Abstract
A agricultura passou por mudanças estruturais, modificando o seu modelo de produção, as relações de trabalho, sociais, ambientais e culturais. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo compreender como se constituem as identidades culturais dos agricultores agroecológicos nos seus processos de (re)existências no município de Verê, Paraná. Como metodologia, optamos pela etnografia. Assim, para atingir o objetivo proposto, foram realizadas nove entrevistas em propriedades rurais familiares inseridas nas dinâmicas socioambientais agroecológicas e presentes no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO). O município está localizado na região Sudoeste do estado do Paraná, uma área de destaque pelas questões agroecológicas. Como resultados, podemos aferir que os agricultores entrevistados se identificam de diferentes formas, apresentam diversificações na produção e na forma de compreender suas realidades. No entanto, é possível perceber que, pela inserção da Agroecologia e seus aportes, existe o início de uma formação de identidade cultural, a qual apresenta características que tornam os agricultores entrevistados uma (re)existência ao modo convencional de produção agrícola. Sendo assim, percebe-se uma identidade cultural formada em torno das questões agroecológicas.
Palavras-chave:
agroecologia; identidade cultural; resistência camponesa; sustentabilidade ambiental; agricultura sustentável.
Abstract
Agriculture has undergone structural changes, modifying its production model, labor and social, environmental and cultural relations. In this sense, this article aims to understand how the cultural identities of agroecological farmers are constituted in their processes of (re)existence in the municipality of Verê, Paraná. As a methodology, we chose ethnography. Thus, to achieve the proposed objective, nine interviews were carried out on family rural properties that are part of the agroecological socio-environmental dynamics and present in the National Register of Organic Producers (CNPO). The municipality is located in the Southwest region of the state of Paraná, an area notable for agroecological issues. As a result, we can see that the farmers interviewed identify themselves in different ways, present diversifications in production and in ways of understanding their realities. However, it is possible to see that, through the insertion of Agroecology and its contributions, there is the beginning of the formation of a cultural identity, which presents characteristics that make the interviewed farmers a (re)existence in the face of the conventional mode of agricultural production. Therefore, it is possible to see a cultural identity formed around agroecological issues.
Keywords:
agroecology; cultural identity; peasant resistance; environmental sustainability; sustainable agriculture.
Resumen
La agricultura ha sufrido cambios estructurales, modificando su modelo productivo, laboral y sus relaciones sociales, ambientales y culturales. En este sentido, este artículo tiene como objetivo comprender cómo se constituyen las identidades culturales de agricultores agroecológicos en sus procesos de (re)existencia en el municipio de Verê, Paraná. Como metodología elegimos la etnografía. Así, para lograr el objetivo propuesto se realizaron nueve entrevistas a propiedades rurales familiares que forman parte de la dinámica socioambiental agroecológica y presentes en el Registro Nacional de Productores Orgánicos (CNPO). El municipio está ubicado en la región Suroeste del estado de Paraná, región destacada por cuestiones agroecológicas. Como resultado, podemos ver que los agricultores entrevistados se identifican de diferentes maneras, presentan diversificaciones en la producción y diferentes formas de entender sus realidades. Sin embargo, es posible ver que, a través de la inserción de la Agroecología y sus aportes, se inicia la formación de una identidad cultural, la cual presenta características que hacen que los agricultores entrevistados sean una (re)existencia frente al modo convencional de producción agrícola. Por lo tanto, se percibe una identidad cultural formada en torno a las cuestiones agroecológicas.
Palabras clave:
agroecología; identidad cultural; resistencia campesin; sostenibilidad ambiental; agricultura sostenible.
1 INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, a agricultura passou a ser um setor inserido, fortemente, na lógica de mercado, transformando o rural, sua população, seus saberes e as vivências agrícolas em um modo de vida inserido no capitalismo moderno (Abramovay, 2003). Anterior a esse período de transformações mais intensas, os processos agropecuários e a própria vida campesina moviam-se sobre saberes geracionais (Ploeg, 2009), isso para grande parte da população rural.
Os saberes modernos transformaram a relação da agricultura com a natureza, os plantios se tornaram menos biodiversos, embora produtivos. Já em relação às sementes, essas apresentam grande dependência de insumos sintéticos provindos da indústria. Os olhares modernos implantaram transformações socioculturais (Seyferth, 2011), que ocasionaram diferentes modos de manejos agrícolas, envolvendo-os em ciclos capitalistas, tornando-os dependentes do mercado e do dinheiro, o que se denomina de agricultura convencional. Esse modelo de produção produziu transformações que geraram crises socioambientais, com degradações ambientais e desigualdades sociais.
A partir das crises produzidas por esse modelo, surge a necessidade eminente de repensar o modelo de agricultura, pautando-se agora na sustentabilidade e em um desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, a partir da década de 1970, ganha força a Agroecologia, a qual se apresenta como uma ciência que propõe resistência e alternativas ao modelo de agricultura convencional (Leff, 2002). Ela deve ser compreendida como uma ciência holística, baseada na biodiversidade, na preservação sociocultural, na transdisciplinaridade, na equidade e no equilíbrio (Caporal, 2009). Assim, ela vai além dos tratos produtivos, conclamando a ressignificação dos atores sociais diante da relação com a natureza (Ploeg, 2009) e expressando-se de formas sustentáveis.
