Resumo
As comunidades ribeirinhas do Pantanal Sul-Mato-Grossense enfrentam exclusão histórica e vulnerabilidades estruturais no acesso a direitos fundamentais. Este estudo teve como objetivo descrever indicadores sociodemográficos, econômicos e de saúde das comunidades ribeirinhas do Tramo Norte do Rio Paraguai, em Corumbá, MS, com base nos referenciais do capital humano e da exclusão social. Trata-se de estudo com abordagem metodológica mista, composto por análise retrospectiva de dados da Marinha do Brasil e etapa prospectiva de delineamento transversal, realizada entre 24 e 31 de outubro de 2022, em cinco comunidades, com 84 participantes. Utilizou-se a técnica da Estimativa Rápida Participativa. Predominaram adultos (55,9%), mulheres (57,1%) e autodeclarados pretos/pardos (78,6%). O analfabetismo foi de 14,6% entre adultos e 64,3% entre idosos. A renda per capita média foi de R$ 644,44, com informalidade laboral em 59,3%. A fecundidade média foi de 4,9 filhos por mulher, e 29,1% usavam contraceptivos. A cobertura vacinal incompleta atingiu 26,2%, e 36,9% apresentaram sobrepeso ou obesidade. A dependência do SUS foi de 97,6%, e 44,1% não tiveram atendimento médico recente. Conclui-se que há vulnerabilidades interseccionais que exigem políticas públicas territorializadas e intersetoriais.
Palavras-chave
vulnerabilidade social; indicadores de saúde; desigualdades em saúde; saúde reprodutiva
Abstract
Riverside communities in the southern Pantanal of Brazil face historical exclusion and structural vulnerabilities in accessing fundamental rights. This study aimed to describe the sociodemographic, economic, and health indicators of riverside communities in the Northern Reach of the Paraguay River, Corumbá, MS, using the frameworks of human capital and social exclusion. A mixed-methods study was conducted, combining a retrospective analysis of data from the Brazilian Navy and a prospective cross-sectional phase between October 24 and 31, 2022, involving five communities and 84 participants. The Rapid Participatory Appraisal technique was employed. Most participants were adults (55.9%), women (57.1%), and self-identified as Black or Brown (78.6%). Illiteracy affected 14.6% of adults and 64.3% of older adults. The average per capita income was R$644.44, with 59.3% engaged in informal employment. The average fertility rate was 4.9 children per woman, and only 29.1% reported using contraceptives. Incomplete vaccination was reported by 26.2% of participants, and 36.9% were overweight or obese. Dependence on SUS (Brazil’s Unified Health System) reached 97.6%, and 44.1% had not received medical care in the past two years. The findings reveal intersecting vulnerabilities in access to healthcare, education, and income, highlighting the need for integrated, place-based public policies.
Keywords
social vulnerability; health indicators; health inequalities; reproductive health
Resumen
Las comunidades ribereñas del Pantanal sur de Brasil enfrentan exclusión histórica y vulnerabilidades estructurales en el acceso a derechos fundamentales. Este estudio describió indicadores sociodemográficos, económicos y de salud en comunidades del tramo norte del río Paraguay, en Corumbá, MS, según los marcos del capital humano y la exclusión social. Se realizó un estudio de métodos mixtos, con análisis retrospectivo de datos de la Marina de Brasil y una fase prospectiva transversal entre el 24 y el 31 de octubre de 2022, en cinco comunidades, con 84 participantes. Se utilizó la técnica de Estimación Rápida Participativa. La mayoría eran adultos (55,9%), mujeres (57,1%) y personas autodefinidas como negras o pardas (78,6%). El analfabetismo afectaba al 14,6% de los adultos y al 64,3% de los mayores. El ingreso per cápita promedio fue de R$ 644,44, con 59,3% en empleo informal. La fecundidad fue alta (4,9 hijos por mujer) y solo el 29,1% usaba anticonceptivos. El 26,2% tenía vacunación incompleta y el 36,9% sobrepeso u obesidad. El 97,6% dependía del SUS, y el 44,1% no recibió atención médica en los últimos dos años. Los hallazgos evidencian vulnerabilidades interseccionales que exigen políticas públicas integradas y contextualizadas territorialmente.
