Open-access Origens e caracterização das agroindústrias familiares no Extremo Oeste Catarinense

Origins and characterization of family agroindustries in the far West of Santa Catarina

Orígenes y caracterización de las agroindustrias familiares en el Extremo Oeste de Santa Catarina

Resumo

A agroindustrialização representa uma alternativa de inserção econômica mobilizada por famílias situadas nos territórios rurais. Este estudo analisa os processos de transformação de produtos no território da Associação de Municípios do Extremo Oeste Catarinense. O objetivo consiste em analisar o perfil socioeconômico de agroindústrias familiares formais ou com potencial de formalização, resgatando a trajetória de constituição e dando ênfase à descrição das características produtivas predominantes nesses empreendimentos. Os resultados apontam a mobilização do saber-fazer de produtos tradicionais destinados inicialmente ao autoconsumo das famílias, os quais passam a ser comercializados por diferentes redes de relações sociais. À medida que são reconhecidos, permitem a estruturação de agroindústrias formais, ampliando a escala de produção e conferindo segurança aos investimentos. Esses empreendimentos recebem contribuição de redes de cooperação e de organizações públicas, enquanto os desafios são contornados, mas não eliminados.

Palavras-chave:
desenvolvimento rural; inserção produtiva; agroindustrialização

Abstract

Agroindustrialization represents an alternative for economic inclusion driven by families located in rural areas. This study analyzes the processes of product transformation in the territory of the Association of Municipalities of Far West Santa Catarina. The objective is to analyze the socioeconomic profiles of formal family agroindustries and those with potential for formalization, tracing their establishment trajectories and emphasizing the predominant productive characteristics of these enterprises. The results indicate a mobilization of traditional product know-how initially intended for family self-consumption, which has begun to be commercialized through various social networks. As these products gain recognition, they facilitate the structuring of formal agroindustries, expand production scales, and provide security for investments. These enterprises receive support from cooperation networks and public organizations, while challenges are circumvented, though not entirely eliminated.

Keywords:
rural development; productive insertion; agroindustrialization

Resumen

La agroindustrialización representa una alternativa de inserción económica impulsada por familias ubicadas en territorios rurales. Este estudio analiza los procesos de transformación de productos en el territorio de la Asociación de Municipios del Extremo Oeste de Santa Catarina. El objetivo es analizar el perfil socioeconómico de las agroindustrias familiares formales o con potencial de formalización, rescatando la trayectoria de su formación y enfatizando la descripción de las características productivas predominantes de estas empresas. Los resultados indican la movilización de conocimientos sobre productos tradicionales, inicialmente destinados al autoconsumo familiar, que ahora se venden a través de diferentes redes de relaciones sociales. A medida que son reconocidos, permiten la estructuración de agroindustrias formales, ampliando la escala de producción y brindando seguridad a las inversiones. Estos emprendimientos reciben aportes de redes de cooperación y organismos públicos, mientras que los desafíos son superados, aunque no eliminados.

Palabras clave:
desarrollo rural; inserción productiva; agroindustrialización

1 INTRODUÇÃO

O abastecimento de alimentos é caracterizado por um modelo industrial gerido por grandes corporações, que controlam a produção de insumos, processamento, distribuição e consumo alimentar, com predomínio das cadeias longas. As fragilidades e a insustentabilidade desse modelo se interligam com o contexto atual de mudanças climáticas, exaustão de recursos naturais, aprofundamento das desigualdades sociais e desconexão entre a produção e o consumo de alimentos (Niederle; Wesz Junior, 2018; Belletti; Marescotti, 2020; Grisa et al., 2022). Como exemplo, o sistema alimentar hegemônico foi profundamente impactado pela pandemia desencadeada pela Covid-19, afetando a logística de distribuição de alimentos, bebidas, serviços e outros produtos no Brasil e na América Latina (León et al., 2020). A série de limitações no acesso aos alimentos e demais produtos, por parte dos consumidores, resultou no aumento da insegurança alimentar e nutricional e situação de fome (Galindo et al., 2021).

A dependência por tecnologias de origem industrial está presente em todos os elos da produção de alimentos, mas sua intensidade é maior no processamento dos produtos. Além do contínuo surgimento de novos alimentos ou ingredientes, está em curso a concepção de processos de fabricação com tecnologias radicalmente novas (por exemplo, carne artificial). A produção de commodities situa-se cada vez mais distante dos locais de consumo. Para organizar e otimizar a logística, a grande distribuição se impõe como inevitável para permitir o acesso desses produtos ao consumo de massa. Ao longo das cadeias, os elos entre os envolvidos na produção inicial até o consumo se multiplicaram, o que acentua a divisão do trabalho e complexifica os ciclos de produção e os circuitos de comercialização. Essas transformações vêm acompanhadas da ênfase no controle da qualidade, principalmente em dois domínios: a segurança e a identidade dos produtos (Niederle; Wesz Junior, 2018; Grisa et al., 2022).

Em relação à segurança, a industrialização da cadeia alimentar gera e/ou amplia as incertezas sobre a higiene dos produtos, sobre a confiança dos processos de produção e de transformação em relação às competências dos produtores, bem como sobre o respeito às regras pelos vendedores. As próprias preocupações nutricionais e com a saúde transformam o conceito de segurança, na medida que cresce a prevalência de doenças cardiovasculares, câncer e obesidade. A isso, soma-se a crescente sensibilização com a forma física, a busca por alimentos que gerem prazer organoléptico e as preocupações éticas de bem estar animal e de preservação ambiental. As incertezas não se relacionam unicamente aos riscos de toxinfecções (microorganismo), passando a incorporar novas demandas e os efeitos nocivos de longo prazo. Essas transformações nos sistemas agroalimentares dão origem ao que passou a se denominar economia da qualidade (Niederle; Wesz Junior, 2018; Grisa et al., 2022).

