Acessibilidade / Reportar erro

O assentamento como lugar de chegada, de morada e da velhice

The settlement as place of arriving, living and for old age people

El asentamiento como lugar de llegada, de residencia y de vejez

Resumo

Neste artigo, analisamos a velhice no assentamento Colônia Conceição, localizado no município de Nioaque, estado de Mato Grosso do Sul, MS, compreendendo as reconfigurações e as sociabilidades do lugar, criadas pelos assentados que lá se iniciaram e que atualmente se encontram vivendo a etapa da velhice, ainda mantendo a administração das unidades de produção. Para isso, realizamos um estudo qualitativo no assentamento, identificando a quantidade de pessoas velhas e entendendo como estão se organizando na gestão de suas unidades. Os resultados mostraram que em 128 lotes existe a presença de pessoas com 60 anos ou mais, administrando as unidades e transformando o espaço, evidenciando resistência ao viverem a velhice no assentamento.

Palavras-chave
assentamento rural; velhice; memória; resistência

Abstract

In this article, we analyze the old age in the settlement Colônia Conceição, located in the city of Nioaque, state of Mato Grosso do Sul, MS, comprehending the reconfigurations and the sociabilities of the place, created by the settlements that started there and actually are living the stage of old age, still maintaining the administration of the unities of production. For that, we realized a study qualitative in the settlement, identifying the quantity of old people and understanding how they are organized in the management of the unities. The results show that in 128 lots exists the presence of people with 60 years or more, managing the unities and transforming the space, showing resistance in living the old age in the settlement.

Keywords
rural settlement; old age; memory; resistance

Resumen

En este artículo, analizamos la vejez en el asentamiento de Colônia Conceição, ubicado en el municipio de Nioaque, estado de Mato Grosso do Sul, MS, comprendiendo las reconfiguraciones y las sociabilidades del lugar, creadas por los colonos que comenzaron allí y que actualmente viven la etapa de la vejez, manteniendo la administración de las unidades de producción. Para esto, realizamos un estudio cualitativo en el asentamiento, identificando el número de personas mayores y entendiendo cómo se están organizando en la gestión de sus unidades. Los resultados mostraron que en 128 lotes hay la presencia de personas de 60 años o más, que manejan las unidades y transforman el espacio, lo que muestra resistencia a vivir la vejez en el asentamiento.

Palabras clave
Asentamiento rural; vejez; memoria; resistencia

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, procuramos analisar a estrutura do assentamento Colônia Conceição, localizado no município de Nioaque, estado de Mato Grosso do Sul, MS, no que se refere à composição de seus lotes e das pessoas que os administram para a produção de alimentos, em sua maioria, pessoas velhas. Analisamos as mudanças que ocorreram nos 34 anos de história do assentamento, compreendendo as reconfigurações dos lotes e das sociabilidades do lugar, criadas pelos assentados que lá se iniciaram e que atualmente lá se encontram vivendo a etapa da velhice, mas ainda detendo a administração das unidades de produção.

Buscamos, então, compreender como é viver a velhice no Colônia Conceição. Para isso, algumas categorias foram fundamentais, dentre elas, os estudos de Heredia (1979)HEREDIA, Beatriz Maria Alásia. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979., que apresentam o sentido da morada da vida, o qual compreende um conjunto de elementos que se entrelaçam e se manifestam nos seguintes elos: no pertencimento a terra, nas relações de inteiração entre as pessoas, no envolvimento com o fazer do processo de plantio e tratos culturais e, sobretudo, nas dimensões da vida no lugar.

A morada da vida é um aporte que, segundo Heredia (1979, p. 115)HEREDIA, Beatriz Maria Alásia. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979., “define o pequeno produtor no trabalho efetuado na terra e, em consequência, a perda da mesma implica no seu desaparecimento como categoria social”.

Outra categoria para o estudo é a da velhice, entendida como uma fase que as pessoas, em algum momento, vão vivenciar, sendo um fenômeno natural biológico que tem na perda das capacidades físicas o ponto central. “O envelhecimento é considerado como um processo natural de redução progressiva dos indivíduos”, como indicado por Reis (2016, p. 24)REIS, Débora Martins Moreti. O envelhecimento em Dourados-MS: influência(s) de um centro de convivência de idosos na vida dos usuários. 2016. 139f. (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2016..

Abreu (2017, p. 26)ABREU, Maria Celei de. Velhice: uma nova paisagem. São Paulo: Editora Agora, 2017. destaca que há “um consenso que a fase da velhice se inicia por volta de 60 a 65 anos, com algumas variações, considerando o nível de desenvolvimento socioeconômico, o sexo, a cultura e outros fatores” do contexto do indivíduo. No Brasil, existem parâmetros científicos e de legislação usados para qualificar quando a velhice chega para uma pessoa. A velhice, segundo o Estatuto do Idoso, sancionado pela Lei 10.741/2003, inicia-se aos 60 anos (BRASIL, 2003BRASIL, Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso. 1. ed., 2ª reimpr. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003.). O Estatuto visa a regular e garantir os direitos das pessoas com 60 anos ou mais, em substituição à legislação anterior (o Plano Nacional do Idoso, sancionado em 1994). No entanto, entendemos que a velhice é constituída de um marco temporal que se aplica de forma diferenciada sobre os corpos.

O estudo de Ecléa Bosi (1994)BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994. se constituiu em outro aporte teórico, recomendando as fontes orais para compreender a vivência dos velhos/as. Para Bosi (1994, p. 82)BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994., “o mundo social possui uma riqueza e diversidade que não conhecemos e pode chegar-nos pela memória dos velhos”. Assim, a memória das pessoas velhas possibilitou conhecer a vivência social no assentamento na função que expõe Bosi (1994, p. 89)BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994.: “A função da memória é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, localiza cronologicamente”.

No assentamento Colônia Conceição, a velhice é contada pelo fio da memória e contrasta com a evasão dos jovens e, assim, o lugar do assentado passa a ser um misto de saudades, de um tempo em que ele podia trabalhar de sol a sol, organizar o lote, as criações, a casa e o seu entorno. Dessa forma, o cenário de orgulho, apresentado ao contarem como se mantêm firmes no assentamento, é também melancólico, compondo o conjunto da velhice, que se mostrou no trabalho de pesquisa, nos relatos das pessoas com as quais dialogamos e que nos remete a Bosi (1994, p. 426)BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994., quando diz que “tal como as plantas, que na estação da seca se imobilizam e brotam nas primeiras chuvas, certas lembranças se renovam e em certos períodos dão uma quantidade inesperada de folhas novas”.

