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A Análise Crítica do Discurso no contexto econômico e social decorrente da covid-19 no Brasil

The Critical Discourse Analysis in the economic and social context arising from covid-19 in Brazil

Análisis Crítico del Discurso en el contexto económico y social derivado de la covid-19 en Brasil

Resumo:

Foi identificada pela primeira vez, em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China, a doença infecciosa conhecida como síndrome respiratória aguda grave coronavírus 2 (SARS-CoV-2) e denominada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de covid-19. A partir de então, diversas ações têm sido tomadas por chefes de Estado de todo o mundo, a fim de conter a disseminação da doença que assola todos os continentes. Em decorrência da falta de consenso quanto às medidas a serem adotadas diante da atual crise mundial, as desigualdades sociais já existentes foram exacerbadas, colocando em foco os discursos, antes abafados, sobre a situação da saúde pública, desigualdade social e economia brasileira. Tais discursos têm sido frequentemente vinculados nas mídias por meio das charges, criticando as posturas das diferentes esferas administrativas diante do atual cenário de crise mundial decorrente da pandemia do novo coronavírus. O gênero textual chargístico apresenta uma visão crítica e ideológica sobre a temática, proporcionando uma reflexão profunda, explorada no presente estudo pelo viés da Análise Crítica do Discurso (ACD) conforme Teun Van Dijk, por intermédio das representações sociais que influenciam a interpretação e construção dos sentidos, escancarando a visão crítica dos problemas sociais, por meio da produção do discurso de poder, dominação e desigualdade social.

Palavras-chave:
desigualdade social; charges; análise do discurso

Abstract:

It was first identified in December 2019 in Wuhan city, China, an infectious disease known as severe acute respiratory syndrome coronavírus 2 (SARS-CoV-2) and named by the World Health Organization (WHO) as covid-19. Since then, several actions have been taken by heads of state from around the world in order to contain the spread of the disease that plagues all continents. As a result of the lack of consensus on the measures to be adopted in the face of the current world crisis, the social inequalities that already existed have been exacerbated, focusing on discourses, previously stifled, on the situation of public health, social inequality, and the Brazilian economy. Such speeches have often been linked in the media through cartoons, criticizing the postures of different administrative spheres in the face of the current world crisis scenario resulting from the pandemic of the new coronavírus. The cartoon textual genre presents a critical and ideological view on the theme, providing a deep reflection, explored in the present study by the bias of Critical Discourse Analysis (ACD) according to Teun Van Dijk, through the social representations that influence the interpretation and construction of the senses, opening the critical view of social problems, through the production of the discourse of power, domination, and social inequality.

Keywords:
social inequality; cartoons; discourse analysis

Resumen:

Se identificó por primera vez en diciembre de 2019, en la ciudad de Wuhan, China, una enfermedad infecciosa conocida como síndrome respiratorio agudo severo coronavírus 2 (SARS-CoV-2) y nombrada por la Organización Mundial de la Salud (OMS) como covid-19. Desde entonces, jefes de estado de todo el mundo han tomado varias acciones para contener la propagación de la enfermedad que azota a todos los continentes. Como consecuencia de la falta de consenso sobre las medidas a adoptar ante la actual crisis mundial, se han exacerbado las desigualdades sociales que ya existían, centrándose en discursos, previamente sofocados, sobre la situación de la salud pública, la desigualdad social y la economia brasileha. Tales discursos han sido muchas veces vinculados en los medios de comunicación a través de dibujos animados, criticando las posturas de los distintos ámbitos administrativos, ante el actual escenario de crisis mundial derivado de la pandemia del nuevo coronavirus. El género textual de dibujos animados presenta una mirada crítica e ideológica sobre el tema, aportando una reflexión profunda, explorada en el presente estudio por el sesgo del Análisis Crítico del Discurso (ACD) según Teun Van Dijk, a través de las representaciones sociales que inciden en la interpretación y construcción de los sentidos, abriendo la mirada crítica de los problemas sociales, a través de la producción del discurso del poder, la dominación y la desigualdad social.

Palabras clave:
desigualdad social; dibujos animados; análisis del discurso

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca contextualizar inicialmente o atual quadro de pandemia causado pela doença infecciosa identificada como síndrome respiratória aguda grave coronavirus 2 (SARS-CoV-2), conhecida também como covid-19. O mundo tem vivenciado desde a sua descoberta, em dezembro de 2019, em Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China, um cenário de crise mundial em diversos setores, destacando-se a saúde e a economia, termos frequentes nos discursos de chefes de Estado de todo o mundo.

A crise atual gerada pelo novo coronavirus escancara as mazelas de uma sociedade, destacando, neste estudo, os problemas socioeconômicos e de saúde pública no Brasil. Para tanto, utiliza-se a abordagem de charges, um tipo de representação gráfica ilustrativa que se fundamenta também na linguagem verbal e não verbal.

O texto opinativo produzido pelas charges encarrega-se não somente de informar o leitor sobre os fatos ou acontecimentos recentes, mas também pode produzir fortemente uma crítica, consequentemente, exprimindo uma opinião, um ponto de vista e até a ideologia do autor.

Desta forma, a fim de realizar uma análise baseada em fundamentações teóricas, utiliza-se a Análise Crítica do Discurso (ACD), que é apresentada neste estudo como método de interpretação da pesquisa social científica, por meio de imagens em formato de charges, no contexto econômico e social, decorrente da covid-19.

Por meio do triângulo sociedade, cognição e discurso, defendido por Van Dijk, busca-se analisar as relações econômicas e sociais, afloradas em tempos de pandemia, com base na análise de investigação em escala macro e micro, empregada em charges, assim como as interpretações das mensagens implícitas e explícitas.

Desta forma, o presente estudo demonstra as diferentes vertentes sobre a temática, diante do distanciamento social defendido por grande parte da população, chefes de Estado e organizações de saúde pública e banalizado por alguns, assim como a preocupação quanto à saúde da população e à precariedade do sistema de saúde brasileiro. Por fim, abordam-se as questões econômicas que se encontram em uma balança juntamente da saúde, em que se disputa qual deve ser colocada em primeiro plano.