Leff (2002) apresenta a Agroecologia como um dos principais expoentes para a transformação rural sustentável, baseada em uma agricultura ecológica e de ação social coletiva, apresentando-se antagônica ao modelo agroindustrial hegemônico, o qual explora humanos e a natureza no sentido econômico, desprezando a complexa ontologia da vida. Desta forma, ela se apresenta como uma alternativa para o desenvolvimento sustentável, trazendo dignidade social em sua resistência ao modo convencional e possibilitando a alternativa para uma economia sustentável, o que pode ser percebido nos processos regionais.
Partindo do pressuposto de que o processo de identificação se relaciona com a alteridade, ou seja, começa na relação com o outro, é possível se identificar a partir de um jogo de diferença (Seyferth, 2011; Hall, 2020). Hall (2020) expressa que vários sujeitos distintos podem criar uma identidade em comum, apresentando-se como resistência ao grupo hegemônico ou não se identificando com ele. A resistência é um processo mais coletivo e estável que a identificação, englobando conceitos coletivos de cultura, nação, etnia, entre outras formas de identificação.
Nesse sentido, a Agroecologia, ao se apresentar como uma alternativa à agricultura convencional, pode gerar uma identificação comum nos sujeitos que a compõem, delimitando fronteiras e, quem sabe, um caminho para a construção de uma identidade cultural de resistência. Ademais, vivemos atualmente uma crise de identidades, gerada pelo processo de globalização e pela crise da modernidade.
Nesse sentido, é fundamental compreender a formação de identidades culturais no rural, a partir dos movimentos ecológicos e pautados nos princípios da Agroecologia como pressupostos de (re)existências ao modelo convencional de desenvolvimento. Assim sendo, o presente artigo tem como objetivo compreender como se constituem as identidades culturais dos agricultores/as agroecológicos nos seus processos de (re)existências no município de Verê, Paraná.
2 APORTE METODOLÓGICO
A região do Sudoeste do Paraná, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), apresentava, em 2022, uma população de 662.600 habitantes na região. Conforme o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES) (2017), a região tem sua forte ligação com a migração, especialmente a italiana e alemã, a partir de 1940. Essa migração teve seu papel na transformação da região, em questões territoriais, agrícolas, culturais e sociais.
Já o município de Verê, PR, localizado na região sudoeste paranaense, tem 7.932 habitantes e 1.011 estabelecimentos rurais (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2018; 2022), tornando-se um município predominante pela agricultura familiar. Ainda, é constante a participação de entidades relacionadas com a agroecologia no município, cabendo destaque: ao Centro de Apoio e Promoção a Agroecologia (CAPA), no ano de 1996; à Associação de Produtores Agroecológicos de Verê, em 2001, que, no ano de 2015, transformou-se na Cooperativa dos Produtores Orgânicos e Agroecológicos do Sudoeste do Paraná (COOPERVEREDA); a Cooperativa de Sucos e Alimentos de Verê (COOPERVIVE); e à Indústria de Sucos Viry Ltda. - Suco de Uva Orgânico.
A pesquisa se pautou na metodologia etnográfica. Segundo Uriarte (2012, p. 4), o método etnográfico é “uma forma de nos aproximarmos da realidade que nos propomos estudar e entender”. Para Geertz (1989, p. 20), a etnografia,
[...] é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato - a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados - é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares, inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar.
A etnografia é uma metodologia qualitativa que se utiliza de ferramentas como entrevistas, registros fotográficos e diário de campo. Destarte, para atingir o objetivo proposto, optamos pela realização de entrevistas e visitas nas propriedades rurais familiares selecionadas. Para Gil (2002), a entrevista é uma das técnicas mais utilizadas para a investigação social. Segundo o autor, ela é uma técnica flexível e eficiente que permite, entre outros, obtenção de dados em profundidade e versões sobre diferentes aspectos da vida social. Ainda, possibilita captar dados objetivos e subjetivos, o que enriquece a análise da pesquisa.
Para a seleção das propriedades familiares, foi consultado o Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO), com o intuito de buscar agricultores(as) produtores(as) agroecológicos no município. Assim, foi possível constatar que, em Verê, até maio de 2022, existiam 30 estabelecimentos certificados de produção orgânica no CNPO, incluindo produtor individual e empresas. Nesse sentido, foram retiradas três cooperativas da amostragem, permanecendo, então, o escopo de 27 produtores orgânicos individuais para o contato. Desses, após direcionamento CAPA - Verê, foram selecionadas 9 propriedades que estão inseridas nas dinâmicas socioambientais agroecológicas e presentes no CNPO.
O roteiro de entrevistas contou com informações sobre: identificação; composição familiar; histórico pessoal da família e a relação com agroecologia; renda e comercialização; e questões sociais. Durante as entrevistas, buscaram-se os elementos que proporcionassem uma descrição e análise dos dados e informações, para fundamentar a compreensão das identidades culturais dos sujeitos envolvidos com a agroecologia no município.
