Resumo
O acesso aos cuidados de saúde tem sido alvo crescente de pesquisas que buscam compreender quais fatores agem como impeditivos para alcançar o cuidado. Nesse contexto, este artigo apresenta parte dos resultados de um estudo que buscou compreender a percepção da pessoa com deficiência e do cuidador familiar sobre as políticas públicas de saúde disponíveis no município de Campo Grande, MS. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com pessoas com deficiência física e cuidadores familiares, por meio de entrevista. A organização dos dados e a análise seguiram a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo, e o conteúdo foi discutido à luz da literatura científica referente à temática da Teoria das Representações Sociais. Participaram do estudo treze pessoas com deficiência e oito cuidadores familiares. As ideias centrais identificadas foram agrupadas em atendimento, infraestrutura e funcionamento. Das fragilidades identificadas, o atendimento, a organização e o funcionamento dos serviços, por vezes, não atendem às necessidades da pessoa com deficiência. A precariedade estrutural indica a insuficiência de recursos financeiros, físicos, materiais e humanos. Os resultados visam subsidiar ações de aprimoramento do cuidado ofertado às pessoas com deficiência e sua família no município.
Palavras-chave
pessoas com deficiência; acesso aos cuidados de saúde; política pública
Abstract
Access to healthcare has been increasingly addressed in studies seeking to identify the obstructive factors in achieving care. In this context, this article presents part of the results of a study that sought to understand the perception of people with disabilities and family caregivers regarding public health policies available in the city of Campo Grande, state of Mato Grosso do Sul, Brazil. This is a qualitative study conducted with people with physical disabilities and family caregivers through interviews. The data were organized and analyzed according to the technique of the Collective Subject Discourse, and the content was discussed in the light of scientific literature concerning the theme and the Theory of Social Representations. Thirteen people with disabilities and eight family caregivers participated in the study. The central ideas identified were grouped into care, infrastructure, and operation. The identified weaknesses show that the care, organization, and operation of the services sometimes do not meet the needs of the person with disabilities. Structural precariousness indicates the insufficiency of financial, physical, material, and human resources. The results aim to support actions to improve access to healthcare in the municipality.
Keywords
people with disabilities; access to healthcare; public policy
Resumen
El acceso a la atención médica ha sido un objetivo creciente de la investigación que busca comprender qué factores actúan como impedimentos para lograr la atención. En este contexto, este artículo presenta parte de los resultados de un estudio que buscó comprender la percepción de las personas con discapacidad y de los cuidadores familiares sobre las políticas públicas de salud disponibles en el municipio de Campo Grande - MS. Se trata de una investigación cualitativa con personas con discapacidad física y cuidadores familiares, a través de entrevistas. La organización de los datos y el análisis siguieron la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo; y el contenido fue discutido a la luz de la literatura científica sobre el tema y la Teoría de las Representaciones Sociales. Trece personas con discapacidad y ocho cuidadores familiares participaron en el estudio. Las ideas centrales identificadas se agruparon en servicio, infraestructura y funcionamiento. De las debilidades identificadas, la atención, la organización y el funcionamiento de los servicios a veces no satisfacen las necesidades de las personas con discapacidad. La precariedad estructural indica la insuficiencia de recursos financieros, físicos, materiales y humanos. Los resultados tienen como objetivo subvencionar acciones para mejorar el acceso a la atención de las personas con discapacidad y sus familias en el municipio.
Palabras clave
personas con discapacidad; acceso a la atención de salud; políticas públicas
1 INTRODUÇÃO
A marginalização das pessoas com deficiência na sociedade foi historicamente construída; o assistencialismo paternalista e a tutela constituíram, por muito tempo, a sua principal fonte de apoio, ao mesmo tempo que reforçavam a sua invisibilidade. O reconhecimento dessa parcela da população como cidadãos de direitos foi decorrente de muitas lutas, que ainda hoje persistem ao almejar por avanços sociais, políticos e legais (Diniz, 2007; Mota; Bousquat, 2021).
No Brasil, a incorporação do texto da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência em ementa constitucional foi um marco legal importante para o país, que assumiu o compromisso com o respeito pela dignidade inerente à autonomia individual, à independência das pessoas, à não discriminação, à plena e efetiva participação e à inclusão na sociedade, comprometendo-se também com o respeito à diversidade humana e à humanidade, à igualdade de oportunidades e à acessibilidade. Em 2015, instituiu-se a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, enquanto ferramenta essencial para implementar de maneira mais efetiva os preceitos destacados anteriormente (Brasil, 2015).
As conquistas alcançadas demonstram que, ao longo do tempo, as concepções sobre as pessoas com deficiência orientam modelos teóricos de interpretação e têm implicações importantes no modo como a sociedade compreende-as, influenciando a obtenção de direitos. Desse modo, as políticas públicas voltadas a essa população têm sido alvo de crescentes estudos em decorrência do aumento da expectativa de vida e do aumento no número de doenças crônicas que podem levar à maior prevalência de taxas de incapacidade funcional. A capacidade funcional surge, portanto, como um novo paradigma de saúde, que fortalece o debate sobre a deficiência e a sua participação na sociedade (Diniz, 2007; Mota; Bousquat, 2021).