2 COVID-19: MUNDO E BRASIL

A doença infecciosa conhecida como síndrome respiratória aguda grave coronavirus 2 (SARS-CoV-2), denominada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de covid-19, foi identificada pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. “O Coronavirus é uma família de vírus que causa infecções respiratórias, conhecida desde a década de 1960” (FARIAS, 2020, p. 1FARIAS, Heitor Soares. O Avanço da Covid-19 e o isolamento social como estratégia para a redução da vulnerabilidade. Espaço e Economia – Revista Brasileira de Geografia Econômica, Rio de Janeiro, ano IX, n. 17, p. 1-12, abr. 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/11357. Acesso em: 13 jul. 2020.
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).

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), a OMS foi alertada em 31 de dezembro de 2019, sobre o surgimento de diversos casos de pneumonia na cidade de Wuhan, o que se tratava de um novo tipo de coronavírus, não identificado ainda em seres humanos.

Ao todo, sete coronavírus humanos (HCoVs) já foram identificados: HCoV-229E, HCoV-OC43, HCoV-NL63, HCoV-HKUl, SARS-COV (que causa síndrome respiratória aguda grave), MERSCOV (que causa síndrome respiratória do Oriente Médio) e o, mais recente, novo coronavírus (que no início foi temporariamente nomeado 2019-nCoV e, em 11 de fevereiro de 2020, recebeu o nome de SARS-CoV-2). Esse novo coronavírus é responsável por causar a doença COVID-19. (OPAS, 2020, on-line).

A OMS declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto do novo coronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII); conforme a OPAS, é o nível mais alto de alerta da Organização previsto no Regulamento Sanitário Internacional (RSI).

Em decorrência do crescente número de casos de covid-19, a OMS declarou, em 11 de março, que a então epidemia trata-se de uma pandemia, devido ao aumento em 13 vezes no número de casos fora da China e a triplicação de países afetados pelo novo coronavírus.

Na América do Sul, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil foi o primeiro país onde ocorreu a transmissão importada, quando o infectado chega por via aérea. Em 26 de fevereiro, foi anunciado o primeiro caso de covid-19 no país. Farias (2020)FARIAS, Heitor Soares. O Avanço da Covid-19 e o isolamento social como estratégia para a redução da vulnerabilidade. Espaço e Economia – Revista Brasileira de Geografia Econômica, Rio de Janeiro, ano IX, n. 17, p. 1-12, abr. 2020. Disponível em: https://journals.openedition.org/espacoeconomia/11357. Acesso em: 13 jul. 2020.
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menciona que era esperado que as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro apresentassem os primeiros casos da doença no país, tendo em vista a concentração de voos internacionais e por serem as cidades mais ricas e populosas do Brasil.

Para Fonseca et al. (2020, p. 40), a primeira atitude do Brasil para o combate ao coronavírus foi a edição da Medida Provisória (MP) n. 924/20, que destinou 5 bilhões em crédito extraordinário para o sistema de saúde, entre outras providências, como a suspensão de aulas e as recomendações para que empresas adotassem o teletrabalho.

Apesar do número crescente de casos no país, a falta de coordenação política entre a União e os Estados têm sido um dificultador na implementação uniforme das medidas de combate ao coronavírus. Além da reação tardia à pandemia, no mês de março começaram divergências entre o Presidente da República e alguns governadores do país sobre a manutenção ou não das medidas de isolamento social. (FONSECA et al., 2020, p. 40-1).

Fonseca et al. (2020, p. 41) destacam que, como ajuda à população mais carente e com o intuito de minimizar a crise econômica, o Governo Federal anunciou um auxílio emergencial mensal no valor de R$ 600,00 para trabalhadores informais.

Além disso, foi autorizado um plano de 40 bilhões em empréstimos para pequenas e médias empresas, e que deverão ser usados para pagamento de salário. Existe, ainda, um terceiro plano econômico no valor de 51 bilhões para que empresas possam reduzir salário e jornada dos empregados. As ações são bem-vindas, porque o país já atinge 12,9 milhões de desempregados. (FONSECA et al., 2020, p. 41).

Fonseca et al. (2020) mencionam em seus estudos as frequentes mudanças no comando do Ministério da Saúde e as divergências quanto ao direcionamento e pronunciamento com relação à pandemia, abrindo brechas para uma crise institucional.

Em análise ao cenário da covid-19 no mundo e no Brasil, observou-se a falta de consenso quanto às medidas a serem adotadas diante da situação de pandemia global. Especificamente no Brasil, a crise atual gerada pelo novo coronavírus escancara as mazelas da sociedade brasileira, principalmente quanto à saúde e economia, deixando claras as fragilidades da sociedade que já vivia em situações menos favorecidas antes mesmo da eclosão da crise atual.

3 CHARGE: O GÊNERO TEXTUAL

A charge conquistou um lugar cativo na imprensa escrita nacional, fato que, em grande parte, pode ser atribuído à veiculação de crítica aliada ao humor, bem como ao uso complementar da linguagem escrita e da ilustração. Ao lado do entretenimento, esse gênero propicia uma reflexão mais aprofundada sobre temas atuais, situações cotidianas e questões polêmicas.

Apesar da familiaridade da figura da charge, defini-la requer um esforço maior. De acordo com o Dicionário Houaiss (2001, p. 693)HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001., o termo de origem francesa (“carga”) consiste em “desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual, que comporta crítica e focaliza, por meio de caricatura, uma ou mais personagens envolvidas”. Ainda segundo o dicionário, por extensão de sentido, charge pode ser considerada “o que exagera o caráter de alguém ou de algo para torná-lo ridículo, representação exagerada ou burlesca, caricatura”.

Sobre a definição de charge, comentam Oliveira e Almeida (2006, p. 81-2)OLIVEIRA, Neide Aparecida Arruda; ALMEIDA, Lara Monique O. Gêneros jornalísticos opinativos de humor: caricaturas e charges. Janus, Lorena, v. 3, n. 4, p. 76-91, 2006.:

[...] a charge é crítica porque discute e opina sobre acontecimentos noticiosos, usando para tal uma outra linguagem, a do desenho. É inteligente porque consegue resumir e criticar no pequeno espaço do desenho o que há de conteúdo relevante em um fato (fato que é de importância naquela edição); de forma que o leitor compreenda do que se trata, e fique informado sobre algo importante que se passa no mundo ou no país naquele dia. Por fim, é irônica porque interpreta invocando a sátira, expondo o fato pelo ângulo do ridículo.

