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Riscos socioambientais e cultura política: algumas considerações sobre o caso brasileiro

Socio-environmental risks and political culture: some considerations on the brazilian case

Risques socio-environnementaux et culture politique: quelques considérations sur le cas brésilien

Riesgos socio-ambientales y cultura política: algunos aspectos del caso brasileiro

O artigo faz uma análise do contexto institucional e da cultura política brasileira à luz da teoria da Sociedade de Risco do sociólogo Ulrich Beck. Diversas ordens de obstáculos institucionais ao reconhecimento e enfrentamento dos riscos na realidade do país são discutidas. Ao olhar da Sociedade de Risco, temos que lidar com um novo, incerto e complexo conjunto de riscos num cenário em que pós-modernidade e barbárie se entrelaçam e, muitas vezes, se nutrem.

Sociedade de risco; Cultura política; Brasil


The article analyzes the institutional context and the Brazilian political culture in the light of the theory of Risk Society, by sociologist Ulrich Beck. Several orders from institutional obstacles to recognizing and addressing the risks in the country reality are discussed. From the viewpoint of the Risk Society we have to deal with a new, uncertain and complex set of risks in a scenario where post-modernity and barbarism overlap and are often nourished.

Risk society; Political culture; Brazil


Résumé

L'article fait une analyse du contexte inconstitutionnel et de la culture politique brésilienne au vu de la théorie de la Société de Risque, du sociologue Ulrich Beck. Divers ordres d'obstacles institutionaux à la reconnaissance et l'affrontement des risques dans la réalité du pays sont discutés. D'après la Société de Risque, nous devons faire face à un nouveau, incertain et complexe ensemble de risques dans un scénario où la postmodernité et la barbarie s'entremêlent et, très souvent, se nourrissent.

Société de risque; Culture politique; Brésil

Este artículo expone un análisis del contexto institucional y de la cultura política brasileña bajo la perspectiva de la Teoría de la Sociedad del Riesgo, del sociólogo Ulrich Beck. Se discuten varios tipos de obstáculos institucionales sobre el reconocimiento y el enfrentamiento de los riesgos de acuerdo con la realidad del país. De acuerdo con dicha teoría, debemos confrontarnos con un conjunto de riesgos nuevos, inciertos y complejos, en un escenário en el cual la posmodernindad y la barbarie se entrelazan y, muchas veces, también se nutren una a la otra.

Sociedad de riesgo; Cultura política; Brasil


1 Introdução

A disseminação da Teoria da Sociedade de Risco de Ulrich Beck a partir de meados da década de 80, no rastro do período intitulado por este e outros autores de modernização reflexiva, tem provocado inúmeros debates (GOLDBLATT, 1996GOLDBLATT, D. Social Theory and the Environment.London: Polity Press, 1996.; GUIVANT, 2000______. Reflexividade na Sociedade de Risco: conflitos entre leigos e peritos sobre agrotóxicos. In: HERCULANO, S. C.; PORTO, M. F. S.; FREITAS, C. M. (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói: Ed. UFF, 2000.; GUIVANT, 2001GUIVANT, J. S. A Teoria da Sociedade de Risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 16, p. 95-112, abr. 2001.; GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.) sobre a validade e o alcance dela. Embora em menor grau, isso também é verdade para as implicações da sociedade de risco para a compreensão e mudança social da realidade de países em desenvolvimento. A cultura política, as formas predominantes de mediação das relações de poder, resolução de conflitos e de alocação de poder social e institucional, exerce um importante papel nas maneiras recorrentes como os riscos são recepcionados e politicamente encaminhados. Neste artigo, discutem-se algumas implicações das relações entre a Sociedade de Risco e cultura política e instituições no Brasil. Busca-se apresentar algumas considerações sobre essas implicações tomando como eixo central de análise o papel das instituições políticas brasileiras - principalmente, organizações públicas ambientais -na produção e gestão de riscos socioambientais. Com isso, não se almeja uma avaliação definitiva sobre a validade da sociedade de risco enquanto paradigma de mudança social para países em desenvolvimento, mas, sobretudo, a exposição de elementos constitutivos dessa avaliação que dizem respeito ao papel político específico das instituições na dinâmica da política ambiental diante dos riscos. Esta proposta recorre a uma abordagem bibliográfica e exploratória, dando destaque a uma perspectiva crítica da questão estudada.

O estudo das instituições em contextos específicos é de grande importância para a análise da construção e acomodação de situações de riscos e perigos em arranjos institucionais histórica e culturalmente determinados. Esse quadro aponta para uma complexidade e incertezas que reclamam uma compreensão. Riscos de diversas ordens tendem a sobreporse, acumular-se, transformar-se, dissimularse e impor-se como ameaças e desafios ao indivíduo, à sociedade e ao Estado. De certa forma, para Beck (1992, p. 91)BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992., a politização da pesquisa científica implica a tarefa de levar "luz às rotinas e aos rituais de ocultamento dos riscos da civilização minimizados institucionalmente e mediados cientificamente".