Palabras clave
vulnerabilidad social; indicadores de salud; desigualdades en salud; salud reproductiva
1 INTRODUÇÃO
As desigualdades sociais no Brasil assumem formas particularmente agudas em territórios periféricos e de difícil acesso, como as comunidades ribeirinhas distribuídas ao longo dos grandes rios. Inseridas em contextos de baixa densidade populacional, fragmentação institucional e histórico descompasso entre políticas públicas e realidades locais, essas populações enfrentam barreiras sistemáticas ao exercício de direitos fundamentais, como acesso à saúde, educação, saneamento e renda (Paim et al., 2011). As comunidades ribeirinhas do Tramo Norte do Rio Paraguai no município de Corumbá, localizado no estado de Mato Grosso do Sul, apresentam características sociais, econômicas e culturais singulares. Dependentes do rio Paraguai para sua subsistência, essas populações tradicionais enfrentam desafios relacionados ao acesso à educação, à saúde e aos serviços básicos (Abdo et al., 2025).
Essas comunidades, situadas sob forte influência das dinâmicas fluviais de cheias e vazantes, estruturam sua vida cotidiana a partir de uma economia baseada na pesca artesanal, no extrativismo vegetal e na agricultura de subsistência. A cultura local carrega heranças significativas de povos indígenas, expressas nos hábitos alimentares, no uso de plantas medicinais e nas formas tradicionais de cuidado (Ferreira; Santos, 2021). No entanto, a ausência de infraestrutura mínima – como saneamento básico, energia elétrica e acesso regular à saúde – acentua o ciclo de exclusão. O deslocamento até a zona urbana, quando possível, depende de longas viagens fluviais que podem ultrapassar 500 km e vários dias de navegação, dificultando ainda mais a articulação com os serviços públicos essenciais (Gama et al., 2018).
Dados recentes da Pesquisa Socioassistencial de Mato Grosso do Sul (SEAD/MS, 2023) revelam que essas comunidades apresentam índices alarmantes em múltiplas dimensões do capital humano: elevada proporção de analfabetismo funcional, baixa escolarização média e grande dependência de transferências de renda. Corumbá, especificamente, apresenta baixo desempenho no Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades (IDSC-BR), com destaque negativo para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 1 – Erradicação da pobreza (nota 49,8) e ODS 3 – Saúde e bem-estar (nota 46,4), sinalizando fragilidades estruturais em áreas prioritárias para o desenvolvimento humano e social (SEAD/MS, 2023).
Embora existam estudos que documentem as condições de vida em comunidades ribeirinhas da região Norte do país (Gama et al., 2020), são escassas as investigações que explorem as especificidades das populações ribeirinhas do Pantanal Sul-Mato-Grossense. Tal lacuna compromete tanto o desenho de políticas públicas baseadas em evidências como a capacidade de mensurar e acompanhar o impacto das ações governamentais em contextos vulneráveis. Soma-se a isso a ausência de diagnósticos integrados que articulem dados socioeconômicos, de saúde, educação e território de forma intersetorial e aplicada (Buss; Pellegrini Filho, 2007).
Diante desse contexto, este estudo teve como objetivo descrever os indicadores sociodemográficos, econômicos e de saúde das comunidades ribeirinhas do Tramo Norte do Rio Paraguai, em Corumbá, MS, com base nos referenciais do capital humano e da vulnerabilidade social. Ao reunir dados primários e secundários, busca-se oferecer um diagnóstico territorializado que subsidie futuras estratégias intersetoriais, contribuindo para o aprimoramento de políticas públicas voltadas às populações tradicionais das águas. A experiência desenvolvida em parceria com o 6º Distrito Naval da Marinha do Brasil, por meio de ações itinerantes de saúde, também é examinada quanto às suas potencialidades e seus limites operacionais.