A charge é uma representação gráfica que pode tomar forma apenas de ilustração, mas geralmente se vale da linguagem verbal conjugada com a linguagem não verbal. Com o avanço da tecnologia, também se tornou possível a animação das charges, as chamadas charges virtuais, em que os personagens e o ambiente estabelecem relações mais dinâmicas, por meio de movimentos e sons.

Nesse tocante, fala-se na multimodalidade que o gênero apresenta, na medida em que seu processo de construção de sentidos perpassa a combinação de verbal e não verbal. Salienta Silveira (2014, p. 4511)SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi. Texto e contextos na representação do feminino, em anúncios publicitários multimodals. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ASSOCIAÇÃO DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA DA AMÉRICA LATINA (ALFAL), 17., 2014, João Pessoa. Anais [...]. João Pessoa: Idea, 2014. Disponível em: https://www.mundoalfal.org/CDAnaisXVII/trabalhos/R0195-l.pdf. Acesso em: 13 jul. 2020.
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que “os textos multimodals são colocados em uso por modos semióticos que se inter-relacionam de várias formas; assim, as representações verbais e visuais podem se equivaler, complementar-se ou mesmo se contradizer”. Nesse caso, “o componente linguístico é corresponsável, juntamente com os componentes gráfico e imagético, pelo grau de informatividade e poder argumentativo, persuasivo da mensagem” (FLORES, 2002, p. 10FLORES, Onici. A leitura da charge. Canoas: Ed. ULBRA, 2002.).

A ilustração da charge não raras vezes se apresenta por meio de caricaturas, nas quais se evidenciam os traços ou as características marcantes dos personagens, de forma exagerada e, até mesmo, deformada. Ademais, a parte visual do gênero é composta por aspectos complementares, oportunidade em que o chargista especifica a circunstância ou local que faz parte do contexto.

Em relação à linguagem verbal, esta pode vir representada em balões, quando se trata da fala ou do pensamento dos personagens, título, legenda ou descrição de sons e ruídos. Até mesmo a representação do verbal passa pelo imagético, quando o chargista se vale de recursos para destacar, entonar, suavizar, omitir, enfim, demonstrar as intenções das palavras utilizadas. Assim, “as palavras têm, por exemplo, seu tamanho aumentado e seu traço mais grosso e bem destacado, tremido ou ondulado, para representar maior emoção ou entonação, medo ou grito” (ROMUALDO, 2000, p. 39ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia - um estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: Eduem, 2000.).

Não se deve pensar, no entanto, que se trata de um texto raso ou superficial, justamente porque, para que o leitor possa acessar o conteúdo da mensagem, vale dizer, para que possa interpretar a charge, deve se atentar para além do que está representado, o que inclui os aspectos implícitos e, principalmente, a contextualização.

No que toca à contextualização, é de se destacar que a charge exige de seu receptor uma preconcepção de informações, de valores e, até mesmo, de ideologias. Isso significa dizer que, para extrair o sentido da mensagem, faz-se necessária uma bagagem pessoal de conhecimento, além de uma disposição imaginativa para realizar os processos mentais de correlação entre os fatos reais e o que está sendo representado.

O texto da charge como espaço aberto ao processo de produção de sentido implica o receptor, que não é um mero ponto de chegada da mensagem, mas um elemento essencial do processo. A interação da charge com a sua exterioridade, seu leitor, dá-se através de um processo de semiose que impõe a recepção e decodificação de determinadas informações, sinais etc. Se essas informações não se convertem em signos, não são percebidas e, nesse caso, não entram no circuito comunicacional. (FLORES, 2002, p. 11FLORES, Onici. A leitura da charge. Canoas: Ed. ULBRA, 2002.).

Com relação ao suporte contextual, Romualdo (2000, p. 36-37)ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia - um estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: Eduem, 2000. enfatiza que a caricatura e a charge “só alcançarão o seu efeito na medida em que o referente for conhecido e as demais circunstâncias, incluindo as situações ou fatos políticos aos quais elas se referem, também o forem”, sob pena de seu sentido se esvair.

Não se deve olvidar que a charge é naturalmente um texto opinativo, o que significa que não se presta somente a informar o leitor sobre os fatos ou acontecimentos recentes, mas que também carrega consigo uma forte carga ideológica. Por ser crítica, ela, consequentemente, exprime uma opinião, um ponto de vista, uma ideologia do seu autor.]

A charge cumpre um papel social ainda mais importante que os outros gêneros opinativos veiculados cotidianamente na imprensa, porque a imagem é um instrumento ainda mais eficaz de convencimento, devido à assimilação que a charge dá ao leitor de perceber a opinião expressa. (GRUDZINSKI, 2009, p. 3-4).

Diante da sua feição opinativa e crítica, além do seu aspecto marcante enquanto conteúdo de humor, a charge é fruto e reflete o momento sociocultural vivido. Justamente por esse motivo, ultrapassado o acontecimento, ou mesmo o sentimento que este gerou, a mensagem chárgica perde a graça e, acima de tudo, o contexto. Assim, para a compreensão de charges passadas, exige-se, no mínimo, uma pesquisa sobre os fatos que a elas serviram de fundamento e motivo; contudo, mesmo sendo possível interpretá-las, provavelmente, não terão mais graça.

Em que pese a charge ter a característica da efemeridade, ela ainda mantém uma importante função enquanto documento histórico que, à época em que foi produzido, refletia os pensamentos, o cotidiano, as polêmicas e as reações então correntes na sociedade. Por essa razão, a charge se reveste também da roupagem de registro inteligente e analítico dos episódios ocorridos em um determinado lapso de tempo.

A importância da charge enquanto texto decorre não só do seu valor como documento histórico, como repositório das forças ideológicas em ação, mas, também, como espelho imaginário de época e como corrente de comunicação subliminar, que ao mesmo tempo projeta e reproduz as principais concepções sociais, pontos de vista, ideológicas em circulação. (FLORES, 2002, p. 10FLORES, Onici. A leitura da charge. Canoas: Ed. ULBRA, 2002.).