A cultura política destaque-se como campo de relações sociais consolidadas e relacionadas às práticas políticas nos processos decisórios de produção e distribuição do poder social, portanto, também dos riscos e perigos socioambientais. Podendo ser vista também como a matriz ou estrutura recorrente de interpretação e encaminhamento de soluções a problemas e conflitos, a cultura política demarca relações tensas, mas relativamente estáveis, que atravessam e legitimam a alocação de benefícios e prejuízos, segurança e riscos dentro das sociedades e entre elas. Assim, o estudo da cultura política, ou das instituições políticas num sentido amplo, é um caminho necessário para a compreensão de como os riscos são percebidos, tratados e acomodados social e politicamente.

No decorrer do artigo, a exposição está dividida em três momentos. Após a apresentação de elementos específicos da Sociedade de Risco e da cultura política brasileira, questões decorrentes da relação entre esses dois fenômenos são levantadas e discutidas no sentido de demonstrar as diversas ordens de obstáculos institucionais ao reconhecimento e enfrentamento dos riscos na sociedade brasileira.

2 A sociedade de risco

Com a Sociedade de Risco, Beck pretende apresentar um novo estágio das sociedades modernas, cujas novas e determinantes coordenadas assentam-se nos próprios problemas criados na evolução delas. Esses problemas são reconhecidos em perigos e riscos derivados da intensa aplicação da ciência e tecnologia no controle das relações sociais e da natureza durante a modernidade simples. A modernidade simples pode ser compreendida como um período iniciado, na Europa, no século XVII, que culminou, no século XIX, em profundas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, inaugurando um projeto civilizatório fundado no antropocentrismo, no etnocentrismo e na certeza. Tendo a ciência e a tecnologia como forma de conhecimento e de legitimação, a modernidade se caracteriza pela crença no progresso linear, em verdades absolutas e no planejamento racional de uma sociedade segura. O progresso seria possível com o controle da vida social pelo uso da razão, colocado em prática pelo Estado-nação e por grandes estruturas burocráticas públicas e privadas, condições suficientes para assegurar a sujeição da natureza e o pleno emprego (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992.). Será chamada atenção para dois pontos a respeito da teoria da sociedade de risco que nortearão a discussão das partes subsequentes deste trabalho. O papel das instituições na produção dos riscos e, em consequência, como esses riscos são processados nas instituições.

A ideia de sociedade de risco está diretamente relacionada à teoria de modernização reflexiva, podendo-se entender a primeira como a uma consequência da segunda. A modernização reflexiva - no sentido de um "reflexo" - indica um período em que os riscos e azares produzidos nas sociedades industriais - "modernidade simples" - conduzem ao questionamento das instituições centrais da sociedade (a ciência, a democracia parlamentar, a economia de mercado, o sistema legal). A modernidade vem liberando os riscos e autoameaças, em boa parte irreversíveis, em uma medida até então desconhecida; a produção social de riqueza é substituída pela produção social de riscos. A lógica de distribuição de bens, vinculada à estrutura de classes da modernidade simples, perderia importância diante da lógica de distribuição de riscos e prejuízos, esta muito mais democrática. A radicalização da modernização industrial conduziria a uma autoneutralização e autotransformação dos fundamentos, e coordenadas desse sistema e seus efeitos colaterais convertem-se em motor da história social. As instituições da modernidade, assentadas em responsabilidades, objetivos e interesses sólidos e estáveis (a crença de poder prever tudo e o desejo de controlar o incontrolável), incapazes de responder às demandas tradicionais e a novas modalidades de questões e conflitos de riscos, enfrentam uma crise de confiança diante da autoameaça que passam a representar. A incerteza e a ambivalência aparecem como princípio geral organizador das relações sociais (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992.).

O caráter globalizante dos riscos, a exemplo do aquecimento global, remete ao problema de que seus efeitos sobre os afetados não estão necessariamente vinculados ao local de origem, mas que a globalidade de sua ameaça também revela sua face na criação de novas e no aprofundamento de tradicionais desigualdades internacionais. Novas desigualdades internacionais são produzidas pela força de atração entre riscos extremos e pobreza extrema. A ameaça visível da miséria e da fome tende a neutralizar a ameaça invisível da intoxicação. Paradoxalmente, o combate à miséria é o argumento central de uma engenharia de legitimação movida por governos e empresas multinacionais para aprofundar os riscos, entre outras formas, através da transferência de atividades poluidoras para o terceiro mundo (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992., p. 41).

Neste caso, a relação entre percepção e produção dos riscos é especialmente relevante. A consciência do risco e o compromisso com seu enfrentamento dependem do nível material, da informação e formação das pessoas. A desigual divisão da riqueza pode justificar e obscurecer a produção de riscos pela prioridade absoluta ao crescimento econômico; por isso, é necessário distinguir entre a atenção cultural e política e a difusão real dos riscos.

Em cinco teses, Beck (1992, p. 28)BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992. descreve a arquitetura social e a dinâmica política das autoameaças civilizatórias presentes na sociedade de risco. São elas:

  1. ) Os riscos são percebidos a longo prazo, seus danos são sistemáticos e irreversíveis, são invisíveis e se baseiam em interpretações causais (científica e anticientífica), portanto, abertas aos processos sociais de definição. Dessa forma, podem ser ampliados, reduzidos e transformados.

