Open-access A produção do espaço urbano na sociedade brasileira: disputas e alternativas

The production of urban space in Brazilian society: disputes and alternatives

La producción del espacio urbano en la sociedad brasileña: disputas y alternativas

Resumo

As racionalidades neoliberais e seu ritmo de produção do espaço, que estendem os imperativos do mercado e da propriedade privada ao ordenamento espacial, dominam as cidades atualmente. Mesmo com a consolidação dos processos participativos, estabeleceu-se no Brasil um aparato regulatório de políticas urbanas de caráter antagônico ao permitir alguma regulação da produção espacial, mas refreando a implementação efetiva do direito à cidade. No entanto, observa-se a evidência de formas de resistência à fragmentação e mercantilização do urbano, buscando a construção de formas colaborativas de produção do espaço. Desse modo, o objetivo do trabalho é compreender como essas novas formas de organização e luta podem alavancar uma busca mais efetiva pelo direito à cidade. Para tanto, será realizada uma análise de trabalhos recentes sobre os novos movimentos sociais, tendo a cidade de São Paulo como recorte territorial. O estudo justifica-se uma vez que a reflexão crítica da produção do espaço demanda a discussão dos embates e das contradições que surgem entre democratização e neoliberalismo, apontando para a necessidade de analisar a realidade socioespacial brasileira e buscando refletir sobre possibilidades de novas matrizes para a produção do espaço urbano como construção coletiva da sociedade.

Palavras-chave
crise urbana; lutas urbanas; movimentos sociais urbanos; produção do espaço urbano

Abstract

Neoliberal rationales and their pace of space production, which extend the imperatives of the market and private property to spatial planning, currently dominate cities. Even with the consolidation of participatory processes, a regulatory apparatus of antagonistic urban policies was established in Brazil by allowing some regulation of spatial production, but curbing the effective implementation of the right to the city. However, there is evidence of forms of resistance to the fragmentation and commodification of the urban, seeking the construction of collaborative forms of space production. Thus, the objective of this work is to understand how these new forms of organization and struggle can leverage a more effective search for the right to the city. For that, an analysis of recent works on the new social movements will be carried out, having the city of São Paulo as a territorial cut. The study is justified since the critical reflection on the production of space demands the discussion of the clashes and contradictions that arise between democratization and neoliberalism, pointing to the need to analyze the Brazilian socio-spatial reality and seeking to reflect on possibilities of new matrices for the production of urban space as a collective construction of society.

Keywords
urban crisis; urban struggles; urban social movements; production of urban space

Resumen

Las racionalidades neoliberales y su ritmo de producción espacial, que extienden los imperativos del mercado y la propiedad privada al ordenamiento espacial, dominan las ciudades hoy. Incluso con la consolidación de los procesos participativos, en Brasil se estableció un aparato regulatorio para las políticas urbanas de naturaleza antagónica, al permitir cierta regulación de la producción espacial, pero obstaculizando la implementación efectiva del derecho a la ciudad. Sin embargo, hay evidencia de formas de resistencia a la fragmentación y mercantilización de lo urbano, buscando la construcción de formas colaborativas de producción espacial. Por tanto, el objetivo del trabajo es comprender cómo estas nuevas formas de organización y lucha pueden apalancar una búsqueda más efectiva del derecho a la ciudad. Para ello, se realizará un análisis de trabajos recientes sobre nuevos movimientos sociales, tomando como eje territorial la ciudad de São Paulo. El estudio se justifica porque la reflexión crítica sobre la producción de espacio exige la discusión de los choques y contradicciones que surgen entre democratización y neoliberalismo, apuntando a la necesidad de analizar la realidad socioespacial brasileña y buscando reflexionar sobre posibilidades de nuevas matrices para la producción de espacio. El espacio urbano como construcción colectiva de la sociedad.

Palabras clave
crisis urbana; luchas urbanas; movimientos sociales urbanos; producción de espacio urbano

1 INTRODUÇÃO

A lógica da produção do espaço como instrumento das exigências do crescimento econômico puramente quantitativo mutilou o urbano enquanto espaço social e democrático, subordinando-o a uma racionalidade ditada pela lógica do capital. As formas espaciais, diante das transformações operadas pela industrialização e por um modelo de crescimento pouco regulado nos países do Sul Global e, por isso, sem regramento, são em si formas sociais necessárias à expansão do capital, tornando-se um elemento de controle da reprodução dessa expansão capitalista.

No Brasil, em que não houve a necessidade de uma regulação do mercado por um Estado de bem-estar social, o desequilíbrio social e ambiental decorrente dessa lógica tornou-se, hoje, dramático. Nesse contexto, o urbanismo organiza o espaço habitado alinhado à racionalidade industrial e às lógicas de expansão permanente da forma-mercadoria, engendrando um processo de desapropriação e descolamento do ambiente de vida, agravado em países onde praticamente inexistem formas de regulação mediadora do Estado.

Mesmo com a consolidação dos processos participativos ao longo da redemocratização brasileira, consolidou-se um abundante e confuso aparato regulatório das políticas urbanas, de caráter antagônico, ao permitir alguma regulação da produção do espaço, mas refreando a implementação efetiva do direito à cidade, em um contexto em que impera a flexibilidade da cidade ilegal e a hegemonia da lógica social patrimonialista (Maricato, 2015). Essas são as características da organização espacial na sociedade brasileira, seguindo os princípios da acumulação entravada em que a precariedade, a fragmentação e a desigualdade no espaço urbano são partes do modelo econômico.

