior ocorrência na variável populacional foi a de feiras na classe de municípios com até 10 mil habitantes (145 feiras ou 39,3%).

3.3 Distribuição geográfica das feiras com maior presença da agricultura familiar

Observa-se a ocorrência de feiras com mais de 60% de bancas da agricultura familiar em todas as mesorregiões do Estado de Goiás. Porém é possível verificar que existe uma faixa transversal de municípios com feiras majoritariamente da agricultura familiar que vai da parte noroeste da mesorregião Sul, passa pela parte Sul da mesorregião Noroeste, atravessa a mesorregião Centro, passa pela parte oeste da mesorregião Leste e finaliza no nordeste no Estado. Em outras palavras, nota-se (1) uma extensa área contígua de municípios com feiras exclusivas da agricultura familiar no norte do Estado; (2) grande ocorrência de feiras com mais de 80% de participação da agricultura familiar no extremo oeste do Estado; e (3) ocorrência de muitos municípios com feiras majoritariamente da agricultura familiar no centro do Estado (Figura 1).

Figura 1
Mapa da distribuição geográfica e da participação da agricultura familiar (AF) nas feiras nos municípios goianos

O centro do Estado possui duas regiões que, historicamente, possuem forte presença de agricultores familiares (culturalmente, politicamente etc.): Vale do São Patrício e Vale do Rio Vermelho. Da mesma forma em que existe grande ocorrência de municípios com feiras majoritariamente da agricultura familiar, existe também grande ocorrência municípios em que os agricultores familiares têm baixa participação nas feiras. Por outro lado, na região norte do Estado, onde as disputas territoriais são menores, onde as comunidades tradicionais possuem maior estabilidade de reprodução social e onde a pressão do modelo convencional é menor, nota-se uma grande área contínua de municípios com feiras exclusivas da agricultura familiar. O extremo oeste e parte do norte do sudoeste são regiões marcadas pela implantação de grandes projetos de assentamentos com as famílias camponesas ocupando vastos territórios.

4 DISCUSSÃO

Os resultados revelam que as feiras estão presentes em parcela significativa dos municípios goianos e contam, em geral, com efetiva participação de agricultores familiares locais. Em 88% dos municípios estudados, existem feiras funcionando regularmente, e 41,92% das bancas de todas as feiras são de agricultores familiares, sendo que 30 municípios possuem feiras exclusivas de agricultores familiares.

A participação dos agricultores familiares nas feiras tende a ser maior em municípios de menor porte, com quantidade média de bancas crescente por feira na classe populacional "menos que 5 mil" até a classe "mais de 50 mil", e essa variável decresce a partir da classe "mais de 100 mil". Analisando a distribuição espacial dos municípios que possuem feiras compostas majoritariamente por bancas da agricultura familiar, é possível concluir que elas estão presentes em todas as regiões do Estado, mesmo em regiões conhecidas pela grande presença do agronegócio de grande escala, como é o caso das regiões sul e sudeste de Goiás (Figura 1).

Esses dados são bastante reveladores das alternativas de inclusão produtiva e comercial da agricultura familiar. Estudos qualitativos revelam crescente protagonismo dos agricultores familiares na construção de novos circuitos de troca (canais curtos, vendas institucionais e vendas diretas, por exemplo) que são alternativos aos mercados convencionais (CONTERATO et al., 2011CONTERATO, Marcelo Antônio; NIEDERLE, Paulo André; RADOMSKY, Guilherme; SCHNEIDER, Sérgio. Mercantilização e mercados : a construção da diversidade da agricultura na ruralidade contemporânea. In: SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. Os atores do desenvolvimento rural: perspectivas teóricas e práticas sociais. 1. ed. Porto Alegre: editora da UFRGS, 2011. Disponível em http://www.ufrgs.br/pgdr/publicacoes/producaotextual/marcelo-conterato/conterato-marcelo-niederle-paulo-andre-radomsky-guilherme-f-w-schneider-s-mercantilizacao-e-mercados-a-construcao-da-diversidade-da-agricultura-na-ruralidade-contemporanea-in-sergio-schneider-marcio-gazolla-org-os-atores-do-desenvolvimento-rural. Acesso em 20 fevereiro, 2018.
http://www.ufrgs.br/pgdr/publicacoes/pro...
). Este trabalho contribui para esse esforço científico ao quantificar a relevância dos canais curtos e a participação efetiva dos agricultores familiares nestes canais.