  2. ) Com a distribuição e incremento dos riscos surgem situações sociais de perigo. Embora sigam a desigualdade de classe, alguns riscos possuem uma lógica diferente. Um "efeito bumerang" faz com que mais cedo ou mais tarde os produtores ou beneficiados com os riscos também sejam atingidos.

  3. ) A lógica do risco não rompe com a lógica de desenvolvimento capitalista, senão a eleva a um novo nível. O caráter autorreferencial da economia moderna transforma os riscos ambientais em um novo tipo de "big business".

  4. ) Ao assumir uma dimensão civilizatória, os riscos relativizam a importância da riqueza, sendo tributário, à medida que cresce a sua consciência das situações de perigo, de um potencial político..

  5. ) Os riscos reconhecidos socialmente têm um conteúdo político explosivo. Assistese à politização da ciência, e a opinião pública e a política passam a influenciar no âmbito íntimo do sistema institucional (empresas e governos). Passa a ocorrer uma disputa pública sobre a definição dos riscos: "não só as conseqüências para a saúde humana e natureza, senão os efeitos secundários sociais, econômicos e políticos destes efeitos secundários: surgem impulsos pequenos e grandes, o potencial político das catástrofes". Esse potencial político pode levar à reorganização do poder e das competências (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992., p. 30).

O segundo ponto a ser destacado diz respeito a como as instituições lidam com os riscos. Por um lado, Beck afirma que a interdependência sistêmica das atuais sociedades com um elevado grau de integração funcional implica a ausência de causas e responsabilidades isoladas, portanto os riscos quase sempre se apresentam relacionados a cadeias complexas que indicam antes uma cumplicidade e uma irresponsabilidade geral. Por outro, o sociólogo alemão procura precisar mais como essa condição é mantida na sociedade de risco, procurando demonstrar como se organiza a trama da "gestão" política e intervenções cosméticas ou reais para garantir a segurança da sociedade.

Admitir certos erros na ciência e na economia equivale ao desencadeamento de uma catástrofe política (ou econômica) e por isso é fundamental impedi-lo. Isso exige do sistema institucional a necessidade de exercer um domínio sintomático e simbólico dos riscos - o marco "cosmético" do risco. Esse processo, que tende a aprofundar os riscos, não é apenas um estorvo negado e esquecido, mas a produção de risco no capitalismo desenvolvido é "uma forma normal de um sistema imanente que revoluciona as necessidades" (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992., p. 64). Frente à riqueza, "os perigos são um produto adicional de uma superabundância que se deve impedir. Há que suprimi-los ou negá-los, há que reinterpretá-los. Assim, à lógica positiva da apropriação se contrapõe uma lógica negativa do eliminar, do evitar, do negar, do reinterpretar" (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992., p. 33). Ao fazê-lo, as elites limitam, desviam, controlam os protestos que esses riscos provocam. Como já se disse, esse processo envolve uma luta para fazer valer determinadas definições, travam-se relações de definição a todo o momento. Relações de definição "são as leis, instituições e capacidades que estruturam a identificação e avaliação dos problemas e riscos ecológicos; são a matriz legal, epistemológica e cultural segundo a qual se conduz a política de ambiente" (GOLDBLATT, 1996GOLDBLATT, D. Social Theory and the Environment.London: Polity Press, 1996., p. 241). Nessa luta de definições para obscurecer ou revelar os riscos, o acesso à mídia se torna decisivo.

Em grande medida, a operação desses mecanismos fundamenta o pessimismo de Beck com relação às possibilidades de o sistema institucional instaurado na modernidade industrial reverter a situação de risco por ele criada e fomentada. Contudo é possível depreender uma agenda positiva do autor para enfrentar os riscos, fundamentada na democratização, na subpolítica e no Estado regulador e cooperativo (BECK, 2003______. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Editora UNESP, 2003.). Beck aposta na democratização do controle das informações sobre os riscos pelos afetados, por meio da subpolítica e seu potencial para questionar as crescentemente deslegitimadas instituições da modernidade e criar novas formas de fazer política. As instituições abririam politicamente seus fundamentos à legitimidade conferida pelos indivíduos e suas coalizões (BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992., p. 221). A subpolítica teria o potencial de gerar crises de confiança na autoridade dos cientistas, tecnólogos e nos governos e corporações que os empregam. Ao não aceitarem a inevitabilidade da perseguição do crescimento econômico e da mudança tecnológica, os seus agentes problematizam e politizam a economia política, forçando melhores justificativas racionais das decisões públicas, aumentando a possibilidade de novos padrões de cooperação e regulação estatal.

A Sociedade de Risco de Beck tem recebido várias críticas, positivas e negativas, indicando ser uma tese no mínimo controvertida (LEROY; BLOWERS, 1998LEROY, P.; BLOWERS, A. Political Modernisation, Environmental Policy and Political Inequality, 1998. mimeo.; GOLDBLATT, 1996GOLDBLATT, D. Social Theory and the Environment.London: Polity Press, 1996.; GUIVANT, 2001GUIVANT, J. S. A Teoria da Sociedade de Risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 16, p. 95-112, abr. 2001.; HANNIGAN, 1996HANNIGAN, J. Environmental Sociology. London: Routledge, 1996.). Neste momento, contudo, interessa reconhecer as contribuições do trabalho do sociólogo alemão de, ao tentar distanciar-se dos pressupostos macrossociais rígidos dos marxismos economicista e funcionalista, nem sempre negando-os, explorar a dinâmica do sistema institucional das sociedades modernas, seus artifícios e mecanismos epistemológicos, discursivos e práticos, colocados em ação na produção, negação, dissimulação, minimização dos riscos e suas consequências. Isso leva a questões relevantes, a exemplo de como os riscos são tratados, "gerenciados", institucionalmente em espaços tão diversos como o Brasil.