Embora o modelo hegemônico de produção controle a maior parte dos fluxos globais de alimentos, uma visão de qualidade mais ampla que a industrial tem favorecido a concepção de sistemas alternativos, baseados em diferentes estratégias coletivas, a exemplo das seguintes: a) valorização da produção tradicional diferenciada; b) aproximação entre produtores e consumidores; e c) incorporação de apelos ambientais, socioculturais e de saúde. À medida que representam arranjos sociotécnicos construídos por atores excluídos dos sistemas agroalimentares de grande escala, que procuram conservar seus recursos naturais e valorizar a diversidade sociocultural, essas alternativas podem ser enquadradas como projetos heterogêneos de desenvolvimento rural (Medeiros et al., 2017; Grisa et al., 2022).

Entre os projetos desviantes de desenvolvimento, a agroindustrialização na agricultura familiar se constitui a partir de diferentes tipos de matéria-prima, criando iniciativas distintas da grande produção de commodities que caracteriza os sistemas agroalimentares hegemônicos (Cenci, 2022; Lauermann; Capellesso; Gazolla, 2022). Além da agregação de valor aos diferentes produtos e alimentos de suas unidades de produção, essas iniciativas aportam benefícios coletivos, como a preservação da cultura e do saber-fazer dos diferentes territórios (Dorigon, 2008; Wesz Júnior; Trentin; Filippi, 2009; Dorigon; Renk, 2011). Por se situarem em realidades heterogêneas, a valorização e a preservação de especificidades territoriais contribuem para contornar processos homogeneizadores (Cazella et al., 2020).

De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, 17% (852.639) dos estabelecimentos agropecuários do Brasil possuem atividade de agroindustrialização, dos quais 85% (720.644) pertencem à agricultura familiar. No estado de Santa Catarina, a agroindustrialização ocorre em 21% (38.286) dos estabelecimentos, também concentrada na agricultura familiar (86%). Nos municípios que compõem a Associação dos Municípios do Extremo Oeste de Santa Catarina (Ameosc, Figura 1), as atividades agroindustriais são mais frequentes que o registrado no estado e no país4. Nesse território, dos 13.314 estabelecimentos agropecuários recenseados, 69% (9.192) afirmaram agroindustrializar alimentos ou outros produtos, dos quais 89,9% (8.266) pertencem à agricultura familiar (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2019).

Figura 1
Localização dos dezenove municípios da Ameosc no estado e país

A expressividade da agroindustrialização nos 19 municípios da Ameosc resulta em vendas de produtos antes restritos ao autoconsumo dos agricultores familiares. A obtenção de receitas monetárias com a comercialização desses produtos foi recenseada em 1.419 estabelecimentos - 10,5% do total (IBGE, 2019), sendo em sua ampla maioria informal. Ou seja, não atendem às normas técnicas definidas pelos serviços públicos de vigilância sanitária e ambiental. Apesar da expressividade no território, observada na relevância socioeconômica para as famílias agricultoras e benefícios aos consumidores que adquirem os produtos processados, pouco se sabe sobre as origens, características e dinâmicas dessas agroindústrias familiares (AGFs). O objetivo deste artigo consiste em analisar o perfil socioeconômico de AGFs formais ou com potencial de formalização, dando ênfase à descrição das características produtivas predominantes nesses empreendimentos, tendo por base o território da Ameosc.

2 METODOLOGIA

O recorte geográfico deste estudo é composto pelos 19 municípios da Ameosc. Em 2017, nesta região, foram identificadas 102 AGFs com destinação sistemática aos mercados, formais ou com condições de formalização do ponto de vista sanitário (Reiter et al., 2019). Esses dados foram atualizados em 2021 via contato com representantes das prefeituras e da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). A Tabela 1 detalha as 99 AGFs aptas a participar da pesquisa. A seleção amostral ocorreu por meio de uma amostragem não probabilística intencional, em que o “n” amostral não é obtido por meios estatísticos e os participantes não são selecionados aleatoriamente. O sorteio foi estratificado para contemplar subcategorias de produtos e faixas populacionais, contemplando 35 AGFs em 15 dos 19 municípios que fazem parte da Ameosc. Em caso de indisponibilidade ou desinteresse do responsável em participar da pesquisa, quando possível, essa foi substituída por outra dentro da subcategoria.

Tabela 1
Distribuição do total de agroindústrias familiares inventariadas e amostradas, bem como a distribuição relativa segundo os critérios de categorias dos produtos e faixas populacionais dos municípios no Extremo Oeste Catarinense (EOC)

A coleta de dados foi realizada com a aplicação de questionário contendo questões de múltipla escolha e abertas, utilizando-se o Google Forms e aplicado pela equipe de pesquisa. O instrumento foi adaptado a partir de roteiro utilizado por Cenci (2022), totalizando 103 perguntas de caráter quantitativo e qualitativo. Os formulários foram tabulados em planilha (Excel) e analisados por meio da estatística descritiva (como medidas de frequência), utilizada para apresentar os resultados obtidos por meios gráficos e tabelas. Já os dados qualitativos provenientes das questões abertas do formulário e das observações realizadas in loco foram discutidos por meio da análise de conteúdo.