2 MATERIAIS E MÉTODOS
2.1 Desenho do estudo
Este estudo adotou uma abordagem metodológica mista, estruturada em duas etapas complementares: uma fase retrospectiva, baseada em dados secundários, e uma etapa prospectiva, com delineamento transversal. Inicialmente, foram analisados dados fornecidos pelo Comando do 6º Distrito Naval da Marinha do Brasil (Ladário-MS), referentes a ações anteriores de assistência à saúde nas comunidades ribeirinhas de Corumbá. Tais registros incluíam variáveis sociodemográficas básicas como idade, sexo, escolaridade e perfil de cobertura dos atendimentos. Essas informações retrospectivas foram essenciais para subsidiar o planejamento da etapa prospectiva, permitindo a definição prévia das comunidades a serem visitadas, a estimativa populacional de cada localidade, bem como a adaptação do instrumento de coleta às características locais previamente observadas.
Na segunda etapa, foi conduzido um diagnóstico situacional, com base na técnica da Estimativa Rápida Participativa (ERP), recomendada pela Organização Mundial da Saúde (Pepall; James; Earnest, 2006) e utilizada por autores no contexto latino-americano (Campos; Faria; Santos, 2010), por sua efetividade em cenários de vulnerabilidade social e logística limitada. Essa abordagem tem como vantagens o baixo custo, a agilidade na execução, a valorização do saber local e a promoção da articulação intersetorial. No presente estudo, a ERP foi operacionalizada em três fases: (1) análise de dados secundários, incluindo consulta a registros da Marinha, ao portal institucional (comflotmt.mar.mil.br), e entrevistas com profissionais da saúde envolvidos na Comissão ASSHOP – Outubro Rosa (17 a 24 de outubro de 2022); (2) entrevistas e exame físico, por meio de um questionário estruturado contendo variáveis demográficas, condições gerais de saúde, vacinação e antropometria; e (3) observação direta da área, com visitas domiciliares acompanhadas pela equipe técnica da Marinha.
Concluída a etapa diagnóstica, foi realizada a fase prospectiva do estudo, com delineamento transversal, concomitante às ações da Comissão ASSHOP do 6º Distrito Naval, a bordo do Navio de Assistência Hospitalar “Tenente Maximiano”, ao longo do Tramo Norte do Rio Paraguai.
2.2 Contexto geográfico e logístico
O estudo foi conduzido no Tramo Norte do Rio Paraguai, região composta por comunidades ribeirinhas localizadas no município de Corumbá, estado de Mato Grosso do Sul, com acesso exclusivamente fluvial. Os deslocamentos foram realizados por embarcações da Marinha do Brasil e voadeiras com motor de popa aos locais, cuja vasão das águas não comportava o navio. As localidades visitadas – Paraguai Mirim, Porto São Pedro, Fazenda Amolar, Barra de São Lourenço – encontram-se em áreas de difícil acesso, marcadas por isolamento geográfico, baixa cobertura de serviços públicos e vulnerabilidade social acentuada. O deslocamento total fluvial da equipe demandou planejamento operacional complexo e variabilidade nos tempos de percurso, influenciados pelas condições hidrológicas do Pantanal.
2.3 População e amostragem
A amostragem foi intencional e não probabilística, adequada à natureza exploratória do estudo e às restrições logísticas. Foram incluídos residentes permanentes das localidades visitadas, independentemente da faixa etária. A participação de menores de idade e de pessoas com deficiência cognitiva foi autorizada mediante consentimento do responsável legal. Indivíduos temporariamente presentes nas comunidades, como visitantes ou parentes em visita, foram excluídos.
As estimativas populacionais, com base em dados fornecidos pela Marinha do Brasil (6º Distrito Naval), foram: Paraguai Mirim: 40 habitantes (15 residências); Barra de São Lourenço: 70 habitantes (20 residências); Fazenda Amolar: 10 habitantes (5 residências); Porto São Pedro: 10 habitantes (2 residências); Porto São Francisco (não incluído na coleta): 8 habitantes (4 residências).
A amostra total obtida foi de 84 participantes, distribuídos proporcionalmente entre as comunidades visitadas. A representatividade relativa foi elevada, principalmente nas comunidades com menor densidade populacional.