3 Elementos e dinâmica da cultura política brasileira

Esta análise da dinâmica das instituições se deterá na apresentação de traços relevantes da cultura política brasileira, uma vez que esses traços fornecem importantes pistas sobre os parâmetros delimitadores das possibilidades de compreensão e politização dos riscos. A cultura política é tomada aqui como um importante elemento para se tentar desconstruir (HANNIGAN, 1996HANNIGAN, J. Environmental Sociology. London: Routledge, 1996.) e compreender a formação da percepção das condições que contribuem para a crise ambiental em uma determinada sociedade.

Cada sociedade é marcada por uma cultura política dominante. É a construção social particular em cada sociedade do que conta como "político", "é o domínio de práticas e instituições, retiradas da totalidade social, que historicamente vêm a ser consideradas como propriamente políticas (da mesma forma que outros domínios são vistos como propriamente 'econômicos', 'culturais', e 'sociais')" (ALVAREZ; DAGNINO; ESCOBAR, 2000ALVAREZ, S.; DAGNINO, E.; ESCOBAR, A. O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos. In: ALVAREZ, S.; DAGNINO, E.; ESCOBAR, A. (Org.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000., p. 25). Na América Latina, formou-se historicamente uma cultura política híbrida e contraditória. Princípios de origem europeia e norte-americana, como o universalismo, racionalismo e individualismo, vão sendo incorporados à cultura nacional como respostas a injunções exógenas, sem mudar sua feição concreta. Assim, esses princípios convivem formal e subordinadamente com outros informais de uma ordem autoritária.

O meio ambiente é a base natural - o ar, a água, o solo, os minerais, a flora e a fauna-sobre a qual se estruturam as sociedadeshumanas. É a partir desse suporte físico, químico e biótico que as sociedades travam uma relação de troca com a natureza, mediada pela cultura, que designa formas particulares de reprodução de sua organização social. Assim, a terra, em um sentido geral, refere-se à base natural a partir da qual relações sociais, econômicas, políticas específicas se desenvolvem numa cultura, que, ao mesmo tempo, atribui um valor e uso para essa base natural.

A organização cultural regula a articulação entre processos ecológicos e processos históricos. De um modo amplo, a materialidade da cultura inscreve-se na racionalidade produtiva das sociedades, gerando um efeito mediador entre a estrutura econômica e social e o meio ambiente (LEFF, 2001LEFF, H. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Blumenau, SC: Edifurb, 2001.). Esse caráter mediador da cultura permite vê-la como um instrumento analítico para perceber de que forma certos processos históricos impactam os processos ecológicos, constituindo formas predominantes de representação política e de direitos sobre a apropriação e uso dos recursos naturais. No caso brasileiro, essas formas predominantes de apropriação dos recursos naturais foram criadas, mantidas e remodeladas ao longo de sua história, conservando sempre uma índole tendencialmente centralizadora, concentradora e predatória. Cabe destacar dois traços constituintes da cultura política brasileira que, em diferentes graus e formas, influenciam e distinguem a especificidade do uso e da degradação dos recursos naturais: a questão da terra e o patrimonialismo.

A questão da terra importa em sua função de dominação e nas prováveis implicações desta sobre as noções de propriedade e responsabilidade coletiva pelo destino dos recursos naturais. Desde os primeiros momentos da colonização, vão se observar dois polos contraditórios de pensamento sobre a relação com a natureza: uma celebração puramente retórica de um lado e uma realidade de devastação impiedosa do outro (PÁDUA, 1987PÁDUA, J. A. Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.). Esses polos refletem tanto as preocupações renascentistas, com o alargamento dos horizontes do saber, como o sentido político e econômico que as novas terras assumem no jogo de forças do sistema econômico mercantilista mundial. Incorporado a esse sistema como fornecedor de matérias-primas naturais, o Brasil manterá sob diferentes for-mas essa condição até os dias atuais, com a intensificação da degradação ambiental e do tecido social.

Assim como ocorreu na origem do capitalismo, a instituição do monopólio dos bens naturais, ora nas mãos do Estado, ora sob a posse de grandes produtores, foi condição para a instauração do trabalho assalariado e a separação do trabalhador livre dos meios e instrumentos de produção. A grande concentração de terra sob o jugo privado no Brasil evoluiu pari passu com formas de organização do trabalho compulsórias, seja com a escravização de índios, negros e mestiços, seja com outras formas de subordinação, como a peonagem por dívida. O alto grau de dependência existencial (física, material e psicológica) das pessoas é um elemento distintivo central de relações de dominação tradicionais, como o coronelismo (LEAL, 1997LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.).