As entrevistas foram de forma livre, deixando que o entrevistado transcorresse livremente seus pensamentos. Ademais, para cada entrevistado foi escolhido um nome fictício que refletisse suas identidades, suas histórias ou algum traço importante que se destacava em suas singularidades nos processos de identificação. É importante salientar que, para este artigo, destacamos algumas das falas dos entrevistados, mas não necessariamente de todos eles.
3 IDENTIDADES DE (RE)EXISTÊNCIA DA AGROECOLOGIA DE VERÊ
Hall (2020) expressa que a construção da identidade cultural de maneira alguma é um processo estável e sim um processo em eterna construção. Algo nunca está completamente determinado no processo de identificação; uma pessoa pode se identificar com algo e, em outro momento, não mais. Como ocorre em outras práticas de significação, tais como a da identidade cultural, a identificação também está sujeita à questão da diferença, em que, muitas vezes, nós somos aquilo com o que não nos identificamos, fazendo delimitações de fronteiras. Diferente da identificação, podemos ver a identidade cultural como um processo mais amplo e comunitário do que a identificação, e um tanto mais duradouro.
Orientados por essa reflexão, nós questionamos os agricultores com a pergunta “Como você se identifica quando perguntado o que faz? Sua profissão? O que é ser agroecológico para o(a) senhor(a)? Você se identifica com essa descrição? Em que sentido?”. Para Milho Crioulo, de 62 anos, agricultor agroecológico com certificação orgânica e proprietário de um moinho e guardião de sementes, seria:
Sou um agricultor agroecológico e pequeno agricultor. No caso da indústria, é mini, porque não chega nem a ser pequeno, é mini [...] Sim, com certeza sou um agricultor agroecológico. Porque a gente sempre, desde os tempos do pai, ali, nunca usava veneno, né? E daí, depois, uma época foi plantado fumo, e daí ‘se’ acabamos [...] se contaminando uma época lá, e resolvemos abandonar de vez os venenos (Milho Crioulo).
Fica evidente esse jogo da diferença na identificação do Milho Crioulo, pois, quando expressa aquilo que ele não é, ele começa a se identificar com aquilo que ele é. Milho Crioulo não se percebe com o uso de “venenos” e, assim, inicia-se sua identificação com as questões agroecológicas. Contudo, esse jogo da diferença de Milho Crioulo não fica restrito apenas ao não uso de herbicidas, fungicidas e entre outros, mas também na característica da propriedade, conforme a fala:
Temos 9,7 alqueires, mas deve dar em torno de uns 35% mais ou menos, de área de mata. Até os caras do IBAMA disseram, ‘Por que você não aluga isso aí?’ Não adianta daí, o cara de repente vem ali, está alugado, torna em pó, e coisa e tal, deixa quieto, deixa em mata [...].
Como expressa Buttel (1995), a Agroecologia é um modo de fazer agrícola do cuidado, o cuidado com as pessoas e com o mundo natural e social. Nessa perspectiva, vemos o relato de Luterano, que converge em partes com essa concepção. Ao relatar sobre a transição para a produção certificada orgânica, ele fala:
Comecei, faz 5 anos atrás, com o orgânico e agroecológico. Quando eu tava na cidade, já tinha a intenção de voltar pra produzir hortaliças, né? Verduras, já dentro da área orgânica, né? Então, eu peguei orientação no CAPA ali, daí eles me orientaram no processo. Fiquei 3 anos em transição, numa área sem usar adubo, sem usar veneno. Depois, comecei na cooperativa. Daí tivemos que modificar um pouco a propriedade, criar barreiras, essas coisas assim. E umas partes já ‘tinha’ barreiras, e umas tivemos que ter que fazer. Tem áreas ainda que a gente tá fazendo a transição, que tem que implantar ainda, né? Ainda não tá 100%. E as nascentes, a gente já tinha ‘protegidas’ lá no meio do mato (Luterano).
Nesse sentido, podemos ver o relato de Luterano, sobre a transformação da propriedade com características essenciais para um fazer agroecológico, e as falas da autoidentificação do Milho Crioulo convergentes às características agroecológicas expressadas por Buttel. As identificações expressas por Milho Crioulo são características que fazem parte da base para a construção de sua identidade cultural, que é muito maior e mais complexa que apenas as identificações com o fazer agroecológico, englobando também suas características étnicas, religiosas, entre muitas outras identificações.
A exemplo, temos a fala do irmão do Milho Crioulo, que reside também na propriedade. Parreiral Italiano é um agricultor de 60 anos que possui um parreiral. Assim,
Ontem mesmo veio o “Vizinho”. Ele veio aqui, ele chegou aqui, estacionou o fusquinha dele e foi levar o milho pro “Milho Crioulo”, para fazer a farinha do milho pra ele lá e tal. Ele falou assim, ‘Eu gosto dessas coisas, eu vim aqui e eu gosto de olhar o capricho que você tem, mas isso aqui só italiano tem. Alemão não faz isso’. Eu perguntei, ‘Mas por quê?’, e ele falou, ‘Não é da nossa índole. Já o italiano, você pode ir na casa de qualquer italiano e tem um pé de parreira’, e falou, ‘Agora nem tanto, mas antigamente na casa do italiano, se não tivesse parreira, não era a casa do italiano’. Ele falou, ‘Já no nosso lado, o que tinha nos alemães? Era queijo, era nata, era leite, era não sei mais o quê. E assim, como posso dizer, cada ajuntamento de uma raça tinha uma característica específica’. Eu achei interessante isso. Eu não tinha me tocado. Ele falou, ‘Eu gosto de vir aqui olhar isso porque eu sei que essa dedicação que você tem eu não tenho. Eu não vou conseguir parar, ir lá pegar cacho por cacho da parreira, fazer isso, fazer aquilo que se faz’, então ele falou assim, ‘Realmente, é uma coisa da identidade da raça’, e eu achei interessante isso, eu não tinha me tocado porque a gente faz (Parreiral Italiano).
