Open-access Práticas de economia solidária como alternativa para geração de renda na comunidade quilombola Furnas do Dionísio, MS

Solidary economy practices as an alternative for income generation in the quilombola community of Furnas do Dionísio, MS

Prácticas de economía solidaria como alternativa para la generación de ingresos en la comunidad quilombola Furnas do Dionísio, MS

Resumo

A Economia Solidária considera a autogestão e a coletividade como possibilidade de promover um modelo socioeconômico distinto do capitalismo. Vários casos apontam como práticas desse tipo promovem geração de renda em comunidades tradicionais. Nesse sentido, o objetivo deste texto é compreender a organização coletiva, a partir da economia solidária, da comunidade quilombola Furnas do Dionísio, em Jaraguari, Mato Grosso do Sul. A pesquisa é qualitativa e os dados foram coletados a partir de visitas e diálogos com a representante do grupo local que gerencia atividades turísticas, sendo estudados a partir da análise de conteúdo. Os resultados evidenciam as práticas de gestão do grupo que prezam pela horizontalidade e distribuição igualitária de trabalho. Essas práticas se materializam a partir de objetivos comuns do grupo e giram em torno da prestação compartilhada de atividades turísticas locais. A economia solidária gerindo a atividade turística se mostra um caminho interessante para discutir melhorias nas condições de vida e aumento na geração de renda em comunidades rurais do estado.

Palavras-chave:
autogestão; organização coletiva; comunidade tradicional; turismo.

Abstract

The Solidary Economy considers self-management and collectivity as a possibility of promoting a socioeconomic model that is distinct from capitalism. Several cases point out how practices in this sense promote income generation in traditional communities. In this sense, the objective of this text is to understand the collective organization, based on the solidarity economy, of the quilombola community Furnas do Dionísio, in Jaraguari, Mato Grosso do Sul. The research is qualitative, and the data were collected through visits and conversations with the representative of the local group that manages tourism activities, being studied through content analysis. The results highlight the group’s management practices that value horizontality and equal distribution of work. These practices materialize from the group’s common goals and revolve around the shared provision of local tourism activities. The solidary economy managing tourism activities proves to be an interesting way to discuss improvements in living conditions and increased income generation in rural communities in the state.

Keywords:
self-management; collective organization; traditional community; tourism.

Resumen

La Economía Solidaria considera la autogestión y la colectividad como una posibilidad para promover un modelo socioeconómico distinto del capitalismo. Varios casos señalan cómo prácticas en este sentido promueven la generación de ingresos en comunidades tradicionales. En este sentido, el objetivo de este texto es comprender la organización colectiva, basada en la economía solidaria, de la comunidad quilombola Furnas do Dionísio, en Jaraguari, MS. La investigación es cualitativa, y los datos fueron recolectados a partir de visitas y diálogos con el representante del grupo local que gestiona las actividades turísticas, siendo estudiados mediante análisis de contenido. Los resultados destacan las prácticas de gestión del grupo que valoran la horizontalidad y la distribución equitativa del trabajo. Estas prácticas se materializan a partir de objetivos comunes del grupo y giran en torno a la prestación compartida de actividades turísticas locales. La economía solidaria que gestiona la actividad turística resulta ser una forma interesante de discutir la mejora de las condiciones de vida y el aumento de la generación de ingresos en las comunidades rurales del estado.

Palabras clave:
autogestión; organización colectiva; comunidad tradicional; turismo.

1 INTRODUÇÃO

Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA, 2023), no estado de Mato Grosso do Sul existem 18 comunidades quilombolas com processo administrativo tramitando. Entre elas, está a comunidade Furnas do Dionísio, uma comunidade tradicional quilombola de Jaraguari constituída por pequenos sítios e chácaras, com aproximadamente 500 pessoas distribuídas em 100 famílias. Segundo o relatório elaborado pela Secretaria de Estado de Assistência Social e dos Direitos Humanos (SEAD, 2024), no estado de Mato Grosso do Sul, mais de 70% da renda familiar fica entre zero e dois mil e seiscentos e quarenta reais. Na região Centro-Norte - onde se localiza Jaraguari - o índice de vulnerabilidade relacionado à renda e ao trabalho é médio. Corroborando esses dados, o trabalho de Baldo (2021) aponta que, em Furnas do Dionísio, a maior parte da população tem dupla jornada de trabalho para manter renda, sendo a principal a agricultura, entre várias outras. Entre essas, existe um projeto de atividades turísticas locais gerido pela associação local, a partir de práticas da economia solidária (Xavier; Mariani; Arruda, 2023).

Desde a década de 1990, discussões sobre práticas de gestão vêm sendo realizadas no Brasil, com o propósito de promover melhorias sociais para indivíduos e comunidades por meio da gestão autônoma das atividades. A economia solidária emerge como uma alternativa ao sistema capitalista, oferecendo uma abordagem de gestão pautada na autoorganização de grupos coletivos em torno de um objetivo/produto/serviço comum (Collazos, 2023). Trata-se de práticas que propõem produtos e serviços locais, solidários e geridos pelos próprios grupos comunitários, valorizando o território e proporcionando melhoria na geração de renda (Santos, 2021). Estudos recentes indicam que práticas de economia solidária convergem para uma melhoria na qualidade de vida das pessoas, a partir do fomento de associações e organizações coletivas (Machado; Maciel; Thiollent, 2021).

A gestão coletiva dos recursos comuns pode ser uma alternativa ao modelo de capitalismo/mercado. Por meio da formação de instituições autoorganizadas por membros de uma comunidade, é possível desenvolver uma abordagem prática que desafie a necessidade de soluções produtivas centradas na lógica do mercado (Collazos, 2023). Singer (2002) vai ao encontro dessa perspectiva ao desenvolver um raciocínio de que a economia competitiva (capitalista) tem a função de excluir, pois quem vence a competição aumenta e acumula vantagens sobre quem perde. Essas vantagens acumuladas, historicamente, resultaram em um aglomerado populacional com baixa renda e excesso de trabalho, cansaço e pouca perspectiva de melhoria nas condições de vida (Santos, 2019). Tal realidade é visível em comunidades quilombolas (Nunes; Rodrigues; Oliveira, 2021).

Contudo, estudos apontam que as práticas solidárias - que se iniciam, por vezes, em decorrência da falta de opções - podem ser um caminho para geração de renda e melhoria na qualidade de vida (Costa; Cardoso, 2023). Nos casos em que práticas nesse sentido utilizam atividades turísticas como forma de renda para os grupos, também se destaca o reencontro da comunidade com sua cultura, o meio ambiente e o território (Xavier; Mariani; Arruda, 2023).