A radical reconfiguração do sistema agroalimentar experimentada a partir da década de 1980, com o fortalecimento das grandes redes varejistas, alterou a dinâmica produtiva e comercial da agricultura familiar (WILKINSON, 2002WILKINSON, John. Os gigantes da indústria alimentar entre a grande distribuição e os novos clusters a montante. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 18, p. 147-74, 2002. ), porém não foi capaz de suprimir os modos de vida das populações dos municípios pequenos. O protagonismo dos agricultores familiares nas feiras desses municípios é um indício de que ainda existe um interstício a que o modelo convencional não conseguiu alcançar. E esse indício pode ser verificado quando se demonstra, neste estudo, que quase 20% de todas as feiras do Estado de Goiás estão nos municípios com menos de 10 mil habitantes e são compostas majoritariamente por bancas de agricultores familiares. Outra demonstração desse interstício pode ser verificada na figura 1, que revela grande área contígua de municípios com a presença de feiras exclusivas da agricultura familiar no norte do Estado.

Apesar de os mercados convencionais serem hegemônicos e apesar de existirem diversos mercados alternativos, os agricultores familiares brasileiros (diferentemente de outros países) se inserem de forma mais recorrente nas feiras (DAROLT. et al 2016DAROLT, Moacir et al. Redes alimentares alternativas e novas relações produção consumo na França e no Brasil. Ambiente e Sociedade, São Paulo. v.19, n.2, p. 1-22, 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v19n2/pt_1809-4422-asoc-19-02-00001.pdf. Acesso em: 10 dez. 2017.
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). Mesmo assim, Sabourin (2013)SABOURIN, Eric. Comercialização dos produtos agrícolas e reciprocidade no Brasil. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 5-33, 2013. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/259713930_Comercializacao_dos_produtos_agricolas_e_reciprocidade_no_Brasil. Acesso em: 7 mar. 2017.
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e Wilkinson (2002)WILKINSON, John. Os gigantes da indústria alimentar entre a grande distribuição e os novos clusters a montante. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 18, p. 147-74, 2002. alertaram para os possíveis riscos do caráter alternativo dos canais curtos, afirmando que podem se transformar em simples nichos de mercado que podem levar à diminuição da diversidade de produção de comunidades, além de serem facilmente incorporados pelo grande sistema agroalimentar. As feiras têm uma especificidade que é o caráter popular do processo de comercialização.

Os dados mostraram que, nos municípios remotos e com baixa densidade populacional, a presença de agricultores familiares nas feiras foi bastante relevante. Esses municípios, em grande medida, carecem de suporte do poder público às demandas dos agricultores familiares e de possibilidades inclusivas de comercialização. Ou seja, a ocorrência da feira independe de estímulos de nichos de mercado ou das políticas públicas. Ela se dá pela necessidade e pelo empenho dos agentes envolvidos. Tal análise remonta a Ploeg et. al (2000)PLOEG, Jan, et al. Rural Development : From Practices and Policies towards Theory. Sociologia Ruralis, Oxford, v. 40, n. 4, p. 391-408, 2000. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/227786245_Rural_Development_From_Practices_and_Policies_Towards_Theory. Acesso em 19 março 2017.
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, que reivindicam a necessidade de que os ganhos econômicos e ambientais, num novo modelo de desenvolvimento rural, permaneçam nas comunidades. Nessa busca por novos paradigmas, a feira se destaca, pois é alicerçada por um conjunto de relações e interações sociais intimamente ligadas a um passado rural, e não exclusivamente por relações de oferta e demanda (CASSOL; SCHNEIDER, 2017SCHNEIDER, Sérgio; GAZOLLA, Márcio. Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas - negócios e mercados da agricultura familiar. 1. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.).

5 CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo revelam que 88% dos 201 municípios estudados em Goiás possuem feiras funcionando regularmente. Das 369 feiras levantadas nos 201 municípios, 41,92% das bancas são de agricultores familiares, e 67,16% das feiras contam com participação efetiva de agricultores familiares comercializando seus produtos, sendo que 30 municípios possuem feiras exclusivas da agricultura familiar.

Foram identificados clusters de municípios com maior ocorrência de feiras caracterizadas pela grande presença de agricultores familiares em regiões específicas do Estado. Conclui-se que as feiras são recorrentes nos municípios goianos e que a presença de agricultores familiares nesse canal de comercialização é relevante, sobretudo nos municípios de pequeno e médio portes.

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    Para que alguém seja enquadrado como agricultor familiar, é necessário atender aos critérios estabelecidos pela Lei n. 11.326/2006 e pela Portaria MDA n. 102/2012 (CORCIOLI; CAMARGO, 2016). Cabe salientar que dentre os municípios estudados o módulo fiscal varia entre 16 e 70 hectares.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2018
  • Revisado
    31 Mar 2019
  • Aceito
    08 Abr 2019
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