A demonstração da vigência de relações socioambientais autoritárias como elementos ativos de uma cultura ficaria incompleta se não se mencionasse o seu correlato no domínio político, ou seja, o patrimonialismo. Este é uma derivação do tipo de dominação tradicional, desenvolvido por Max Weber, e usado para indicar formas de dominação política em que as esferas pública e privada se confundem com o predomínio da segunda. O patrimonialismo brasileiro encontra-se fortemente vinculado às suas raízes ibéricas. A influência ibérica na cultura e política nacional deu-se pela presença de valores como o culto da personalidade, o livre arbítrio, a fidelidade e a valorização do mérito pessoal. Recusavam toda hierarquia social, de coesão social, tendendo ao individualismo anárquico. Da autarquia da "Casa Grande", isolada de todos, nascia o desinteresse pela vida pública (REIS, 2001REIS, J. C. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. São Paulo: Editora da FGV, 2001.). Assim, ao monopólio da terra correspondeu o monopólio da representação política, configurando relações e práticas políticas que serviram para balizar, desde o poder local, o possível e o impossível no marco do autoritarismo social brasileiro. Fenômenos como o poder oligárquico, o mandonismo, o filhotismo, o clientelismo, - combinados sob diversas fórmulas com lógicas racionais, democráticas liberais e universalistas -, ainda predominam no universo político que medeia as relações entre Estado e sociedade, constituindo fortes obstáculos à consolidação de instituições democráticas.

Enfim, considerar a questão da terra e o patrimonialismo sugere uma forma válida de delinear os principais legados de uma cultura política autoritária para as instituições políticas envolvidas na gestão dos recursos naturais. Os recursos naturais, a despeito de sua fartura relativa e concentração, foram e vêm sendo tratados de forma predatória, uma apropriação desleixada e extensiva. Um caráter que, de resto, se estendeu para as relações sociais, em que a terra assumiu, na forma privilegiada da propriedade privada, a condição de recurso de poder social autoritário e, portanto, de sujeição. A constituição e perenidade do Estado patrimonial no Brasil, e de outras relações que submetem o espaço público a interesses predominantemente privados, como o Estado tecnocrático, são a expressão mais forte do poder social fundado na posse e concentração da terra e da renda.

Restringindo as possibilidades de realização de direitos e interesses públicos e coletivos, produziu-se um histórico e elevado grau de dependência material e "espiritual" das massas em relação às elites e ao Estado e, assim, o alijamento delas do processo político e de distribuição da riqueza. A continuidade de padrões de dependência e de mando, dessa forma, tem profunda influência na fragilidade das noções de democracia, sociedade civil, esfera pública e de cidadania vigentes no país, e, por conseguinte, nas formas como os riscos são percebidos, responsabilizados e enfrentados (BORINELLI; LANZA, 2008BORINELLI, B.; LANZA, F. Cultura, democracia e questão socioambiental no Brasil. Serviço Social em Revista (Online), v. 11, p. 5, 2008.).

4 Riscos e instituições no Brasil

Em um trabalho sobre o conceito de sociedade de risco e o uso de agrotóxicos no Brasil, Guivant (2000, p. 297)______. Reflexividade na Sociedade de Risco: conflitos entre leigos e peritos sobre agrotóxicos. In: HERCULANO, S. C.; PORTO, M. F. S.; FREITAS, C. M. (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói: Ed. UFF, 2000. apresenta alguns elementos da especificidade da dinâmica do risco em países em desenvolvimento. Para a autora, por nos encontrarmos em uma sociedade da escassez, vivenciamos as consequências de uma sociedade de risco, que são globais, porém, sem uma reflexividade ativa. A percepção de que os riscos são gerais, fora do controle dos órgãos responsáveis, invisíveis e de longo prazo, tende a levar à paralisia, à indiferença e ao fatalismo. Guivant atribui o não questionamento público sobre os riscos no consumo de alimentos à falta de tradição dos atores sociais na defesa de seus direitos como consumidores e ao descrédito generalizado em relação às instituições públicas.

A partir disso, alguns pontos sobre a relação entre instituições relacionadas à política ambiental e ao problema dos riscos ambientais podem ser destacados. Uma síntese em torno desses pontos aponta para um quadro de agravamento e amplificação das condições de riscos, ameaças e perigos, em que o reconhecimento e encaminhamento mínimo de tais condições numa perspectiva democrática representam um desafio frontal às estruturas de poder, que incluem e transcendem as fronteiras nacionais.

Em primeiro lugar, há a inacessibilidade das demandas dos duplos riscos (materiais e ambientais) às instituições. Seguindo a tradição formalista nacional, o traço mais característico da política ambiental brasileira é o grande fosso existente entre o arcabouço jurídico e as ações efetivas, podendo ser vista, na leitura de Beck, como uma forma de irresponsabilidade organizada. Se, por um lado, a constituição desse arcabouço nas últimas décadas coincidiu, e em parte foi impulsionada pelo processo de democratização do país, ela foi em grande medida obra do aparato tecnocrático em resposta às pressões internacionais. A baixa efetividade das instituições ambientais e de seus instrumentos participativos, como os conselhos e as audiências públicas, é coerente com o elevado grau de conflitos e contradições que esses despertam no interior do estado patrimonial/tecnocrático ao assinalar uma gestão ambiental de interesse coletivo. Portanto, em boa medida, a debilidade dessas instituições é uma condição necessária para a continuidade das estruturas de apropriação/produção privadas dos recursos naturais, sejam as arcaicas, sejam as modernas capitalistas (BORINELLI, 1998BORINELLI, B. Um fracasso necessário: política ambiental em Santa Catarina e debilidade institucional. 1998. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 1998.). Dessas instituições só se pode esperar uma participação marginal, apesar do grande repertório de ações cosméticas, que, em seus desempenhos sinuosos, só reforçam a regra geral da precariedade do setor e a necessidade de se encobrir as origens e as consequências dos riscos.