Para compreender toda a organização coletiva dessas práticas, os trabalhos de Miranda (2020) e Kieffer (2021) desenvolvem categorias a partir das quais é possível analisar práticas autoorganizadas de grupos coletivos, desenvolvendo pilares para gestão na economia solidária. Esses trabalhos, assim como os de Razeto (1990), Singer (2002), Laville (2004), Fonseca, Morais e Chiariello (2021), entre outros, que vêm discutidas as práticas de economia solidária, trazem bases concretas para entender como se dá a gestão compartilhada dos bens comuns. Sendo assim, o objetivo da pesquisa é compreender a organização coletiva, a partir da economia solidária, da comunidade quilombola Furnas do Dionísio, em Jaraguari, MS.

O texto está estruturado em cinco seções. A parte introdutória apresenta a temática e o objetivo do trabalho. A segunda seção é dedicada à fundamentação teórica, destacando que a teoria foi elaborada a partir de textos que abordam questões relacionadas à Economia Solidária. O terceiro tópico discute os procedimentos metodológicos adotados. Na quarta seção, são apresentados os resultados e a análise dos dados. Por fim, a quinta parte traz as considerações finais.

2 Referencial teórico

Discutida no Brasil desde a década de 1990, a economia solidária tem o objetivo de gerar melhorias sociais tanto para pessoas como para os territórios inseridos por meio da gestão autônoma das atividades, buscando propor a criação de produtos e serviços solidários locais e valorizando o território, articulando práticas geridas pelos grupos (Santos, 2021). A economia solidária busca valorizar o trabalho coletivo e a produção local, gerando uma prática que se configura como um instrumento poderoso para enfrentar os diversos desafios do mundo contemporâneo (Santos, 2019).

A economia solidária vem sendo utilizada como estratégia de desenvolvimento local e sustentável, fundamentando-se na contraposição ao modelo preponderante de governança e produção. Pinho, Pereira e Lussi (2019) discutem que o modelo capitalista gera uma realidade que evidencia a necessidade de desenvolver estratégias que possibilitem a inclusão no mundo do trabalho de forma significativa para indivíduos marginalizados, considerando suas dificuldades, limitações e aspirações. Nesse contexto, a economia solidária surge como uma alternativa viável, conforme tem sido destacado por diversos autores (Casagrande; Begnini, 2018; Mecca; Gonçalves Junior, 2023; Medeiros et al., 2023).

Medeiros et al. (2023) relatam a experiência formativa que um grupo extensionista realizou com moradores de rua no estado do Rio Grande do Norte (RN). A partir de práticas de economia solidária, com a realização de bazares, foram capazes de arrecadar fundos para o seguimento das iniciativas e geraram renda imediata para os moradores. Mecca e Gonçalves Junior (2023) descrevem o caso de trabalhadores que utilizam a cicloentrega como forma de geração de renda na tentativa de, a partir de práticas solidárias, combater o fenômeno da uberização. Os resultados evidenciam o pertencimento e a autoconsciência que o grupo desenvolveu. Aproximando com a realidade tratada nesta pesquisa, Casagrande e Begnini (2018) apontam que, no estado de Santa Catarina (SC), as práticas de economia solidária também surgem como alternativa de renda para produtores rurais.

A economia solidária se deu como uma resposta aos processos de exploração do trabalho, por meio da organização da classe trabalhadora. Em diversos contextos, as iniciativas solidárias se manifestam, entre outros fatores, como reação à falta de renda, unindo a luta econômica à política (Zanetoni; Mariani; Araújo, 2023). Tal resposta seria viável por meio da coletivização dos meios de produção, da promoção da autogestão e da distribuição equitativa dos resultados da produção, permitindo assim a superação da lógica salarial, que fornece aos trabalhadores apenas uma quantia mínima para sua reprodução, frequentemente inferior ao que realmente produzem (Singer, 2002; Laville, 2004).

A principal base das práticas de econômica solidária é a autonomia de seus atores. Desde os trabalhos de Razeto (1990) e Laville (2004), a economia solidária se firmou como uma gestão doméstica, sendo horizontal e tendo aproximação entre produção e gestão. Singer (2002) fala da autogestão, participação coletiva e cooperação. Mais recentemente, Fonseca, Morais e Chiariello (2021) acrescentam a ideia de local, aproximações com a cultura local e participação coletiva.

Sendo orientada pelo princípio da cooperação, a economia solidária estabelece os processos econômicos e sociais, buscando criar laços sociais entre os envolvidos e as organizações. Ao promover a proximidade e a reciprocidade entre os membros dessas organizações, reconfiguram-se as relações econômicas e fortalece-se a resiliência da comunidade perante a mercantilização. Nesse sentido, ao se articular a partir de diferentes esferas sociais, ampliam-se as oportunidades de participação democrática, propondo uma nova forma de integração social do trabalho (Santos 2021). Para compreender esses fatores na prática, é possível observar categorias de análises que servem para nortear a compreensão das práticas de economia solidária.

Em trabalhos recentes, como os de Miranda (2020) e Kieffer (2021), são identificados quatro pilares essenciais para a análise das práticas de economia solidária. Além dos conceitos que podem se repetir, esses estudos também abordam as interações com o meio ambiente, destacando a relevância crescente desse aspecto nas discussões sobre desenvolvimento sustentável em comunidades. Em Miranda (2020), o autor explora quatro pilares fundamentais da economia solidária. O primeiro pilar é a governança e a tomada de decisão, que se referem às práticas relacionadas à direção e ao controle das organizações. Segundo o autor, as organizações da economia social e solidária estabelecem sua governança com base em princípios de pessoas, propriedade e democracia, sempre voltados para o bem coletivo. Outro pilar estreitamente associado à governança é a autorregulação, a qual envolve os processos que definem as diretrizes seguidas pelos membros dentro das organizações. Nesse contexto, a autorregulação está relacionada às práticas coletivas, fundamentadas na confiança e nos vínculos sociais entre os indivíduos, que substituem as estruturas rígidas e impostas, comuns em organizações hierárquicas.

Por fim, Miranda (2020) considera outras duas dimensões, sendo a gestão coletiva e as relações internas. O autor enfatiza a importância tanto da gestão, que equilibra a autorregulação e a governança, quanto das relações interpessoais internas, especialmente as que envolvem a liderança. Porém Kieffer (2021) vai por uma lógica que observa as duas esferas de formas entrelaçadas. Levando em conta que as relações internas que surgem na gestão fazem parte dos processos de gestão coletiva, este trabalho adotará a mesma linha de raciocínio apresentada pelo autor. Para ambos os autores, contudo, a gestão reside na busca conjunta pelos objetivos, articulando eficiência com a solidariedade. Levando em conta o contexto desta pesquisa, uma outra categoria a ser discutida é apresentada por Kieffer (2021), que relaciona as organizações da economia solidária com o meio ambiente. O autor considera que as atividades realizadas pelos grupos coletivos devem respeitar e valorizar os espaços e os valores culturais, bem como prezar pela observação do meio ambiente, concentrando-se em como gerenciar os impactos ambientais, particularmente aqueles relacionados às atividades exercidas.