As restrições de participação são barreiras enfrentadas no cotidiano que impedem ou prejudicam o envolvimento da pessoa com deficiência na sociedade de um modo igualitário. Os fatores pessoais (motivação e autoestima) e os fatores ambientais (produtos e tecnologias, políticas públicas, serviços e sistemas, atitudes, suporte e relacionamento e o ambiente natural e construído) podem se configurar como barreiras na funcionalidade e, consequentemente, na participação da pessoa com deficiência (Farias; Buchalla, 2005).
De modo geral, a desigualdade e as injustiças nas quais as pessoas com deficiência estão inseridas impactam o envolvimento de suas atividades e a operacionalização de seus direitos. A Organização das Nações Unidas, em seu Relatório de Deficiência e Desenvolvimento, constata que as pessoas com deficiência estão em desvantagem na maioria dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e indica que elas têm três vezes menos oportunidades de ter acesso a atendimentos de saúde quando necessitam (United Nations, 2018).
A gestão da saúde é uma das ocupações que compõem o cotidiano dos indivíduos, e a partir dela são desenvolvidas atividades relacionadas ao desenvolvimento, à gestão e à manutenção de rotinas de saúde e bem-estar. Entre elas é possível manter as necessidades de saúde física e mental, gerir doenças crônicas, explorar e ter acesso ao sistema de saúde (Gomes; Teixeira; Ribeiro, 2021).
Nesse cenário, o acesso aos serviços de saúde tem sido alvo crescente de pesquisas que buscam compreender quais fatores agem como impeditivos à participação em atividades voltadas ao cuidado em saúde. As experiências relatadas por pessoas com diferentes tipos de deficiência e por profissionais de assistência reiteram que são muitas as desvantagens para o acesso equitativo e integral de cuidados de saúde, tanto para homens como para mulheres, em serviços de atenção primária e especializados, em diversificados contextos e sistemas de saúde (Edwards; Sakellariou; Anstey, 2020; Geraldo; Andrade, 2022).
Especificamente, o acesso aos serviços e cuidados em saúde, uma metassíntese – desenvolvida por Geraldo e Andrade (2022) – revelou restrições identificadas como barreiras físicas, econômico-sociais, tecnológicas, comunicacionais, informacionais e de mobilidade; além de organizacionais, políticas, assistenciais, atitudinais, culturais e simbólicas.
Considerando essa conjuntura, este artigo apresenta parte dos resultados de um estudo de doutoramento que buscou compreender a percepção da pessoa com deficiência e do cuidador familiar sobre as políticas públicas de saúde disponíveis no município de Campo Grande, MS. Especificamente para este manuscrito, tratou-se sobre o cuidado ofertado, a assistência recebida e o serviço.
Os resultados da pesquisa auxiliaram na identificação das dificuldades enfrentadas pela pessoa com deficiência e dos elementos suscetíveis a mudanças no atendimento dos serviços públicos de saúde na cidade, a fim de, futuramente, subsidiar ações que visem ao aprimoramento do cuidado ofertado às pessoas com deficiência e sua família.
2 MÉTODOS
Trata-se de uma pesquisa seccional descritiva de natureza qualitativa. Para a pesquisa, foram utilizados os dados, de 2016 a 2018, do Censo Municipal da Pessoa com Deficiência de Campo Grande, para fins de localização e recrutamento – via contato telefônico – dos participantes com deficiência e familiares. Os dados primários foram coletados em domicílio após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (Parecer n. 3096713 e CAAE: 02624018.0.0000.0021).
Para este estudo, foram incluídas pessoas com deficiência física, registradas no censo entre 2016 e 2018, com idades entre 18 e 65 anos. A faixa etária foi selecionada para minimizar o impacto de comorbidades mais frequentes em idades acima de 65 anos, conforme apontam estudos epidemiológicos nacionais e internacionais (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021; Romero; Maia, 2022).
Participou também da pesquisa um cuidador familiar da pessoa com deficiência física incluída, quando o participante com deficiência julgou pertinente assim proceder, caso ele fosse reconhecido como componente de seu cotidiano e rede de apoio necessária. Foram excluídas as pessoas com deficiência física que tivessem algum acometimento que comprometesse a compreensão e a expressão das informações pretendidas na coleta de dados.
Com base nos dados do Censo, a Secretaria Municipal de Saúde (SESAU) disponibilizou à pesquisadora uma lista geral de pessoas com deficiência, que foi organizada em planilhas de Excel, categorizada por regiões urbanas do município e numerada. A seleção dos participantes ocorreu de forma aleatória, por meio da ferramenta de acesso livre para sorteio, disponibilizada pelo site “https://sorteador.com.br/”, no período que compreendeu de abril de 2019 a fevereiro de 2020. As análises sobre os critérios de inclusão e exclusão foram feitas a partir das informações contidas no Censo e/ou por meio das informações relatadas durante conversa telefônica.