Nesse sentido, o Estado é um espaço quase inacessível à gestão pública dos recursos naturais e de defesa dos interesses sincrônicos e diacrônicos dos anseios coletivos de sua população, assim, das condições de risco. A sua função latente é antes a de promover o interesse privado e predatório, pela não produção ou sonegação de informações, pela obstrução da participação pública, pela indiferença, pela não fiscalização e pelo otimismo cego e mistificador no avanço tecnológico. Dessa forma, apesar e em razão da retórica moderna e "avançada", parece improvável, nessas condições, imaginar que o Estado venha a atender as expectativas quanto às suas funções coordenadoras, fiscalizadoras e de avaliação e disseminação de informações sobre os riscos ambientais; condição agravada pela adoção de modelos liberais que pregam a retração estatal desde os anos 1990.

Duas conclusões importantes podem ser tiradas desse fato. A primeira é a tendência ao reforço da distribuição assimétrica dos riscos e prejuízos, seguindo e agravando o mapa da distribuição desigual da riqueza. A segunda é que instituições excessivamente seletivas e particularistas produzem baixos níveis de confiança, seja nelas mesmas, seja no nível interpessoal. Essa situação tende a inibir a cooperação com programas e políticas governamentais e, em casos de crise ambiental, favorece e exige um Estado autoritário, reforçando a tradição centralizadora e autoritária da cultura política brasileira. Assim, o conjunto de instituições políticas do meio ambiente combina tanto traços modernos como pré-modernos (arcaicos), talvez uma forma agravada do que Beck (1992)BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992. chama de contramodernidade, a tendência de combinar simultaneamente elementos modernos e pré-modernos, muitas vezes produzidos e sustentados pela radicalização de instituições da modernidade. O debate aqui, portanto, não é apenas e prioritariamente em termos de modernidade e pós-modernidade, modernidade tardia ou sociedade de risco, mas sobreposta a este e um "degrau abaixo", entre a modernidade e o antiuniversalismo, a pré-modernidade da tradição personalista/ particularista.

Em segundo lugar, e complementarmente, a sociedade civil brasileira, não só pela precariedade material e informacional crônica da maioria da população mas também pela indiferença das elites, tende a preterir, subestimar ou simplesmente ignorar as condições de risco.

Do ponto de vista político, os traços fortes de paternalismo em relação às elites e ao Estado resultaram, para uma massa de excluídos, na quase naturalização do alijamento dos processos decisórios sobre a distribuição e os modos de apropriação e degradação dos recursos naturais, a começar pela terra. Privilegiando interesses das elites locais ou internacionais ou do próprio Estado, a forma de propriedade privada foi o formato jurídico e cultural que consolidou a arbitrariedade e deu um sentido privatista a esses modos de apropriação. A resistência à reforma agrária no Brasil em uma escala significativa até hoje é um exemplo substancial dessa situação. A exclusividade da instituição da propriedade privada ou estatal nos moldes descritos impede o exercício de outras formas de regimes de propriedades públicas, a exemplo da comunal. Assim, fica também comprometido o desenvolvimento de um senso concreto de responsabilização pelo uso e conservação do patrimônio natural público, e, portanto, de interesse coletivo.

Em terceiro lugar, um problema adicional a ser visto na acomodação institucional das condições de risco no Brasil é como se travam as relações de definição dos riscos. Junto à opinião pública ainda é comum as demandas ambientais serem identificadas como demandas particulares da classe média informada ou como preocupações pós-materialistas dos países desenvolvidos, portanto, demandas elitizadas que não atenderiam aos interesses de segmentos que nem mesmo consomem regularmente. Essa baixa importância relativa da preocupação ambiental também é sentida nas prioridades da população levantadas em campanhas eleitorais, no grau de legitimidade satisfatório (HAY, 1994), que gozam as inexpressivas políticas ambientais estatais e até os posicionamentos dos governos brasileiros em negociações internacionais. Em que pese a isso, a preocupação ambiental está bastante disseminada entre as diversas classes, aparecendo, contudo, em momentos extremos, como uma decisão dilemática sobre estilos de vida e, mesmo, sobrevivência. Esse dilema não é irreal se consideramos os constrangimentos citados acima e, principalmente, a influência exercida pela mídia enquanto ator privilegiado na formação da opinião pública e pela homogenização dos padrões de consumo, acompanhados ou não de suas promessas de reconciliação entre a economia e a natureza.