Nota-se, por fim, que a charge exerce diferentes funções a depender do momento em que é examinada: no presente, presta-se a colocar em foco os problemas sociais, gerando, por conseguinte, uma cultura de reflexão; para o futuro, tem a missão de resgatar e registrar a memória e a identidade da época em que foi produzida, desde que haja também fontes de contexto para sua leitura.

4 ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO CONFORME TEUN VAN DIJK

As bases da Análise Crítica do Discurso (ACD) foram idealizadas na década de 1970 como uma proposta inter e transdisciplinar, a partir de uma nova abordagem acerca do uso da linguagem, a qual passa a ser estudada enquanto prática social e prática discursiva. Nesse sentido, a ACD surge para romper com o pensamento anterior, que focava somente na linguagem e em seus processos formais, gramaticais e históricos, condições de produção de textos e de construção de sentidos.

O discurso passou a ser concebido enquanto um processo social, que produz e reproduz relações sociais de todos os tipos por meio de um processo de interação comunicativa e construção de sentidos, percebendo, portanto, a linguagem como um elemento fundamental à vida em sociedade e abandonando o antigo pensamento de que se tratava de um sistema fechado, meramente formal e estático.

A ACD, então, caracteriza-se por uma visão crítica das intersecções entre linguagem e meio social, evidenciando os problemas sociais e se propondo a analisá-los e expor seus fundamentos ideológicos de produção e reprodução, em especial, no que toca às relações de poder e dominação.

Nesse contexto, despontaram correntes teóricas em ACD, cada qual com seus pensadores, metodologias e pressupostos básicos, dentre as quais podem ser citadas: a sociocognitiva, a sócio-histórica e a semiótica social. O presente estudo busca fundamento na vertente sociocognitiva, cujo principal expoente é o linguista Teun Adrianus van Dijk.

Para van Dijk (2013, p. 353)VAN DIJK, Teun A. Análise crítica do discurso multidisciplinar: um apelo em favor da diversidade. Tradução de Breno Wilson Leite Medeiros. Linha D'Agua, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 351-81, 2013., a ACD consiste em uma perspectiva crítica da produção do conhecimento, isto é, “análise do discurso ‘com uma atitude’”, e prossegue:

[...] a pesquisa em ACD combina o que talvez, pomposamente, costuma ser chamado de ‘solidariedade com os oprimidos’ com uma atitude de oposição e dissenção contra aqueles que, por meio do texto e da conversação, buscam estabelecer, confirmar ou legitimizar o seu abuso de poder. Diferentemente de outras perspectivas, a ACD não nega, mas assume e defende sua posição social e política. Ou seja, a ACD é tendenciosa - e orgulhosa disso.

Segundo essa vertente, “as relações entre discurso e sociedade são cognitivamente mediadas” (VAN DIJK, 2016, p. 9VAN DIJK, Teun A. Discurso-cognição-sociedade: estado atual e perspectivas da abordagem sociocognitiva do discurso. Tradução de Pedro Theobald. Letrônica, Porto Alegre, v. 9, supl., s8-s29, nov. 2016. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/23189/15076. Acesso em: 13 jul. 2020.
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), o que a difere das outras teorias em que se supõe a existência de uma relação direta entre as estruturas discursivas e as estruturas sociais. Ademais, pensar em uma relação direta e causal entre discurso e sociedade encontra como obstáculo conceituai básico a diferença estrutural que cada qual apresenta, de forma que só se torna possível superá-lo e encontrar um ponto de intersecção compreensível passando pelo crivo da cognição social.

Ao contrário de muitos outros trabalhos sobre discurso e sociedade, minha abordagem pressupõe que existem razões teóricas cruciais pelas quais a cognição social deve ser analisada como a interface entre discurso e sociedade, e entre os participantes de uma fala individual e os grupos sociais dos quais eles são membros: (1) o discurso é realmente produzido/interpretado por indivíduos, mas eles são capazes de fazê-lo apenas com base em conhecimentos e crenças socialmente partilhados; (2) o discurso só pode ‘afetar’ as estruturas sociais através das mentes sociais dos participantes do discurso; e reciprocamente (3) as estruturas sociais só podem ‘afetar’ as estruturas de discurso através da cognição social. (VAN DIJK, 2015, p. 23VAN DIJK, Teun A. Discurso e cognição na sociedade. Tradução de Leonardo Mozdzenski. Revista Portuguesa de Humanidades – Estudos Linguísticos, Braga, v. 19, n. 1, p. 19-52, 2015.).

Assim, para a abordagem sociocognitiva, estabelece-se uma relação dialética, fundada na cognição, entre o discurso e a sociedade, de forma que: as estruturas sociais devem ser filtradas cognitivamente para a formação de representações mentais que influirão na produção e recepção do discurso; e, em contrapartida, essas mesmas representações mentais, materializadas em discursos, podem influenciar a formatação das estruturas sociais quando, então, os falantes ou escritores se posicionam como atores sociais.

O núcleo teórico da interface cognitiva entre discurso e sociedade é apontado por van Dijk (2016)VAN DIJK, Teun A. Discurso-cognição-sociedade: estado atual e perspectivas da abordagem sociocognitiva do discurso. Tradução de Pedro Theobald. Letrônica, Porto Alegre, v. 9, supl., s8-s29, nov. 2016. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/23189/15076. Acesso em: 13 jul. 2020.
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por meio da pressuposição dos chamados modelos de situação e modelos de contexto. Os modelos de contexto, ou pragmáticos, consistem nas representações que os usuários da língua constroem e atualizam durante a interação comunicativa, vale dizer, concomitantemente à ocorrência do evento. Eles apresentam “representações dos próprios participantes, de suas ações em curso e seus atos de fala, de seus objetivos e planos, do cenário (tempo, lugar, circunstâncias) ou de outras propriedades relativas ao contexto” (VAN DIJK, 2015, p. 24VAN DIJK, Teun A. Discurso e cognição na sociedade. Tradução de Leonardo Mozdzenski. Revista Portuguesa de Humanidades – Estudos Linguísticos, Braga, v. 19, n. 1, p. 19-52, 2015.).