Em decorrência dessas dinâmicas antagônicas e em oposição às racionalidades neoliberais que destroem o tecido urbano e as redes de integração social, observa-se no país a evidência de novas formas de resistência à fragmentação da vida urbana, buscando a construção de dinâmicas colaborativas de produção do espaço. As lutas dos movimentos sociais pelo direito à cidade – mesmo com sua ampla diversidade de orientação e significados – se encontram em plena atividade, buscando reconfigurar as cidades através de outras formas de produção do urbano.

O objetivo do trabalho é compreender como essas novas formas de organização e luta dos movimentos sociais podem alavancar uma busca mais efetiva pelo direito à cidade. Para tanto, foi realizada uma análise dos trabalhos recentes sobre os novos movimentos sociais, tendo a cidade de São Paulo como recorte territorial. O artigo tem abordagem qualitativa e natureza exploratória, pautando-se no método indutivo, partindo da observação e análise dos fenômenos e fatos. Desse modo, a coleta de informações desenvolveu-se via levantamento bibliográfico e documental. A partir do aporte teórico de autores considerados chave na temática, a análise dos resultados se centra na discussão dos condicionantes da urbanização brasileira e as consequências desse modo de produção espacial, colocando em evidência as lutas urbanas, os seus avanços e as suas limitações no alcance do direito à cidade.

O estudo justifica-se uma vez que a reflexão crítica da produção do espaço urbano demanda a discussão dos embates e das contradições que surgem entre democratização e neoliberalismo, apontando também para a necessidade de analisar os processos da realidade socioespacial brasileira. Longe de procurar esgotar o tema, o presente trabalho busca refletir, ainda que de maneira breve, sobre possibilidades de novas matrizes para a produção do espaço urbano como construção coletiva da sociedade.

2 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO NO CONTEXTO BRASILEIRO

Na concepção de Lefebvre (2001), as cidades são projeções da sociedade sobre um local, uma obra, resultado dos grupos que a realizam em condições históricas e das relações sociais que existem nela. O autor aponta que o urbano sempre foi uma totalidade orgânica, destinado ao encontro, à troca, símbolo de liberdade e identidade, carregado de sentimento de pertença, em que sua finalidade essencial e seus propósitos de produção eram atender às necessidades humanas. De forma análoga, Gottdiener ressalta que o espaço contém e está contido nas relações sociais, em que a cidade é a expressão material da representação do urbano. Para o autor “o espaço é ao mesmo tempo o local geográfico da ação e a possibilidade de engajar-se na ação” (Gottdiener, 2016, p. 127). É, de forma simultânea, um meio de produção como terra e parte das forças sociais de produção como espaço.

No entanto, com o crescimento do capital industrial e a imposição de sua lógica e ideologia, há uma inversão de sentido, fazendo surgir uma nova estrutura do espaço urbano, alterando sua finalidade e passando a atender aos interesses do capital. O espaço urbano transforma-se, dessa forma, em espaço operacional, onde a estratégia capitalista de domínio visa a além das vendas de parcelas desse espaço, buscando também uma reorganização completa da produção, que é subordinada aos centros de poder e decisão.

Em países latino-americanos, o crescimento industrial e a urbanização acelerados foram acompanhados da acentuação de uma série de desigualdades, submetendo a estrutura econômica a choques profundos, na qual grande parte da população ainda se encontra inserida em uma realidade econômica cuja organização produtiva lhe fornece apenas condições de subsistência imediata. No caso do Brasil, ele já se inseriu no sistema capitalista em uma posição subalterna, devido a sua história colonial, uma vez que a sociedade brasileira não produziu uma ruptura definitiva com a metrópole em sua Independência, inserindo-se no sistema econômico internacional como um país politicamente independente, mas economicamente endividado.

A dívida externa que o Brasil assumiu após seu processo de Independência manteve o país como devedor: “o que era exploração colonial torna-se expatriação de excedente” (Déak, 2016, p. 4). Desse modo, como característica, a base material da sociedade de elite brasileira é a acumulação entravada, também originada na produção colonial, com a manutenção da expatriação de excedente. Essa característica de devedor seria, ao longo da história do país, o principal instrumento de dominação e drenagem do capital acumulado para os países centrais, reimpondo os entraves que o caracterizavam em seu período colonial. Esta sociedade é designada por Déak como sociedade de elite – diferenciando-se de uma sociedade burguesa –, tendo origem na produção e sociedade colonial, cujas características foram conservadas no processo de Independência, o qual se limitou a internalizar o aparelho estatal e arcabouço institucional mantido por Portugal, sem a realização de alterações nos princípios de organização da produção ou da sociedade.

Pelo contrário, foi resguardado o direito de propriedade em sua plenitude, excluindo as classes trabalhadoras dos direitos políticos, demonstrando uma discrepância entre a forma burguesa e o conteúdo elitista do arcabouço institucional na mera adoção da ideologia liberal. Estabeleceu-se uma contradição entre o estatuto legal e a realidade brasileira, produzindo uma elite e mascarando as contradições do sistema (Déak, 2016). Por meio do controle histórico sobre a terra e o trabalho, essa sociedade de elite se apropriou da máquina de Estado para a promoção dos seus interesses, tornando-se mais diversa com o tempo, indo além da elite agrícola e dos grandes latifúndios, ampliando-se para uma elite comercial, industrial e financeira (Ferreira, 2022).