O instrumento de coleta de dados aplicado aos participantes foi elaborado e baseou-se em um estudo conduzido no Estado do Amazonas (Gama, et al., 2018; Gama, et al., 2022) e contemplou variáveis: sociodemográficas (idade, sexo, raça/cor, estado civil, escolaridade e ocupação); condições de saúde autorreferidas (presença de doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, problemas cardiovasculares), uso de medicamentos contínuos e queixas clínicas gerais; acesso e utilização de serviços de saúde (tipo de atendimento predominante, se SUS ou privado, frequência de visitas por profissional de saúde nos últimos dois anos, local de referência para atendimento); saúde reprodutiva (para mulheres ≥ 12 anos), como idade da menarca, idade da primeira relação sexual, idade da primeira gestação, número de filhos, histórico de abortos, tipo de parto, uso atual de métodos contraceptivos; situação vacinal (verificação da carteira de vacinação, com ênfase nas vacinas contra hepatite B, dT [dupla adulto], influenza e vacinas pediátricas); e variáveis antropométricas e fisiológicas, como peso, altura, cálculo do índice de massa corporal (IMC) e medida da pressão arterial sistólica e diastólica.
2.4 Análise dos dados
Os dados foram digitados e validados em dupla entrada no software EpiData (versão 3.1, Lauritsen JM, Odense, Dinamarca). Foram realizadas análises descritivas, com cálculo de médias e desvios padrão para variáveis contínuas, e frequências absolutas e relativas para variáveis categóricas. As análises foram conduzidas no software Jamovi (Şahin; Aybek, 2019).
2.5 Considerações éticas
O estudo foi conduzido em conformidade com os princípios éticos estabelecidos na Declaração de Helsinque e a Lei n. 14.874/2024. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (CEP/UEMS), sob o parecer nº 75974323.7.0000.8030, registrado na Plataforma Brasil. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ou o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), com garantia de anonimato assegurada mediante a utilização de códigos alfanuméricos.
3 RESULTADOS
A expedição realizada entre 24 e 31 de outubro de 2022, no Tramo Norte do município de Corumbá, MS, visitou cinco comunidades ribeirinhas, totalizando 84 moradores entrevistados: Paraguai Mirim (n=15), Porto São Pedro (n=25), Fazenda Amolar (n=17), Barra de São Lourenço (n=25) e Porto Domingos Ramos (n=18). A composição demográfica revelou uma predominância de adultos na faixa etária de 19 a 59 anos (55,9%), seguida pelos idosos com 60 anos ou mais (16,6%). O sexo feminino foi o mais representativo (57,1%), e a maioria dos participantes se declarou pretos ou pardos (78,6%) (Tabela 1). Esses dados reforçam a caracterização da população como parte de povos tradicionais ribeirinhos reconhecidos pelo Decreto n. 6.040/2007 (Brasil, 2007).
3.1 Escolaridade e alfabetismo
Quanto ao nível educacional, observou-se um alto índice de analfabetismo, especialmente entre os adultos de 18 a 59 anos, em que 56,3% declararam ser analfabetos (iletrado). O tempo médio de estudo entre jovens de 18 a 29 anos foi de 5,2 anos, consideravelmente inferior à média estadual para a população rural, que era de 10,2 anos em 2022 (Tabela 1) (IBGE, 2024). Apesar de alguns indivíduos apresentarem níveis de escolaridade mais elevados, como ensino fundamental completo ou parcialmente cursado, não foi possível mensurar o analfabetismo funcional, que pode estar submerso entre esses grupos. Esses dados apontam para uma herança estrutural de exclusão educacional e comprometem o acesso à informação em saúde e à cidadania plena.
Perfil sociodemográfico e econômico da população ribeirinha do Tramo Norte, Corumbá, MS (n = 84)
3.2 Condições econômicas e determinantes sociais
As comunidades ribeirinhas estudadas apresentaram condições econômicas precárias, refletidas em múltiplos indicadores. A renda familiar média foi de R$ 1.939,40 e a renda per capita de R$ 644,44 – valores substancialmente inferiores à média estadual (R$ 2.949). Entre os entrevistados, 11 famílias viviam com menos de um salário-mínimo mensal, representando cerca de 13% da amostra em situação de pobreza relativa ou extrema.
A principal forma de subsistência é o trabalho autônomo e informal, exercido por 59,3% dos adultos economicamente ativos, com destaque para a pesca artesanal, sobretudo a coleta e venda de iscas (isqueiros). Apenas 5 participantes relataram vínculo formal de trabalho (CLT) ou emprego público.