3 A CONSTITUIÇÃO E LOCALIZAÇÃO DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES NO TERRITÓRIO

A reconstrução da trajetória das AGFs na região de estudo permite apontar que esses empreendimentos não representam uma atividade recente. Ao incluirmos o período de atuação informal, 14,3% delas têm mais de 25 anos (Figura 2), evidenciando que iniciativas bem estruturadas podem perdurar no tempo. Contudo, Lauermann, Capellesso e Gazolla (2022) demonstram que a “agregação de valor” que fundamenta a criação das AGFs não é uma certeza de sucesso. Ao comparar dados regionais levantados em 2017 e em 2021, 32 AGFs pararam de processar, enquanto foram criadas outras 29 unidades. Ao separar a data de fundação em faixas quinquenais, há um maior número de AGFs ativas que foram criadas entre 2007 e 2011. Essa coincide com o funcionamento de políticas públicas de compras governamentais, aspecto destacado por alguns entrevistados para justificar a opção de investir na atividade. A inclusão de alimentos que carregam a cultura e história de vida dos atores na alimentação escolar representa um novo mercado aos agricultores familiares, criando oportunidades de inclusão produtiva que permitem geração de renda (Hendler et al., 2021; Sousa, 2021).

Figura 2
Distribuição temporal do momento de criação das 35 agroindústrias familiares entrevistadas no EOC em 2022

A expansão de AGFs rurais no território estudado ganha expressão a partir dos anos 1990, no quadro de um processo de reconversão produtiva de parcela de unidades agrícolas familiares excluídas das cadeias de produção de matérias-primas para grandes indústrias agroalimentares de processamento de carne suína, aves e, mais recentemente, leite. Esses agricultores familiares, organizados em grupos de famílias ou individualmente, recorrem ao seu saber-fazer em processamento de alimentos e à imagem positiva junto a consumidores dos “produtos coloniais”, referência ao processo de ocupação oficial da região, para organizar seus empreendimentos. Geralmente, iniciam a comercialização no mercado informal e, na medida que obtêm uma escala mínima de comercialização, constroem suas AGFs rurais para formalizar seus empreendimentos, razão pela qual a produção informal faz parte da origem da maioria destas iniciativas (Dorigon, 2008, Dorigon; Renk, 2011; Dorigon et al., 2015).

Nas distintas trajetórias, algumas AGFs têm origem na organização coletiva, enquanto outras são resultado da ação de uma família. Cinco AGFs (14%) contaram com recursos de programas governamentais que exigiam a ação coletiva de grupos de agricultores, mas depois foram assumidas por integrantes de uma das famílias (AGF 06; 24; 25; 30 e 31). A criação dessas AGFs remete aos anos de funcionamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) na modalidade Pronaf Infraestrutura e Serviços Municipais (1999-2000). Por meio dessa linha, havia ações de repasse de recursos públicos não reembolsáveis para a construção física do local de beneficiamento e compra de equipamentos. Como o serviço de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) desempenha papel relevante na construção de estratégias de inclusão produtiva, fomento à inovação e acesso às políticas públicas (Sousa; Pôrto-Júnior, 2022), os projetos deveriam receber apoio de um órgão de Ater. Nesse período, ocorreu expansão das AGFs com finalidade comercial (Cruz, 2020).

Embora o Pronaf fomentasse agroindústrias coletivas para gerar ganhos cooperativos, a atuação em grupo não alcançou os resultados sinérgicos esperados. Durante as entrevistas, foram relatadas outras unidades criadas em grupo naquele período e que não funcionaram, sem ter sido assumidas por nenhuma família. A ampla maioria dos grupos que estiveram à frente dessas iniciativas foram criados para atender os critérios de liberação de recursos financeiros e, em geral, eram formados por um número elevado de famílias (acima de 10). Entre as explicações para os insucessos desses empreendimentos coletivos estão problemas de gestão e de governança do grupo, pois geralmente não partiram de experiências de cooperação em atividades produtivas entre os associados e, portanto, de construção de relações de confiança para esse tipo de ação.

Em alguns casos, uma família assumiu a estrutura do empreendimento, demonstrando que o problema não era de viabilidade técnica, mas organizacional para atuar de forma cooperada. Em outros, as unidades ficaram superdimensionadas e/ou com restrições burocráticas para proceder a transferência aos sócios remanescentes, levando os agricultores interessados a construir sua própria unidade5. Esse segundo caso foi observado na AGF 25, que optou por montar sua unidade de processamento de conservas no porão de sua casa, próxima da antiga agroindústria do grupo, que se encontrava fechada quando da realização da entrevista.

Durante a pesquisa, outros 20% das AGFs entrevistadas (AGF 01; 16; 17; 18; 23; 26; e 34) atuam vinculadas a cooperativas ou associações, que oferecem suporte ao funcionamento individual. Uma utiliza a estrutura física de uma associação para processamento/venda (AGF 17) e duas são vinculadas à associação de feirantes que dispõe de um espaço para venda direta (AGFs 18 e 34). A AGF 26 faz a gestão financeira por meio da cooperativa, já que a legislação lhe permite trabalhar com lucro real. Já as AGFs 01 e 23 apontam como uma vantagem o serviço de emissão de nota fiscal em nome da cooperativa, pois evita a necessidade de criar uma pessoa jurídica específica para a agroindústria. As AGFs 16 e 23 destacam ainda o apoio à participação em compras governamentais por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A chamada pública de compras do PNAE estimula a cooperação ao adotá-la como critério de priorização dos agricultores, sendo que as cooperativas contribuem na construção de mercados formais (Fernandes; Engel, 2016; Capellesso et al., 2021). Em complemento, aparecem menções das cooperativas ao disponibilizar pontos de vendas e no apoio à captação de recursos para infraestrutura física de processamento em organizações descentralizadas.