Ao dialogar com a velhice no Colônia, também estamos procurando correlacioná-la com o lugar onde vivem, ou seja, um assentamento de Reforma Agrária, sobretudo no que se enseja o protagonismo dos movimentos sociais do campo, que constroem demandas e as colocam para o Estado realizar, evidenciando a necessidade de mudanças na estrutura agrária e, como resultado, a criação do assentamento.

Para melhor organização das reflexões deste artigo, dividimos o texto em duas partes: na primeira, apresentamos dados sobre a formação do assentamento. Na segunda, analisamos a ocupação do lugar, olhando para quem nele vive, dando ênfase ao número de lotes ocupados e administrados por pessoas de 60 anos ou mais, que, pelo elevado número nessa condição, levam-nos a ver que o Colônia Conceição é constituído predominantemente de velhos/as.

2 APRESENTANDO O ASSENTAMENTO COLÔNIA CONCEIÇÃO

O assentamento Colônia Conceição foi criado no município de Nioaque, no dia 25 de junho de 1985, sob a Resolução de n. 060 e número de SIPRA MS 0010000, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A área agrega 10.587 hectares, atendendo 373 famílias. Sua instalação ocorreu num momento em que se iniciava no Brasil o I Plano Nacional de Reforma Agrária, o que aconteceu após longas discussões e demandas encaminhadas nessa direção pelos movimentos sociais rurais, sendo no Colônia Conceição mediada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), por meio de seus agentes, sobretudo religiosos, como padres e freiras.

É importante destacarmos que Nioaque é um município que ocupa uma área de 3.923,790 km² em MS, localizado na entrada do Pantanal Sul-mato-grossense e com economia voltada à criação de gado de corte, contando com um rebanho de 365.540 cabeças, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010)INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico. Portal do IBGE, Rio de Janeiro, 2010.. Ainda, segundo o IBGE (2010), conta com uma população de 14.391 habitantes, dos quais 7.057 residem na área urbana e 7.334 na área rural. O fato de metade da população do município residir no campo se deve à implantação dos assentamentos, iniciada na segunda metade da década de 1980, intensificando a formação de pequenas propriedades, num lugar de latifúndios. Lá foram criados nove assentamentos, sendo oito implantados pelo Governo Federal e um pelo Governo Estadual.

A criação do Colônia Conceição ocorreu para colocar fim aos conflitos entre índios e posseiros, que lá se encontravam em disputa territorial. Assim, efetivou-se a desapropriação da área e o assentamento de famílias. Nos dias atuais, do total dos 373 lotes, em 128 deles é possível encontrar pessoas com mais de 60 anos de idade; já em 85 lotes, conta-se apenas com o trabalho dessas pessoas.

No decorrer dos 34 anos de implantação do assentamento, alguns lotes foram sendo comercializados para terceiros, ou seja, aqueles moradores, que faleceram e/ou por motivos diversos não conseguiram se adaptar à área, deixaram o lugar, e, com isso, novos moradores adentraram no assentamento. Há, ainda, lotes que foram vendidos e adquiridos pelos vizinhos, unindo áreas e aumentando seus domínios para a produção. Atualmente, é possível encontrar diversos assentados que possuem áreas ampliadas, em virtude de terem comprado novas áreas de pessoas que foram saindo do assentamento, e, assim, conseguem melhorar as condições para viabilizar a atividade pecuária.

Essa ideia de formar áreas ampliadas na dinâmica da organização de assentamento rural parece contraditória, se considerados os referenciais assegurados no Plano Nacional de Reforma Agrária, que dispõe sobre o modelo de assentamento com pequenos lotes destinados à produção de alimentos, para a reprodução/sobrevivência familiar e venda do excedente. No entanto, se a ampliação for analisada sob as condições locais do assentamento Colônia Conceição, é possível encontrar outros elementos que até justificam a nova reorganização, a qual, na dinâmica da produção, foi sendo formada. Ou seja, na atividade com a pecuária que lá predomina, a ampliação resolve o problema produzido quando da desapropriação para formação do assentamento, visto que o INCRA era sabedor das fragilidades quanto à fertilidade do solo. Por esse motivo, na divisão da área, deveria ter planejado lotes com tamanho maior, tendo como referencial a pecuária, uma atividade viável na produção dos pequenos agricultores e em qualquer lugar do Brasil, especialmente quando vem combinada com a produção de leite. No Colônia Conceição, dadas as condições do lugar, a pecuária se mostrou a mais recomendada2 2 Menegat (2009) aborda esse tema em pesquisa no assentamento Taquaral, onde concluiu que o INCRA, ao assentar pessoas descapitalizadas em terras inapropriadas para o cultivo de produtos agrícolas, as quais não detêm poder econômico para melhoria do potencial do solo, acabam por não efetivar a inclusão social e produtiva. Apenas assentar não resolve, isso apenas visa a cumprir protocolo de que o Estado fez a parte dele, assentou famílias. Não considerar os critérios adequados para assentamento lançou-as a sua própria sorte, e por isso a expulsão de que nos fala a autora, com migração daquelas que não encontraram estratégias para viabilizar a permanência, resultando na reconfiguração da área por aquelas que dispõem de melhores condições para permanecer. .

Em relação à composição das famílias do Colônia Conceição, essas vieram de várias partes do Brasil, sendo possível encontrar pessoas provenientes dos estados do Paraná, de São Paulo, de Minas Gerais, sobretudo dos estados do Nordeste do Brasil, que migraram de seus estados de origem para tentarem sobreviver da terra em solo sul-mato-grossense, para onde trouxeram e/ou constituíram famílias.

Logo nos primeiros anos de assentadas, as famílias do assentamento Colônia eram compostas por um número maior de membros e, nos lotes, mantinham um sistema que se assemelha àquele relatado por Heredia (1979, p. 11)HEREDIA, Beatriz Maria Alásia. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979., quando diz que “o pai é quem organiza as atividades a serem feitas no roçado, enquanto a mãe é encarregada da organização das tarefas que se relacionam a casa”.