Conforme pode ser observado na Tabela 1, a rede de proteção social é frágil: apenas 23,8% dos entrevistados relataram receber algum tipo de benefício governamental. Isso indica um vazio institucional de políticas sociais estruturantes, que se soma ao isolamento geográfico e à precariedade nos serviços educacionais e de saúde. A pobreza persistente restringe a continuidade escolar, dificulta o acesso a métodos contraceptivos e agrava os indicadores de morbidade, perpetuando um ciclo intergeracional de exclusão.
3.3 Saúde reprodutiva
Entre as 40 mulheres com idade reprodutiva, a taxa de fecundidade observada foi de 4,9 filhos por mulher — quase três vezes superior à média nacional (1,7 filhos). A idade média da coitarca foi de 16 anos e da primeira gestação, 18,4 anos, sugerindo elevada prevalência de gravidez na adolescência, embora o dado não tenha sido coletado diretamente. Somente 29,1% relataram uso de métodos contraceptivos modernos, e 48% das mulheres não faziam uso de qualquer forma de planejamento familiar. Ainda, 27,8% relataram ter vivenciado ao menos um aborto. Na Tabela 2 estão descritos mais detalhes.
3.4 Situação de saúde e acesso aos serviços
Em relação às condições de saúde, constatou-se que 97,6% da população depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), acessado principalmente por meio de ações itinerantes do 6º Comando Fluvial da Marinha do Brasil ou do Programa Municipal “Povos das Águas”. Cerca de 44,1% dos entrevistados não receberam atendimento médico nos últimos dois anos, apesar de muitos utilizarem medicamentos contínuos. Entre os adultos, 35,5% (n=22) relataram ter doenças cardiovasculares, sendo a hipertensão arterial sistêmica (HAS) a condição mais frequente, presente em 15 dentre os 22 casos.
3.5 Estado nutricional e vacinação
Os dados antropométricos revelaram altos índices de sobrepeso e obesidade, com Índice de Massa Corporal (IMC) médio de 25,9Kg/m2 entre adultos e 26,8 g/m2 entre idosos. A classificação corporal mostrou que 19% da população era obesa, 17,9% estavam com sobrepeso, 44% com peso adequado (eutrófico) e 19% com baixo peso. Além disso, 26,2% dos participantes não tinham o calendário vacinal completo, destacando-se déficits nas vacinas contra Hepatite B, dT (contra difiteria e tétano) e Influenza. Na Tabela 3, estão descritos os resultados do estado nutricional, vacinação e condições de saúde.
4 DISCUSSÃO
Os resultados obtidos nas comunidades ribeirinhas do Tramo Norte do Rio Paraguai, no município de Corumbá, MS, revelam um cenário multifacetado de vulnerabilidades sociodemográficas, sanitárias e econômicas. As evidências apresentadas dialogam amplamente com a literatura sobre populações ribeirinhas brasileiras, especialmente amazônicas, mas também evidenciam especificidades regionais que devem ser consideradas na formulação de políticas públicas.
A composição etária e racial observada nas comunidades do Tramo Norte de Corumbá, com predominância de adultos jovens (19–59 anos: 55,9%) e de pessoas autodeclaradas pretas ou pardas (78,6%), encontra paralelo em estudos realizados na Amazônia. Gama et al. (2022), ao analisarem comunidades ribeirinhas de Coari, AM, identificaram que 58,3% dos entrevistados tinham entre 18 e 29 anos e 53% eram do sexo feminino, o que confirma a juventude e a feminização parcial dessas populações. No entanto, a presença de 9,5% de indígenas em Corumbá confere uma configuração étnica distinta, vinculada à ocupação histórica do território pantaneiro por povos originários como os Guató, Terena e Bororo, o que diferencia este contexto das realidades amazônicas (Garnelo; Buttel, 2017; Freitas; Inhamuns, 2021).