3 Procedimentos metodológicos

A pesquisa é exploratória, descritiva e com abordagem qualitativa. A coleta de dados seguiu duas etapas distintas e complementares. A primeira etapa consiste na identificação da comunidade e dos atores envolvidos nos processos relevantes para a pesquisa. O projeto Gestión alternativa del turismo: un análisis de las prácticas de Economía Social y Solidaria é oriundo da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e teve a participação do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGAD/UFMS). O projeto selecionou a comunidade quilombola Furnas do Dionísio, localizada em Jaraguari (MS), no centro-norte do estado. O diálogo estabelecido com a comunidade foi feito com a Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Furnas do Dionísio, que se articula com uma rede de atores locais (moradores) e se configura como uma organização comunitária.

Na segunda etapa, os dados foram coletados a partir de entrevistas. Tanto esta pesquisa quanto o projeto ao qual está associada - que tem um objetivo semelhante ao deste artigo - reconhecem a relevância das comunidades quilombolas. Essas comunidades desempenham um papel fundamental ao simbolizarem a luta intensa, a resiliência e a resistência contra a opressão da escravidão, configurando-se como um marco de liberdade na América Latina (Oppliger; Oliveira, 2022). O roteiro que foi utilizado na condução dos diálogos se articula para compreender toda a organização e as práticas da economia solidária (Miranda, 2020; Kieffer, 2021). Vale destacar que essa articulação já compreende o aspecto comunitário de união entre os moradores.

Assim, as questões foram formuladas levando em conta toda a revisão da literatura apresentada no tópico anterior. Foram desenvolvidas quatro grandes categorias, com tópicos específicos a serem analisados: I) Governança (tomada de decisão, participação da comunidade, fluxo de informações e gestão das atividades); II) Autorregulação (encontros e reuniões, gestão de conflitos e regulamentos); III) Gestão Coletiva (laços de confiança, democracia nos espaços, lideranças, equidade e objetivos coletivos) e; IV) Relações Ambientais (gestão de recursos naturais e ações de conservação).

O contato e os diálogos foram iniciados com a Presidenta da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Furnas do Dionísio. Em novembro de 2023, foi realizada uma visita a Furnas do Dionísio, onde ocorreram contatos e conversas informais. No entanto, devido a conflitos de agenda, o diálogo com a presidenta foi realizado de forma on-line, por meio do Google Meet, com a entrevista tendo durado uma hora. Essa abordagem possibilitou uma interação eficaz e a coleta de informações relevantes para a pesquisa.

A análise dos dados seguiu os princípios da Análise de Conteúdo (Bardin, 2015). Para isso, o material coletado foi tratado conforme três etapas: I) Pré-Análise; II) Exploração do Material; e III) Tratamento dos Dados. Procedimentos semelhantes foram utilizados por Oppliger e Oliveira (2022) e por Xavier, Mariani e Arruda (2023), que também investigaram comunidades quilombolas, buscando uma compreensão mais aprofundada sobre a comunidade e sua organização.

Na pré-análise, que é a primeira etapa do processo, foi realizada a transcrição do áudio da entrevista gravada. Esse processo de transcrição incluiu correções e adaptações, conforme orientações de Tourtier-Bonazzi (2006), resultando em um documento final em formato Word, com 21 páginas. Na fase de exploração do material e tratamento dos dados, foram utilizados trechos das falas transcritas, o que é crucial para uma análise mais aprofundada dos contextos, além de inferências elaboradas pelos autores à luz da teoria desenvolvida ao longo da pesquisa.

4 Os contextos e as práticas de gestão na associação de Furnas do Dionísio

Na associação, todas as decisões são por voto. Para assuntos de maior impacto, é feita a deliberação na assembleia; para assuntos mais rotineiros, as decisões são tomadas de forma mais imediata, pela diretoria. As decisões envolvendo as atividades turísticas - a atividade coletiva principal da associação, que será discutida adiante - são tomadas pelo grupo responsável pela gestão do turismo, o qual pretende organizar um regimento para nortear os processos. Por mais que dentro da associação exista um grupo específico para tratar da gestão, o intuito é envolver todos os associados nas práticas e no turismo (experiências, passeios, manutenções etc.). Em termos de participação, não existem funcionários fixos na associação; os próprios associados que dedicam tempo, [...] mas é gratificante, porque ele também abre portas pra você, pra outras coisas, ao menos seu conhecimento, e é um trabalho que, se você gosta de fazer um trabalho voluntário, se dedica a uma causa e às pessoas, né?” (Presidenta da Associação).

Ainda, fica evidente que a formação do grupo preza pela participação dos jovens da comunidade. Essa necessidade surge visto que os jovens não eram trazidos para dentro da associação e acabavam rumando para fora da comunidade, mudando para cidades. Logo, a ideia é que haja continuidade no trabalho, que sigam os projetos da associação:

O jovem nunca teve voz, nunca teve vez na comunidade, na associação, e nunca se sentaram na reunião para falar. E a nossa diretoria, desde o ano passado, a gente tá fazendo o contrário, a gente quer trazer o jovem para dentro, a gente formatou a construção de um grupo jovem quilombola, a gente pôs dentro da feira, né? [...] a gente tá pondo dentro da organização os jovem (sic) também, porque o jovem é o futuro, então é (sic) eles que a gente precisa fomentar… Aproximar eles e pôr eles para ter responsabilidade (Presidenta da Associação).

Práticas de economia solidária muitas vezes surgem a partir de demandas que as comunidades enfrentam, levando a organização coletiva a tomar corpo. O que o relato acima aponta é que a questão da participação dos jovens nas decisões que envolvem a comunidade era algo relevante nas discussões do grupo. Logo, o pensamento no futuro e a luta para construção de bases para manter os jovens na comunidade também é um objetivo do grupo. Relatos similares são vistos no caso da Ortega et al. (2020), em que o grupo alinhou as práticas de turismo - e outras atividades produtivas - com a educação, passando isso adiante para os jovens.

Para agilizar o fluxo de informações dentro da associação, a comunicação é feita majoritariamente por meio do WhatsApp e outras formas de mídias sociais. A comunicação horizontal e direta é uma prática comum em grupos da economia solidária, como bem retratam os trabalhos de Kieffer (2021), Collazos (2023) e Zanetoni, Mariani e Araújo (2023). Tal prática fomenta o senso coletivo e colabora para firmar as bases da autogestão, assim como para discutir as questões das atividades.