Os modelos de situação, de evento, ou semânticos, por sua vez, representam as situações ou os eventos tratados pelo discurso, isto é, sobre o que se está falando ou escrevendo. O modelo de situação está relacionado à coerência do discurso, uma vez que a construção do sentido dependerá essencialmente da percepção do destinatário acerca dos fatos a que ele se refere. Sobre esse modelo, van Dijk (2013, p. 370)VAN DIJK, Teun A. Análise crítica do discurso multidisciplinar: um apelo em favor da diversidade. Tradução de Breno Wilson Leite Medeiros. Linha D'Agua, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 351-81, 2013. alerta que “não são os fatos que definem a coerência, mas as maneiras particulares que os usuários da língua definem ou interpretam esses fatos em seus modelos mentais”, e prossegue afirmando que “essas interpretações são pessoais, subjetivas, enviesadas, incompletas ou completamente imaginárias”.

De forma geral, podemos dizer que os modelos de contexto controlam a parte ‘pragmática’ do discurso e os modelos de evento a parte ‘semântica’. A compreensão de um discurso significa basicamente a capacidade de construir um modelo para ele. E, na produção, é o modelo mental do evento/situação que forma o ponto inicial do texto e da conversação. O que se lembra normalmente de um discurso não é o seu significado, mas o modelo mental que se constrói durante o processo de compreensão. (VAN DIJK, 2013, p. 371VAN DIJK, Teun A. Análise crítica do discurso multidisciplinar: um apelo em favor da diversidade. Tradução de Breno Wilson Leite Medeiros. Linha D'Agua, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 351-81, 2013.).

Essa teoria é alicerçada no triângulo discurso-cognição-sociedade. Discurso é compreendido como uma prática social, em sua acepção ampla enquanto evento comunicativo, o que inclui a sua materialização escrita, falada (enquanto interação comunicacional), por meio de imagens, linguagem corporal, bem como outras formas de expressão que sejam capazes de produzir significados. Cognição, por um lado, refere-se ao pessoal que envolve crenças, valores, opiniões, emoções, propósitos e, por outro, ao social consubstanciado na cultura, ideologia, normas, atitudes e qualquer outro conhecimento socialmente partilhado. Por fim, sociedade representa a base social em que interagem o discurso e a cognição, formada pelos indivíduos que são membros de grupos, relações entre grupos, comunidades, da mesma forma que instituições e organizações.

Nota-se, portanto, a partir dessa breve incursão na vertente sociocognitiva da Análise Crítica do Discurso, que a relação entre sociedade e discurso é necessariamente mediada pela cognição, abrangendo os modelos mentais e representações sociais produzidos que influem, fundamentalmente, na interpretação e construção de sentidos dos eventos comunicativos. Por conseguinte, atentando-se para a sua perspectiva crítica, voltada ao exame dos problemas sociais, toda essa construção teórica se propõe a investigar os fatores de produção e reprodução das relações de poder, dominação e desigualdade.

5 ECONOMIA, SAÚDE E DESIGUALDADE SOCIAL ILUSTRADOS EM CHARGES: UM OLHAR CRÍTICO DO DISCURSO

Uma vez compreendidas as premissas teórica-estruturais apresentadas, o presente estudo propõe o debate acerca de discursos chárgicos sobre os impactos da pandemia causada pela covid-19. Para tanto, foram escolhidas três charges que tocam diferentes aspectos da sociedade, a saber: o então estabelecido dilema entre saúde e economia, bem como a situação de vulnerabilidade, sempre presente, porém mais acentuada e evidenciada diante das dificuldades impostas pelo novo cenário.

Como apontado anteriormente, o gênero textual da charge tem como pano de fundo uma crítica humorística que condensa várias informações e, assim, representa um tipo de leitura exigente, cujo sentido é percebido pela relação entre imagem e linguagem verbal. Para mais, o ponto distintivo desse gênero é a possibilidade de levar seu leitor a uma reflexão desde os assuntos mais triviais até os mais complexos.

A ACD, por conseguinte, pode fornecer, e até mesmo esclarecer, o significado pretendido pelo chargista, além de contribuir para a formação de uma cultura crítica que possa, efetivamente, atingir as estruturas sociais de forma consciente. Nesse sentido, nota-se que o ponto de intersecção entre ACD e o gênero textual chárgico reside no aspecto crítico que cada qual carrega consigo de formas diferentes, porém ambos voltados aos problemas sociais.

A primeira charge objeto de análise (Figura 1) relaciona saúde, economia e pandemia. Por certo que as causas estruturais da covid-19, suas possíveis medidas de enfrentamento e as suas consequências, em maior ou menor grau, são focos de intensa discussão, diante do então instaurado cenário pandêmico. Portanto, diante das peculiaridades da situação advinda de um infortúnio que atinge níveis globais, surgiu uma suposta dicotomia entre saúde e economia, como se fossem conceitos opostos ou, ao menos, tivessem se tornado assim, por conta do evento pandêmico.

Figura 1
Crítica à saúde, economia e pandemia

Em um primeiro momento, manifestou-se uma grande preocupação em termos de disseminação da doença, especialmente por se tratar de uma síndrome de alta transmissibilidade entre pessoas, no sentido de frear sua progressão para evitar o colapso do sistema de saúde. Isso porque “evidências epidemiológicas mostram que 2019-nCoV pode ser transmitido de um indivíduo para outro”2 2 Epidemiological evidence shows that 2019-nCoV can be transmitted from one individual to another e os modos mais prováveis de transmissão são por meio de gotículas, contato pessoal e objetos contaminados (WHO, 2020a, p. 3, tradução livre das autoras).

Adotaram-se, por essa razão, medidas de distanciamento social, impondo-se restrições às liberdades pessoais por meio de toque de recolher, proibição de aglomerações, prescrição de quarentena, desautorização da realização de shows e eventos culturais, além da determinação do fechamento de escolas, de universidades e, em algumas localidades, de todo o comércio (o chamado lockdown), excetuadas as atividades consideradas essenciais.