A coleta de dados se deu por meio de entrevista com cada participante, na qual constaram itens para a caracterização e uma questão inicial mobilizadora da expressão verbal direcionada para cada tipo de participante. Um teste piloto foi realizado para verificar a pertinência da questão norteadora, confirmando sua adequação aos objetivos e à metodologia da pesquisa. Além disso, anotações de campo foram feitas para registrar as percepções e compreensões das entrevistas, enriquecendo as reflexões e discussões.
O número de entrevistas realizadas foi definido com base na compreensão do fenômeno estudado e nos impactos do início da pandemia de covid-19 na coleta de dados. Foram avaliados os riscos de novas entrevistas domiciliares, tanto para participantes quanto para pesquisadores, e as dificuldades no uso de ferramentas tecnológicas para entrevistas online. Por isso, todas as entrevistas foram realizadas antes da instalação da pandemia.
Os dados de caracterização dos participantes foram analisados por meio de estatística descritiva. As entrevistas foram transcritas e organizadas com base na técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), que agrega trechos semelhantes dos discursos sem reduzir conteúdo, criando uma opinião coletiva direta. Foram utilizadas três figuras metodológicas: a) Expressão-chave: trechos literais que revelam a essência do depoimento e correspondem às questões da pesquisa; b) Ideias centrais: descrições sintéticas e fidedignas que sintetizam os sentidos dos discursos e agrupamentos homogêneos de expressões-chave; c) Discurso do sujeito coletivo: síntese composta por expressões-chave com a mesma ideia central (Lefèvre; Lefèvre, 2005).
Cada entrevistado foi codificado e numerado, de forma a associar cada tipo de participante: pessoa com deficiência (P) e familiar (F). O processo de análise utilizou três Instrumentos de Análise do Discurso baseados na metodologia de Lefèvre e Lefèvre (2005). No IAD1, as etapas iniciais incluíram a transferência integral das transcrições das entrevistas, a identificação e o destaque de expressões-chave relacionadas às questões de pesquisa e a identificação e categorização das ideias centrais. Após essas etapas, o IAD2 foi utilizado para reorganizar os dados e avançar na análise, envolvendo a criação de temas para agrupamentos de ideias centrais, com o registro das expressões-chave associadas, considerando os diferentes grupos de participantes. Por fim, para construir o Discurso do Sujeito Coletivo, o IAD3 foi aplicado com as colunas “expressões-chave” e “DSC”. Nessa etapa, as ideias centrais foram integradas em discursos coesos, eliminando repetições e particularismos, priorizando a fluidez e representatividade do conteúdo.
Os Discursos do Sujeito Coletivo foram analisados sob duas perspectivas. A primeira baseou-se na literatura pertinente, contextualizando os dados com estudos já realizados. A segunda focou nas representações sociais identificadas nos discursos, utilizando a Teoria das Representações Sociais, as quais representam formas de conhecimento do senso comum, emergindo da interação social como sistemas de valores, ideias e práticas que dão sentido à realidade e orientam a comunicação entre os indivíduos. Essas representações transformam o desconhecido em algo familiar, moldando percepções e atitudes diante de objetos, situações e fenômenos do cotidiano (Moscovici, 2011).
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
No total, foram realizados 250 sorteios, que correspondem ao número de tentativas de recrutamento de pessoas com deficiência. Em relação às ligações realizadas, em alguns casos, as informações que constavam no censo estavam incompletas, equivocadas ou desatualizadas. Por isso, foram esclarecidos – durante o contato telefônico – a inabilidade de comunicação, o falecimento, a institucionalização, a alteração do número de telefone que não pertencia mais à pessoa com deficiência e a mudança de residência para outra cidade. Em destaque, houve a ocorrência de 70 ligações não completadas, o que aponta a dificuldade do município em contatar as pessoas com deficiência cadastradas no censo municipal, com impacto na atualização dos dados, no acompanhamento situacional e na inserção nas políticas públicas que se fizerem necessárias.
Entre os contatos, houve oito recusas em participar da pesquisa, sendo que cinco pessoas argumentaram não terem interesse, duas justificaram que não utilizavam serviço público e uma não se identificava como uma pessoa com deficiência. Foram entrevistadas treze pessoas com deficiência, entre 28 e 64 anos, sendo 6 homens e 7 mulheres. Participaram ainda oito cuidadores familiares, 90% são do sexo feminino, com idade média de 46 anos.
Após a análise descrita anteriormente, os DSC foram organizados e discutidos por eixos temáticos, alinhados aos objetivos da pesquisa. Neste artigo, serão apresentadas as ideias centrais: atendimento, funcionamento dos serviços e infraestrutura, que correspondem ao eixo temático “Cuidado: a assistência e o serviço”.
3.1 Atendimento
As pessoas com deficiência reconhecem, em sua maioria, a boa qualidade do serviço recebido a partir de experiências em que se sentiram bem atendidas e encontraram os serviços esperados. No entanto, revelam que o atendimento, muitas vezes, é cerceado e afetado por barreiras atitudinais que incluem a discriminação pela aparência e pelo capacitismo.