Cabe ressaltar que, no Colônia Conceição, as mulheres e as crianças faziam parte da força de trabalho familiar, no fazer do trabalho na terra para produzir alimentos no período da formação dos lotes no assentamento. Com o passar dos anos, os filhos foram crescendo, constituindo novas famílias e saindo do assentamento, seja para trabalharem nas cidades, seja para assumirem seus próprios lotes. Os pais ficaram e lá ainda estão na labuta diária dos trabalhos com os lotes, fazendo com que o assentamento atualmente tenha na gestão desses uma maioria de pessoas mais velhas.

A realidade do Colônia Conceição nos leva a relacioná-lo a outros assentamentos, onde ocorre uma conjuntura social de mobilidade, decorrente dos processos de industrialização e urbanização”, como descreve Scalon (1999)SCALON, Maria Celi. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências. Rio de Janeiro: Editora Revan / IUPERJ-UCAM, 1999.. Esses processos impulsionam os jovens a se deslocarem para os centros urbanos, especialmente pela carência de políticas públicas de incentivo à permanência, como apontam os estudos de Castro (2016), e, com isso, reduzindo a mão de obra familiar nas unidades de produção do assentamento, bem como a sucessão na gestão dos lotes.

Considerando o número de assentados que chegaram ao assentamento Colônia, quando de sua implantação, existe um percentual que já se foi, acometido por alguma doença e/ou a velhice, entretanto outros ainda lá estão e gozam de seus esforços nas atividades de desbaste das matas e incorporação de pastagens. Vivem da pecuária de corte, complementando a renda com suas aposentadorias. Contudo, as tarefas do dia a dia se mostram mais penosas, devido à idade. Por isso, muitos deles contratam trabalhadores mais jovens para roçarem os pastos, até mesmo com a lida do gado precisam de ajuda, já que os animais de corte são muito ágeis e apresentam riscos de acidentes, especialmente para os velhos, que têm sua destreza diminuída. Porém, observamos que muitos desses senhores e senhoras têm relativa facilidade para lidar com seus rebanhos, pois, embora em plena velhice, estão conseguindo tocar seus lotes, contando com ajuda externa em períodos sazonais.

Acreditamos que um dos meios que facilitam o viver a fase da velhice no Colônia Conceição, para os moradores velhos, configura-se ao que se remete ao estudo de Bauman, quando aponta o sentido da comunidade como elo, rede de sociabilidades e de manutenção. Mesmo que no Colônia existam conflitos, nas relações entre a vizinhança, lá figura também a dimensão de um lugar “cálido”, confortável e aconchegante. Como diz Bauman (2003, p. 7)BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., em sua versão idealizada de comunidade, “É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado”. O assentamento está configurado como lugar mais aconchegante do ponto de vista da moradia e da qualidade de vida, agora na velhice.

Vejamos a reconfiguração dos lotes diante das novas dinâmicas sociais, provocadas pelo envelhecimento populacional, com a saída das pessoas mais jovens, sobretudo pela livre comercialização de terras no assentamento, visto que todos detêm a titularidade jurídica, que leva para fora antigos moradores e promove a chegada de novos. Além disso, favorece até mesmo a não chegada, visto que parte das terras comercializadas é somada a outras, sob o domínio de poucos donos, que formam áreas ampliadas, produzindo lotes para criação de gado, sem a presença de pessoas nas antigas residências.

3 A RECOMPOSIÇÃO DOS LOTES DO ASSENTAMENTO COLÔNIA CONCEIÇÃO

Para facilitar a identificação em relação à composição e reconfiguração dos lotes no assentamento, considerando aqueles onde há pessoas residindo e são seus gestores, iniciamos com a apresentação de um quadro geral, contendo todos os dados sobre esses aspectos, intentando melhor visualizar os diferentes grupos que compõem o assentamento Colônia Conceição. Mediante o quadro, analisamos cada dado.

Conforme o quadro acima, dos 373 lotes do Colônia, em apenas 230 deles existem pessoas residindo. Destes, existem velhos em 128 lotes, e em 85 destes os velhos vivem e os administram sozinhos, e os 43 restantes têm velhos que moram com parentes mais jovens.

Os outros 102 lotes são ocupados por pessoas com menos de 59 anos de idade, e, destes, 19 são de posse de herdeiros. Existem, ainda, outros 143 lotes vazios de pessoas, e, destes, 19 ainda são de posse de velhos que já não residem nos lotes. Os 143 lotes vazios de residências estão nessa condição porque, hoje em dia, neles vem ocorrendo a criação de gado. São lotes comprados por assentados que ampliaram sua área inicial e, também, por aqueles que, por algum motivo, deixaram o assentamento e direcionaram o lote especialmente ao arrendamento dos pastos. São diversos os motivos de neles não haver pessoas residindo; dentre eles, destacamos: morte do titular e residência dos herdeiros fora do assentamento; saída dos titulares devido à velhice e os herdeiros não assumirem; e compra de lotes por pessoas do próprio assentamento, que acumulam terras para ampliar seus rebanhos de gado.

3.1 Lotes com pessoas de 60 anos ou mais

Na soma total de quem vive e trabalha no assentamento Colônia Conceição, encontramos mais da metade dos moradores de lotes com 60 anos ou mais, sendo em 128 deles. Ainda mais, destes 128 lotes, em 85 deles, os velhos moram sozinhos, não contando com a ajuda dos filhos por perto, o que indica que o estar só ou sós se configura num desafio e resistência para a continuidade na atual organização da área. Embora haja uma população de velhos morando sozinha, em algum momento do dia ou da semana, eles interagem com outras pessoas, da sua faixa etária ou não, as quais são da vizinhança. Por isso, a dinâmica do lugar, a proximidade com outros lotes, as relações sociais, comerciais e de trabalho aproximam as pessoas e criam possibilidades para sociabilidades.