Essas características e identificações étnicas, expressas pelo Parreiral Italiano, remetem a uma identidade cultural italiana. É possível observar o processo o qual Hall (2020) apresenta como o “jogo da diferença”, em que a diferenciação de um sujeito da etnia alemã e a de um sujeito da etnia italiana se dá pela diferença dos dois; ou seja, a própria identidade se constrói pelo outro. Dessa forma, Parreiral Italiano buscou reafirmar sua identidade através da sua diferença, da família e da sua propriedade. Com isso, podemos começar a trilhar o processo de aproximação de algumas características que constroem a identidade cultural de ambos os entrevistados.
Briskievicz (2012) aborda a relação da identidade com o território, tratando de como se configurou o território do município de Francisco Beltrão, PR, a partir da constituição de identidade dos migrantes de descendência italiana, em relação à formação de identidade dos imigrantes europeus no sul do Brasil. A autora, em sua pesquisa, insere uma ênfase maior para o papel dos migrantes de descendência italiana na composição cultural e territorial daquele município. Logo, a identidade italiana no sudoeste paranaense não é a mesma do imigrante italiano que se instalou no estado do Rio Grande do Sul, pois surgem “novas territorialidades e características identitárias, através da incorporação de novos elementos e relações sociais que surgem através do tempo” (Briskievicz, 2012, p. 28).
Desta maneira, podemos compreender a identidade cultural de um sujeito em um processo contínuo de transformação. As identidades de Milho Crioulo e Parreiral Italiano não são as mesmas identidades de um descendente de italiano do estado do Rio Grande do Sul, e não são a mesma identidade de um italiano nato, pois todos os processos históricos, migratórios, sociais e territoriais afetaram a construção identitária desses sujeitos.
Hall (2020) ao tratar sobre a noção de identidade cultural, buscou expressar a transformação no decorrer da história sobre esse termo e como ele se configura na identidade cultural na nossa atualidade. Na modernidade, deu-se o processo no âmbito mais complexo; a identidade liga-se ao sujeito sociológico, formando uma identidade cultural desse sujeito com maior concepção de alteridade, uma maior interação entre o “eu” e a sociedade, mas ainda mantendo uma noção interior do “eu”, de forma a interiorizar a exterioridade em seus significados e valores, tornando o exterior como parte da identidade cultural do sujeito sociológico. Isso forma uma forte relação do sujeito com o exterior, trazendo uma estabilidade aos mundos culturais que ele habita, expressada fortemente por questões nacionais e étnicas (Hall, 2020). Esses aspectos identitários ainda são observáveis, com repercussões desse tipo de identificação e identidade, como no relato do Parreiral Italiano.
Segundo Hall (2020), teremos ainda a transformação da identidade cultural do sujeito sociológico para o pós-moderno, processo que ocorre quando as estruturas tidas como estáveis e inabaláveis da modernidade, nas quais a identidade cultural do sujeito sociológico fortemente se ancorava, por meio do mundo moderno e dos estados-nação, começam a ruir. Com isso, começa a se dar espaço a um novo tipo de identidade cultural, a do sujeito pós-moderno, a qual “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (Hall, 2020, p. 12).
Por conseguinte, levamos em conta que a identidade cultural dos sujeitos da nossa atualidade, como de Milho Crioulo e Parreiral Italiano, não é formada unicamente de maneira coesa e estável, ou em um estado-nação delimitado, como foi a identidade do sujeito sociológico, mas sim por diversas identidades e identificações. Explana Hall (2020, p. 12) que a “identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”, pois vivemos em um estágio da globalização. Todos os cantos do mundo se interconectam e dividem informações em tempo real. Esses diversos contatos afetam a construção identitária, fazendo com que possamos ter diversas “identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente”.
Simultaneamente, com a crise da modernidade e o ruir das suas estruturas, surge essa crise da identidade, que perpassa as estruturas da modernidade tardia e do sujeito pós-moderno. Essa crise “é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (Hall, 2020, p. 7).
A crise de identidade é apenas uma das crises modernas ou apenas uma parte de uma única crise maior que assola nossa contemporaneidade. Logo, a Agroecologia é um reflexo da crise moderna. Caporal (2009), ao falar sobre a Agroecologia, expressa que ela é parte de uma base multidisciplinar, englobando os mais diversos conhecimentos; uma ciência holística com foco na realidade, a qual reúne passado, presente e futuro.