O fato de os profissionais não saberem lidar com a pessoa com deficiência pode demonstrar despreparo, mas também o entendimento ou pré-julgamento de inabilidade e incompetência da pessoa com deficiência – ao presumir que ela precisa de ajuda para subir um degrau, ao referir-se somente ao acompanhante durante o atendimento e ao atribuir o olhar de piedade percebido pela pessoa com deficiência. Outras falhas são apontadas, como não examinar suficientemente e não considerar a deficiência a ponto de resultar em condutas de cuidado inadequadas.
Eu, muitas vezes, já me senti discriminado. Te olham de cara feia. Às vezes, te olham torto. Tem muitos que, às vezes, não olham pra gente, assim do jeito que a gente é, né? Tem muitos que não olham. Olham com pena, com alguma coisa do tipo. Preconceito. Discriminação é o que mais tem. [...] Ela não fala com a pessoa, já fala com quem está atrás dela. Com quem tá cuidando dela. E aí deixa ela à parte (P1, P4, P5, P7, P9, P12).
Segundo Moscovici (2011), as representações se constroem pela maneira como o conhecimento é interpretado pelos indivíduos mediante a história e as dimensões socioculturais, sendo assim inseridas nas práticas, nas linguagens e nas relações sociais. Nesse sentido, a representação social dos profissionais sobre a deficiência influencia em seu comportamento e na condução de seu trabalho, em uma compreensão predominantemente depreciativa sobre a deficiência, culturalmente construída ao longo da história (Moises; Stockmann, 2020). Além disso, a adoção do modelo médico continua a amparar algumas práticas de cuidado, focadas na deficiência como uma limitação biológica que consolida o ponto de vista do capacitismo, enraizado em um sistema de pensamento que tem como referência a reprodução da concepção de um padrão normativo, que concebe, na deficiência, a noção de disfuncionalidade corporal, de incapacidade e de inferioridade (Campbell, 2008).
Para além dos aspectos que podem estar relacionados à competência profissional e às condições de trabalho, é possível afirmar que tanto o desconhecimento sobre a deficiência como as barreiras atitudinais com práticas capacitistas impedem que as pessoas com deficiência recebam uma tratativa digna e cuidados de qualidade. Isso ocorre porque ambos podem levar o profissional a desconsiderar informações relevantes por não saber reconhecê-las, por subestimá-las ou por simplesmente não ouvir e legitimar a pessoa com deficiência durante o processo de cuidado, contribuindo para a perpetuação do contexto de invisibilidade e desvalorização a que ainda estão submetidos na sociedade (Kilic et al., 2019; Othero; Ayres, 2012).
O cuidador familiar demonstrou contentamento com a qualidade do atendimento, indo ao encontro dos argumentos apresentados pela pessoa com deficiência. Em contraponto, culpabilizou o sistema de saúde por sua insatisfação, caracterizando-o como falho, problemático e negligente. Indicou também que: a postura e a tratativa recebida foram, em algumas vezes, grosseiras; a comunicação, deficitária; e os profissionais acabaram por não se comprometer com as demandas assumidas. É possível dizer que a falta de comprometimento do profissional pode estar relacionada a uma postura individual e circunstancial ou à existência de complicadores para o desempenho da tarefa em questão.
Algumas dificuldades assistenciais podem ser identificadas no discurso, entre elas a da comunicação, da informação e, consequentemente, de atendimento às expectativas e demandas.
Então, tem alguns pontos que precisam ser melhorados, principalmente atendimento, a comunicação. O como falar com as pessoas. Eu acho isso muito importante. A fisioterapeuta não deu retorno. Não tem aquele compromisso, comprometimento de estar dando o retorno para pessoa que precisa. Esquece. Então isso eu acho falha no atendimento a essas pessoas (P1, P4, P5, P7, P9, P12).
Segundo Schraiber e Mendes-Gonçalves (2000), a demanda é caracterizada pela busca ativa por intervenção e cuidados de saúde para algo em que o indivíduo acredite que precisa ser melhorado. As necessidades de saúde originadas dessa demanda dependem de ações multiprofissionais, interdisciplinares e intersetoriais, ou seja, de ações integradas que envolvam o contexto social e cultural do indivíduo (Cecilio, 2006).
A noção da importância de ações integradas no cuidado, que não se restrinjam a apenas um serviço e a um profissional, pode estar comprometida pelo cuidador familiar, que representa, na imagem do profissional, sua única fonte de atenção e cuidado, originada do paradigma médico que o coloca na posição de detentor de conhecimento e instrumento de cura (Campbell, 2008; Mota; Bousquat, 2021).
Assim, toda responsabilidade, que por vezes depende de ações intersetoriais, pode tornar-se uma sobrecarga de trabalho ao profissional e comprometer a sua postura. Mudanças de conceitos e de práticas de saúde precisam ser adotadas para que a integralidade da atenção seja atingida. Para isso, um dos requisitos é qualificar, instrumentalizar e oportunizar o profissional, para que ele seja capaz de acompanhar os resultados de suas ações de maneira responsabilizada e dialogada com outras dimensões do processo saúde-doença (Ceccim; Feuerwerker, 2004).