Contudo, o fato de morarem sozinhos não significa viver em estado de abandono. De algum modo, eles se aproximam da coletividade, socializam-se com os outros, e nessas inteirações externam suas necessidades e combinam uma série de questões necessárias para a sua permanência no lote, como narra uma assentada:

Eu saio, tenho meus vizinhos, aqui minha família é os vizinhos. Tenho a comadre Dinalva, a Maria, vou ali na Fátima. Elas vêm aqui, sempre tem gente por aqui também. Tem horas que a gente é bem sozinho, mas tem horas que não é. Tem horas que tenho a companhia das pessoas. Como se diz “mas antes um vizinho próximo que um parente longe”. Os parentes estão longe, os vizinhos aqui estão perto de mim, eles são como se fossem meus parentes que estão aqui perto de mim. (Assentada no Colônia, Linha do Mané, 60 anos de idade. Entrevista gravada no ano de 2019).

Observamos que, embora morando sem os parentes próximos, é possível ter na vizinhança um aporte amenizador ao menos da sensação de solidão para as pessoas assentadas de mais idade, moradoras somente em seus lotes. Contudo, os vizinhos não preenchem todas as lacunas provocadas pela solidão de todos os dias, mas colaboram para que os assentados, de algum modo, conformem-se e/ou adotem estratégias para amenizarem essas sensações, seja com as comadres, seja com a vizinhança que assume a função que caberia aos parentes.

A presença de parentes próximos também contribui de outras maneiras, especialmente quando estes se deslocam para o Colônia periodicamente para visitarem os pais e os avós. Nesses momentos, dialogam sobre a vida no assentamento e ajudam na realização de algumas atividades necessárias dentro do lote. Desse modo, são uma força de trabalho que agrega, e muito, no cotidiano desses velhos, tanto economicamente como emocionalmente.

Entre o número de velhos que vivem sozinhos em seus lotes, dois terços deles são constituídos por um casal de velhos. E, em um terço dos velhos, um deles já faleceu. Desse modo, a ideia de viver sozinho no lote pode ser vista de duas maneiras: para uns, há a companhia do cônjuge; para outros, há a solidão, literalmente. Nesse cenário, em ambos os casos, precisam contratar mão de obra externa ou contam com o apoio de parentes.

No tocante à sensação de solidão, naturalmente, aqueles velhos que já não contam com seus companheiros, pelo falecimento de um deles, convivem com essa realidade de diferentes maneiras, visto que precisam conviver com a sensação de solidão. Portanto, para essas pessoas, o círculo de vizinhança se torna imprescindível, pois nesse círculo é possível diminuir parte da sensação de solidão, como retrata uma assentada:

Os vizinhos aqui ajudam, toda vida eu gosto de ter gente aqui em casa. Eu falo: “ô gente, na minha casa eu não vivo isolada do mundo não”. Eu não saio de casa para passear, mas na minha casa vem muita gente. Não é aquela casa porque eu estou velha ninguém vai, aqui vem tanta gente. Eu adoro conversar, eu adoro as pessoas na minha casa, vichi! Eu me sinto bem aqui, não me sinto nem abandonada, nem sozinha. (Assentada no Colônia, Linha do Mané, 60 anos de idade. Entrevista gravada no ano de 2019).

Na interação social com os vizinhos, os diálogos promovem um bem-estar para ambos, e dessa relação surgem a troca de ideias, a externalização de suas vidas, ou seja, com esses laços a permanência do velho no assentamento se suaviza, numa troca, e, quando um precisa do outro, não medem esforços para se ajudarem. A esse respeito, Veras, Ramos e Kalache (1987, p. 228)VERAS, Renato P.; RAMOS, Luiz Roberto; KALACHE, Alexandre. Crescimento da população idosa no Brasil: transformações e consequências na sociedade. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 225-33, jun. 1987. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/50034-89101987000300007. Acesso em: 30 set. 2019.
http://dx.doi.org/10.1590/50034-89101987...
afirmam que uma “[...] importante modalidade de suporte social é obtida através dos sistemas informais de apoio que consistem nos parentes, vizinhos ou amigos. Essa estrutura social foi por muito tempo o referencial maior de apoio na comunidade, o qual, nos dias atuais, tende a diminuir”.

Nos dias atuais, a comunicação com a vizinhança ou mesmo os noticiários televisivos, acessíveis no Colônia, associados ao entretenimento, ajudam as pessoas do campo a sentiremse mais próximas umas às outras. Embora a telefonia nem sempre esteja à disposição, devido às oscilações do sinal, que chega fraco dentro do Colônia, assim mesmo conseguem fazer ligações e manter um canal permanente entre os moradores do Colônia e com os parentes que não vivem no assentamento. Esse é um fato importante, sobretudo, para os velhos, pois podem dialogar com vizinhos, combinar viagens, ter notícias dos parentes. Desse modo, não vivem o isolamento nem se faz necessário percorrerem uma distância significativa para se comunicarem, criando meios favoráveis nesse mundo moderno. Como aponta Bauman (1999, p. 21)BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.: “Dentre todos os fatores técnicos da mobilidade, um papel particularmente importante foi desempenhado pelo transporte da informação – o tipo de comunicação que não envolve o movimento de corpos físicos ou só o faz secundariamente e marginalmente”.

O telefone, para os velhos, é um canal de comunicação imprescindível, pois, em momentos de necessidade, como quando há algum animal doente, precisando de cuidados, o socorro chega, não carecendo deslocamento até a casa mais próxima para pedirem ajuda. Isso também acontece com os cuidados com a própria saúde: em momentos de enfermidade, os assentados velhos conseguem rapidamente socorro.

No assentamento Colônia Conceição, o trabalho realizado pelos velhos não se configura numa contribuição para a família, eles são a família que restou. Por isso, eles, em muitos casos, deparam-se com atividades que solicitam muito de suas forças físicas e, com isso, suscita um dilema: devem realizar mesmo com dificuldade ou relegar a tarefa para alguém mais jovem que possa desempenhá-la, mesmo que para isso necessitem contratar serviços?

É possível encontrar no Colônia lotes habitados por jovens e velhos, visto que, ao decidirem permanecer nos lotes, recebem alguns parentes para compartilhar das residências e dos trabalhos. São filhos, sobrinhos ou netos que vivem o dia a dia com pessoas velhas. Estes, por sua vez, colaboram com as atividades dentro do lote e geralmente acompanham os velhos até a cidade, como em dias de compra ou nas idas aos hospitais. Ou seja, estão sempre por perto para auxiliarem de alguma forma.