Nessas circunstâncias, Ribeiro (1988, p. 70) analisa que a nação se torna “um reduto de privilegiados defendido por uma estrutura de poder que se impõe a todos e que se empenha em jamais abri-la ao exame, à crítica e à reformulação”, em que a distribuição de poder é ainda mais desigual que a distribuição econômica. Essa dominação “oligárquica” opera por meio de um ordenamento sócio-político regido pelas classes dominantes através das elites dirigentes que impõem a primazia de seus interesses aos demais setores. O restante das classes dominadas, oprimidas e marginalizadas não têm modos de transcender a sua condição de massa, não se tornando parte do povo como uma entidade política.

As relações patrimonialistas são apontadas por diversos autores como uma peça chave para a interpretação da sociedade brasileira e suas lógicas de formação. Ferreira (2022, p. 15) assinala que falar em um Estado patrimonialista corresponde à uma percepção da necessidade de compreender qual forma política deriva da posição periférica do Brasil no capitalismo:

O entendimento mais comum é que o “patrimonialismo” indica o reconhecimento, por parte de diversos intérpretes da nossa formação, de uma instrumentalização do Estado pelos setores dominantes, a tal ponto que, nas ações estatais, se confundem os interesses “públicos” e privados. É a imiscuição do privado na esfera pública, pela captura do aparato estatal, para a execução dos negócios específicos da classe proprietária. Esse padrão de instrumentalização do Estado teria especificidades que indicam uma diferenciação da nossa sociabilidade dentro do capitalismo.

A urbanização brasileira se deu sobre uma matriz que já era marcada pela segregação social e a exclusão desde a época da colônia, construindo um Estado patrimonialista em dinâmicas de exploração impostas pelas elites dominantes, que têm o controle sobre o processo de acesso à terra. O processo de urbanização, portanto, é marcado fortemente pela herança colonial e escravocrata do país, em que essas raízes calçadas no patrimonialismo e nas relações de favor – coronelismo – estão presentes (Maricato, 2013).

A sociedade de elite brasileira não se compromete com o desenvolvimento autônomo nacional, mas sim com os interesses hegemônicos do capitalismo mundial que podem fortalecer sua posição interna sem correr riscos de uma emancipação econômica e política interna, deixando a massa de população trabalhadora permanentemente dominada e excluída dos processos emancipatórios e dos saltos de modernização (Ferreira, 2022). Dessa forma, o espaço urbano produzido nesse contexto reproduz a lógica do patrimonialismo em todos os níveis, reforçando e naturalizando a segregação socioespacial e legitimando essa condição.

Segundo Villaça (1999), é por meio da segregação que a classe dominante controla a produção e o consumo do espaço urbano, sujeitando-o aos seus interesses. A segregação é, portanto, um processo necessário para que haja esse controle, uma dominação através do espaço, sendo um caso de efeito espacial sobre o social. Corrobora Ferreira (2022) ao ressaltar que a segregação urbana estrutural fomenta um padrão de dominação urbana pelas elites, em que essa dinâmica se estrutura na produção do espaço desigual e na manutenção dessa desigualdade por meios permanentes e institucionalizados, indo desde a utilização tendenciosa das leis à apropriação do conceito de público por interesses particulares e à manipulação das regras fundiárias, entre outros.

A produção patrimonialista do espaço é, para o autor, desejada, funcional e permanente. Na questão da produção desigual do espaço, ela acontece através de uma lógica segregadora e comandada por interesses das elites, em que o aparelho estatal é caracterizado por procedimentos nebulosos, burocráticos e marcados pelo clientelismo, corrupção e favor, marcas do patrimonialismo (Ferreira, 2022). Como consequência, o autor considera que as cidades brasileiras já nascem excludentes por essa lógica proposital de distribuição heterogênea das infraestruturas que utilizam a segregação como instrumento permanente de dominação. As classes mais baixas são relegadas às periferias distantes e informais, fazendo com que a cidade brasileira, “expressão da sociedade escravocrata patrimonialista”, exclua desde o seu princípio a população pobre (Ferreira, 2022).

As características da produção e organização espacial na sociedade de elite brasileira seguem os princípios da acumulação entravada, que seriam o baixo nível de reprodução da força de trabalho, infraestrutura precária, heterogeneidade da estrutura urbana e o espaço fragmentado. Maricato (2013) acrescenta como características do processo de urbanização brasileira a industrialização com baixos salários e o mercado residencial restrito; a tradição de investimento regressivo das gestões urbanas – em que as obras de infraestrutura alimentam a especulação fundiária e não a democratização do acesso à terra; e a legislação ambígua ou aplicação arbitrária da lei.

O urbanismo brasileiro não tem comprometimento com a realidade concreta, mas sim com uma ordem que diz respeito a apenas uma parte da cidade; a exclusão urbanística – representada pela ocupação ilegal do solo urbano – é ignorada na representação da “cidade oficial”. No Brasil, a aplicação do modelo de planejamento urbano modernista, e mais tarde funcionalista, apoiando- se na centralização e racionalidade do Estado, foi aplicado apenas na chamada cidade “formal” ou “legal”, contribuindo para que as cidades brasileiras fossem marcadas pela modernização incompleta ou excludente (Maricato, 2013).