Logo, é imprescindível o estabelecimento de diretrizes factíveis e de processos de trabalho saudáveis e claramente delimitados que prevejam o acesso a informações, o acolhimento, o encaminhamento e o acompanhamento das demandas de maneira organizada e efetiva, junto com outros agentes dentro do processo de cuidado. Ademais, o sistema de saúde e de outras políticas de cuidado precisam ser capazes de absorver essas demandas, atendendo-as para a promoção do cuidado integrado.
Outro aspecto refere-se à vida com deficiência – a qual contempla elementos particulares da pessoa com deficiência e de sua família como rede de apoio e ainda é pouco discutida e valorizada nas proposições práticas de saúde (Othero; Ayres, 2012). Isso pode ser verificado no discurso do cuidador familiar, ao desabafar e se referir às dificuldades em levar a pessoa com deficiência a um determinado atendimento de saúde. “Eles não querem saber. Só quem vive sabe o que se passa. Fácil você falar ‘traz a pessoa’, mas você não sabe o que que você tá enfrentando até você chegar lá. É difícil” (F1, F3, F4, F6, F7, F8).
O relato corrobora a ideia de que os processos de funcionamento do sistema de saúde, o serviço e a conduta profissional, por vezes, não são eficazes em lidar com questões que envolvam as especificidades do cotidiano da pessoa com deficiência, que enfrenta diversas barreiras no desempenho de suas atividades diárias. Portanto, ações de qualificação que visem sanar essa problemática desconsiderada nas intervenções práticas de saúde precisam ser instauradas e fortalecidas na formação profissional.
3.2 Funcionamento dos serviços
De modo geral, em relação ao funcionamento dos serviços, os participantes apontam criticamente para características como a demora no fluxo de atendimento – com a presença de longas filas e a espera para o atendimento, consultas, realização de exames e procedimentos de alta complexidade. Por conseguinte, a imagem de um serviço ruim e vergonhoso, ofertado por um sistema avaliado como indiferente, somado à aflição sentida na busca pelo cuidado, leva a pessoa com deficiência a desistir de procurar atendimento por causa das falhas experienciadas em seu funcionamento.
Passar por todo aquele procedimento e o lugar tá cheio. A gente faz o cadastro e lá a gente fica. Eles não atendem rápido. Às vezes, tem que estar brigando. Eles nem ligam. Às vezes, está com muita dor; às vezes, passa mal, desmaia, e nem liga. E a gente fica sem ter o que fazer. Pra você marcar uma consulta é um mês, e fila é a mesma coisa. Isso é muito ruim. Então eu, aqui no posto mesmo, eu quase não procuro mais (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P10, P11).
Problemas no custeamento da rede de serviços e da remuneração de seus trabalhadores permitem o surgimento de um cenário fragilizado, com recursos humanos, físicos e tecnológicos insuficientes, até mesmo inadequados para atender à população. Os modelos de financiamento e de organização dos sistemas de saúde têm sido caracterizados por um crescente desmonte do serviço público e pelo estímulo da procura pelo mercado de saúde. Este é fortalecido pela ideologia da privatização por um Estado que, dependendo da conjuntura política vigente, tende a privilegiar o setor privado com subsídios e desonerações (Figueiredo et al., 2018). Acerca disso, o cuidador familiar compreende que “o SISREG foi o pior sistema que puderam inventar para o pobre, não ajuda em nada, só piora” (F1, F3, F4, F7, F8) – ele expressa a representação social de que o Sistema Único de Saúde (SUS) existe somente para o pobre.
É possível dizer que, em vista disso e da compreensão compartilhada por Moscovici (2011), a representação social é um dos meios para a captação do mundo concreto a partir do campo simbólico e das vivências cotidianas. Paim (2018) argumenta que, atualmente, o SUS real em parte se apresenta como o SUS para pobres, o que se institui como senso comum não somente da população, mas dos gestores, dos políticos, da mídia e dos profissionais de saúde.
Essa representação social pode ser justificada pelo fato de que os serviços privados de saúde são utilizados por uma parcela da população capaz de pagar pelos seus custos, restando à população mais vulnerável a personificação de principais usuários dos serviços públicos de saúde. Consequentemente, como dito anteriormente, diante da fragilidade estrutural e organizacional do SUS, estabelece-se uma relação de desigualdade no acesso à saúde, condicionada às circunstâncias socioeconômicas do indivíduo (Figueiredo; Prado; Medina; Paim, 2018).
Outra questão relevante foi apontada pelo cuidador familiar, sobre o modelo adotado na reabilitação, em específico da fisioterapia, na rede especializada, que acaba por não ser resolutivo em suas demandas.
Eu tenho que pagar fisioterapia particular, porque a fisioterapia, pra você ir, você sai daqui, leva um tempo pra colocar no carro, e chega lá, faz meia hora. Meia hora não vai resolver. Aí fiz terapia do pé. Mas você faz 10 dias. Aí você passa dois anos. Como vai solucionar isso aí? Vai adiantar? (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P10, P11).