De forma mais específica, a AGF 13 atua junto a outros 38 agricultores e aloca seus apiários nas propriedades destes, bem como destina aos parceiros aproximadamente 25% do mel colhido. Já a AGF 02 foi construída por uma cooperativa de 85 sócios, criada com o objetivo de negociar coletivamente o leite in natura de seus associados. Para diversificar sua atuação e agregar valor ao produto, essa AGF montou uma planta para processar parte da produção, enquanto o restante continua a ser vendido às grandes indústrias de laticínios. De um lado, os dados apresentados reforçam o papel das cooperativas no auxílio à superação de gargalos. De outro, foram relatados casos em que essa forma de organização sofreu com entraves. As AGFs 29 e 30, criadas vinculadas e com apoio de cooperativas, depararam-se com dificuldades para registrar bebidas (cachaça). Segundo relato dos entrevistados, todas as tentativas de legalização desse produto por meio de uma cooperativa foram recusadas. Após seguirem a recomendação de mudança legal para pessoa jurídica individual, as duas conseguiram formalização sanitária. Em paralelo, mesmo atuando individualmente, cinco AGFs de bebidas alcoólicas comercializam esses produtos na informalidade.

Vinculadas ou não às cooperativas, cinco AGFs (11%) se constituíram a partir da mobilização de mais de uma família (AGF 16; 22; 23; 29). Enquanto uma dissolveu a sociedade com o vizinho, três delas mantêm atuação de mais de um núcleo familiar, com laços consanguíneos entre si. Evidencia-se que a existência de relações sociais fortes pode contribuir para aproximar e agregar interesses em ações cooperativas. Além de viabilizar investimentos em infraestruturas, a ação coletiva é uma forma de atender às demandas de mão de obra, aspecto apontado como um importante entrave atual para viabilizar a produção e a comercialização dos alimentos. Em síntese, diferentes formas de cooperação aparecem como base organizativa da produção em 42,8% das AGFs investigadas.

Enquanto Wesz Júnior, Trentin e Filippi (2009) apontam que a maioria das AGFs dos três estados do Sul produziam e geriam os empreendimentos de forma coletiva, neste estudo, 57,2% das AGFs foram criadas pela ação do núcleo familiar, sem contar com a ação coletiva com outras famílias ou via cooperativas/associações. Embora gerida por uma família, quase todos os gestores entrevistados participam de alguma forma de cooperação, o que demonstra a habilidade social desses agricultores de se associarem em atividades nas quais a ação coletiva é necessária e/ou vantajosa. A exemplo, 91,4% declararam ser clientes de cooperativas de crédito. Outras formas de cooperação aparecem na aquisição de matéria-prima de vizinhos, na contratação da mão de obra e no acesso aos canais de comercialização. Essa densa rede de relações sociais, na qual essas AGFs estão imersas, nem sempre é visível num primeiro momento e aparece apenas na medida que se analisa o conjunto das informações a respeito do funcionamento desses empreendimentos.

Dado o histórico de constituição, 14% utilizam unidades produtivas fora do estabelecimento rural, com origem em projetos que pertenciam ou ainda mantêm vínculos com cooperativas e associações. Dentro dos estabelecimentos agrícolas familiares, 29% utilizam área anexa à residência, com acesso próprio para o local de agroindustrialização, e 57% contam com construção própria para a agroindústria. As áreas de processamento variam de 24 m2 em uma unidade de panificados artesanais e chegam a 450 m2 na cooperativa que processa leite.

Três AGFs se situam na sede do município (8,6%), sendo a cooperativa instalada no parque industrial, uma anexa à residência e outra em espaço de uma associação de artesãos. Essas três unidades são geridas por pessoas que não exercem outras atividades de produção agropecuária. Duas delas processam matérias-primas adquiridas de agricultores do município e entorno, enquanto a terceira trabalha com a produção de seus associados agricultores. Mesmo operando na sede do município, essas mantêm fortes vínculos com rural, pois eram filhos de agricultores e/ou têm familiares residindo em áreas de atividade agrícola (interior dos municípios), com os quais trocam o saber-fazer familiar na arte de processar alimentos de forma artesanal.

Em 37% das AGFs, mais da metade da principal matéria-prima não é de produção própria. Em 28,8%, é totalmente externa, como ocorre nos panificados (farinha) e nas duas AGFs de embutidos e carnes, o que evidencia a necessidade de relativizar o local onde se situam tais estabelecimentos. No contexto dos municípios rurais, a localização geográfica não é suficiente para indicar o quanto da cultura das famílias agricultoras aparecem nos alimentos. Os entrevistados que residem nas sedes municipais demonstraram manter uma cultura compartilhada com os agricultores, reforçado pela dinâmica dos pequenos municípios com migração rural recente, como é o caso da maioria dos casos da região em análise.