A exclusão social passa, dessa forma, pela lógica de aplicação discriminatória da lei, em que sua aparente ineficácia constitui, na realidade, um instrumento fundamental para o exercício arbitrário do poder. Ferreira (2022) aponta que o arcabouço normativo de regulação da produção espacial não conseguiu resultados expressivos na promoção do direito à cidade devido a essa estruturação da produção patrimonialista do espaço, que promove, de modo proposital, a produção desigual e garante, ao mesmo tempo, a manutenção da cidade segregada. A não regulação é uma forma proposital de não planejar, resultando em cidades onde a dominação espacial é um dos instrumentos de dominação social.

3 LUTAS URBANAS E OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Observa-se que ocorre um processo de deslocamento e de desapropriação na urbanização sob a lógica do capitalismo, em que as excessivas formas de exploração atingem principalmente os segmentos mais vulneráveis da população, drenando a sua capacidade de manter condições adequadas de reprodução social. Nessas circunstâncias, torna-se quase implausível acreditar na ideia de que “a cidade poderia funcionar como um corpo político coletivo, um lugar no qual e a partir do qual poderiam surgir movimentos sociais progressivos” (Harvey, 2014, p. 49).

No Brasil, os movimentos sociais urbanos que lutaram pela Reforma Urbana conseguiram importantes marcos institucionais com o Estatuto das Cidades, capítulos na Constituição Federal de 1988, um conjunto de entidades como o Ministério das Cidades e secretarias de habitação, mobilidade urbana e saneamento ambiental, que buscavam retomar a política urbana de forma democrática, além da consolidação de espaços voltados à participação direta da população, das lideranças sindicais, profissionais, acadêmicas e populares, como o Conselho Nacional das Cidades (Maricato, 2015).

Mesmo ressaltando o papel da Constituição de 1988 no processo de construção da democracia brasileira, uma vez que ela fomentou uma agenda de instrumentos urbanísticos voltados à participação pública, há uma vasta crítica apontando que esses instrumentos não funcionaram na prática, como o previsto e estabelecido no Estatuto da Cidade. Ferreira (2022) observa que estes instrumentos foram inspirados em políticas importadas de outras realidades, ignorando o contexto do Estado patrimonialista e da sociedade brasileira. Apesar da difusão das instituições participativas, um abundante aparato regulatório e instrumentos de políticas urbanas indo em direção oposta ao modelo e a cultura prevalecente no país, há uma crescente dificuldade de sua implementação efetiva, uma vez que esses fatores convivem com a flexibilidade da cidade ilegal e se chocam com a hegemonia patrimonialista da gestão das cidades (Maricato, 2015).

Maricato também aponta que os movimentos reivindicatórios foram engolidos pela institucionalidade, enfraquecendo suas forças. Houve uma atração demasiadamente forte pelo espaço institucional e pela institucionalização das práticas participativas como um fim em si. Ainda que essas conquistas sejam essenciais, torna-se necessário compreender como o Estado opera em sua complexidade, principalmente na sociedade brasileira, patrimonialista e desigual, onde o ponto não é “ignorar a luta por espaços institucionais por via eleitoral ou qualquer outra via, mas de dar a ela a devida dimensão no processo de construção de outro mundo marcado por outras relações sociais” (Maricato, 2007, s.p.).

Oposto à espoliação e à segregação que ocorre nas cidades, o direito à cidade corresponde ao direito de tomada de decisões democráticas sobre o espaço urbano como um todo. O termo foi cunhado por Henri Lefebvre, que assinala que o direito à cidade é uma manifestação de forma superior dos direitos, devendo ser compreendido como um apelo, uma exigência ao direito à vida urbana, condição de um humanismo e democracia transformados, renovados, como o direito à produção do espaço urbano enquanto construção coletiva.

O direito à cidade, por conseguinte, fornece uma estratégia de ação para a transformação das condições urbanas produzidas pela lógica da acumulação capitalista por meio da prática espacial de emancipação. Ele não se limita a reivindicar elementos vinculados para sobreviver no espaço urbano, mas sim propõe o conceito de cidadania, que se entende como igualdade de direitos sociais, políticos, econômicos e culturais e os concretiza em sua relação com a cidade como marco físico (Borja, 2012). É o direito de usufruir da cidade como local de valor de uso, separado do valor de troca e do domínio econômico, demandando o rompimento com a lógica capitalista de produção e apropriação dos espaços.

Em todas as épocas foram os movimentos sociais e intelectuais que estabeleceram um novo horizonte de direitos elegíveis que foram formalizados politicamente e juridicamente por meio da luta política (Borja, 2012). Os movimentos revolucionários, aponta Harvey (2014), frequentemente assumem uma dimensão urbana, sendo no espaço público onde a população reclama seus direitos, desde 1871, com a Comuna de Paris, às manifestações mundiais de Maio de 1968, incluindo marchas demandando direitos iguais até a queda dos regimes ditatoriais. Mais recentemente, o espaço urbano testemunhou protestos de massa, como a Primavera Árabe no Oriente Médio e Norte da África, Occupy Wall Street, que começou em Nova York, nos Estados Unidos, mas se espalhou pelo mundo inteiro, e Los Indignados, na Espanha.

A crise do espaço urbano põe em questão a possibilidade de exercer o direito à cidade, uma vez que a cidade é, antes de tudo, o espaço público, condição e expressão da cidadania e dos direitos humanos (Borja, 2012). O direito à cidade é uma resposta democrática que integra os direitos cívicos e os critérios urbanísticos que fazem possível seu exercício, em especial a concepção do espaço urbano.