Isso ocorre porque, conforme exposto no DSC e experienciado pela pesquisadora em uma vivência de trabalho em uma unidade do município que especializada em reabilitação, o modelo está fixado em dez atendimentos de trinta minutos, encaixado em protocolos pré-definidos, sem considerar o projeto terapêutico singular e o prognóstico do paciente, possivelmente por causa da sobrecarga de demanda, escassez de recursos e necessidade produtiva.
Do ponto de vista do cuidado integrado, o planejamento terapêutico deve incorporar contribuições interdisciplinares, por meio da escuta qualificada que envolve o acolhimento, da postura ética profissional, da escuta das queixas do usuário e do reconhecimento do seu protagonismo no processo saúde-doença. Contudo, alguns desafios estão sendo impostos aos profissionais por sistemas institucionais que valorizam a produção quantitativa em detrimento da qualidade (Miranda; Coelho; Moré, 2012).
Destaca-se, nesse sentido, a necessidade de ir além do modelo médico para garantir que o profissional não se torne um mero executante de demanda e para que se coloquem em prática as diretrizes do cuidado humanizado. Logo, faz-se urgente a reavaliação desse tipo de modelo assistencial por meio da reflexão, problematização e conscientização de todos: profissionais, gestores, usuários e responsáveis pela elaboração de políticas públicas de cuidado.
Em complementação, a forma como o funcionamento para o acesso aos serviços necessários está condicionada a processos burocráticos excessivos é mencionada pelo acúmulo de trâmites e documentos para solicitar atendimentos, para retirada de materiais, insumos, equipamentos, exames, laudos e receitas, os quais geram desconforto em todos os participantes pela morosidade, pela inadequação e pela dificuldade em compreender e acessar todas as etapas do processo.
O remédio, não peguei, porque tem que levar no posto de novo, passar pelo médico, pra ele tirar esse nome daqui pra passar pra uma receita do posto. Mas gente, eu quero só um remédio, não quero uma folha. É difícil. O meu acesso, como auxiliar, pra diversas coisas dificultam também. Pra pegar lâmina, só a PcD pode ir. Eu não consigo levar, entregar os documentos pra ela. A parte do posto de saúde, se fosse pra somente, por não conhecer ninguém, chegasse ali e pedisse pra alguém vir aqui em casa ou pra pegar um material, alguma coisa, é uma burocracia muito grande (F1, F3, F4, F7, F8).
Eu acho muito burocrático, muita burocracia que não serve pra nada. A burocracia empurra a população com a barriga. Eu acho que podia facilitar um pouco a vida da gente, ajudaria bastante. Não é todo mês que eu vou lá, e o pessoal procura papel, e vai papel, procura papel pra achar se ele tem uma autorização pra pegar. O tempo que eles levam pra atender já tinha atendido três, quatro pessoas (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P10, P11).
Conforme abordado em Moscovici (2011), a representação social é formada a partir das interações e dos contextos sociais, focada no funcionamento do pensamento cotidiano. Assim, a burocracia é vista como intrínseca ao serviço público pelos participantes da pesquisa, em uma representação social que traduz a imagem do burocrático como algo incompetente, ineficiente, irracional, moroso, improdutivo e inútil, sendo tomada como uma verdade construída por meio das experiências relatadas durante o uso dos serviços.
Um primeiro aspecto importante da construção dessa representação ocorreu pela incompreensão de sua utilidade e de seu objetivo. Outro aspecto envolveu o fato de ter que lidar com a maneira como a burocracia está organizada e é processada. Afinal, por muitas vezes, ela não é estabelecida de forma praticável diante das diversidades e adversidades do contexto e das especificidades de cada indivíduo.
A pessoa com deficiência, em sua maioria, não tem garantida a acessibilidade, considerada em seus vários aspectos. Por conseguinte, o cuidador familiar enfrenta dificuldades em ser reconhecido e legitimado dentro do processo burocrático para poder dar o suporte necessário, além de, muitas vezes, ser obrigado a adequar o seu cotidiano e as suas atividades, nem sempre passíveis de mudança. “Eu não consigo levar, entregar os documentos pra ela. Independente se eu pudesse, não daria, porque somente de manhã é realizado esse procedimento. E pra eu trocar de horário lá no serviço não tem como. Eu tenho horário fixo, tanto pra entrar, quanto pra sair.” (F1, F3, F4, F7, F8).
Segundo Abrucio e Loureiro (2018, p. 25),
[...] a constituição da burocracia moderna foi um processo de criação de capacidades administrativas orientado politicamente, em busca de aparato estatal com melhor desempenho e de accountability republicana – isto é, mais responsabilizado em termos da probidade no manejo da coisa pública.
Ou seja, por meio da burocracia, cria-se uma racionalização organizacional para estabelecer um caráter público, regido por princípios de hierarquia funcional e por normas e procedimentos para garantir protocolos de atuação, estabelecendo critérios universais de funcionamento e dando acesso igualitário a todos os cidadãos.