A localização geográfica pode não alterar as expressões culturais e demais atributos rurais dos alimentos processados, mas tem relação com as condições de deslocamento e acesso aos consumidores. As três unidades situadas no perímetro urbano ou próximo a vias pavimentadas (asfaltadas) têm maior facilidade para acessar os clientes ou de serem acessadas diretamente por parte da sua clientela. Quanto às demais AGFs, a distância até a sede do município variou de 0,8 km a 25 km, com média de 8,9 km (Figura 3). A exemplo, 21 AGFs (60%) se encontram a distância maior ou igual a 5 km da sede municipal. Essa distribuição das AGFs em diferentes espaços geográficos dos municípios favorece a articulação com outras atividades diferenciadas, a exemplo do turismo rural (Wesz Junior; Trentin; Filippi, 2009). Nessa direção, 20% das AGFs entrevistadas já atuavam com serviços de turismo rural ou estavam se articulando para oferecer essa atividade, na qual o estabelecimento e a agroindústria passaram a ser um atrativo, na direção proposta pela cesta de bens e serviços territoriais (CBST) (Cazella et al., 2020).

Figura 3
Distância das 35 agroindústrias entrevistadas em relação à sede de seus municípios

No entanto, as AGFs que se encontram mais afastadas das sedes municipais se defrontam com problemas logísticos, sobretudo quando as estradas rurais não têm pavimentação. Entre os problemas relatados estão a poeira, o que exige cuidados redobrados para manter a aparência dos alimentos e demais produtos. A isso se somam os elevados custos de manutenção dos veículos utilizados no transporte. As vias não pavimentadas afetam, especialmente, a busca por produtos direto nas agroindústrias.

4 A RELEVÂNCIA ECONÔMICA, GESTÃO E O TRABALHO NA AGROINDUSTRIALIZAÇÃO FAMILIAR

A diversidade de situações entre os empreendimentos e composições familiares tornam difícil encontrar padrões quanto à importância das agroindústrias nas estratégias de reprodução social familiar e individual. A Figura 4 demonstra que, excluída as aposentadorias, essa é a única fonte de renda para 26% das famílias entrevistadas, representa mais de 50% da renda para 37% e gera menos de 50% da renda agropecuária familiar para 29%, restando 6% que são urbanas e não dispõem de outras rendas agropecuárias (AGFs 17 e 27). Esse grau de importância da renda deve ser reinterpretado à luz das diferenças internas das famílias, à medida que essa pode ser a única fonte para alguns indivíduos. Em 67% das agroindústrias familiares entrevistadas, as mulheres aparecem entre os dois principais gestores, sendo a principal gestora em 46% delas (Figura 5). Assim como observado por Conterato e Strate (2019), além da gestão, elas atuam na produção, na comercialização e na articulação com outros atores territoriais e associativos. Essa presença e protagonismo feminino contribui para reequilibrar o poder nas relações de gênero, ainda muito desiguais no campo (Schnedier et al., 2020).

Figura 4
Percentual da renda da produção agropecuária familiar proveniente da agroindústria

Figura 5
Gênero, faixa etária e escolaridade dos dois principais gestores das 35 agroindústrias entrevistadas no EOC.

Em 42,9% das AGFs, ao menos um dos dois principais gestores tem menos de 35 anos. O principal gestor tem mais de 55 anos em 42,9% delas, sendo que em 31,4% não há um segundo ou terceiro gestor com idade inferior. Esse grupo tende a se deparar com dificuldades de sucessão, que poderá levar ao fechamento de algumas unidades no futuro. Contudo, ao correlacionar a idade dos gestores com o ano de início das atividades, verifica-se problemas de envelhecimento e falta de sucessor mesmo em AGFs criadas recentemente (<10 anos). A carência de gestores jovens foi verificada em estudo conduzido com 35 AGFs no oeste paranaense, em que 69% dos gestores possuíam mais de 50 anos (Besen; Plein; Bortolanza, 2021). Destaca-se que, com o aumento da expectativa de vida, alguns entrevistados relatam que a agroindustrialização representou uma forma de renda complementar à aposentadoria, especialmente quando essa exige menores esforços físicos se comparadas a outras atividades agropecuárias.

Quanto à educação formal, a escolaridade dos gestores vai do ensino fundamental incompleto à pós-graduação. Como muitos produtos mobilizam diferenciais tradicionais de qualidade para embasar a estratégia de comercialização, a importância do conhecimento prático é apontada por 97% dos gestores entrevistados. A valorização da tradição tem importantes reflexos em relação à autoestima, pois altera a perspectiva da condição de produtores anônimos de matérias-primas às grandes empresas agroalimentares para ser tornarem reconhecidos por processarem e comercializarem alimentos de qualidade diferenciada (Dorigon, 2008, Dorigon; Renk, 2011).

Em complemento à educação formal, 71,4% dos gestores apontam ter curso de curta duração em produção de alimentos e 20% têm formação técnica ou superior. Soma-se a isso o apoio de órgãos de assistência técnica, já que 85,7% informam contar com, ao menos, uma assessoria técnica: 62,8% da Epagri; 20% de outros técnicos de organizações públicas (municipal ou federal); 31,4% de profissionais via Sistema S6; e 31,4% do responsável técnico ou outro profissional contratado pela agroindústria ou cooperativa. De um lado, apenas cinco AGFs (14,3%) afirmaram não receber assessoria técnica. De outro, 17 AGFs (48,6%) apontaram ter mais de uma organização lhes prestando Ater, o que corrobora seu papel em projetos de inclusão produtiva (Sousa; Pôrto-Júnior, 2022).