No início do século XXI, observou-se a evidência de novos modos de ativismos urbanos em distintas formas de lutas e resistências à mercantilização e à fragmentação das cidades, como também em resposta à crise da representação política. Essa nova onda de mobilizações é caracterizada pela diversidade de atores sociais, pela multiplicidade de formas de ação coletiva em torno da vida urbana, pelas alterações na forma de mobilização e decisão, em sua forma de atuação e novas estratégias comunicativas. Também recusam as formas clássicas de representação e organização partidária e apresentam uma “dimensão de experimentação e prefiguração imediata de novas maneiras de ocupar, resistir e existir na cidade” (Rena; Arantes, 2017, p. 2). Tais ativismos podem se traduzir na forma de movimentos, coletivos e grupos, com uma atuação local e se diferenciando de grupos institucionalizados.

Rena e Arantes (2017) pontuam que essas novas formas de resistências urbanas, que se insurgem geralmente contra grandes projetos ou em defesa de lugares e bens comuns na cidade, distinguem-se daquelas praticadas pelos grandes movimentos setoriais urbanos. São grupos com maior grau de autonomia e menos condicionados pela forma-partido, em que sua luta visa fortalecer o acesso e a apropriação coletiva dos bens comuns, apontando outra lógica de produção das cidades, “o que permitiria pensar uma nova agenda após o ciclo democrático- popular da Reforma Urbana” (Rena; Arantes, 2017, p. 2).

Esses sujeitos entram em cena no novo milênio ao confrontarem as mudanças ocorridas nas últimas décadas, exigindo melhores condições de vida urbana e buscando mudanças “aqui e agora, em vez das abordagens holísticas construídas em torno das grandes reformas ou revoluções. As demandas podem ser pontuais, mas referidas a pontos estratégicos de grande impacto político e social” (Maricato, 2015, p. 48). Além de expressar novas formas de resistência, essa multiplicidade do ativismo demonstra a construção de novas identidades culturais a partir da transformação espacial e simbólica dos espaços urbanos, crescendo o ativismo em distintas classes e camadas sociais.

Há uma pluralidade de pautas e repertórios de ação, passando por ocupações de espaços públicos e privados, assim como ações de intervenção e transformação de áreas públicas. Essas iniciativas permeiam tanto por ações de coletivos que agem através de práticas como do urbanismo tático e urbanismo colaborativo, como as ocupações de moradia ou culturais e ao surgimento de movimentos contestando projetos públicos ou privados – e seus efeitos de gentrificação – em áreas consideradas como bens comuns urbanos.

Esses atores têm em comum a reivindicação da cidade como valor de uso e a contestação das lógicas de produção espacial pautadas na razão neoliberal, as quais apresentam a rentabilidade do solo como critério fundamental, privando os cidadãos do acesso democrático aos comuns urbanos (Dardot; Laval, 2017). Por meio de práticas coletivas, buscam a luta pelo poder da configuração das características da vida urbana, dos processos de urbanização, produção e gestão das cidades pelos seus valores de uso. Trabalham com ação direta para o uso e a transformação de áreas da cidade, reconhecendo-a como o local de contestação onde seus direitos serão representados.

O espaço urbano não é somente sujeito, palco ou agenda desses atores em suas lutas pelo direito à cidade, mas também parte de seu repertório de ação. Suas práticas não são apenas resistências, mas “esforços por disputar o sentido do fenômeno urbano, desejos coletivos que produzem uma vida social inventiva e, com isso, geram marcos na experiência coletiva e na cultura urbana” (Colosso, 2019, p. 12). Sob essa lógica, o direito à cidade traduz-se significativamente no direito à apropriação (Lefebvre, 2002).

Nesse sentido, esses novos movimentos urbanos visam à reapropriação pelo ser humano das suas condições de existência por meio da apropriação e transformação dos espaços na luta pelo direito à cidade. Essas ações coletivas na esfera pública, segundo Gohn (2014, p. 58), passam adiante demandas e reivindicações, conquistando espaços de ação sociopolítica e cultural onde “há no agir coletivo desses grupos um processo de aprendizado e um processo de construção de saberes”, que são mobilizados no cotidiano, interferindo na dinâmica do exercício de cidadania e construindo formas de sociabilidade nos espaços públicos.

Os novos movimentos urbanos enfrentam desafios e apresentam limitações. Em sua atuação prática nos espaços considerados desvalorizados, há um risco de terem suas ações fomentando processos de gentrificação, devido ao impacto na valorização desses territórios. Também se observou que a grande parte dos grupos ativistas nas metrópoles brasileiras é articulada principalmente pela classe média urbana, branca e universitária. Outro ponto considerado por Rena e Arantes (2017) é a limitação da articulação desses grupos em estruturas amplas de representação de classe e poder institucional. No entanto, os autores ressaltam que nesse ponto surge uma abertura ampla para a experimentação livre e para a possibilidade de novos formatos de ação coletiva.

Ainda que algumas das práticas coletivas desses grupos sejam temporárias e pontuais, insuficientes na visão de Wisnik (2015, s.p.), diante da escala e complexidade das grandes cidades brasileiras, “elas são formadoras de uma nova e importante consciência cidadã”. Os movimentos sociais urbanos tinham, como repertório de interação, o fazer política dentro e fora das instituições de forma simultânea, engajando-se não apenas em ações de confronto, mas também buscando influenciar decisões a partir de perspectivas colaborativas com os agentes estatais (Tarrow, 2011). Como apontado, as instituições participativas conquistadas por esses movimentos nas últimas décadas se mostram atualmente como instrumentos constrangidos por limitações severas, dado que “elas foram incorporadas pelo sistema político sem provocar transformações profundas no sentido da democratização do Estado” (Trindade, 2018, p. 12).