Sobre as atividades do grupo, é possível dividir em duas: atividades individuais e atividades coletivas. A principal atividade individual dos membros da associação é a agricultura familiar, com a produção de hortifruti, que é distribuída no CEASA de Campo Grande; há também a produção de cana de açúcar e rapadura, farinha de mandioca. Os próprios produtores fazem a entrega em Campo Grande. Além disso, também ocorrem vendas que são feitas na sede da Associação. Cada produtor leva seus produtos e anota em uma pasta as suas informações, para que haja controle na hora do repasse de valores. Contudo, essa produção não é coletiva.

A atividade coletiva é o turismo. Contudo, deve-se frisar que não é parte do objetivo desta pesquisa descrever detalhadamente como e quais são as atividades turísticas propostas, visto que o objetivo reside na gestão do grupo. Existe um projeto para “colocar ele como uma atividade da associação [...] ele já tá sendo fomentado pra isso e com certeza… O que a gente tá trabalhando é pra, se não envolve toda a comunidade, mas 70% das pessoas diretamente e indiretamente” (Presidenta da Associação). O turismo já está sendo implementado na comunidade, gerido pelo grupo dentro da associação, mas executado pelos associados de modo geral. As práticas de economia solidária giram em torno de um produto ou serviço coletivo (Collazos, 2023). No caso de Furnas do Dionísio, o serviço em questão é o turismo.

Contudo, grupo se organiza para que as produções locais - as individuais dos membros da associação - fomentem o turismo, fornecendo produtos para consumo: [...] a gente vai, restaurante precisa de produtos, e os produtos são comprados aqui dentro, e com as vendas de produto e com a mão de obra, né, das pessoas que tão trabalhando” (Presidenta da Associação). O intuito aqui é deste ciclo se tornar sustentável, no sentido de que se o turismo, que é uma atividade interna e coletiva, precise de produtos agrícolas para sua execução, os próprios membros possam fornecer. Relatos similares são apontados em Betti e Denardin (2019) e destacam como essa prática contribui para o fortalecimento do coletivo.

Nesse sentido, fica evidente que a atividade coletiva do grupo é o turismo, que vai se beneficiar das produções individuais dos membros. Na atividade turística, a divisão de trabalho é feita de forma que cada um tenha sua função, com pessoas na parte do atendimento, da cozinha. Também há pessoas que trabalham no caixa, na organização e como guias. Todas as funções fazem parte do complexo de atividades e funções do turismo, sendo geridas com as práticas coletivas do grupo (Ronconi; Menezes; Bittencourt, 2019).

Essa autorregulação também ficou evidente na pesquisa. O regulamento da associação é informal, voltado para práticas cotidianas, algo comum em grupos coletivos (Zanetoni; Mariani; Araújo, 2023). A única questão formal com a qual a pesquisa se deparou foi o mandato das diretorias, que tem duração de três anos. No mais, os encontros são feitos pela Assembleia Geral, com periodicidade mensal, podendo haver reuniões extraordinárias, no caso de algum assunto precisar ser debatido com urgência. Contudo, a utilização dos grupos no WhatsApp para repasse de informações facilita a comunicação do grupo: “A gente também usa muito grupos né, do WhatsApp, para estar passando informações, pedindo opiniões, divulgando o curso, divulgando as reuniões [...] (Presidenta da Associação).

Já a questão dos conflitos reside principalmente em conflitos de ideias, que são resolvidos por diálogos e, por vezes, por intermédio da presidenta. Ainda tem a dinâmica de gênero, que também influencia o ambiente de trabalho, com a manifestação do machismo e a desvalorização das contribuições femininas. Questões nesse sentido são comuns em meios rurais, onde a posição da mulher está histórica e socialmente definida como “mantedora do lar”, e o trabalho está relacionado ao homem (Santos, 2021). Contudo, em grupos solidários, é dado um destaque ao trabalho da mulher, que vê saindo de suas próprias mãos o fruto de sua renda, podendo gerar conflitos como os descritos aqui:

Então, isso é um tipo de conflito, e nós como somos a maioria mulheres. Dentro da diretoria tem um homem, a gente sofre também com o machismo, porque não é diferente dos outros lugares, né? Eles, os homens, não dão muita trela aqui pra nós e acham que nós não temos muita capacidade. E aí, quando eles viram que a gente tinha capacidade, que a gente fez a coisa acontecer, aí surge o ciúme, surge também aquela inveja, aquela coisa assim, né… (Presidenta da Associação).

O trabalho de Santos (2021) vai ao encontro desse achado da pesquisa, na medida em que discute o papel das organizações coletivas em promover renda, autonomia e protagonismo para mulheres. Em Furnas do Dionísio, o objetivo central do grupo, com a realização das atividades turísticas, não é, necessariamente, dar destaque para as mulheres do grupo, mas esse pode ser lido como um objetivo da ação coletiva em si, visto que as práticas de economia solidária apresentam objetivos amplos (Miranda, 2020).

Ainda sobre a autorregulação, as posições e funções dos membros nas atividades coletivas - relacionadas ao turismo - são definidas. O tesoureiro é responsável pela gestão financeira da associação, incluindo a realização de compras, a elaboração de planilhas de controle e o pagamento de contas. A vice-tesoureira, por sua vez, cuida da administração do espaço físico, realizando agendamentos, atendendo ligações e organizando eventos. A secretária, com o apoio de outros membros, é responsável pela parte administrativa, como a digitação de documentos, a organização de arquivos e a produção de relatórios. Essa divisão de tarefas, combinada com a colaboração entre todos os membros, garante o bom funcionamento da associação. A evolução dessas práticas autogestionárias fica evidente nos relatos de que o presidente “[...] dava conta de tudo, de tudo e de todos, né? E aí quando a gente entrou, a gente quis mudar isso [...] dentro do nosso trabalho, é bem dividido, sim [...]” (Presidenta da Associação).

Adentrando a gestão coletiva propriamente dita, como ficou claro, a atividade coletiva do grupo é o turismo, mesmo que este esteja em estágio de implementação. Os relatos destacam a autenticidade e transparência em suas relações, sendo essa a característica mais valorizada e fundamental para fortalecer os laços entre todos (Zanetoni; Mariani; Araújo, 2023). O grupo entende o trabalho como sendo colaborativo, participativo e familiar - a comunidade de Furnas são todos descendentes de Dionísio e Luiza -, sendo unidos por laços históricos e pela vontade de fortalecer o quilombo:

[...] é um trabalho coletivo, sim, de cooperação mesmo, é e familiar também, [...] é um trabalho cooperativo, é um trabalho coletivo, que exige muita união, muita vontade que dê certo, mas que a gente tem outros exemplos aí, de outros quilombos que deram super certo e que hoje é a base da economia. E eu digo que, no futuro, a gente quer envolver toda a comunidade, toda a juventude, que a nossa preocupação maior é a juventude, toda a juventude, porque é pra trabalhar, né? Pra ter uma renda… Seja diretamente trabalhando lá em alguma função, mas seja entregando seus produto (sic) pra vender (Presidenta da Associação).