Sobre as atitudes tomadas pelas autoridades ao redor do mundo para impedir a introdução da doença em novas áreas da mesma forma que a transmissão entre pessoas onde o vírus já está circulando, a OMS (WHO, 2020b, p. 1, tradução livre das autoras) se pronunciou:

As medidas de saúde pública para atingir esses objetivos podem incluir a quarentena, que envolve a restrição de movimento, ou a separação do resto da população de pessoas saudáveis que possam ter sido expostas ao vírus, com o objetivo de monitorar seus sintomas e garantir a detecção precoce de casos. Muitos países têm a autoridade legal de impor quarentena. A quarentena deve ser implementada somente como parte de um pacote abrangente de resposta e medidas de contenção de saúde pública que, de acordo com o artigo 3 do Regulamento de Saúde Internacional (2005), deve respeitar plenamente a dignidade, os direitos humanos e as liberdades fundamentais das pessoas.3 3 Public health measures to achieve these goals may include guarantine, which involves the restriction of movement, or separation from the rest of the population, of healthy persons who may have been exposed to the virus, with the objective of monitoring their symptoms and ensuring early detection of cases. Many countries have the legal authority to impose guarantine. Quarantine should be implemented only as part of a comprehensive package of public health response and containment measures and, in accordance with Article 3 of the International Health Regulations (2005), be fully respectful of the dignity, human rights and fundamental freedoms of persons.

Nesse cenário, a OMS (WHO, 2020c, p. 1-2, tradução livre das autoras) recomendou o isolamento em instalações de cuidados da saúde para os casos da doença prováveis e confirmados por exames laboratoriais. Para os que apresentarem sintomas leves da doença, propôs o isolamento em instalações não convencionais, tais como hotéis, estádios ou ginásios devidamente preparados para tanto. E, por fim, para os pacientes assintomáticos ou com sintomas leves e sem fatores de risco, indicou a possibilidade de ficarem em casa.

Todavia, essas diretrizes internacionais da Organização esbarraram em um problema técnico significativo: a falta de testes da doença. Por se tratar de um novo tipo de vírus, os testes demoraram a ser formulados, da mesma forma que apareceram outros tantos com resultados não confiáveis. Esse panorama fez com que muitos governos, então, tomassem providências relacionadas ao comércio como redução do horário de expediente, capacidade máxima de atendimento por estabelecimento e, em alguns casos, decretassem o lockdown, o que desencadeou uma nova discussão sobre os impactos econômicos das medidas de contenção da covid-19, especialmente diante de demissões em massa e fechamento de empresas e indústrias.

Mello et al. (2020) afirmam que o novo coronavírus disseminou no mundo uma crise econômica diferente de qualquer outra observada no capitalismo. Para realizar uma análise mais profunda da atual situação econômica mundial, os autores citam o discurso do presidente da França, publicado pelo jornal francês Le Monde, quando Emmanuel Macron referiu-se, por analogia, ao momento como uma guerra.

Ocorre que, para Mello et al. (2020), o que se observa é um cenário oposto ao de uma guerra. Para os autores “em uma guerra, o potencial produtivo de uma economia é totalmente utilizado, alcançando-se o pleno emprego voltado para o atendimento das necessidades do conflito” (MELLO et al., 2020, p. 2). E o que ocorre nessa realidade pandêmica, segundo os autores, é uma “absoluta desmobilização dos fatores de produção das principais potências produtivas globais, com quedas acentuadas na produção industrial e de serviços” (MELLO et al., 2020, p. 2). Diante dessa situação, os autores afirmam que há expectativas de que os impactos econômicos sejam em longo prazo, provocando uma profunda recessão em diversos países.

Diante dessa conjuntura, emergiu um suposto dilema: o que tem mais valor, a saúde das pessoas ou a economia das nações? Devem ser preservadas as vidas ou a economia? De que adianta o isolamento social se as pessoas morrerem de fome? Ou de que adianta trabalhar para morrer de covid-19?

Eis o contexto, de forma breve, que deu ensejo à charge analisada (Figura 1). É importante mencionar que, como visto no tópico anterior, a ACD está preocupada com questões sociais, principalmente com relações de poder e dominação. Nesse caso, é possível vislumbrar um embate entre dois discursos de poder, a saber: por um lado, o discurso da saúde, preconizando o isolamento social e, por conseguinte, o fechamento dos estabelecimentos comerciais; e, por outro, o discurso da economia de que o comércio e a indústria não podem parar, sob pena de falência do Estado e, consequentemente, diminuição da qualidade de vida dos cidadãos.

No que tange à análise tópica da charge, destaca-se, em primeiro lugar, o título “prejuízo”. Apesar de consistir em apenas uma palavra, a sua compreensão norteia toda a interpretação do discurso. Dentre os significados da palavra “prejuízo” no Dicionário Houaiss (2001, p. 2286)HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001., destacam-se: “perda ou dano de qualquer natureza; perda financeira; rombo; ausência ou redução do lucro”. Nota-se, assim, que o tópico apresenta uma conexão com questões de ordem econômica, implicando em um decréscimo ou diminuição daquilo que está especificado mais adiante, quando o chargista remete ao “PIB” – Produto Interno Bruto.

A relação dialética discurso e sociedade demonstrada na charge apresenta uma crítica à situação econômica que desponta na sociedade atual, na qual fica explícita a comparação do vírus, microscópico, com o crescimento econômico. Nesse ponto, inclusive, reside o humor dessa charge, na medida em que o crescimento econômico, medido por meio do Produto Interno Bruto (PIB), precisa ser analisado pelo uso de um microscópio, em virtude de seu tamanho “invisível ao olho nu”. E mais, para a produção desse sentido, é necessário se valer do recurso da implicatura.

Tal interpretação é clara quando analisada por meio do modelo de contexto, com a representação dos participantes (profissionais da saúde, trajados de jalecos brancos sobre camisas e gravatas), o cenário (laboratório e equipamentos) e o momento (crise do novo coronavírus). Vale ressaltar que, para van Dijk, o discurso é uma prática social, um evento comunicativo, incluindo a escrita, a fala, assim como outras formas de expressão, cabendo ao leitor a interpretação e construção de sentido.