Identificamos 43 lotes com parentes que residem com velhos. Nesses, há casos de velhos que não conseguiriam sobreviver sozinhos, por conta da fragilidade da saúde, pela plena velhice. “A deterioração progressiva e gradual do potencial funcional que coincide com envelhecimento resulta, portanto, da perda de coordenação de sistemas rítmicos interdependentes” (NERI, 1993, p. 34NERI, A. L. Qualidade de vida e idade madura. São Paulo: Editora Papirus, 1993.). Por isso, são amparados pelos parentes que fazem o papel de cuidadores, já que a debilidade física dos velhos requer cuidados constantes.

No entanto, essa não é a regra, pois os velhos envelhecem de forma diferente, conforme o ritmo de vida e de possíveis doenças que os acometem. Em outras palavras, a quantidade de anos de vida de um velho nem sempre o debilita da mesma forma que outro. Para Bosi (1994, p. 79)BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994., “A velhice, que é fator natural como a cor da pele, é tomada preconceituosamente pelo outro. Há no transcorrer da vida, momento de crise de identificação”. O processo de envelhecimento é vivenciado por cada indivíduo com grau e intensidade diferente, seja pela questão ideológica, cultural, social, ambiental, biológica e psicológica. Ainda de acordo com Bosi (1994, p. 79)BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994., “O velho sente-se um indivíduo diminuído, que luta para continuar sendo um homem. O coeficiente de adversidade das coisas cresce: as escadas ficam mais duras de subir, as distâncias mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar”.

Nessas considerações de Bosi, aparece “o homem velho”, sentindo todos os efeitos da idade incidindo em seus corpos cansados. No entanto, as mulheres também sentem o peso da idade e, ainda mais, precisam lidar com seus desconfortos físicos. Contudo, no assentamento, a elas é exigido continuarem ativas em seus lares e, por isso, são cobradas como se tivessem em plena condição física para o trabalho. O cuidado, que sempre fora legado a elas, teima em continuar vivido, por meio dos olhares de familiares, vizinhos e estranhos, visitantes de suas casas. Consequentemente, as mulheres velhas continuam a cozinhar e a limpar as residências.

Para as pessoas velhas, os sentimentos, a coordenação motora e os reflexos vão sendo reduzidos ao longo do envelhecimento. Nesse sentido, podemos afirmar que uma pessoa velha vivencia não somente a velhice, pois, no momento em que se encontra em plena velhice, não há uma parada no tempo, mas vivencia um novo tempo, num processo de envelhecimento contínuo. Embora em plena velhice, muitos velhos desse grupo estudado contam com os parentes como companhia, para conversar, ajudar nas tarefas, como no leva e traz na condução de seus veículos, entre outros.

No entanto, a maioria dos velhos do assentamento Colônia são autônomos em suas decisões e escolhas do dia a dia e, mesmo em plena velhice, trabalham na construção de cercas, no manejo do gado, vão à cidade regularmente e sem a ajuda de terceiros. Para esses, a dinâmica da sua vida no Colônia permite viverem sem muitos sobressaltos e, assim, planejam novos arranjos dentro de seus lotes, gozando da condição de trabalho ainda vivido em si.

Outros velhos, por sua vez, diante das dificuldades próprias do campo, desejam ter alguém mais jovem por perto, o que traz uma sensação de segurança, mesmo que seja algo sutil e quase imperceptível. O sentido da companhia se mostra quando o velho precisa ser amparado. As atividades costumeiras são vistas como algo normal, ao qual os velhos fazem, mesmo tendo parte de sua capacidade física para o trabalho reduzida, por conta da velhice. Sobre isso, descrevem Skinner e Vaughan (1985, p. 74-5)SKINNER, B. F.; VAUGHAN, M. E. Viva bem a velhice: aprendendo a programar a sua vida. Tradução de Anita Liberalesso Neri. São Paulo: Editora Summus, 1985.:

Certamente não podemos nos manter fazendo tudo que fazíamos antes. Não importa quão bem tenhamos corrigido as imperfeições biológicas da idade, quantos aparelhos usemos, ou quão bem planejado e agradável seja nosso ambiente: estamos fardados a fracassar em algumas das coisas que anteriormente fazíamos bem.

Desse modo, a debilidade, causada pela condição que a vida em plena velhice provoca, é atenuada pelo parente que convive com eles. Contudo, nem sempre o parente sabe ou está disposto a realizar todas as atividades. Então, faz-se necessário contratar os serviços de terceiros para tais tarefas. Em suma, ter alguém que ainda se encontra em idade produtiva está contribuindo com a permanência do velho no assentamento Colônia Conceição. Acredita-se que essa companhia traz a sensação de segurança, que vai sendo perdida com o passar do tempo pelos velhos e velhas.

Diante das demandas econômicas e sociais das pessoas em idade produtiva, fruto do sistema capitalista, estar com os velhos no Colônia pode ser algo de momento, podendo saírem de lá quando conseguirem ingressar ou reingressar ao mercado de trabalho. Quando isso ocorre, deixam de ser companhia para os velhos, ficando estes sozinhos. Caso o velho esteja bem fisicamente, não sentirá tanto a ausência da partida dos mais jovens, mas aqueles que requerem cuidados especiais terão de lançar mão, de alguma maneira, para continuarem residindo no Colônia. Do contrário, terão de mudar radicalmente suas vidas, ou seja, mudarão para outro lugar, onde possam contar com parentes para auxiliá-los. Isso geralmente aponta para alguma cidade, para morar com parentes próximos, como relata a senhora de 80 anos:

Eu já fui morar na cidade com os filhos, porque meu marido está doente, ficamos três meses lá, não deu certo porque eu não gosto da cidade, então voltei para casa. Aqui eu cuido da casa, tenho minhas plantas, eu gosto daqui, a gente mora bem pertinho do asfalto. (Assentada no Colônia, linha da Ilza, 80 anos de idade. Entrevista gravada no ano de 2019).

No caso dessa família específica, verificamos, por meio dos filhos cuidadores, que o esposo da senhora de 80 anos está com Alzheimer. Por isso, requer cuidados constantes, e isso é realizado pelos filhos. Eles se revezam para cuidar dos pais. De acordo com os filhos, cada um fica uma semana de cada vez, na casa dos velhos. Contudo, dentre os 11 filhos, apenas quatro deles se dispõem a ficar com os pais. Essa foi uma saída encontrada para que os velhos pudessem continuar residindo no seu lote, porém, diante da idade dos donos do lote, esse revezamento dos filhos é algo que está ocorrendo agora, e não se sabe até quando será possível, para esses filhos, continuar garantindo aos pais a morada no lote.