A atuação na agroindustrialização pode exigir desempenho em diferentes funções, desde a produção de matéria-prima até a comercialização e marketing. Disso resulta uma preocupação recorrente referente à baixa disponibilidade de força de trabalho, considerando que há uma sobreposição de atividades agrícolas e não-agrícolas desempenhadas pelos membros da família (Amorim; Staduto, 2008). A preocupação dos gestores deixa de ser direcionada a gerar oportunidades para a força de trabalho interna à família, mas de gerenciar a que tem disponível para diminuir a sobrecarga de trabalho (Wesz Júnior; Trentin; Filippi, 2009).

Em decorrência do recorte dos empreendimentos, a força de trabalho familiar na produção de matéria-prima ou processamento ocorre em 97% das AGFs pesquisadas (Figura 6). A exceção é a cooperativa de leite, que realiza o processamento exclusivamente com força de trabalho contratada de forma permanente, enquanto as famílias cooperadas produzem a matéria-prima. Em 51,4% das AGFs, o trabalho é exclusivamente familiar. São raros os casos com mais de cinco familiares envolvidos, sendo o trabalho executado permanente por uma a duas pessoas (62,8%) ou de três a cinco (28,6%) pessoas, ocorrendo de forma complementar o auxílio eventual de familiares em 40%. A contratação de funcionários de fora da família ocorre em 48,6% das AGFs. Enquanto 31,4% contratam exclusivamente trabalhadores temporários, 8,6% só empregam funcionários fixos e 8,6% eventual + fixos. A contratação eventual relaciona-se com a sazonalidade da produção e a insuficiência da força de trabalho familiar (Besen; Plein; Bortolanza, 2021).

Figura 6
Força de trabalho familiar e contratada para atuação permanente ou eventual na produção de matéria-prima, processamento e demais atividades das 35 agroindústrias entrevistadas no EOC.

Em relação à distribuição das diferentes funções inerentes ao funcionamento das AGFs, em 97% delas a gestão financeira e da produção são realizadas pela família, excetuando-se o caso da cooperativa de leite, que contrata gestores. A comercialização dos alimentos e demais produtos também é predominantemente realizada pelos familiares. Nesse quesito, 9% das agroindústrias recorrem à contratação de funcionários ou auxílio de cooperativas às quais são vinculados. A força de trabalho contratada mostra-se mais expressiva na produção da matéria-prima (17%) e no processamento na agroindústria (14%). Assim como observado por Conteratto et al. (2021), de modo geral, as AGFs utilizam exclusivamente a força de trabalho familiar nas diferentes atividades produtivas e de comercialização.

Em relação à periodicidade de processamento, um grupo atua de forma intermitente (uma ou duas épocas do ano), em decorrência da oferta sazonal de matéria-prima (Tabela 2). No caso do mel, ocorrem duas colheitas ligadas às floradas, o que resulta em atuação em duas épocas do ano. Contudo, a AGF formalizada nesse produto o descristaliza, o que exige atuação quinzenal. Esse mesmo intervalo de tempo ocorre numa agroindústria de peixe, que vende seus produtos congelados. Em AGF com limitada capacidade de estoque (câmara fria), isso exige a operação de abate de frango ou de descasque de mandioca uma vez por semana. Ainda de forma semanal ocorre o processamento de cana-de-açúcar, visando o frescor. À medida que o caráter recente de preparo é mais valorizado, ou que a matéria-prima não pode ser conservada, crescem os dias de trabalho, chegando de dois a três dias da semana. Com trabalho de quatro a cinco dias por semana aparecem 26% das agroindústrias, seja para alcançar volume ou manter o frescor, e outros 17,1% trabalham de seis a sete dias da semana.

Tabela 2
Periodicidade de processamento segundo os tipos de produtos processados pelas agroindústrias entrevistadas no EOC

De um lado, algumas AGFs exigem trabalho aos finais de semana, seja pela característica da produção, seja em decorrência do momento que o produto é demandado. Esse é o caso dos ovos, da destilação de cachaça, do atendimento para festas e dos pedidos de panificados para segunda-feira. De outro, a maior parte das AGFs teria a possibilidade de ampliar a capacidade de agroindustrialização, otimizando o tempo de uso das estruturas. Contudo, essa ampliação esbarra em limitações na disponibilidade de força de trabalho, principal limitante para aumentar o volume de matéria-prima disponível. Nessa direção, para aumentar a escala, 37,1% das AGFs relataram comprar ao menos parte da principal matéria-prima de agricultores da região, chegando a 57,1% comprando parte ou toda a matéria-prima principal em diferentes origens.

Outro elemento importante que limita a ampliação da produção é a baixa capacidade de estoque. As AGFs com maior logística nesse quesito são as que atuam de forma sazonal ao longo do ano, com conservas, vinho ou suco de uva, cachaça, açúcar mascavo e mel. As demais trabalham com um estoque, geralmente, limitado a até 10 vezes a capacidade de processamento diário. O estoque reduzido ocorre, especialmente, para os produtos que exigem refrigeração, razão de optarem por trabalhar com a produção próximo às datas de entregas para reduzir os custos. A isso se somam os produtos que começam a perder qualidade após fabricados, para os quais um dos grandes diferenciais é o curto período entre produção e consumo (panificados, geleias etc.). Para manter o frescor dos produtos, entendido como um diferencial valorizado pelos consumidores, algumas AGFs não estocam os alimentos processados, mas a matéria-prima: mel para descristalizar e frutas para geleias. Nesse caso, é comum produzir conforme a demanda, processando quando há expectativa de venda ou de acordo com os pedidos.