A inexistência de satisfatórios índices de escolaridade e de uma esfera pública ativa para o debate dos riscos ambientais tem seu simulacro e, em parte, sua causa em uma mídia crescentemente hegemonizadora na formação da opinião pública. Na construção cultural de uma percepção mistificadora e individualista dos problemas, riscos e soluções aos problemas ambientais, a mídia tem exercido uma função primordial em países como o Brasil. Em geral, a questão ambiental é apresentada em uma versão isolada e fragmentada, acrítica, privilegiando fontes oficiais e tentando marginalizar ou desacreditar o ambientalismo como movimento social. Por outro lado, a natureza aparece como "espetáculo" romantizado (humanizado), despolitizando a questão e conduzindo a soluções em termos de mudança de comportamento individual, quase sempre restritas aos limites da "economia verde" e a uma fé exagerada em tecnologias redentoras (RAMOS, 1995RAMOS, L. F. A. Meio ambiente e meios de comunicação.São Paulo: Annablume, 1995.).

Um dado positivo são as possibilidades abertas pelas novas tecnologias de informação. Novas alianças e coalizões entre leigos, entre peritos e leigos e entre peritos têm sido possíveis através do acesso a essas tecnologias, enriquecendo o embate em torno das relações de definição das situações de risco e perigo. Novos espaços de interação política, esferas públicas e formas de solidariedades têm surgido e antigos, potencializados. Denúncias e versões alternativas e contestatórias aos diagnósticos ambientais de especialistas estatais ou de representantes de grandes grupos empresariais são disseminadas regional e globalmente, integrando e revitalizando lutas de grupos minoritários. Exemplos disso são as mobilizações e articulações em torno da oposição aos produtos geneticamente modificados e aos projetos e estudos de impacto ambiental, social e econômico de grandes obras como as usinas hidrelétricas.

Em quarto lugar, há que se levar em conta que, em países que enfrentam riscos duplos (materiais e ambientais), mesmo que se admitam e se percebam os riscos e ameaças em todas as suas dimensões conhecidas, isso não é condição suficiente para seu enfrentamento político. Restrições materiais, a erradicação de alternativas fora dos limites da sociedade capitalistas ou o dilema entre o atual modo de vida e modelos "viáveis" – mudanças sem grande transformação do estilo de vida vigente ou desejado –, concorrem para relativizar a questão sobre a "explosividade" da consciência dos riscos. Como Beck (1992)BECK, U. Risk society: towards a new modernity. Londres: Sage Publications, 1992. adverte, as ameaças de risco têm um potencial político pouco explosivo em condições de carência material extrema. Mesmo uma maior consciência de riscos invisíveis e com efeitos dispersos no tempo tende a não alavancar reformas políticas expressivas em países como o Brasil, onde "ditadura da escassez" ocupa uma importância cotidiana e premente na vida das pessoas.

Em quinto e último lugar, mais além e cada vez mais fundamental, é necessário abordar como a desigualdade na distribuição internacional dos recursos naturais, do acesso aos serviços ambientais e dos riscos beneficia-se de relações autoritárias, da miséria e da degradação ambiental em países em desenvolvimento. Tais condições adversas que afetam a produção, distribuição e o tratamento dos riscos no terceiro mundo são visíveis tanto nos fluxos comerciais de matéria, mão de obra e energia, como nos conteúdos de acordos e programas de ajustes econômicos. O problema é que as instituições que produzem o risco em países desenvolvidos se fundam em contradições em um âmbito mais geral, ou global. A relativa solução dos conflitos de distribuição de riquezas nos países industrializados, com todos os seus problemas ambientais, só foi e é possível, em um grau nada desprezível, pelo fluxo desigual de riquezas, energia e resíduos entre estes e os países pobres (ALTVATER, 1995ALTVATER, E. O preço da riqueza: pilhagem ambiental e (des)ordem mundial. São Paulo: UNESP, 1995.). A irresponsabilidade organizada em países desenvolvidos pode ser menos problemática com a transferência irresponsável de desordem a países e regiões mais vulneráveis às investidas de países industrializados e de grandes corporações. Assim, menos democracia econômica e política traduzem-se em maior vulnerabilidade aos riscos socioambientais, exposição a riscos múltiplos, fragilidades frente às catástrofes, em suma, tem-se uma amplificação sociopolítica dos riscos.

Ao estudar casos brasileiros de contaminação humana, Freitas (2004)FREITAS, C. M. Ciência para a sustentabilidade e a justiça ambiental. In: ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. destaca duas fontes de vulnerabilidade: populacional e institucional. A primeira está relacionada à existência de grupos populacionais vulneráveis, de acordo com suas características em termos de status social, político e econômico, etnicidade, gênero, idade etc., condição esta derivada de diferentes formas e níveis de exclusão social. A vulnerabilidade institucional está associada ao funcionamento da sociedade em termos das políticas públicas, processos decisórios e das instituições que atuam de alguma forma em situações de risco em termos de prevenção, controle, atenção, recuperação ou remediação. Vulnerabilidade social e institucional se integram e retroalimentam, agravando eventos de riscos ambientais e de saúde e complicando o entendimento dos problemas e a busca de soluções para os mesmos.