A fala supracitada evidencia a coletividade - ou, ao menos, a busca pela coletividade - no grupo. Tal coletividade se molda a partir dos objetivos que levaram à constituição do grupo, que foram sendo destacados no decorrer da pesquisa, como o caso da preocupação com os jovens e com as mulheres. Ainda, existe o objetivo da renda, que é uma discussão tanto prática - no caso empírico exposto - como teórica sobre as práticas de economia solidária. A economia solidária surge diante das práticas de exploração de trabalho, o qual “retribui” ao trabalhador com uma renda que, na maioria das vezes, não é suficiente para o mantimento básico de muitas famílias. Nesse sentido, a lógica dessas práticas solidárias é a de buscar equidade na distribuição de renda (Collazos, 2023). Quanto a isso, e retomando sobre as atividades dos grupos, as Figuras 1 e 2 mostram os produtos e o selo da associação.

Figura 1
Produtos locais

Figura 2
Selo da associação

Como dito anteriormente, existem duas atividades produtivas que permeiam as rotinas da associação. Os preços dos produtos da agricultura familiar (Figura 1) são definidos pelos próprios produtores, e seus produtos são vendidos com o selo da associação. Mesmo que a agricultura não seja a produção coletiva, a associação acrescenta uma taxa por produto, para custear a compra de embalagens e etiquetas (Figura 2). Essa taxa é fundamental para garantir a qualidade e a identidade visual dos produtos, bem como a manutenção das atividades da associação. Isso ocorre para os produtos que são comercializados na sede da associação e/ou que levam o selo do grupo. O Quadro 1 resume as práticas de gestão em Furnas do Dionísio.

Quadro 1
Práticas de gestão na associação de Furnas do Dionísio, MS

Desde que foi iniciado o projeto do turismo, houve um aumento significativo de visitantes na comunidade. Essa maior visibilidade gerou um crescimento na demanda de produtos da agricultura e de trabalho para os membros do grupo envolvidos no turismo. A renda nas atividades turísticas é proporcional ao tempo trabalhado, porém cada membro tem uma distribuição igualitária de tempo de serviço, proporcionando a maior equidade possível na distribuição da renda. Cada trabalhador registra sua jornada, e, ao final do período, é calculado o valor a ser pago. Essa forma de organizar a distribuição da renda do turismo é particular de Furnas do Dionísio, e vai ao encontro do que dizem Zanetoni, Mariani e Araújo (2023), ao constatarem que diferentes comunidades, grupos e realidades utilizam diferentes formas de gerir suas atividades, mas a busca pela coletividade permeia toda prática de economia solidária.

Ainda, outra questão se reflete a partir das atividades coletivas do turismo. A dimensão das relações ambientais destacou que um problema enfrentado pela comunidade é o fato de os visitantes não fazerem o descarte correto do lixo, além da frequente invasão de propriedades particulares para experiências e atrativos turísticos - cachoeiras, trilhas, entre outros - que ficam dentro de propriedades particulares, o que gera conflitos. Mesmo o turismo sendo um importante motor para o desenvolvimento local, gerando renda e promovendo a troca cultural, o grande fluxo de turistas tem ocasionado impactos negativos, como a degradação ambiental causada pelo descarte inadequado do lixo. Uma opção a ser avaliada é a colaboração com parceiros externos e a implementação de capacitações focadas em educação e gestão ambiental. Comunidades que adotam essas estratégias apresentam resultados significativos (De Lourdes, 2022), e a demanda em Furnas do Dionísio existe.

O Quadro 1 sumariza as práticas de gestão coletiva que foram descritas no decorrer do texto. A partir dos resultados da pesquisa, é possível uma discussão sobre a realidade do caso de Furnas do Dionísio à luz da teoria da economia solidária, frisando os impactos da gestão coletiva na geração de renda e melhoria na qualidade de vida local. Essa etapa do texto visa contribuir para pesquisas sobre a temática, a partir da análise e considerações feitas com base nos resultados, no que diz respeito a duas amplas perspectivas: economia solidária e desenvolvimento em comunidades rurais e economia solidária e turismo.

4.1 Práticas de economia solidária e desenvolvimento em comunidades rurais

A economia solidária pode ser lida como uma prática autogestionária que, segundo autores como Dussel (1977) e Nascimento (2022) - apesar de não estarem discutindo economia solidária necessariamente - se mostram um caminho para libertação dos povos. O que os autores entendem como libertação é a articulação de atores territoriais que, a partir de um objetivo comum, realizam práticas de planejamento e produção conjuntas, gerando melhoria na qualidade de vida dos envolvidos.

Em Furnas do Dionísio, os resultados da pesquisa destacam quatro objetivos coletivos (Quadro 1) que surgem nos relatos e mostram a busca do grupo, por meio de uma associação, de melhorar a condição de vida das mulheres, promover a participação de jovens e, a partir de atividades turísticas, gerar renda extra para os membros. O senso de coletividade surge em vários momentos nos relatos, mas deve-se frisar que não se trata de uma noção romântica, assim como afirma Bello-Urrego (2022) ao discutir que, na maioria das vezes, as práticas coletivas surgem por conta de demandas urgentes dos locais.

Esses objetivos, a partir das ações dos grupos, vão sendo realizados aos poucos. Os relatos apontam que a qualidade de vida dos moradores, particularmente aqueles que são membros da associação, melhorou a partir das atividades turísticas. Além da renda extra, que foi se concretizando, permitindo melhoria nas condições materiais dos membros, a participação em grupos coletivos promove autonomia, participação nas decisões e, não distante de outros resultados, permitem o aumento da autoconsciência com relação ao grupo, à gestão e à comunidade (Mecca; Gonçalves Junior, 2023).

Ainda, a busca pela permanência de jovens em áreas rurais, particularmente em comunidades tradicionais - quilombolas, indígenas, ribeirinhas etc. - vem sendo tema de discussão em vários contextos no Brasil e, particularmente, no estado de Mato Grosso do Sul (Vieira; Araújo; Mariani, 2023). Os resultados dessa pesquisa ainda não permitem dizer se tal proposta do grupo vai se concretizar, mas, ao fomentar a participação, envolver os jovens na comunidade e em atividades produtivas, os resultados podem ser promissores.

A outra questão é a participação e liderança feminina dentro da associação e da comunidade. Não são incomuns casos em que grupos de mulheres em territórios rurais se reúnem para alcançar objetivos em comum, visto a necessidade que aflige suas realidades, quase sempre relacionadas a questões patriarcais e machistas (Santos, 2021). O protagonismo das mulheres foi algo que surgiu na pesquisa e que atualmente se mostra como um outro objetivo do grupo, ao fomentar a participação, promover trabalho e geração de renda para mulheres da comunidade. O trabalho de Calarge (2022) discute essa perspectiva do protagonismo e, mesmo sem ignorar suas contradições, destaca o papel das práticas de economia solidária em fomentar esse protagonismo.