Em relação à escolaridade, o cenário nas comunidades ribeirinhas do Pantanal evidencia uma desigualdade educacional persistente. Entre os jovens de 18 a 29 anos, o tempo médio de estudo foi de 7,7 anos (±4), valor significativamente inferior à média da população rural de Mato Grosso do Sul na mesma faixa etária, que era de 10,2 anos em 2020. Embora o índice de analfabetismo entre adultos de 18 a 59 anos seja de 14,6% – ainda expressivo – esse percentual salta para 64,3% entre os idosos, revelando uma exclusão estrutural mais acentuada nas gerações anteriores. Em comparação, o estudo de Gama et al. (2022), realizado em Coari, AM, identificou 9,8% de analfabetos e 31,5% dos participantes com dez anos ou mais de escolaridade, sugerindo um quadro relativamente menos crítico naquele contexto amazônico.
A persistência de baixos níveis educacionais, mesmo entre os mais jovens, reforça a hipótese de que essas comunidades seguem à margem da democratização do acesso à educação básica. Soma-se a isso a ausência de mensuração do analfabetismo funcional – caracterizado pela dificuldade de interpretar e construir textos mesmo entre indivíduos que conhecem o alfabeto –, o que pode indicar que parte dos participantes com escolaridade formal declarada permanece em condição de letramento insuficiente. Esse conjunto de evidências aponta para a necessidade urgente de políticas públicas direcionadas ao fortalecimento do letramento funcional e da educação continuada, com estratégias adaptadas às realidades territoriais e socioculturais dessas populações.
A dimensão econômica configura-se como um dos principais determinantes estruturantes da vulnerabilidade observada. A renda per capita média de R$ 644,44 e a presença de 13,1% das famílias com renda mensal inferior a um salário-mínimo evidenciam uma situação de pobreza relativa (IBGE, 2024). Esses valores estão significativamente abaixo da média estadual de Mato Grosso do Sul, estimada em R$ 2.949, segundo dados do IBGE. Em comparação com comunidades amazônicas, onde as rendas familiares são ainda mais baixas (Gama et al., 2018b), as comunidades pantaneiras podem apresentar uma leve vantagem, possivelmente atribuída à especialização na pesca de iscas como principal atividade econômica. No entanto, a informalidade praticamente universal das ocupações e a baixa cobertura por programas de transferência de renda (23,8%) evidenciam a fragilidade da proteção social e a ausência de políticas efetivas de inclusão produtiva.
No campo da saúde reprodutiva, os indicadores observados são motivo de preocupação. A taxa de fecundidade de 4,9 filhos por mulher é uma das mais altas reportadas entre populações ribeirinhas brasileiras. Estudos realizados no Médio Solimões (Cabral; Cella; Freitas, 2020) identificaram padrões reprodutivos semelhantes, mas com fecundidade inferior. A coitarca precoce (16 anos) e a baixa utilização de métodos contraceptivos (37,7%) configuram um panorama de vulnerabilidade reprodutiva acentuada, agravada pela limitação de acesso a serviços de planejamento familiar. A proporção de mulheres que relataram aborto (27,8%) alinha-se com tendências nacionais, mas sua ocorrência em contextos de escasso acesso à saúde indica exposição a riscos adicionais. A idade média da primeira gestação (18,4 anos), ainda que acima da adolescência estrita, reforça o início precoce da vida reprodutiva e seu impacto potencial na escolaridade e inserção produtiva das mulheres.
A análise do acesso aos serviços de saúde confirma o papel do isolamento geográfico como barreira central. A dependência quase absoluta do Sistema Único de Saúde (97,6%) e o fato de que 44,1% da população não recebeu qualquer atendimento médico nos últimos dois anos são consistentes com achados em populações amazônicas (Gama et al., 2020; Lima & Costa, 2019). No caso do Pantanal, o custo médio de deslocamento de R$ 500 para buscar atendimento em Corumbá impõe uma barreira econômica intransponível para muitos. As ações itinerantes da Marinha do Brasil, embora fundamentais, ainda carecem de institucionalização e continuidade, sendo insuficientes para garantir integralidade do cuidado.
A avaliação do estado nutricional aponta um paradoxo crescente: a presença simultânea de desnutrição (19% com baixo peso) e excesso de peso (36,9% com sobrepeso ou obesidade). Esse fenômeno, já reconhecido como dupla carga nutricional, vem sendo identificado em diversas populações rurais brasileiras, indicando mudanças alimentares associadas à transição nutricional (Souza, 2017; Gama et al., 2022). O IMC médio dos adultos (25,9) situa-se na faixa de sobrepeso, refletindo alterações no padrão de consumo alimentar e na redução de práticas físicas tradicionais, especialmente em populações economicamente vulneráveis.