Mesmo com os significativos avanços legais e institucionais brasileiros, Maricato (2015, p. 97) compreende que a esperança se encontra na emergência desses novos movimentos urbanos que lutam pelo direito à cidade, o qual “será dado menos por instituições formais, normais legais de política urbana ou de planejamento urbano, e mais pelas lutas sociais”. A tarefa de elaboração e reivindicação dos direitos cívicos e da construção de um novo consenso democrático de cidadãos não ocorrerá de forma espontânea nas instituições ou na esfera política, mas sim da força da sociedade civil para demandar e impor o reconhecimento efetivo de seus direitos (Borja, 2012).

As sociedades hoje vivem em um momento histórico que impulsiona a pensar e lutar por novos direitos. Uma mudança só irá acontecer se as cidades gerarem uma relação de força capaz de impor sua presença progressivamente, demandando o reconhecimento de seus atores como interlocutores válidos. Essa força viria através da luta política e social dos diferentes tipos de movimentos e ativismos urbanos que, por meio de suas práticas coletivas insurgentes, se tornam uma força capaz de desempenhar um papel construtivo importante, uma vez que são articulados em torno dos direitos e cidadania (Borja, 2012) (Harvey, 2014).

Os projetos transformadores do cotidiano ocupam um lugar fundamental na construção de uma nova práxis urbanística, no qual essas práticas precisam ser reconhecidas, ainda que a princípio se manifestem como uma dimensão utópica frente às práticas hegemônicas no Brasil atualmente (Maricato, 2013). A realização do direito à cidade, desse modo, poderia acontecer pelos usos disruptivos feitos nos espaços percebidos, produzidos e vividos. A reapropriação presente na reivindicação desse direito faz frente às formas de alienação, favorecendo a emancipação humana.

A proposta de supressão ou superação do neoliberalismo e do Estado capitalista parece utópica. No entanto, compreende-se que a luta pelo direito à cidade não é garantia de entrega de uma nova sociedade em perfeito equilíbrio. É imperativo não sufocar o conflito, mas sim criar condições para a sua emergência e abrir espaços para o exercício democrático da política. Esta luta é, na realidade, uma luta para reorientar o processo urbano contra os atuais processos de despossessão, na qual as práticas de resistência se tornam portadoras e produtoras de uma nova urbanidade capaz de fazer emergir usos diferentes sobre o espaço da cidade (Alves, 2017).

Maricato (2013) aponta que, para reverter essa tendência, é necessário destruir a representação ideológica hegemônica sobre a cidade, construindo a consciência da cidade real com as demandas populares. A construção de uma nova matriz urbanística, para a autora, implica a eliminação da distância entre o planejamento urbano e a gestão, passando por uma abordagem sistêmica, desconstruindo as representações urbanas dominantes e construindo uma nova simbologia engajada a uma práxis democrática. Ainda que necessário, as mudanças não podem ser empreendidas somente em nível local, devendo conciliar promoção externa com iniciativas internas, já que a ação isolada de grupos locais não consegue ter impacto real se não for fortalecida pela ação de planejamentos e políticas externas.

Ao longo da história, os atores da mudança social foram capazes de exercer uma influência decisiva, produzindo novos valores e objetivos em torno dos quais as instituições se transformaram. O desafio dos estudos das ações coletivas em torno do urbano situa-se na análise concreta e compreensão do potencial revolucionário desses movimentos sociais, das lutas nas cidades e sobre elas, e sua capacidade de ação como protagonistas da produção social do espaço.

4 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS EM SÃO PAULO

Em relação aos novos movimentos sociais na cidade de São Paulo, realizou-se uma breve análise empírica de alguns grupos, utilizando teses e dissertações que os tinham como objeto de pesquisa, fazendo uma análise sucinta de seu perfil, como classe, relação com o Poder Executivo, limitações e desafios, assim como possibilidades e objetivos. Em sua pesquisa sobre práticas urbanas e ativismos em São Paulo, Hori (2018) pontua que a partir dos anos 2000 houve uma inversão na dinâmica de uso dos espaços públicos da cidade, por parte das classes mais abastadas, principalmente pelos jovens desses grupos, tomando consciência da carência de espaços públicos de qualidade. Dessa forma, a autora ressalta que esses atores passaram a formar grupos para promover o uso democrático dos espaços públicos através de manifestações e apropriações, ocupando-os com o intuito de transformá-los em locais de lazer e convivência. A partir dos anos 2010, esses grupos passaram a ser conhecidos em São Paulo como coletivos urbanos, e sua atuação ganhou força na mídia, ocasionando um aumento considerável no número de coletivos atuantes.