3.2 Lotes com pessoas com menos de 59 anos

Nos 102 lotes com moradores abaixo dos 59 anos de idade, conforme o Quadro 1, estes realizam as atividades dentro dos lotes com relativa facilidade, visto que ainda se encontram em condições físicas que permitem lidarem com as mais variadas tarefas próprias do campo. Os assentados que compõem esse grupo conseguem desempenhar trabalhos de forma independente, como construção de cercas, roçada de pastos, lida com o gado de corte e/ou leiteiro, estando, de alguma forma, empenhados com as atividades do campo.

Quadro 1
Composição de moradores e lotes no assentamento

Outra situação diferenciada no assentamento é a da titulação dos lotes que os assentados detêm juridicamente. O assentamento foi emancipado pelo INCRA e, por isso, os assentados podem comercializar livremente suas terras. Consequentemente, multiplicam-se os novos moradores, entre eles, alguns profissionais liberais. São aposentados das iniciativas privada e pública que encontram seu lugar de sossego no Colônia. Esses novos moradores investem nos lotes de maneira acentuada, seja na reconstrução de cercas, seja na reforma das residências e em pastagens.

No entanto, esse processo não está isento de contradições, visto que a chegada dos novos altera a dinâmica da comunidade do assentamento, ora produzindo espaços vazios, quando um único assentado adquire diversos lotes próximos, formando uma única área e com uma única residência, ora quando o novo morador tem na área adquirida um espaço de lazer, e não de produção. Em ambas as situações, dá-se uma ruptura nas relações entre a vizinhança, visto que as comadres e os vizinhos migram ou vão ficando mais distantes, aumentando a sensação de isolamento e, também, de insegurança pelo aumento dos transeuntes, que buscam desfrutar as áreas de lazer, fato que suscita nos antigos moradores curiosidade e desconfiança.

Desse modo, o novo grupo populacional, que tem acessado os lotes no Colônia, pode ser descrito como múltiplo, plural, pois são oriundos de diversos lugares, com as mais variadas profissões. Estes são acrescidos dos antigos moradores que, embora ainda em idades produtivas, são, em sua maioria, trabalhadores braçais acostumados com a lida no campo e residem no assentamento Colônia Conceição há muitos anos.

Cabe salientarmos que há um acréscimo da população mais jovem no Colônia. Mas isso não se dá pelo aumento da taxa de natalidade. O que está ocorrendo é o envelhecimento da população e por uma série de razões, dentre elas, o fato de alguns velhos estarem indo embora para a cidade e os seus lotes estarem sendo comprados por pessoas que ainda se encontram em idade produtiva.

As pessoas que estão adquirindo os lotes desses velhos, na maioria dos casos, já possuem outros lotes no assentamento, ou seja, estão acumulando terras, no intuito de ampliar seu rebanho de gado, fato que gera um vazio demográfico e, ao invés de ampliar contingente populacional, ocorre o contrário. Contudo, a presença de parentes retornando das cidades para morarem com os velhos também vem ocorrendo e pode estar ligada ao momento econômico do Brasil, com aumento do desemprego e da crise econômica. Logo, inferimos que isso, de alguma forma, está ocasionando esse regresso.

Mesmo assim, no assentamento, observamos elevado número de casas vazias, crescente a cada ano, provocando mudanças na dinâmica do lugar. Habitações antes cheias de vida se encontram, atualmente, com um vazio melancólico, pois nelas não mais habita a vida humana. E a historicidade dos velhos que nelas residiam está marcada na organização do entorno das residências, manifesta nas plantas, no jardim de cada habitação, sobretudo nas flores, muito cultivadas pelas pessoas de idade mais avançada e que evidenciam que ali vivia uma pessoa velha.

Ainda no conjunto de lotes com moradores no assentamento Colônia, encontramos um pequeno número deles sob a posse de herdeiros, que neles residem, totalizando 19 lotes. Embora seja pequena a quantidade de lotes nessa situação, não existe garantia na sucessão da terra, visto que, na grande maioria, os herdeiros são de famílias numerosas e precisam negociar com o todo para continuarem residindo no lote e explorá-lo economicamente. Os herdeiros que estão nos lotes constantemente estão negociando a permanência sobre os olhares dos demais herdeiros. No entanto, nem sempre em condições de solucionar, haja vista que o valor do lote ultrapassa as condições econômicas de quem está nele morando e, assim, dificilmente chegará a comprar a parte dos outros.

Nos casos onde nenhum herdeiro se dispõe a morar no lote, após o falecimento dos pais, o lote se torna vazio. Consequentemente, configura-se como uma porta para a especulação imobiliária. Assim, esses herdeiros passam a ser assediados a venderem lotes. Contudo, podem eles mesmos criar gado, terceirizando os cuidados do lote e animais aos outros moradores. A outra forma possível está no arrendamento dos pastos para vizinhos, que atualmente são criadores de gado no Colônia e entorno.

Em relação aos lotes sem moradores, os quais não têm pessoas residindo mesmo havendo a edificação dentro deles, somam 143 lotes, conforme Quadro 1. Estes foram comercializados por aqueles assentados que saíram do assentamento ou são de herdeiros que mantêm o lote, mas sem uso. Há ainda, nessa soma, velhos que deixaram os lotes para viver em outros lugares, próximos a parentes, mas fora do assentamento. São lotes onde não se encontram animais domésticos ou qualquer indício da presença diária de moradores.

Contudo, a área da pastagem, ou seja, quase a totalidade dos lotes, é usada com a criação de gado de corte, sendo a antiga moradia, quando mantida, destinada apenas a guardar alimento bovino, salvo em alguns casos onde o espaço da casa foi transformado num lugar de festas, para lazer nos dias de feriado e fins de semana. A maioria desses lotes é de assentados que já possuem outros lotes dentro do Assentamento Colônia Conceição e vivem em um deles. Por isso, as residências das áreas adquiridas não recebem atenção no que se refere à manutenção/ ampliação e aos cuidados para com o seu entorno, demonstrando que a intenção está apenas nas terras e áreas de pastagens.