Outro achado relevante diz respeito à cobertura vacinal: 26,2% dos participantes não apresentavam esquema vacinal completo, com lacunas importantes nas vacinas contra Hepatite B, dT e Influenza. Tais falhas são particularmente críticas em contextos de difícil acesso, onde surtos de doenças imunopreveníveis podem ter impacto mais severo. A ausência de estudos sistemáticos sobre vacinação em populações ribeirinhas torna esse dado ainda mais valioso para o planejamento de ações específicas de imunização.
Em conjunto, os resultados reforçam a necessidade de políticas públicas intersetoriais que reconheçam as especificidades territoriais, culturais e econômicas das populações ribeirinhas. A atuação da Marinha do Brasil como estratégia de saúde itinerante representa uma alternativa viável, mas que deve ser articulada a sistemas locais de atenção primária e a programas sociais continuados (Garnelo; Buttel, 2017; Schweickardt; Barros; Franco, 2016). Além disso, é imperativo que a atuação do Estado avance da lógica de cobertura emergencial para o desenvolvimento de ações sustentáveis, com base na equidade territorial.
Embora este estudo tenha utilizado amostragem intencional e delineamento transversal, o diagnóstico produzido é representativo das realidades observadas, especialmente pela alta taxa de participação comunitária. Ainda assim, limitações importantes devem ser reconhecidas: a sazonalidade do ciclo hidrológico pode ter influenciado a composição amostral e as condições de vida observadas; o tempo reduzido de permanência em campo e o viés de seleção decorrente da disponibilidade dos participantes podem ter restringido a diversidade de respostas; e a ausência de dados longitudinais impede a inferência de causalidades. Apesar disso, os resultados convergem com evidências de outras regiões hidrográficas, sugerindo padrões recorrentes de exclusão. Estudos futuros, com abordagens qualitativas e longitudinais, poderão aprofundar a compreensão dos determinantes sociais da saúde em contextos ribeirinhos e orientar intervenções mais efetivas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo identificou um conjunto de vulnerabilidades estruturais que afetam profundamente as comunidades ribeirinhas do Tramo Norte Sul-Mato-Grossense do Rio Paraguai, em Corumbá, MS. A baixa escolaridade, a elevada taxa de analfabetismo entre idosos, a precariedade das condições econômicas e a informalidade quase total do trabalho configuram um cenário de exclusão multidimensional, que compromete o desenvolvimento do capital humano local.
As barreiras geográficas e financeiras para o acesso a serviços de saúde, aliadas à elevada dependência do SUS e à baixa cobertura vacinal, reforçam um padrão de desassistência estrutural. A elevada fecundidade, o início precoce da vida reprodutiva e a escassa utilização de métodos contraceptivos apontam para lacunas críticas na atenção à saúde da mulher. A coexistência de desnutrição e excesso de peso indica um processo de transição nutricional mal acompanhado, com impactos diretos sobre a saúde populacional.
Diante desse cenário, recomenda-se a ampliação de ações integradas de saúde, educação e desenvolvimento sustentável, com enfoque territorializado e intersetorial. A continuidade e o fortalecimento de parcerias entre a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), a Marinha do Brasil e os órgãos municipais são fundamentais para o enfrentamento dessas desigualdades. Tais ações devem ser ancoradas em estratégias permanentes de atenção primária, promoção da equidade e justiça territorial, de modo a garantir o direito à cidadania plena às populações tradicionais das águas.
DISPONIBILIDADE DE DADOS
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Comando do 6º Distrito Naval da Marinha Brasileira de Ladário, MS, especialmente ao então Vice-Almirante Iunis Távora Said; CT Eduardo Pontual Dubeux; e do valoroso corpo de militares da Marinha do Navio de Assistência Hospitalar (NAsH) “Tenente Maximiano” e dos participantes da Ações de Assistência Médico-Hospitalar (ASSHOP) e Ações de Assistência Cívico-Social (ACISOS) de outubro de 2022.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Dez 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Dec 2025
Histórico
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Recebido
30 Maio 2025 -
Revisado
03 Jun 2025 -
Aceito
07 Jul 2025