Desde o meio/fim do século passado, autores como Aníbal Quijano (1992) e Orlando Fals Borda (1963) vêm discutindo a perspectiva de compreender a gestão em comunidades rurais a partir de suas práticas autogestionárias, e que tais práticas podem ser um caminho para recuperar uma identidade sociopolítica perdida - roubada - desde o início dos processos de colonização que a América Latina sofreu. A economia solidária vai na mesma direção, ao discutir um desenvolvimento centrado na autogestão das pessoas envolvidas nos processos produtivos locais (Miranda, 2020). Nesse sentido, entende-se que práticas de economia solidária, como as descritas nesta pesquisa, podem ser uma perspectiva de particular interesse para comunidades rurais no estado de Mato Grosso do Sul, pesquisadores e formadores de política com interesse em discutir o desenvolvimento, a geração de renda e a melhoria na qualidade de vida a partir da autogestão.

4.2 Economia solidária e gestão do turismo

É na coletividade que a economia solidária se molda, mas não apenas nas decisões coletivas. A solidariedade dessas práticas reside em um produto ou serviço comum, ou seja, é na coletividade dos meios de produção. Esta pesquisa apontou que, apesar do grupo se articular em forma de associação, a atividade produtiva mais relevante ainda é a agricultura, que não é coletiva. Contudo, o grupo iniciou atividades turísticas na comunidade, geridas pela associação e com participação de todos os membros. O turismo é o serviço prestado coletivamente em Furnas do Dionísio.

Não é novidade casos que discutem a gestão do turismo a partir das práticas da economia solidária (Kieffer, 2021; Zanetoni; Mariani; Araújo, 2023). O que fica evidente é a quantidade de formas distintas que cada grupo utiliza para trabalhar as atividades turísticas. Em Furnas do Dionísio, o que esta pesquisa identificou foi a criação de funções específicas para cuidar de cada área das atividades turísticas; logo, existem responsáveis pelo atendimento, pela cozinha, pelos caixas, pela organização de passeios e pelo trabalho de guias. O grupo utiliza um sistema de ponto para controlar a quantidade de horas trabalhadas, e cada membro recebe proporcional ao tempo de trabalho, mas com a divisão de trabalho feita para que todos possam ter renda o mais igual possível.

Uma prática interessante que o grupo faz é a de utilizar os produtos que são produzidos internamente - de maneira individual - para abastecimento das atividades turísticas, particularmente aqueles que envolvem alimentos. Ao realizar tal prática, o grupo fomenta tanto as atividades turísticas (coletivas) como as produções (individuais), indo ao encontro do trabalho de Betti e Denardin (2019), em que o restaurante também é beneficiado, mesmo que indiretamente, pelos produtos de produtores locais.

O turismo enquanto atividade coletiva é visto em casos onde se busca tanto entender as práticas autogestionárias, como resgatar a cultura local, transmitida historicamente (Kieffer, 2021). Por vezes, em um movimento que também considera a colonização, o turismo deixa de lado a cultura local, favorecendo representações estereotipadas e comercialização de experiências padronizadas. Porém, em comunidades onde o turismo se alinha com a autogestão, essa proximidade favorece um resgate da cultura local (Zanetoni; Araújo; Mariani, 2023). Esse movimento foi percebido em Furnas do Dionísio. Apesar de o foco da pesquisa não ser o de debater as atividades turísticas em si, vale mencionar que os relatos destacam o resgate à cultura quilombola, que está presente nas atividades turísticas propostas.

Uma outra questão, que já está alinhada com o turismo diretamente, é a gestão dos resíduos sólidos. É comum que comunidades rurais encontrem problemas de infraestrutura relacionados ao meio ambiente. A pesquisa constatou que a comunidade teve uma melhoria substancial na infraestrutura, decorrente da atividade turística. Contudo, os resíduos que a atividade trouxe são um problema considerável. Uma possibilidade a ser apontada é a parceria com atores externos e capacitações relacionadas à educação e gestão ambiental, além de economia circular. Resultados expressivos são encontrados em comunidades que utilizam tais estratégias (De Lourdes, 2022).

Nesse sentido, o turismo como atividade coletiva gerido por meio de práticas autogestionárias também mostra uma perspectiva interessante para comunidades rurais de Mato Grosso do Sul. Seja na mesma região de Furnas do Dionísio, seja adentrando a região pantaneira do estado, várias comunidades podem se beneficiar dessa perspectiva. Tal benefício é visto em duas frentes: primeiro pela economia solidária como forma de gestão do turismo, a partir das práticas locais, as quais aproximam moradores das decisões e proporcionam aumento de renda e qualidade de vida (Miranda, 2020; Collazos, 2023); segundo porque, por meio de tal aproximação entre moradores e as atividades turísticas, é possível proporcionar um resgate da história, aumentar a consciência ambiental, entre outros fatores extremamente relevantes nas discussões sobre libertação dos povos (Ronconi; Menezes; Bittencourt, 2019).

5 Considerações finais

O objetivo desta pesquisa3 foi compreender a organização coletiva, a partir da economia solidária, da comunidade quilombola Furnas do Dionísio, em Jaraguari, MS. Os resultados permitiram entender a gestão e discutir temáticas que envolvem as práticas autogestionárias como caminho para geração de renda e melhora na qualidade de vida em comunidades tradicionais de Mato Grosso do Sul.

No que diz respeito às práticas de gestão, as decisões na associação prezam pela participação democrática dos membros, e as assembleias buscam o maior nível de participação possível. A comunicação do grupo é horizontal e conta com recursos tecnológicos (mídias sociais) que agilizam os processos, o que fomenta discussões rápidas. Encontros são realizados em assembleia de forma mensal, mas a comunicação fluida utilizando tecnologias permite que muitas decisões sejam tomadas sem a necessidade da reunião. O grupo conta com uma diretoria e funções específicas, tanto no que diz respeito à gestão de modo geral (presidente, vice-presidente, tesoureiro, etc.) como às posições relacionadas às atividades turísticas (cozinha, atendimento, guias etc.).

Essas práticas de gestão instrumentalizam os objetivos coletivos do grupo, sendo que quatro deles foram destacados na pesquisa: a participação dos jovens, o protagonismo feminino, o turismo e a geração de renda. Os dois primeiros casos são objetivos que os relatos apontaram e que vão ao encontro de perspectivas recentes sobre a economia solidária e seu papel em comunidades rurais. Ao fomentar a participação de jovens nas decisões tomadas sobre questões que envolvem o grupo, abre-se caminho para discutir possibilidades que visam mudar a realidade de sucessão rural no estado, a qual aponta para a saída de jovens dessas comunidades rurais em busca de melhores condições, principalmente em cidades e ambientes urbanos. O caso de Furnas do Dionísio pode ser apontado como um caminho para trazer os jovens para as comunidades, possibilitando protagonismo.