Para explorarem essas propriedades, contratam mão de obra local, a fim de roçar os pastos e realizar os cuidados com o gado. Como estão acumulando lotes, estão também sujeitando a renda da terra e o trabalho ao capital. Mesmo vazios da presença humana nas residências, são lotes onde ocorre a exploração contínua dos proprietários com a pecuária, mantendo rebanho considerável, na maior parte do ano. Ou seja, por mais que não se verifique presença de pessoas nas casas, a exploração extensiva do lote é contínua. Contudo, essa exploração tem um preço, convertido em compra dessa terra, entendido aqui como o capital se exaltando em detrimento da vida humana, e, nessa lógica, o lote de terra, que deveria ser explorado pelo assentado, passa a ser um espaço de flutuação do capital em curso.

O fato de que a terra, através do próprio proprietário, se ergue diante do capital para cobrar um preço pela sua utilização, apesar de não ter sido produzida pelo trabalho humano e, muito menos pelo trabalho já apropriado pelo capital, nos mostra que estamos diante de duas coisas diferentes. Uma é o fato de que a terra não é capital. A outra é a contradição antepõe a terra ao capital. Quando o capitalista paga pela utilização da terra, está, na verdade, convertendo uma parte de seu capital em renda; está imobilizando improdutivamente essa parte do capital, unicamente porque esse é o preço para remover o obstáculo que a propriedade fundiária representa, no capitalismo, à produção do capital na agricultura. Essa imobilização é improdutiva porque ela sozinha não é suficiente para promover a extração de riqueza da terra, para efetivar a produção agrícola. (MARTINS, 1983, p. 161-2MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. As lutas sociais no campo e o seu lugar no processo político. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora. Vozes, 1983.).

A quantidade de lotes nessa situação aumenta anualmente, pois, diante da possibilidade econômica, qualquer pessoa que dispõe de recursos pode comprar um ou mais lotes no Assentamento Colônia Conceição. Nesse cenário, não há a necessidade de residir dentro do lote, haja vista que possuem os documentos cartoriais, salvaguardando-os de qualquer contestação sobre a posse e uso da terra. Assim, anos após anos, algumas famílias vão ampliando suas terras e intensificando o vazio demográfico.

Somam 19 os lotes que pertencem a velhos não residentes neles, mas ainda detêm sua posse. Atualmente, são destinados à finalidade de criar gado, na condição de arrendamento, sem terem sido comercializados, mas se encontram vazios da presença de moradores. Contudo, esses têm uma dinâmica diferente, há o cuidado com a residência, que pode voltar a ser habitada pelo proprietário ou pelos herdeiros. Com isso, os pomares continuam sendo cuidados, a fim de preservarem o legado, fruto do trabalho do idoso, ao longo da sua vida no Colônia.

O sentido do pertencimento se faz presente e os motiva a manterem preservadas as memórias dos trabalhos ali realizados, materializados nas construções, na preservação de algumas árvores-símbolo, bem como no cultivo de plantas, elementos que nos remetem às observações de Bosi (2003, p. 23-24)BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de pesquisa social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003., quando diz que a memória: “Existe dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias; tal como nas paisagens, há marcos no espaço onde os valores se adensam”. Ou seja, o trabalho de uma vida inteira no Colônia teima em ficar vivido, embora o assentado não esteja mais ali presente. O simples fato de continuar sendo dono da área serve como orientação para manter o lote tal como o assentado deixou.

As motivações que levam esses velhos a saírem são tantas, mas podemos numerar algumas, como: a condição de saúde do velho, o incentivo de filhos a morarem mais perto dos centros médicos, o desejo de descansar de uma atividade de uma vida toda, o sonho de mudar de vida, mesmo em plena velhice, a sensação de sair de um vazio em que suas vidas estão após a saída dos filhos, entre outras.

Porém, as motivações, as quais fazem um velho sair dos lotes, são questões próprias da humanidade. O ir e vir sempre foi elemento presente nas sociedades humanas, ou seja, existe uma série de motivos que levam as pessoas a buscarem outros lugares, algo que lhes falta onde estão, seja por escolha própria, seja por escolhas de terceiros, sobretudo na velhice, como aponta Skinner e Vaughan (1985, p. 81)SKINNER, B. F.; VAUGHAN, M. E. Viva bem a velhice: aprendendo a programar a sua vida. Tradução de Anita Liberalesso Neri. São Paulo: Editora Summus, 1985.:

Usualmente a velhice significa mudanças quanto a onde e como vivemos. Talvez mudemos para uma casa menor; talvez para um país ou clima mais quente; para mais perto (ou mais longe) de nossos filhos; para perto de coisas de que gostamos especialmente, ou para um local menos dispendioso.

No Colônia, a dinâmica de sair do seu lugar de moradia pode ser muito dolorosa, pois a memória de uma vida de trabalho se reparte em duas, quando o velho sai do lote para morar mais próximo dos filhos nas cidades. No entanto, mesmo com a saída dos velhos dos lotes, o fato de não os terem comercializado significa o desejo de preservar a parte materializada do trabalho e a conquista de décadas. Desse modo, concordamos com Bosi (2003, p. 36)BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de pesquisa social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. ao afirmar:

Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando com as percepções imediatas, como também empurra, “descola” estas últimas, ocupando o espaço todo das consciências. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.

Essas memórias impressas naqueles lotes deixados no Colônia nem sempre são compreendidas pelos parentes, pois, em certa medida, é possível encontrar situações em que os parentes pressionam os velhos a se desfazerem dessa parte da memória, ou seja, dos lotes, antevendo também o interesse pelo valor que receberiam com a comercialização deles.