O recorte de pesquisa contemplou AGFs formais ou em vias de formalização, sendo que sete (20%) delas atuavam como informais no que se refere às normas sanitárias. Essas trabalhavam com mel, panificados e produtos de origem vegetal (bebidas), comercializados por meio de atravessadores e/ou direto aos consumidores (venda na propriedade, em feiras e nas residências dos clientes). As AGFs informais, que não dispõem de registro sanitário para nenhum dos tipos de alimentos ou bebidas elaborados, são as seguintes: (a) duas AGFs de produtos de origem vegetal, sendo que uma elabora derivados de cana (açúcar mascavo e melado) e a outra panificados; (b) duas AGFs produtoras de mel; e (c) três AGFs que elaboram bebidas (sucos, vinhos e espumantes) e geleias.

Entre as razões para não se formalizar, quatro não veem necessidade ou vantagens, pois consideram os custos muito elevados, enquanto as outras quatro têm interesse. Dois gestores dessas AGFs destacam manter a condição de informalidade por conseguir vender toda a produção em uma feira que aceita produtos informais, condição garantida por um acordo com o Ministério Público, baseado no tempo de atuação informal em que não foram relatados problemas. Outras três destacam que conseguem vender toda a produção direto no estabelecimento. Três AGFs que manifestaram incômodo com a informalidade e têm interesse em se formalizar destacam que a falta de registro restringe a venda em muitos locais (por exemplo, supermercados), enquanto uma foi autuada pelo serviço público de vigilância sanitária e teve que responder a processo. Há que se considerar que as famílias de agricultores passam a vender seus produtos aos familiares e conhecidos em suas casas e, à medida que aumenta a procura, passam a avaliar a viabilidade de estruturar uma oferta em canais de comercialização nos quais correm o risco de serem autuados. Enquanto a facilidade de comercialização informal atende suas necessidades, essa condição persiste (Dorigon, 2008).

Entre as 28 entrevistas com gestores de AGFs formalizadas para, pelo menos, um dos produtos processados, oito têm um segundo alimento com menor expressão para o qual ainda não foi cumprido todos os trâmites legais exigidos para a completa formalização. Essa informalidade ocorre na elaboração de produtos secundários, com menor participação no valor econômico bruto da AGF. Os casos mais recorrentes seriam de bebidas e polpas, que devem ser registradas direto junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ou de novos produtos em fase de teste de aceitação pelos consumidores. Geralmente, os gestores de AGFs procuram construir mercados para depois pensar na viabilidade de atender às exigências legais, razão pela qual a venda não é um problema para a maioria dessas AGFs (Dorigon, 2008).

Ao comparar o início do funcionamento e a data de formalização sanitária do primeiro produto, 13 gestores (46,5% das 28 AGFs formais) relatam que cumpriram todas as exigências sanitárias antes do primeiro ano. Por sua vez, 15 (53,6%) iniciaram na informalidade e atuaram nessa condição de 1 a 44 anos, com mediana de 9 anos de produção informal. Esses dados são reforçados pelos dados censitários de 2017, em que 1.419 (10,5%) estabelecimentos agropecuários na região de estudo declararam ter receitas com a venda de produtos agroindustrializados, enquanto Lauermann, Capellesso e Gazolla (2022) levantaram somente 99 formalizadas ou em vias de formalização. Uma vez cumpridos os requisitos sanitários, as AGF podem passar a emitir notas fiscais da venda da produção. Entre os casos estudados, as sete AGFs informais em termos sanitários também vendem sem a emissão de nota fiscal, pois não viram necessidade ou por necessitar primeiro o alvará (Tabela 3).

Tabela 3
Distribuição das 35 agroindústrias familiares pela condição legal de registro do empreendimento para emissão fiscal, frequência de respostas sobre os impactos de sua condição de formalização e razões para a não formalização

Dezenove AGF são formalizadas por meio de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), sendo que 11 o fizeram desde a fundação e as outras oito atuaram sem esse registro entre 1 e 12 anos. Quanto à avaliação do tipo de constituição jurídica adotada, 10 não apontam nenhuma desvantagem, 7 destacam aumento de custos, especialmente com impostos, e 3 a perda da condição de segurado especial para aposentadoria como agricultor junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Os limites de valor para comercialização como MEI também foram apontados como problema, em razão do propósito de não ultrapassar os valores de isenção. Já entre as razões apontadas pelos nove gestores de AGFs que emitem nota fiscal na condição de microprodutor rural pessoa física ou produtor rural, é recorrente o relato dos custos elevados, do objetivo de não perder a condição de segurado especial para aposentadoria e/ou por entenderem que a forma de registro vigente atende às suas necessidades, sem representar um fator limitante.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados levantados durante a pesquisa permitem apontar que a agroindustrialização na agricultura familiar do oeste catarinense não é um fenômeno recente. Embora alguns empreendimentos tenham mais de meio século, registra-se um caráter dinâmico de fechamento de unidades, enquanto outras são criadas, segundo as necessidades e condições das famílias e as possibilidades de mercado. Muitos produtos já eram produzidos pelos agricultores para o autoconsumo familiar, iniciando a comercialização informalmente. As AGFs são construídas para aumentar a escala e formalizar a produção em termos sanitários. Na constituição e no funcionamento, muitas delas se assentam em diferentes formas de cooperação, ajudando na solução de problemas. Contudo, o insucesso de AGFs com grupos de famílias evidencia a dificuldade de aproximar interesses e criar acordos em torno das decisões sobre a contribuição individual e a distribuição dos benefícios gerados. Apesar do insucesso indicar limitações de governança entre famílias nas AGFs, a cooperação é expressiva em outras dimensões da vida dos entrevistados e no suporte a diferentes atividades do funcionamento dos empreendimentos.