Na mesma direção, em sociedades patriarcais, a obrigação da mulher era de manter o lar, residindo apenas no homem o dever do trabalho e a geração de renda. Contudo, o caso discutido na pesquisa aponta uma realidade em que o grupo tem como objetivo o protagonismo feminino a partir do trabalho, da gestão e da geração de renda. Esta pesquisa considera que ambos esses objetivos apontam caminhos e possibilidades a serem discutidos e fomentados em comunidades tradicionais. Trata-se, portanto, de achados relevantes para o campo e para futuros estudos.

A economia solidária reside em uma ação coletiva auto-organizada. A pesquisa apontou duas formas de atividade que o grupo realiza, sendo uma individual e uma coletiva. As atividades individuais incluem a agricultura familiar, em que os associados produzem e vendem produtos como hortifruti e processados. Já o turismo é a principal atividade coletiva, sendo implementada e gerida pelo grupo da associação, envolvendo diretamente a maioria dos associados. A produção individual dos associados fornece insumos para o turismo, criando um ciclo sustentável em que os produtos locais são utilizados nas atividades turísticas, fortalecendo o coletivo e integrando as práticas de economia solidária.

Ambas atividades contribuem para a realização dos outros dois objetivos coletivos do grupo. A geração de renda era uma necessidade local, e o turismo se mostrou uma forma conjunta de gerar renda para o grupo; logo, ambos os objetivos andam atrelados. Ainda, utilizar as produções individuais para fomentar as atividades coletivas é um ponto relevante que a pesquisa destacou, o qual pode ser um caminho para comunidades rurais iniciarem atividades turísticas em seus territórios a partir de produtos. Nesse sentido, a gestão do turismo a partir de práticas da economia solidária - mesmo não sendo uma temática inédita - é um campo de possibilidades para comunidades rurais no estado, e um achado que pode contribuir para pesquisas futuras.

Os resultados dessa pesquisa encontram limites, sendo o principal a quantidade de encontros que foram feitos com o grupo. Apesar de ter ocorrido visita ao campo, os diálogos foram conduzidos de forma on-line e com apenas a representante do grupo. Pesquisas futuras podem se debruçar, inicialmente, na possibilidade de diálogos com outros membros, propiciando mais amplitude aos resultados. Ainda, essa pesquisa não visa estudar o turismo a fundo, mas, por essa se tratar da principal atividade coletiva do grupo, uma possibilidade que também pode ampliar os olhares é o foco em compreender como são feitas as atividades turísticas. Contudo, os achados dessa pesquisa, apesar de não poderem ser generalizados, oferecem importantes pontos para reflexão sobre práticas de gestão auto-organizadas em comunidades rurais, que proporcionam geração de renda e caminhos para melhoria na qualidade de vida.

DISPONIBILIDADE DE DADOS

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

  • 3
    A pesquisa foi realizada com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Brasil (CAPES), com o Código de Financiamento 001.