Segundo Hori, esses coletivos urbanos propunham a apropriação dos espaços através do engajamento da comunidade por meio de multirões de trabalho, visando à requalificação fisica e funcional desses locais e buscando a participação da sociedade civil nesse processo, apoiando- se em metodologias como urbanismo tático ou o placemaking. Para colocar essas metodologias em prática, esses atores contam com mão de obra e investimentos oferecidos pelos próprios moradores ou por doações e/ou financiamento coletivo, além do apoio da municipalidade, em alguns casos, para oferecer serviços de limpeza e poda. Em suas análises, Hori verifica que essas ações se concetraram majoritamente em pessoas de classes mais abastadas, muitas vezes concentrando-se em ações de caráter estético, lúdico ou midiático, que, embora importantes, acabaram sendo utilizadas como “animação cultural” pelo poder público para esconder os reais problemas urbanos.

No entanto, a pesquisadora observou que, principalmente após 2010, os coletivos e ativistas amadureceram em suas pautas. Mesmo iniciando com eventos festivos e propostas de melhorias no espaço físico, com o passar do tempo suas ações se mostraram como uma fonte de recurso para atrair a atenção da sociedade em relação a assuntos mais estruturais, como o meio ambiente e a produção imobiliária imprudente.

Amancio (2022) aponta que os novos movimentos sociais surgidos após a virada do século em São Paulo representam uma mudança nas pautas de reivindicações e no processo de formação. As novas pautas urbanas trazem o direito à cidade como componente central, agindo pela transformação do cotidiano. Mesmo com as diferenças socioeconomicas desses atores, a cidade é compreendida como um espaço compartilhado das desigualdades, onde as transformações urbanas impactam diretamente as suas condições de vida. A questão urbana, dessa forma, ocupa uma reivindicação compartilhada nos distintos sujeitos das lutas sociais, com as cidades passando a ter um lugar de destaque em seus discursos.

Em relação ao perfil socioeconomico de alguns desses novos atores sociais, Hori afirma que suas classes sociais não podem ser negadas, porém suas ações e formas de atuação propostas não devem ser desconsideradas no processo de reconhecimento das lutas e em seu potencial de atrair a atenção das mídias e fomentar as suas ações nas redes sociais virtuais, uma vez que dão visibilidade a outras ações ativistas, podendo instigar outros atores a desenvolver atividades semelhantes em outras áreas da cidade.

Outros grupos estudados por Oliveira (2019) apresentaram engajamento de indivíduos de distintas classes socioeconomicas, porém com afinidades políticas e que buscavam agir no mesmo território. A pesquisadora analisou grupos que também são atuantes em regiões periféricas de São Paulo, apresentando formações de classes menos privilegiadas. Esses grupos também visam à transformação urbana e social, porém convivem com dificuldades maiores, diante do seu entendimento de direito à cidade como direito de acessá-la e fazer parte dela como um todo, a partir de periferia.

Em relação à interação desses atores com o Poder Executivo, cada um deles apresenta uma postura diferente. Alguns buscam uma relação de diálogo com o Poder Público para atingir seus objetivos e concretizar seus projetos e planos, outros participam de editais, e outros têm uma postura de enfrentamento e negação do Estado, cobrando soluções dele, mas buscando a criação de novas maneiras de pensar a cidade e sociedade (Hori, 2018; Oliveira, 2019).

A posição ativista dos novos atores, segundo Hori, demonstra o protagonismo dado ao mercado imobiliário e à iniciativa privada no desenvolvimento urbano. Em sua pesquisa, a autora ressalta que o estudo dos grupos ativistas possibilitou a ela identificar que a noção de direito à cidade desses atores se aproxima mais do conceito original proposto por Lefebvre, visto que retoma a noção de revolução da sociedade tendo o espaço urbano como objeto de disputa, onde suas ações se baseam na horizontalidade e no trabalho em rede. Para a pesquisadora, a atuação desses grupos demonstra a força da sociedade civil em conquistar resultados efetivos, sendo exemplo da valorização da atividade coletiva em prol de um desejo comum, o direito à cidade.

Como desafios dessas novas lutas, verifica-se a apropriação das ações ativistas pelo mercado; a luta por um fim, um resultado, não pela transformação dos meios, como ação política; a disputa institucional e regulatória; e as reivindicações parciais, sem um projeto totalizante. Como possibilidades, foram identificadas o protagonismo da sociedade e a valorização da atividade coletiva, a transformação urbana e social e a criação de movimentos multitudinários.

De forma geral, a ação direta sobre o espaço é fundamental nas atuações desses grupos. Ainda que haja diferentes utopias e compreensões sobre a cidade, onde alguns realizam ações fundamentadas no urbanismo tático ou em melhorias físicas pontuais, outros com um viés mais ideológico, buscando refletir sobre a produção do espaço porq meio de ocupações, todos estão objetivando resgatar o valor de uso dos espaços urbanos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou a análise do processo de produção e organização do espaço na sociedade brasileira, visando à compreensão das contradições de seu planejamento urbano contemporâneo. Em países latino-americanos e de capitalismo periférico, o crescimento industrial e a urbanização acelerados foram acompanhados da acentuação de uma série de desigualdades. No caso do Brasil, pelo país não ter rompido definitivamente com a metrópole em sua Independência, ele se inseriu no sistema econômico internacional como um país politicamente independente, mas economicamente endividado, em uma posição subalterna devido a sua história colonial.

Observou-se que as características da sociedade colonial foram conservadas no processo de Independência, mantendo a expatriação de excedente, tornando a acumulação entravada como base material da sociedade. Desse modo, a urbanização brasileira se desenvolveu sobre uma matriz já marcada pela segregação social e a exclusão desde a época da colônia, constituindo um Estado patrimonialista e coronelista. A transformação da terra em mercadoria e o fim da escravidão sem políticas de compensação capazes de aliviar a exclusão social e concentração de renda constituem as bases da formação da fragmentação urbana e segregação socioespacial nas cidades brasileiras, onde grande parte da população não consegue acessar o mercado formal de terras, submetendo-se às formas precárias de habitação e produzindo espaços espoliados.