O autor supracitado nos apresenta a Agroecologia como uma solução para as diferentes crises que vivemos, sendo uma delas a crise ambiental. A crise ambiental não é vista com os mesmos olhos de outras crises ou como uma catástrofe eminente. Alimonda (2011) defende a ideia de que ela é, na verdade, uma crise social, pois é resultado da forma como as sociedades se organizam e se relacionam com o meio ambiente. Segundo o autor, a crise ambiental atual é o resultado de décadas de exploração desenfreada dos recursos naturais e de políticas públicas e privadas orientadas para o crescimento econômico a qualquer custo. Isso tem levado ao esgotamento dos recursos naturais, à degradação do meio ambiente e ao aumento da vulnerabilidade das comunidades mais pobres e desprotegidas.
Essa crise iminente foi relatada pelos entrevistados em vários momentos. Como no relato de Mestre dos Orgânicos, que relata a dificuldade da produção de alimentos orgânicos pelos produtores agroecológicos, em razão da contaminação de agrotóxicos vizinhos, o que é “um problema muito sério da maioria dos agricultores que produzem orgânico, é um problema seríssimo”.
Milho Crioulo também relata um episódio danoso em relação ao uso e à consequência de agrotóxicos, ao dizer que em “uma época, foi plantado fumo [...] a mãe acabou se contaminando, uma época lá, e daí resolvemos abandonar o tal do veneno”. Aliás, em vários momentos da entrevista, ele retomou esse acontecimento e como foi penosa a recuperação.
Couve-Flor igualmente relata episódios de degradação ambiental e problemas com questões de agrotóxicos de vizinhos, que prejudicam a produção orgânica e agroecológica. Relatou um episódio, “até vi agora, no grupo nosso, que o ‘Pipoca Crioula’ colocou que ontem passaram veneno com aquele drone, e isso vai prejudicar muito, vai acabar com os pequenos, acho que é isso que eles querem acabar com os pequenos”.
Alimonda (2011) argumenta que a crise ambiental não é um problema apenas dos países mais pobres, mas um problema global que exige ações coordenadas e solidárias de todos os países. Existe a necessidade de promover mudanças radicais na forma como as sociedades se relacionam com o meio ambiente, incluindo a mudança do modelo econômico atual, baseado no crescimento econômico infinito, para um modelo mais sustentável e justo.
Nesse sentido, podemos ver a Agroecologia como uma ciência que busca fazer seu peso para trazer um equilíbrio na balança da crise ambiental, sendo feita pelos mais diferentes sujeitos, mas, principalmente, pelos do campo que se identificam com questões agroecológicas. E, para abordar esses sujeitos agroecológicos, é preciso compreender o contexto em que estão inseridos e a construção de suas identidades.
Ao perguntar ao Pipoca Crioula “Como era, e é hoje em dia, sua relação com a natureza no seu processo de produção?”, ele nos respondeu fazendo paralelos com o tempo do seu pai,
[...] nós, na época do meu pai, que eles trabalhavam, tocavam isso aqui, ‘tinha’ mais área desmatada do que tem agora. Agora tem mais área reflorestada do que tinha antigamente, porque eu tô plantando frutas, plantando árvores. E os caras passam aqui e dizem, ‘Isso aí nem é, nem é uma propriedade, é um quissaçal’, né? Mas aí tudo o que você olhar, cada planta tem a sua serventia. Aquela é uma planta remédio, aquela lá é um pé de limão, aquela é um pé disso, pé daquilo.
Através do relato, é possível entender a mudança de uma concepção identitária que reflete em sua propriedade. É uma identidade em harmonia com concepções agroecológicas, do cuidado com as plantas, da preservação e dos diferentes tipos de cuidados que englobam os princípios agroecológicos.
Seyferth (2011), a partir de uma lente ampla do meio rural brasileiro, relata que existem múltiplas identidades camponesas, mais ou menos inseridas na lógica de mercado e na modernização. Diferentes tipos de identidade dos agricultores e agricultoras também ocorrem, bem como diferentes identificações dentro dos mais diversos grupos sociais presentes no campo, no qual o termo campesinato, diante desse contexto, acaba sendo um termo de difícil definição.
A partir disso, perguntamos aos agricultores sobre as definições identitárias, “O que você entende por ser um agricultor familiar e um camponês? Você se enxerga em algum desses conceitos? Por quê?”. Obtivemos respostas e identificações divergentes. Como na resposta do Milho Crioulo:
Eu acho que familiar seria o cara que é pequeno agricultor, que trabalha dentro de uma pequena propriedade, e tem uma produção que ele consiga vender, no caso, ou que vende boa parte da produção dele [...] E o camponês, acho que é mais o cara que vive no campo, um pouco mais isolado, que seria o meu caso, que vive um pouco mais de extrativismo do que a propriedade produz, como pode dizer... Ele retira da propriedade o viver dele, a sobrevivência dele, dentro da propriedade ou viver nele, ou sobrevivência dele. [...] É, eu acho que hoje em dia se for ver, se for ver seria mais camponês, porque a gente tem abelha, tem as fruteiras, que é tudo natural, tem o milho. Tudo que é produzido, é tudo dentro aqui, tudo da própria propriedade.