Referências

  • BALDO, A. C. S. Identidade étnica e territorialidade: Análise espaço-temporal do território quilombola Furnas do Dionísio - Jaraguari/MS. 2021. 83p. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade de Brasília (UNB), Brasília-DF, 2021.
  • BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 1. ed. São Paulo: Edições 70, 2015.
  • BELLO-URREGO, A. R. Cuerpos femeninos: poder y cultura en el Pacífico colombiano. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e74678, 2022. Doi: https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n274678
    » https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n274678
  • BETTI, P.; DENARDIN, V. F. Turismo de base comunitária e desenvolvimento local em Unidades de Conservação: estudo de caso no Restaurante Ilha das Peças, Guaraqueçaba - PR. Caderno Virtual de Turismo, [s.l], v. 19, n. 1, [s.p], 2019. Doi: https://doi.org/10.18472/cvt.19n1.2019.1534
    » https://doi.org/10.18472/cvt.19n1.2019.1534
  • CALARGE, T. C. C. Empreendimentos de economia solidária como espaços de emancipação feminina. 2022. 159p. Tese (Doutorado em Administração) - Escola de Administração e Negócios (ESAN), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS, 2022.
  • CASAGRANDE, A.; BEGNINI, S. Empreendimentos de economia solidária: território oeste catarinense. Interações, Campo Grande, MS, v. 19, n. 1, p. 181-92, 2018. Doi: http://dx.doi.org/10.20435/inter.v19i1.1467
    » http://dx.doi.org/10.20435/inter.v19i1.1467
  • COLLAZOS, J. M. Políticas públicas para la economía social solidaria en Colombia en tiempos de pandemia y crisis del neoliberalismo. Cooperativismo & Desarrollo, Bogotá, v. 31, n. 125, p. 1-24, 2023. Doi: https://doi.org/10.16925/2382-4220.2023.01.04
    » https://doi.org/10.16925/2382-4220.2023.01.04
  • COSTA, N. M. A.; CARDOSO, J. S. Produções artesanais do grupo de mulheres da Associação dos Trabalhadores Rurais da Agricultura Familiar e Artesanatos Quilombo Lagoa dos Anjos: aproximações e distanciamentos da economia solidária. Revista ComCiência, [s.l], v. 8, n. 11, p. 239-56, 2023. Doi: https://doi.org/10.36112/issn2595-1890.v8.i11.p239-256
    » https://doi.org/10.36112/issn2595-1890.v8.i11.p239-256
  • DE LOURDES, I. C. Turismo rural, sustentabilidade e educação ambiental: uma revisão sistemática. Cenário - Revista Interdisciplinar em Turismo e Território, Brasília-DF, v. 10, n. 2, p. 225-39, 2022. Doi: https://doi.org/10.26512/rev.cenario.v10i2.39150
    » https://doi.org/10.26512/rev.cenario.v10i2.39150
  • DUSSEL, E. Filosofia da libertação na América Latina. Trad. de Luiz João Gaio. São Paulo: Edições Loyola, 1977.
  • FALS BORDA, O. El Brasil campesinos y vivienda. 3. ed. Bogotá: Imprenta Nacional, 1963.
  • FONSECA, S. A.; MORAIS, L.; CHIARIELLO, C. L. As contribuições da Economia Solidária no contexto da COVID-19: o caso das hortas comunitárias em Araraquara (SP), Brasil. Revista Sobre México, Ciudad de México, v. 1, n. especial 2, p. 9-16, 2021.
  • INCRA. Processos abertos por superintendência. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/processos_regularizacao_abertos_29.11.23.pdf Acesso em: 7 out. 2024.
    » https://www.gov.br/incra/pt-br/assuntos/governanca-fundiaria/processos_regularizacao_abertos_29.11.23.pdf
  • KIEFFER, M. El turismo de las comunidades rurales en México: un turismo alternativo enmarcado en la Economía Social y Solidaria. Otra Economía, [s.l], v. 14, n. 26, p. 62-82, 2021.
  • LAVILLE, J. L. Marco conceptual de la economía solidaria. In: Laville, J. L. (Org.). Economía social y solidaria: una visión europea. Buenos Aires: Altamira, 2004. p. 1-25.
  • MACHADO, G. C. X. M. P.; MACIEL, T. M. F. B.; THIOLLENT, M. J. M. O comum e os desdobramentos na economia solidária a partir do saneamento ecológico. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 1, 2021. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902021181188
    » https://doi.org/10.1590/S0104-12902021181188
  • MECCA, A. C.; GONÇALVES JUNIOR, L. Ciclopedaleiros: processos educativos decorrentes da estruturação de um empreendimento de economia solidária. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 39, e35763, 2023. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698368535763p
    » http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698368535763p
  • MEDEIROS, M. M.; COELHO-LIMA, F.; SILVA, D. V. L.; MELO, B. P.; SILVA, J. V. T. Geração de renda para população em situação de rua: relato de experiência. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 43, e255714, 2023. Doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703003255714
    » https://doi.org/10.1590/1982-3703003255714
  • MIRANDA, R. F. Cuatro pilares para el funcionamiento de procesos colectivos: apuntes sobre gobierno, autorregulación, gestión y relaciones en organizaciones de la Economía Social y Solidaria. Otra Economía, [s.l], v. 13, n. 24, p. 25-45, 2020.
  • NASCIMENTO, C. Autogestão e modos de vida. 1. ed. Marília: Lutas Anticapital, 2022.
  • NUNES, M. A. C.; RODRIGUES, D. F.; OLIVEIRA, C. C. C. Percepção de qualidade de vida, perfil sociodemográfico e vulnerabilidade econômica de mulheres do quilombo Tijuaçu no estado da Bahia, Brasil. ExtraMuros, Petrolina, v. 9, n. 2, p. 172-88, 2021.
  • OPPLIGER, E. A.; OLIVEIRA, A. K. M. Turismo como possibilidade econômica para o desenvolvimento sustentável da comunidade quilombola de Furnas dos Baianos, Aquidauana, Mato Grosso do Sul. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, Taubaté, v. 18, n. 2, p. 98-111, 2022.
  • ORTEGA, K. E. A.; PEÑA-CORTÉS, F.; MELLÁN, S. Q.; MANSILLA, E. A. A. Escuelas en Territorio Mapuche: desigualdades en el contexto chileno. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 25, e25003, 2020. Doi: https://doi.org/10.1590/S1413-24782019250003
    » https://doi.org/10.1590/S1413-24782019250003
  • PINHO, R. J.; PEREIRA, A. P. F. B.; LUSSI, I. A. O. População em situação de rua, mundo do trabalho e os centros de referência especializados para população em situação de rua (centro pop): perspectivas acerca das ações para inclusão produtiva. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 27, n. 3, p. 480-95, 2019. Doi: https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1842
    » https://doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1842
  • QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena., [s.l], v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992.
  • RAZETO, L. Economía popular de solidaridad Santiago de Chile: Área Pastoral Social de la Conferencia Episcopal de Chile, Programa de Economía del Trabajo, 1990.
  • RONCONI, L. F. A.; MENEZES, E. C. O.; BITTENCOURT, B. L. Desenvolvimento Territorial Sustentável Iniciativa de Economia Social e Solidária no Contexto do Turismo. Desenvolvimento em Questão, Ijuí, v. 17, n. 49, p. 94-111, 2019. Doi: https://doi.org/10.21527/2237-6453.2019.49.94-111
    » https://doi.org/10.21527/2237-6453.2019.49.94-111
  • SANTOS, A. M. Sob o fio da navalha: relações Estado e sociedade a partir da ação política da economia solidária no Brasil. Marília: Lutas Anticapital, 2019.
  • SANTOS, K. P. As mulheres da Castanha do Alto Cajari: o empoderamento pela economia solidária. Ambiente e Sociedade, São Paulo, v. 24, [s.p], 2021. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1809-4422asoc20200066r1vu2021L4AO
    » http://dx.doi.org/10.1590/1809-4422asoc20200066r1vu2021L4AO
  • Secretaria de Estado de Assistência Social e dos Direitos Humanos [SEAD]. Vulnerabilidade social no Mato Grosso do Sul. Pesquisa Socioassistencial. Resultados Preliminares. Campo Grande, MS, 2024. Disponível em: https://www.sead.ms.gov.br/wp-content/uploads/2024/07/Cartilha-Vulnerabilidade-Social-no-MS_IVS-SEAD-2024-1.pdf Acesso em: 8 out. 2024.
    » https://www.sead.ms.gov.br/wp-content/uploads/2024/07/Cartilha-Vulnerabilidade-Social-no-MS_IVS-SEAD-2024-1.pdf
  • SINGER, P. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
  • TOURTIER-BONAZZI, C. Arquivos: propostas metodológicas. In: Ferreira, M. M.; Amado, J. (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.
  • VIEIRA, G. L. B.; ARAÚJO, G. C.; MARIANI, M. A. P. Empresas familiares no ramo de turismo rural em Mato Grosso do Sul: um estudo exploratório. Economia & Região, Londrina, v. 11, n. 2, p. 220-35, 2023. Doi: https://doi.org/10.5433.2317-627X.2023.v11.n2.45219
    » https://doi.org/10.5433.2317-627X.2023.v11.n2.45219
  • XAVIER, L. F.; MARIANI, M. A. P.; ARRUDA, D. O. Potencialidades em torno do turismo no espaço rural em territórios quilombolas do Mato Grosso do Sul. Revista GeoPantanal, Corumbá, v. 34, p. 198-208, 2023. https://doi.org/10.55028/geop.v18i34.18305
    » https://doi.org/10.55028/geop.v18i34.18305
  • ZANETONI, J. P. F.; MARIANI, M. A. P.; ARAÚJO, G. C. Economia Social Solidária e Turismo de Base Comunitária: aproximações teóricas e teórico-empíricas. Caderno Virtual de Turismo, [s.l], v. 23, n. 3, p. 68-82, 2023. Doi: http://dx.doi.org/10.18472/cvt.23n3.2023.2099
    » http://dx.doi.org/10.18472/cvt.23n3.2023.2099

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2025

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2024
  • Revisado
    27 Maio 2025
  • Aceito
    27 Maio 2025
location_on
Universidade Católica Dom Bosco Av. Tamandaré, 6000 - Jd. Seminário, 79117-900 Campo Grande- MS - Brasil, Tel.: (55 67) 3312-3608 - Campo Grande - MS - Brazil
E-mail: suzantoniazzo@ucdb.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Reportar erro