Já na Figura 2, Mor (2020)MOR. Folha de São Paulo, São Paulo, maio 2020. Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1665451251642050-charges-maio-2020. Acesso em: 19 jul. 2020.
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ilustra em sua charge a tríade: economia, saúde e desigualdade social, abraçando a relação dialética de discurso e sociedade, proposta por van Dijk:

Figura 2
Crítica à saúde e economia

O contexto tratado por esta charge (Figura 2) ainda é o mesmo da primeira (Figura 1), qual seja, a suposta oponibilidade entre saúde e economia, em tempos de pandemia (destacada, inclusive, pela imagem do vírus circulando sobre as pessoas). No entanto, a Figura 2 contempla outro componente: a desigualdade social. Assim, observa-se em primeiro plano (representação que utiliza cores nos personagens de “maior” importância) o “socorro” à economia. Em segundo plano, de menor importância e sem cores, nota-se a população, que pede atenção aos seus direitos básicos, em especial, à saúde.

A parte textual, consubstanciada pela conversa dos cidadãos com o homem engravatado, é emblemática: “E a gente?” questiona o povo, recebendo como resposta do homem que carrega a maca “Temos um bem maior que a própria vida para salvar”, enquanto leva um homem gordo, trajado de terno e cartola verdes, nos quais aparece o símbolo do dinheiro (“$”). Ainda mais clara é a referência à “economia”, em que a escrita é mostrada, de modo parcial, na ambulância que está socorrendo o homem que representa o dinheiro.

Evidente, assim, a crítica proposta pelo chargista, em consonância com o contexto vivido, em que as pessoas “normais” da sociedade têm menor importância do que aquelas que representam a riqueza e podem ser socorridas, em primeiro lugar, por terem condições financeiras e, em segundo, por suas vidas terem mais valor.

Para Moura (2020, p. 3)MOURA, Rafael Peçanha. O Coronavírus e a denúncia das desigualdades contemporâneas a partir de um risco de alta-conseguência. Coimbra, PT: Observatório do Risco [OSIRIS], abr. 2020. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/osiris/files/Rafael_Pecanha_Coronavi%CC%81rus%20e%20a%20denu%CC%81ncia%20das%20desigualdades_ll_abril_2020.pdf Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/o...
, a maneira pela qual a pandemia escancara e acentua as desigualdades sociais já existentes é um fator indispensável para discussão no atual cenário.

A recomendação do ficar em casa, feita pelo Ministério da Saúde no Brasil, não é acompanhada, na mesma proporção, de políticas de compensação financeira ou fiscalização do setor empregatício, o que faz com que as classes menos abastadas tenham de ser obrigadas a se manterem em trabalho externo à residência, sob risco de contágio, ao contrário das classes mais altas. (MOURA, 2020, p. 3MOURA, Rafael Peçanha. O Coronavírus e a denúncia das desigualdades contemporâneas a partir de um risco de alta-conseguência. Coimbra, PT: Observatório do Risco [OSIRIS], abr. 2020. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/osiris/files/Rafael_Pecanha_Coronavi%CC%81rus%20e%20a%20denu%CC%81ncia%20das%20desigualdades_ll_abril_2020.pdf Acesso em: 19 jun. 2020.
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).

O autor cita ainda estudos realizados pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que apontam que as famílias brasileiras mais pobres terão sua renda afetada de maneira mais significativa que as famílias de outras classes sociais.

Isso significa que ou estes cidadãos desobedecerão às recomendações de isolamento, mantendo-se nas ruas trabalhando e correndo riscos de contágio, a fim de desonerar menos a renda familiar; ou a redução do risco de contágio, ficando em casa, será acompanhada por um aumento significativo de outro risco: o da miséria, em proporção muito maior do que em outras classes. (MOURA, 2020, p. 3MOURA, Rafael Peçanha. O Coronavírus e a denúncia das desigualdades contemporâneas a partir de um risco de alta-conseguência. Coimbra, PT: Observatório do Risco [OSIRIS], abr. 2020. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/osiris/files/Rafael_Pecanha_Coronavi%CC%81rus%20e%20a%20denu%CC%81ncia%20das%20desigualdades_ll_abril_2020.pdf Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/o...
).

Tal fato é abordado por Laerte (2020)LAERTE. Charges março 2020. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mar. 2020. Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1659892950262982-charges-marco. Acesso em: 19 jul. 2020.
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, na Figura 3, deixando clara a desigualdade social já existente, de forma escancarada e acentuada pela pandemia, conforme relatado por Moura (2020)MOURA, Rafael Peçanha. O Coronavírus e a denúncia das desigualdades contemporâneas a partir de um risco de alta-conseguência. Coimbra, PT: Observatório do Risco [OSIRIS], abr. 2020. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/sites/osiris/files/Rafael_Pecanha_Coronavi%CC%81rus%20e%20a%20denu%CC%81ncia%20das%20desigualdades_ll_abril_2020.pdf Acesso em: 19 jun. 2020.
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.

Figura 3
Mazelas sociais

Por fim, na última charge (Figura 3), Laerte (2020)LAERTE. Charges março 2020. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 mar. 2020. Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1659892950262982-charges-marco. Acesso em: 19 jul. 2020.
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representa as mazelas da sociedade em tempos de pandemia, principalmente da parcela mais pobre da população, que mesmo antes do corrente cenário já se encontrava em situação precária, morando em habitações inadequadas, com escassez de água e, muitas vezes, sem renda.

O chargista utiliza-se da imagem da caveira como forte crítica ao risco de vida que parte da população se encontra. Por outro lado, ironiza, por meio do celular com a mensagem de cursos on-line, a preocupação de grande parte da população em não se distanciar de suas atividades corriqueiras.

Aqui, o chargista faz alusão à tão aclamada educação a distância, por meio da expressão “curso online: sobrevivendo à pandemia” e, ao mesmo tempo, aborda a desigualdade social. No que tange à educação a distância, vê-se o personagem segurando em suas mãos um celular, o que, em muitos casos, é o máximo que uma pessoa carente pode ter acesso, principalmente por ser considerado um objeto indispensável na atual era globalizada. Essa situação se contrapõe à das classes mais altas, que assistem aos seus cursos on-line diante de grandes telas de computador, no conforto de seus escritórios (em casa).