Em sua resposta, Milho Crioulo se identificou como camponês; já Pipoca Crioula, mesmo com realidade e propriedade muito semelhantes às de Milho Crioulo, considerando nossa visão antropológica, tem uma perspectiva diferente sobre as definições de agricultor familiar e camponês. Segundo ele,
É [...] e ‘é’ duas coisas distintas né? Porque o camponês, ele é uma coisa assim, tipo, que ele vem da descendência, quase dos quilombolas né? O camponês, né? Que ele ‘se’ acampou, ele é quase puxando mais pro MST, né? Que daí ‘é’ os acampados, os camponeses, que daí tem tudo uma [...] um negócio de luta ali? Que nem nós, já ‘é’ mais terras, que eu não sei como é que eu podia explicar, que vêm de heranças. Nós ‘é’ agricultura familiar mesmo, né? Porque já a terra tá na família há três, quatro ‘geração’, né? E vai ficar, se depender, vai ficar muito mais tempo (Pipoca Crioula).
Já Couve-Flor, de 56 anos, identifica-se como agricultora familiar, assim como Pipoca Crioula e vários outros produtores agroecológicos entrevistados. Couve-Flor responde, quando indagada:
Agricultura familiar é um agricultor de pequeno porte que tem uma propriedade pequena, e camponês pode ser o que trabalha na terra, ou mesmo que não tenha terra. O agricultor familiar aquele que tem posse de terra, e o camponês, eu entendo como que trabalha no campo. Me identifico com a agricultura familiar.
Com essas autoidentificações, mesmo que os sujeitos não compreendam ambos os termos (o que é difícil até para a academia, uma definição dos sujeitos que se enquadram em ambos os termos), podemos ir ao encontro do que Seyferth (2011, p. 400) apresenta, em que “o campesinato entre os grupos dominados, considerando a classe camponesa como modelo por excelência de ‘classe objeto’”. Afinal, em muitos casos, o camponês é tirado da construção da sua própria identidade, pela classe dominante, para uma identidade já pré-definida, fazendo uma folclorização do camponês pelos outros, que transformam sua identidade de um pequeno produtor para um guardião da natureza. Possivelmente, esse contexto, expresso por Seyferth (2011), ocorre com os agricultores agroecológicos entrevistados.
O desafio em compreender a construção identitária dos sujeitos no âmbito da condição camponesa, inseridos nas transformações históricas e atuais, as quais tendem a alterar o modo de vida agrícola/camponês para o modo moderno capitalista de produção, requer levar em conta as profundas consequências que essas transformações acarretaram na sociedade, tais como o êxodo rural, os inchaços de cidades, a perda da biodiversidade, a contaminação solo e água, entre outras. Nesse sentido, levamos como premissa que boa parte dos agricultores inseridos nesse novo modo de vida, praticamente imposto a eles, passaram por profundas transformações culturais e adquiriram novas perspectivas de vida, tanto de adesão como de resistência.
Nessa mesma pergunta, “O que você entende por ser um agricultor familiar e um camponês?”, tivemos a resposta do Senhor das Parreiras, de 38 anos, agricultor agroecológico com certificação orgânica, que respondeu,
Tipo, agricultor familiar, produção ali na família, vamos dizer, assim, que nem eu, o pai, a mãe, agricultores familiares. Camponês, nunca ninguém tinha me perguntado isso. Eu acho que não tem muita diferença, vamos dizer assim, familiar e camponês. Eu acho que seria a mesma coisa.
Essa resposta vai ao encontro da definição de Godoi, Menezes e Marin (2009, p. 11), em que a condição camponesa é muito diversa, incluindo diversos sujeitos das mais diferentes identidades, territórios e modos de produção. Para as autoras, no “caso da formação da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantêm relações de interdependência”.
Destarte, mesmo sendo um ponto difícil ao cientista social definir a identidade de um sujeito por si, podemos partir para uma compreensão das características dos agricultores agroecológicos pesquisados, que manifestaram esta identidade em suas falas e práticas. Mesmo percebendo diferentes identidades e identificações dos produtores agroecológicos no município de Verê, podemos observar uma unidade nos processos de identificação e de (re)existências através da Agroecologia. Os nove produtores entrevistados se identificam com a Agroecologia ou estão refletindo sobre o que é ser agroecológico, além de se enquadrarem totalmente ou em partes com o sujeito dessa categoria.
Nos relatos dos produtores, temos essas identificações: o Mestre dos Orgânicos, “Eu me considero um produtor agroecológico”; Luterano, “A gente está caminhando para andar dentro da Agroecologia”; Urtigão, “Nós começamos com orgânico, hoje nós já chamamos mais de Agroecologia”; Dona-Flor, “Eu me considero, hoje eu me considero agroecológica”; Milho Crioulo, ao ser questionado se ele se identifica como um agricultor agroecológico, responde “Sim, com certeza”; Pipoca Crioula, ao receber a mesma pergunta, simplesmente responde: “Sim!”. Os demais entrevistados não responderam apenas com uma afirmação direta, ou ainda não têm nítida a questão do que é ser um sujeito agroecológico.