Verifica-se que, na sociedade de elite brasileira, a precariedade e a desigualdade no espaço urbano são partes do modelo econômico, no qual o urbanismo brasileiro não tem comprometimento com a realidade concreta, o que acaba por contribuir para que as cidades no país sejam marcadas pela modernização incompleta e excludente. As dinâmicas de exploração são impostas pelas elites dominantes, de forma que a legislação se torna ineficaz quando contraria seus interesses, mesmo diante do nosso grande aparato regulatório. A produção do espaço urbano é, portanto, regida pelos interesses patrimonialistas, comprometendo-se com os interesses hegemônicos do capitalismo mundial, a fim de manter sua posição interna, excluindo, como consequência, a massa da população trabalhadora, reforçando e naturalizando a segregação socioespacial.

Analisar a estrutura social brasileira, seu papel histórico no capitalismo mundial e suas formas urbanas são elementos que auxiliam na compreensão da dificuldade do desafio de mobilizações e mudanças. Também aponta para a necessidade de pensar em alternativas que não passem pelo âmbito do Estado, uma vez que este tenderá a reprimi-las para manter as relações hegemônicas. O sentimento de desapropriação acompanhou as dinâmicas urbanizadoras excludentes e privatizadoras, reforçando a necessidade de substituir a sua submissão pela resistência, buscando formas alternativas de produção e gestão das cidades, partindo de objetivos integradores, da reelaboração dos direitos cívicos e da construção de um novo consenso democrático de cidadãos. É consenso entre os autores consultados que a tarefa de elaboração e reivindicação não ocorrerá de forma espontânea nas instituições ou na esfera política, mas sim dependerá da força da sociedade civil para demandar e impor o reconhecimento efetivo de seus direitos.

A desapropriação está sendo seguida por uma lenta reconquista do entorno por parte de minorias ativas da cidadania. As lutas atuais expressam a necessidade de intervir na construção, gestão e proteção da cidade, visando à reapropriação pelo ser humano das suas condições de existência por meio da transformação dos espaços na luta pelo direito à cidade, não aguardando ações paternalistas do Estado e negando o planejamento top-down, desejando construir de forma coletiva a vida pública, de um modo mais horizontal e colaborativo.

Os novos atores sociais visam à reivindicação da cidade como valor de uso, contestando as lógicas de produção espacial regidas pelo neoliberalismo, tentando alterar as relações de poder dominantes e buscando propostas alternativas de políticas públicas. Suas ações diretas e coletivas poderiam ser uma solução para o engessamento da participação pública pelos meios institucionais, uma vez que elas se desdobram nas ruas, nos espaços urbanos, não restringindo a ideia de participação somente à dimensão institucional.

Como o urbano funciona como espaço importante de exercício de cidadania e reivindicação, a cidade e seu processo de produção e gestão são elementos cruciais na luta política e social. Compreendendo que o espaço toma a forma e o significado conferido pelos atores atuantes, parte-se da formulação de que as lutas urbanas dos novos atores seriam potências capazes de auxiliar na reapropriação do espaço urbano e na ressignificação da vida cotidiana, uma vez que suas estratégias visam ao reconhecimento dos direitos dos cidadãos ao recuperar a qualidade cívica do espaço. Em menor ou maior grau, seus atores são agentes modeladores do espaço urbano, protagonizando a criação de contra planejamentos, ou seja, soluções alternativas ao planejamento oficial. A identificação de práticas e experiências que rompem com os modelos instituídos, mesmo que ainda não constituam transformações estruturais, podem indicar caminhos e novas formas de agir.

Os estudos urbanos apontam as dificuldades na implementação de processos coletivos e participativos, principalmente no Sul Global, nas dimensões institucionais, uma vez que grande parte dos sistemas democráticos se mostram incapazes de vencer as barreiras impostas pelo contexto neoliberal. Há uma lacuna de reflexão a ser explorada como espaço de pesquisa no que tange às ações coletivas do planejamento contra-hegemônico, demonstrando um potencial de estudo em relação ao reconhecimento do lugar dessas práticas na transformação urbana. É uma forma de repensar o papel dos distintos agentes urbanos na prática urbana, buscando soluções integradas e transdisciplinares que agreguem os saberes técnicos aos saberes locais, envolvendo a sociedade civil na formulação de espaços colaborativos de desenvolvimento urbano.

Cumprindo o objetivo de exploração do tema, ainda que de forma breve, o presente estudo buscou refletir sobre as possibilidades de novas matrizes para o urbanismo que integrem a coletividade, a participação e a reapropriação das condições de existência dos seres humanos na construção da sociedade. De modo inicial, os novos atores das lutas urbanas parecem ter um alto potencial de alternativas na produção contemporânea do espaço. No entanto, esse potencial e os desafios concretos dessas ações devem ser estudados e compreendidos mais profundamente, mediante análise de contribuições que esses já fizeram e ainda fazem e os efeitos de suas ações gerados no território e nas políticas públicas, levando em conta o papel que poderiam ou deveriam vir a desempenhar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2025
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2025

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2024
  • Aceito
    24 Nov 2024
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