Portanto, pela leitura da charge, fica evidente o abismo existente entre a minoria da população de alto poder aquisitivo e a maioria de baixo poder aquisitivo, expondo a situação de vulnerabilidade a que esses estão sujeitos. Isso se dá, também, pelas expressões caracterizadoras dessa vulnerabilidade, vale dizer: “sem casa, sem água, sem renda”. Ainda, é possível perceber na ilustração que o personagem vem a falecer (representação do esqueleto) antes mesmo de concluir o primeiro tópico (“sem casa”).

Souza et al. (2020)SOUZA, Edinilsa Ramos; NJAINE, Kathie; RIBEIRO, Adalgisa Peixoto; LEGAY, Letícia; MEIRA, Karina Cardoso. Violência Estrutural e COVID-19. Associação Brasileira de Saúde Coletiva- ABRASCO, 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtviolenciaesaude/wp-content/uploads/sites/32/2020/05/TEXTOVIOL%C3%8ANCIA-ESTRUTURAL.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
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mencionam a violência estrutural, em que parte da população é excluída e não tem acesso aos seus direitos constitucionais, e, de acordo com Minayo e Cols. (2017, p. 41), conforme citado por Souza et al. (2020, p. 1)SOUZA, Edinilsa Ramos; NJAINE, Kathie; RIBEIRO, Adalgisa Peixoto; LEGAY, Letícia; MEIRA, Karina Cardoso. Violência Estrutural e COVID-19. Associação Brasileira de Saúde Coletiva- ABRASCO, 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtviolenciaesaude/wp-content/uploads/sites/32/2020/05/TEXTOVIOL%C3%8ANCIA-ESTRUTURAL.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
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, essa situação abre espaço para a desvalorização da vida e banalização da morte e da impunidade. Desta forma, Souza et oi. (2020)SOUZA, Edinilsa Ramos; NJAINE, Kathie; RIBEIRO, Adalgisa Peixoto; LEGAY, Letícia; MEIRA, Karina Cardoso. Violência Estrutural e COVID-19. Associação Brasileira de Saúde Coletiva- ABRASCO, 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtviolenciaesaude/wp-content/uploads/sites/32/2020/05/TEXTOVIOL%C3%8ANCIA-ESTRUTURAL.pdf. Acesso em: 20 jul. 2020.
https://www.abrasco.org.br/site/gtviolen...
concluem que a violência estrutural nega os direitos à vida, à educação, à alimentação, à moradia, à saúde, ao saneamento básico, entre outros direitos fundamentais.

Não é por outro motivo que a ONU (2020) constatou um “impacto desproporcional da COVID-19 sobre minorias raciais e étnicas”, resultado provável de fatores relacionados à “marginalização, discriminação e acesso à saúde”. A Organização aponta que a população negra e de outras minorias étnicas está sujeita a um grau de letalidade da doença mais elevado do que em relação aos brancos e exemplifica que, “no Estado de São Paulo, as pessoas negras têm 62% mais chance de morrer de COVID-19 do que as brancas”.

Desigualdades econômicas, moradias superlotadas, riscos ambientais, disponibilidade limitada de cuidados de saúde e preconceito na prestação de cuidados podem desempenhar um papel. Pessoas de minorias raciais e étnicas também são encontradas em maior número em alguns empregos com risco aumentado, inclusive nos setores de transporte, saúde e limpeza. (ONU, 2020, on-line).

A desigualdade social, a propósito, é sentida na pele todos os dias por aqueles que não têm nada além de sua força de trabalho. Pessoas para as quais não existe a possibilidade de home office, que devem enfrentar, sem cessar, longas rotinas de trabalho e, principalmente, de deslocamento. Para elas, não há distanciamento social: devem passar horas nos transportes públicos (ônibus e metrô), onde estão constantemente expostas ao vírus; devem exercer suas atividades profissionais, quando raramente têm o privilégio de trabalhar longe de outras pessoas; e, mesmo em casa, ainda se veem cercadas de outras pessoas, que tiveram contato com outras, possivelmente contaminadas, especialmente porque não dispõem de espaço suficiente em suas moradias.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da contextualização da covid-19 no Brasil e no mundo, possibilitou-se a compreensão do cenário atual pandêmico, desde seu surgimento até os acontecimentos atuais. Destaca-se, no presente estudo, a falta de consenso quanto às medidas a serem adotas no atual momento de crise mundial, deixando escancaradas as mazelas da sociedade.

Posteriormente, tendo como objetivo análises chargistas, apresentou-se seu contexto e importância na representação linguística. Fica claro, no presente estudo, que a charge exerce uma função importante, principalmente no momento atual, que foca nos problemas sociais, produzindo reflexões importantes acerca da temática.

A partir da Análise Crítica do Discurso, conforme Teun van Dijk, compreende-se que a relação entre sociedade e discurso é necessariamente mediada pela cognição, envolvendo os modelos mentais e influenciados pelas representações sociais produzidas, fundamentalmente, na interpretação e construção de sentidos dos eventos comunicativos.

Por meio da tríade economia, saúde e desigualdade social, o presente estudo abordou três charges, relacionando o atual cenário de crise mundial decorrente da pandemia do novo coronavírus com o objetivo de interpretação das mensagens que se pretende passar e seus diferentes vieses de interpretação.

Assim, a partir das imagens apresentadas, por meio da interpretação das charges, baseadas na ACD e na visão de van Dijk, destacaram-se as representações sociais que influenciam a interpretação e construção dos sentidos dos eventos comunicativos, de forma a demonstrar a perspectiva crítica dos problemas sociais por meio da produção e reprodução do discurso de poder, dominação e desigualdade social.

  • 2
    Epidemiological evidence shows that 2019-nCoV can be transmitted from one individual to another
  • 3
    Public health measures to achieve these goals may include guarantine, which involves the restriction of movement, or separation from the rest of the population, of healthy persons who may have been exposed to the virus, with the objective of monitoring their symptoms and ensuring early detection of cases. Many countries have the legal authority to impose guarantine. Quarantine should be implemented only as part of a comprehensive package of public health response and containment measures and, in accordance with Article 3 of the International Health Regulations (2005), be fully respectful of the dignity, human rights and fundamental freedoms of persons.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Aceito
    08 Dez 2021
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