Ao fazermos a pergunta “O que é ser agroecológico para o(a) senhor(a)?”, tivemos várias respostas diferentes. Dona-Flor respondeu,
Que faz parte da vida, da saúde, do amor, da esperança de um mundo melhor, pra nossos filhos e netos que estão crescendo aprender, porque a gente vai cuidar da natureza, a gente vai cuidar da saúde, e a gente vai cuidar da vida do próximo, e a maioria das pessoas não pensam assim. Então pra mim é tudo, pra mim hoje, que eu estou trabalhando com isso, eu acho que é uma união, a Agroecologia é uma união de tudo!
Podemos observar nesse relato a concepção expressa anteriormente por Caporal (2009), em que o autor define a Agroecologia como uma ciência holística, tal como disse Dona-Flor, “a união de tudo”. Luterano relata um pouco do processo até momento do seu fazer agroecológico:
Fiquei 3 anos em transição, numa área sem usar adubo, sem usar veneno [...]. Em umas partes, já tinha barreira, e umas tive que fazer. E ter cuidado com as nascentes, o que sempre tivemos, a maioria estão lá no meio do mato [...] a preocupação com a natureza, com a produção de um alimento limpo.
Nesse sentido, Hall (2020) reflete que existem grupos que resistem à lógica globalizante e buscam conservar suas identidades locais e/ou têm uma identidade em comum gerada em suas identificações de resistência ao grupo hegemônico. Podemos assim presumir, ao fazer paralelos com essas análises do autor, que o nosso grupo pesquisado, possivelmente, também forma uma identidade através de suas (re)existências ao grupo hegemônico.
Destarte, podemos aferir uma compreensão de uma unidade identitária dos produtores agroecológicos pesquisados, mesmo diante do pluralismo desses sujeitos, mas gerando uma unidade inicialmente em suas identificações, e possivelmente em suas (re)existências, ao comporem as dinâmicas dos princípios agroecológicos no município de Verê. Logo, em todas as propriedades agroecológicas visitadas, os sujeitos que ali produzem se consideram agroecológicos e assim se apresentam como uma (re)existência à agricultura convencional, que é quase totalmente antípoda à agricultura agroecológica.
A agricultura convencional, como traz Buttel (1995), é responsável por diversos prejuízos nas forças biofísicas do nosso planeta, desgastando-o e o exaurindo de recursos. Buttel (1995) discorre sobre a agricultura convencional, os seus malefícios e o esgotamento dos recursos naturais, além da insegurança alimentar que os alimentos desse tipo de agricultura geram, seja pelo baixo valor energético e vitamínico, seja pela disparidade social, dada pela concentração fundiária, pobreza e a fome. Ademais, a exposição crônica aos pesticidas está associada a problemas de saúde como distúrbios neurológicos, problemas respiratórios, distúrbios hormonais e até mesmo câncer.
Esses processos, expressos pelo autor, podem ser observados através das falas dos sujeitos pesquisados, tal como a preocupação de Luterano em se alimentar de produtos saudáveis, motivo pelo qual o levou para a produção orgânica e agroecológica. Desse modo,
[...] a preocupação com a produção com veneno, né? Que é uma coisa perigosa, né? Que causa problema de saúde, e por ter um alimento limpo. E a gente já tava na cidade, e consumia produtos de baixa qualidade e, voltando pro interior, pelo menos produzir o que a gente come diferente, né?
Milho Crioulo comenta também essa preocupação, ao relatar que “você via que cada vez o veneno vinha tomando conta”. Ainda, ele relata os malefícios que o uso desenfreado de agrotóxicos causa e o pouco cuidado dos produtores com essa questão,
E a gente tinha um vizinho pro lado de cá, mas isso faz acho que mais de uns vinte [anos]. Ele tinha plantado tomate ali, mas o cara passando o veneno, e você sabia que ‘era’ aqueles venenos tarja vermelha. No mínimo vinte dias para colher. E o cara passando o veneno, e os outros atrás colhendo tomate dentro das caixas, e vamos levar para o mercado. Imagina isso, pelo amor de Deus. E aí você começa a ver essas barbaridades.
No que se refere à alimentação saudável, Milho Crioulo pondera, considerando a si mesmo e a população geral, sobre a importância de segui-la, conforme o trecho:
[...] produzir coisas saudáveis, a gente sempre teve essa ideia. O que eu não quero para mim, eu não vou te dar! Como pegar um feijão dessecado e dizer que é bom, pois sei o que eu como [...] como o cara que planta feijão, ele deixa seu pedacinho para trás, para consumir, sem dessecar.
Essa concepção e preocupação com alimentos saudáveis aparece igualmente na fala de Luterano, “A gente, quando morava na cidade, já consumia produtos de baixa qualidade. Voltando pro interior, pelo menos produzir o que a gente come diferente, né”. Os autores Gaboardi, Candiotto e Ramos (2019), em sua pesquisa, apontavam sobre a importância da compreensão sobre o uso de agrotóxicos na região Sudoeste do Paraná, bem como a necessidade de promover práticas agrícolas mais sustentáveis.