Enfim, na totalidade dos lotes do assentamento Colônia Conceição, encontramos a maior parte dos/as assentados/as pertencentes ao grupo de pessoas de 60 anos ou mais, vivendo a fase da velhice. E, mesmo nessa etapa da vida, ainda estão atuantes no fazer produtivo dos lotes, em que o cotidiano de trabalho exige esforço físico, apesar da saída dos filhos3 3 Nos referenciais teóricos sobre assentamentos, encontramos diversos estudos investigando a saída da juventude, dentre eles o estudo de Elisa Guaraná, intitulado “Entre ficar e sair”, publicado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2013. No entanto, não encontramos significativo número de reflexões sobre a velhice, tema que acreditamos ser de significativa importância para se compreender a totalidade dos assentamentos rurais de Mato Grosso do Sul. . Deparamo-nos com pessoas velhas, mas ativas, cheias de planos, criando estratégias para a permanência em área de assentamento, mesmo diante de limitações impostas pela faixa etária em que se encontram.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar o viver a velhice no assentamento Colônia Conceição se constituiu num instrumento que apresenta, ao mesmo tempo, os muitos resultados decorrentes da instalação de assentamentos no município de Nioaque (e mesmo no Brasil), que não podem ser vistos apenas pelo viés do sucesso e insucesso econômico em termos de produção, levando a considerar outros elementos, como o viver com dignidade. Nessa esteira, constituem-se em lugares de direitos: da produção de alimentos, com olhar sobre o meio ambiente; da manutenção de referenciais culturais nutridos por determinados grupos sociais; da produção conforme as próprias necessidades das comunidades, mesmo nutrindo certo viés de mercado; e, especialmente, no direito à vida e do viver a velhice com sossego merecido, como uma recompensa pela labuta empreendida na trajetória das muitas andanças, até a chegada à morada da vida, no assentamento Colônia Conceição.

É fato que, nos 34 anos de implantação do assentamento, houve recomposição familiar, com a saída dos jovens, que resultou na reorganização de projetos, o que se evidencia, atualmente, com pecuária leiteira e de corte, atividades principais desenvolvidas nos lotes, que supostamente não exigem a mesma intensidade de esforços físicos que o cultivo agrícola requer, como no gradear, plantar, limpar, adubar, colher e armazenar. A pecuária tem menor número de etapas de dedicação e permite geração de renda mensal, mas exige vigor físico. Esta atividade, quando reunida a outros rendimentos, como a aposentadoria rural que as pessoas velhas do Colônia estão acessando, oportuniza um viver sossegado financeiramente, que, associado à tranquilidade do lugar, promove um envelhecimento e uma vida com conforto. O modo como cada família se relaciona no Colônia Conceição, transformando o espaço, formando a morada da vida, constituise num elo que mantém as pessoas velhas nos lotes do assentamento.

Enfim, os/as assentados/as, ao viverem a velhice em seus lotes, demonstram resistência, visto que a luta pela terra que os/as levou até o assentamento está sendo por eles/elas mantida, trabalhando e administrando seus cotidianos de trabalho, insistindo em viverem na morada da vida.

  • 2
    Menegat (2009)MENEGAT, Alzira Salete. No coração do Pantanal: assentados na lama e na areia – as contradições entre o projeto do estado e dos assentados no assentamento Taquaral-MS. Dourados, MS: Ed. UEMA / Ed. UFGD, 2009. aborda esse tema em pesquisa no assentamento Taquaral, onde concluiu que o INCRA, ao assentar pessoas descapitalizadas em terras inapropriadas para o cultivo de produtos agrícolas, as quais não detêm poder econômico para melhoria do potencial do solo, acabam por não efetivar a inclusão social e produtiva. Apenas assentar não resolve, isso apenas visa a cumprir protocolo de que o Estado fez a parte dele, assentou famílias. Não considerar os critérios adequados para assentamento lançou-as a sua própria sorte, e por isso a expulsão de que nos fala a autora, com migração daquelas que não encontraram estratégias para viabilizar a permanência, resultando na reconfiguração da área por aquelas que dispõem de melhores condições para permanecer.
  • 3
    Nos referenciais teóricos sobre assentamentos, encontramos diversos estudos investigando a saída da juventude, dentre eles o estudo de Elisa Guaraná, intitulado “Entre ficar e sair”, publicado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em 2013. No entanto, não encontramos significativo número de reflexões sobre a velhice, tema que acreditamos ser de significativa importância para se compreender a totalidade dos assentamentos rurais de Mato Grosso do Sul.

REFERÊNCIAS

  • ABREU, Maria Celei de. Velhice: uma nova paisagem. São Paulo: Editora Agora, 2017.
  • BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
  • BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de pesquisa social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
  • BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 19. ed. São Paulo: Editora. Companhia das Letras, 1994.
  • BRASIL, Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso. 1. ed., 2ª reimpr. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico. Portal do IBGE, Rio de Janeiro, 2010.
  • HEREDIA, Beatriz Maria Alásia. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores no Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979.
  • MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. As lutas sociais no campo e o seu lugar no processo político. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora. Vozes, 1983.
  • MENEGAT, Alzira Salete. No coração do Pantanal: assentados na lama e na areia – as contradições entre o projeto do estado e dos assentados no assentamento Taquaral-MS. Dourados, MS: Ed. UEMA / Ed. UFGD, 2009.
  • NERI, A. L. Qualidade de vida e idade madura. São Paulo: Editora Papirus, 1993.
  • REIS, Débora Martins Moreti. O envelhecimento em Dourados-MS: influência(s) de um centro de convivência de idosos na vida dos usuários. 2016. 139f. (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2016.
  • SCALON, Maria Celi. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências. Rio de Janeiro: Editora Revan / IUPERJ-UCAM, 1999.
  • SILVA, Maria Aparecida de Morais. A luta pela terra: experiências e memórias. São Paulo: Ed. UNESP, 2004.
  • SKINNER, B. F.; VAUGHAN, M. E. Viva bem a velhice: aprendendo a programar a sua vida. Tradução de Anita Liberalesso Neri. São Paulo: Editora Summus, 1985.
  • VERAS, Renato P.; RAMOS, Luiz Roberto; KALACHE, Alexandre. Crescimento da população idosa no Brasil: transformações e consequências na sociedade. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 21, n. 3, p. 225-33, jun. 1987. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/50034-89101987000300007 Acesso em: 30 set. 2019.
    » http://dx.doi.org/10.1590/50034-89101987000300007

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2020
  • Revisado
    28 Dez 2020
  • Aceito
    10 Abr 2021
Universidade Católica Dom Bosco Av. Tamandaré, 6000 - Jd. Seminário, 79117-900 Campo Grande- MS - Brasil, Tel./Fax: (55 67) 3312-3373/3377 - Campo Grande - MS - Brazil
E-mail: suzantoniazzo@ucdb.br