Exemplificando esse contexto, destaca-se no DSC da pessoa com deficiência o impedimento de acesso à vacina, porque não foi apresentado um laudo atestando a deficiência. Mediante as deficiências chamadas invisíveis, justifica-se a necessidade de um documento, contudo fica o questionamento de sua exigência diante do óbvio, explicitado no relato: “Até questionei, ‘mas para que o laudo?’ ‘Para comprovar que você é deficiente’. Fica um negócio meio chato, né? Eu, dentro do posto de saúde, tendo que comprovar para o médico que eu sou deficiente” (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P10, P11).
Segundo Beltrão (1984), o serviço público transformou-se em um organismo centralizado, insensível e desumano diante de um apego exagerado ao formalismo que fiscaliza e valoriza mais o documento do que o ser humano. Porém, o que a burocracia pública precisa garantir é a neutralidade, bem como a impessoalidade perante o patrimonialismo, além de ser capaz de produzir de maneira técnica e eficaz a melhor ação administrativa (Abrucio; Loureiro, 2018).
Todavia, os discursos demonstram, em parte, uma incompatibilidade com a prática, sendo indispensável uma avaliação para que sejam implementadas mudanças na maneira como a burocracia pública é planejada e executada, garantindo a humanização no atendimento e a diminuição da exigência de documentos. É preciso disponibilizar a informação em formato simplificado, acessível, compreensível, ao mesmo tempo em que o seu processamento seja capaz de atender à eficiência e à funcionalidade esperadas.
Logo, de modo geral, os DSC dos participantes indicam dificuldades no funcionamento dos serviços e, consequentemente, no acesso ao atendimento. Por fim, é possível refletir que a conjuntura descrita faz com que os serviços públicos não consigam cumprir seu papel e sejam desacreditados pela população.
3.3 Infraestrutura
A temática da infraestrutura remete às condições substanciais para a oferta dos serviços básicos de saúde. A pessoa com deficiência e o cuidador familiar alertam para a precariedade do atendimento devido à falta de recursos humanos e físicos, que desestabilizam e até mesmo impedem o acesso aos cuidados de saúde.
No geral, os principais problemas encontrados são a falta de médicos e a troca constante desses profissionais, a falta de medicamentos e insumos diversos, a não existência de tipos específicos de exames e os procedimentos cirúrgicos concedidos pelo SUS – além da fragilidade das condições estruturais dos prédios, exemplificados pela ausência de água e ventilação, bem como pela inadequação e insuficiência de espaço e de mobiliários.
É reconhecido que a consolidação da Atenção Primária em Saúde representa um dos avanços mais relevantes do SUS enquanto política pública. Contudo, estudos evidenciam que a expansão do atendimento na atenção primária, representada por seu desdobramento com a criação da Estratégia da Saúde da Família, ocorreu de maneira heterogênea e com grandes desafios financeiros que impactam o planejamento e as práticas de cuidado.
As restrições orçamentarias do SUS são visualizadas na falta de medicamentos, vacinas e na provisão de pessoal, ao mesmo tempo em que a demanda tem aumentado em um contexto de recessão econômica e de desemprego. Por isso, tanto a reforma quanto a ampliação das UBS dependem de uma política integrada, comprometida e que projete equipar, qualificar e renovar os serviços de saúde (Facchini; Tomasi; Dilélio, 2020).
Na conjuntura visualizada, a atuação do poder público é criticada e culpabilizada: “Isso aí não é erro de gerência do posto, não é erro de enfermeira-chefe do posto, não é erro de nada. Isso é erro do poder público, que toda semana falta médico, ou toda semana troca um médico” (P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P13). “Então se a gente fosse só depender do serviço público pra isso, a PcD não estaria como está hoje” (F2, F3, F4, F5, F8).
Importante destacar que as problemáticas levantadas impactam o atendimento de toda a população que está submetida à mesma infraestrutura de serviço. Contudo, a pessoa com deficiência enfatiza que “no meu caso, pior ainda” (P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P13). As particularidades da pessoa com deficiência são explicitadas no relato sobre ter uma patologia crônica associada à deficiência, pela mobilidade reduzida e pela dificuldade em permanecer muito tempo em pé ou sentado em cadeiras desconfortáveis. Isso ocorre porque essas condições podem gerar incômodos e dores ainda maiores do que em pessoas sem algum tipo de impedimento físico e/ou sensorial.
Você tem que chegar lá seis horas da manhã pra você ficar na fila. E sabe onde você fica na fila? No sol quente, do lado de fora, aí no meu caso, em pé com par de muletas. Aí você vai lá pra dentro, e você vai lá sentar numa cadeira dura. E dali a pouco, você não aguenta mais ficar lá sentado. Eu não aguento, eu já cheguei a abandonar consulta por causa disso, por causa de dor, de não aguentar (P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P13).