Buttel (1995) afirma que já é possível observar esses malefícios, sendo necessário buscar alternativas para um desenvolvimento agrícola sustentável, fomentando a produção e o consumo de alimentos orgânicos, bem como o cultivo em propriedades agroecológicas que repensem o social e o ecológico. Nesse sentido, podemos ajuizar a identificação dos sujeitos pesquisados rumo aos processos de (re)existência ao convencional.
Como apresenta Porto-Gonçalves (2010, p. 51), “mais do que resistência, o que se tem é R-Existência posto que não se reage, simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo pré-existe e é a partir dessa existência que se R-Existe. Existo, logo resisto. R-Existo”. Milho Crioulo, ao dizer sobre os processos da agricultura convencional,
Mas a gente percebe que tem muitos excessos, é gente muito gananciosa, [...] não interessa a maneira que ele produz, interessa ele produzir para ter o lucro dele, e hoje em dia é uma prática normal, e para eles não interessa quem consuma. Não está interessado na saúde de quem consome. Importante ele produzir, produzir em larga escala e faturar o dele.
E ao (re)existir ao sistema de agricultura convencional, Milho Crioulo também expressa que “não adianta nós sonhar, que ‘rico’ nós não vamos ficar” e conclui assim, “vamos tentar produzir coisas saudáveis, que a gente sempre teve essa ideia, o que eu não quero para mim, eu não vou te dar”. Couve-Flor reflete sua (re)existência aos processos de financiamento para sua produção e de assistência governamental ao mencionar que,
[...] o governo devia dar mais assistência, eu penso assim [...] a gente não tem aqueles financiamentos, eles nem olham pra essa parte orgânica, eles querem só os grandes, né? [...] então, nós, assim, como você diz, nós não temos assistência, né? Se não é por essa parceria, assim, dos pequenos, a gente não tem nada, né? Nada, nada [...]
E conclui dizendo que agora o consumo e a procura por alimentos saudáveis e orgânicos têm aumentado,
Agora tá [...] até que tá bem mais avançado, né? Os orgânicos, ‘por causa que’ tá acontecendo muita doença assim, né? Que tá tendo pesquisa, estão falando, né? [...] É que não faz muitos anos que começaram a plantar assim, com veneno e coisa, uns 30 anos no máximo, né? Que tá direto, acho que uns 30 anos, aí que vai começar a aparecer os resultados nas pessoas, né?
Desse modo, podemos analisar que Couve-Flor (re)existe em um meio que incentiva fortemente a agricultura convencional e pouco se olha e auxilia a agricultura orgânica e agroecológica. Salienta sobre a importância de alimentos saudáveis e os malefícios que os agrotóxicos trazem, até mesmo em sua família, “eu acho que por causa do veneno ‘está’ matando muita gente, né? E pelo meu marido, do câncer de pele, eu acho que é disso”.
Assim, ao ponderamos sobre essa questão nos diversos sujeitos pesquisados, podemos concluir que eles mantiveram seus modos e costumes do fazer agrícola, buscando ampliar a produção, antes voltada apenas para o consumo próprio, agora direcionada para a comercialização. Urtigão relata esse processo ao declarar: “Nós comecemos em 2002, mas antes já tinha a horta, para alimento, essas coisas”.
Os entrevistados não apenas resistem à agricultura convencional, à falta de incentivo e assistência governamental, à falta de financiamentos, à pressão de grandes produtores para comprarem suas pequenas propriedades, eles também (re)existem ao meio de todos esses processos. Outrossim, (re)existem com os seus modos de produção de alimentos, (re)existem na forma como se mantêm unidos através de associações. Aliás, as cooperativas, nesse processo, exercem um papel fundamental para (re)existência, isso através da renda obtida pela venda de seus alimentos na cooperativa.
Esses sujeitos puderam não apenas resistir a esses processos modernos, mas também se reinventaram, (re)existindo e adaptando-se, mantendo diversas características de sua cultura e identidade, expressas em suas identificações e propriedades. Nesse contexto, a prática a partir dos princípios agroecológicos promoveu e promove uma (re)existência do sistema agrícola desses agricultores diante das diversas condições adversas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Stuart Hall (2020) argumenta que as identidades culturais são construídas através de processos de negociação e resistência, em que a interação entre diferentes culturas e perspectivas resultam na formação de novas identidades. Expandindo essa reflexão aos agricultores agroecológicos de Verê, pode ser aferido que a identidade é construída por meio de uma negociação da sua relação com a natureza e adesão às práticas agrícolas sustentáveis, bem como pela resistência aos padrões dominantes oriundos da agricultura convencional. Nesse caso, a identidade também pode ser influenciada pela relação com o mercado, a sociedade, o Estado, a participação nos movimentos sociais e grupos de agricultores agroecológicos.
A construção de identidades culturais também estaria relacionada à história, às tradições e aos valores das comunidades e dos indivíduos. No que se refere aos agricultores agroecológicos no Brasil, em especial do município estudado, sua identidade é influenciada por uma herança cultural e pela relação com o meio ambiente, podendo ser fortalecida através da participação em redes agroecológicas, eventos e atividades culturais relacionadas à temática.
DISPONIBILIDADE DE DADOS
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Nov 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2025
Histórico
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Recebido
19 Mar 2024 -
Aceito
30 Dez 2024 -
Aceito
13 Fev 2025