Algumas AGFs envolvem muitas pessoas, enquanto outras estão ligadas a estratégias de famílias compostas por uma pessoa. O grau de importância econômica que a agroindústria assume em cada família é variável, assumindo papel central na estratégia individual dos integrantes da família com maior envolvimento na atividade. Observou-se forte participação das mulheres, o que torna o processamento e a comercialização de alimentos em pequena escala uma atividade promissora para viabilizar a permanência de parcela da população no meio rural. Em várias AGFs, a geração de renda para as mulheres que as conduzem contribui com a autonomia e o equilíbrio nas relações de gênero. A presença de jovens ocorre em algumas unidades, muitos deles motivados pela possibilidade de assumir os empreendimentos. Contudo, em 1/3 das AGFs, os gestores têm mais de 55 anos e não se vislumbra a existência de um sucessor quando os atuais gestores deixarem a atividade.

Ao assumirem etapas que vão desde a produção de matéria-prima, processamento, comercialização e gestão, as famílias com número reduzido de pessoas se defrontam com a escassez de mão de obra. Embora predomine o trabalho familiar, com forte presença das mulheres, para otimizar os recursos, cerca 48,6% contratam pessoas externas à família, em sua maioria de forma ocasional. A isso se soma a compra de parte ou de toda a matéria-prima principal em 57,1% das AGF, o que permite “terceirizar” parte do processo produtivo.

Quanto ao processo de formalização sanitária dos empreendimentos, observa-se que a grande maioria delas começou atuando informalmente, regularizando as estruturas e produtos à medida que ampliam o volume comercializado. Contudo, ao focar a análise em empreendimentos formalizados (80%) ou em vias de formalização (20%) sanitária, percebe-se uma grande diferença em relação aos dados censitários. Ou seja, grande número de agricultores continua a atuar na completa informalidade, seja por falta de conhecimentos, seja pelos altos custos para viabilizar as AGFs. Essas situações não foram contempladas neste estudo e representam um tema relevante para novas pesquisas. Porém, conforme observado em alguns casos, a recente expansão de cursos de nível médio e superior na região, na área de conhecimento relacionada ao processamento de alimentos, pode estimular a formação de filhos de agricultores que decidam investir em AGF nas propriedades de seus pais.

Este estudo aponta que os atores fazem uma análise das vantagens em formalizar e optam evitar esse custo quando conseguem dar vazão à produção via laços de reciprocidade e confiança que substituem a normatização legal. É somente após a formalização sanitária que os empreendimentos passam a vender a produção com notas fiscais, sendo identificadas várias formas jurídicas. A escolha pela forma de registro varia de acordo com cada tipo de empreendimento e situação familiar, indo desde a constituição de empresas individuais à completa informalidade.

O mercado informal apresenta um grande potencial para ações públicas que tenham o propósito de apoiar a regularização de novas iniciativas. Esse assunto tem relação direta com os denominados mercados territoriais, pois a informalidade, embora não se restrinja a esse tipo de mercado, circunscreve a comercialização em relações de confiança e circuitos curtos. É também nesse mercado informal que se encontram os produtos mais tradicionais, baseados no saber-fazer dos agricultores da região, pois ainda não foram submetidos às normas da legislação de processamento de alimentos, legislação essa voltada à produção industrial.

  • 4
    O estado de Santa Catarina tem 21 associações de municípios constituídas a partir dos anos 1960, com o propósito de articular gestores públicos de municípios com proximidade geográfica e características socioeconômicas, culturais e edafoclimáticas semelhantes. A área de abrangência Ameosc corresponde ao território dado no qual diversas iniciativas são construídas coletivamente pelos atores territoriais, que buscam resolver problemas comuns, correspondem aos territórios construídos (Cazella et al., 2020).
  • 5
    Por se tratar de recursos públicos, a unidade deveria ser construída em espaço público. Para construir próximos aos estabelecimentos, alguns agricultores fizeram doação de áreas ao município. Nesse caso, trata-se de um bem público, o que dificulta a aquisição pelo agricultor. Esse tema não foi explorado a fundo durante as entrevistas.
  • 6
    A Constituição brasileira previu a criação do atual Sistema S em referência a nove instituições prestadoras de serviços, administradas de forma independente por federações e confederações empresariais dos principais setores da economia. Os serviços prestados se voltam à formação profissional e acesso ao lazer e à cultura a distintas categorias de trabalhadores. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e o Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) fazem parte desse sistema e têm ações específicas voltadas às agroindústrias familiares.

AGRADECIMENTOS

A elaboração deste trabalho tem por base as contribuições dos projetos de pesquisa “Desenvolvimento territorial sustentável: interfaces entre a cesta de bens e serviços, mercados e marcas territoriais”, financiado pelo Edital de Chamada Pública Fapesc n. 12/2020 - Programa de Pesquisa Universal, e “Inovação e transição sustentável: cesta de bens e serviços em territórios amazônicos”, Edital de chamada pública Confap n. 003/2022 - Programa de apoio a projetos de pesquisa Iniciativa Amazônia +10, que conta com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), Edital Suplemento n. 28/2022.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2024
  • Aceito
    10 Mar 2025
  • Aceito
    08 Abr 2025
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