A vivência da pessoa com deficiência em espaços públicos ilustra que algumas dificuldades estão para além da deficiência, por estarem condicionadas a questões macrossociais (Amorim; Liberali; Medeiros Neta, 2018). A precariedade da infraestrutura potencializa as adversidades de acesso por configurar-se como mais um empecilho, o que prejudica ainda mais o desempenho da pessoa com deficiência na efetivação de seu cuidado. Mediante a realidade de uma infraestrutura carente e prejudicada, os participantes expressam o seu descontentamento sobre o serviço recebido e sobre a maneira de ofertá-lo, caracterizado nos discursos: “muito ruim” (P2, P3, P4, P5, P6, P8, P9, P13), “é um desgaste você sair, ir lá, não tem” (F2, F3, F4, F5, F8).
Como visto, o funcionamento dos serviços, discutido na ideia central anterior, está intrinsicamente relacionado à infraestrutura do serviço. No entanto, ainda que as percepções – predominantemente negativas desses aspectos – constem nos DSC sobre o serviço, o DSC da pessoa com deficiência e do cuidador familiar é predominado pela satisfação sobre o atendimento recebido.
Diante desse panorama, é possível compreender que os profissionais estão desempenhando sua atividade laboral dentro de um contexto que não os beneficia, depositando apenas em sua força de trabalho grande parte da responsabilidade sobre o atendimento prestado, que está sendo reconhecido pelos usuários. Porém, trabalhar em condições degradantes pode ter um custo para o profissional, tanto no exercício de sua função, como para a sua própria saúde.
O adoecimento entre os trabalhadores em saúde tem sido um tema amplamente debatido, tratando-se de um processo que inclui fatores fisiológicos, psicossociais, econômicos e referentes ao ambiente de trabalho (Nascimento, 2015). Mais especificamente, um estudo realizado sobre o adoecimento dos trabalhadores da Estratégia Saúde da Família, em um município da região Centro-Oeste do Brasil, evidenciou um risco crítico relacionado aos fatores de organização de trabalho, relações socioprofissionais e condições de trabalho.
Segundo os autores, esse risco pode estar associado à infraestrutura do serviço, como a falta de insumos e materiais, e também à precariedade nas instalações e nos mobiliários. Apesar disso, ao se avaliarem prazer e sofrimento no trabalho, os índices apresentaram-se satisfatórios no quesito liberdade, demonstrando que, mesmo inseridos em um ambiente de trabalho precário, os profissionais conseguem se sentir livres para desempenhar suas atividades no atendimento à saúde (Mello et al., 2020).
4 CONCLUSÃO
As fragilidades identificadas nas políticas públicas, nos serviços e na assistência prestada às pessoas com deficiência foram condizentes com a literatura científica, reforçando a relevância de superar barreiras estruturais e organizacionais. Dentre os desafios enfrentados na execução deste estudo, destaca-se o impacto da pandemia de COVID-19, que embora tenha limitado a coleta de dados, não comprometeu a qualidade das informações obtidas. Os resultados alcançados revelaram uma rica compreensão das experiências dos participantes e atenderam plenamente aos objetivos propostos.
A análise revelou que a organização e o funcionamento dos serviços de saúde muitas vezes não atendem às reais necessidades dos usuários, os quais são prejudicados por processos burocráticos excessivos e modelos de atenção frequentemente desconectados das diretrizes de cuidado humanizado e integral. Os problemas relacionados à infraestrutura – como a falta de recursos financeiros, humanos e materiais – configuram um ambiente desfavorável que impacta negativamente o processo de cuidado.
Uma grande parte dos problemas identificados pode ser superada por meio de mudanças que precisam ser propostas e implementadas pelo poder público, em suas diferentes esferas. É fundamental aprimorar o financiamento dos serviços públicos e promover estudos adicionais que detalhem as fragilidades e potencialidades da rede de atenção à saúde existente – especialmente no atendimento às pessoas com deficiência e suas famílias – a fim de subsidiar e orientar ações resolutivas por parte dos gestores locais.
Apesar das limitações, o estudo oferece contribuições significativas ao integrar a análise a literatura, assim como às representações sociais, ao valorizar às vivências de pessoas com deficiência e seus cuidadores. A aplicação da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo destacou-se como um método eficaz, permitindo captar com profundidade as percepções e os desafios enfrentados pelos participantes. Os achados ressaltam o potencial transformador de ações voltadas à capacitação profissional e à reestruturação dos serviços, fundamentais para a construção de políticas públicas mais equitativas e práticas de cuidado inclusivas.
Por fim, este estudo reforça a necessidade de estratégias integradas e baseadas em evidências que superem os desafios históricos enfrentados por essa população. A superação do capacitismo e a promoção da igualdade de condições demandam esforços coordenados para qualificar profissionais e redesenhar os serviços de saúde, proporcionando um cuidado alinhado às diretrizes de equidade e integralidade. Pesquisas futuras podem explorar comparações regionais e avaliar a efetividade de intervenções específicas, contribuindo para o avanço do conhecimento e para a melhoria da assistência prestada às pessoas com deficiência no contexto da saúde pública.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Ago 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2025
Histórico
-
Recebido
23 Maio 2024 -
Revisado
20 Jan 2025 -
Aceito
13 Fev 2025