Os casos de Vila Socó/Cubatão (1984), da contaminação por Césio 137 em Goiânia (1987), as dezenas de vazamentos de óleo, muitos deles envolvendo a estatal Petrobrás, deslizamentos de terra, entre outros tantos, são os rastros da ausência institucional na prevenção e enfrentamento das consequências de riscos. Segundo relatório da ONU, o Brasil foi atingido por 60 catástrofes naturais entre 2000 a 2010, impactando 7,5 milhões de pessoas e levando a 1,2 mil mortos. A questão em aberto é como políticas públicas que não atendem a demandas rotineiras de segurança socioambiental responderão a um cenário de intensificação de desastres naturais (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Desastres no Brasil: análise da ocorrência de desastres de origem natural no Brasil, no ano de 2010. 2011. Disponível em: <http://pisast.saude.gov.br:8080/pisast/saude-ambiental/vigidesastres/vigidesastres>. Acesso em: 20 jun. 2012.
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). Os milhares de mortes e prejuízos materiais e humanos na sucessão de deslizamentos nos estados de Rio de Janeiro (Angra do Reis, Morro do Bumba, Morro da Carioca), Santa Catarina (Vale do Itajaí) e São Paulo (Caraguatatuba) ilustram bem o completo despreparo e descaso das instituições públicas com o problema, mesmo após os desastres (ACSELRAD; MELLO, 2002ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. do A. Conflito social e risco ambiental: o caso de um vazamento de óleo na Baía de Guanabara. Ecología Política. Naturaleza, Sociedad y Utopia, Buenos Aires, p. 293-317, 2002.). O relativamente novo contexto de riscos e desastres remete à necessidade de lidar com uma diversidade de problemas sociais, econômicos, culturais, políticos e administrativos crônicos e de difícil equacionamento.

Outra frente de riscos de grandes consequências e silenciada é o descontrole, o não monitoramento, fiscalização falha e falta de pesquisa sobre uso crescente de agrotóxico e sementes geneticamente modificadas no país e suas consequências para a saúde humana, a qualidade da água, a flora e a fauna. A debilidade política dos órgãos ambientais e das agências reguladoras, como a Agência Nacional Vigilância Sanitária (ANVISA), é apenas mais um indicador da produção de uma vulnerabilidade institucional de grandes consequências e funcional aos interesses da poderosa influência econômica, política, cultural e tecnológica de grandes empresasnacionais e transnacionais (ÁLVARES, 2010ÁLVARES, A. A reavaliação que os empresários não querem. Le Monde Diplomatique Brasil. 2010. Entrevista concedida a Silvio Caccia Bava. Disponível em: <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=652>. Acesso em: 20 jun. 2011.
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; MAJONE, 1996MAJONE, G. Regulating Europe. Londres: Routledge, 1996.).

Ainda assim, a inserção dos riscos ambientais em pautas de novos e tradicionais movimentos socioambientais (Economia Solidária, Justiça Ambiental, Movimentos Sem Terra, ONGs, Movimento de Atingidos por Barragens) e do sistema jurídico vem alterando sensivelmente o padrão de debate e de embate nos âmbitos político, econômico e científico. Tais confrontos têm sido as principais fontes de disputa pública sobre a produção de riscos e sua desigual distribuição, deslegitimando as leituras dos riscos e danos do estado e de grandes empresas.

Em síntese, como um dos idealizadores do incrementalismo ambiental de mercado admite, o quadro institucional brasileiro tem sérias limitações até mesmo para adotar o reformismo restrito da Modernização Ecológica (MOL, 2000MOL, A. P. J. A globalização e a mudança dos modelos de controle e poluição industrial: a teoria da modernização ecológica. In: HERCULANO, S. C.; SOUZA PORTO, M. F. de; FREITAS, C. M. de (Org.). Qualidade de vida e riscos ambientais. Niterói, RJ: EdUFF, 2000.), ou seja, de oferecer uma gestão ambiental liderada pelas forças de mercado, mas que pressupõe um Estado atuante e a participação ativa da sociedade. No atual quadro institucional, os avanços mais importantes da política ambiental vêm sendo conquistados pela ação de forças externas ao Estado, ora de movimentos radicais, ora da pressão de organizações internacionais (DRYZEK; DUNLEAVY, 2009DRYZEK, J. S.; DUNLEAVY, P. Theories of the Democratic State. London: Palgrave Macmillan, 2009.; DESAI, 2002DESAI, U. Institutions and Environmental Policy in Developed Countries. In: DESAI, U. Environmental Politics and Policy in Industrialized Countries. Massachusetts: MIT Press, 2002.).

5 Considerações finais

Ao longo deste trabalho procuramos constituir uma abordagem analítica das instituições do meio ambiente. Por certo, muitas questões ficaram em aberto e outras surgiram nas construções argumentativas esboçadas e permaneceram sem resposta.

Por mais que seja preciso admitir a procedência das críticas à Sociedade de Risco, a sua força e contundência afirmam-se na descrença generalizada, e empiricamente compartilhada, de que não dispomos de instituições capazes de fazer frente aos desafios e riscos contemporâneos, muitos deles que elas próprias reconhecem como urgentes. Assim, mesmo que não fosse a intenção do autor, um certo pessimismo e caráter distópico impõem-se da Sociedade de Risco, não só pelas evidências de incertezas e riscos cotidianos, mas pelas perspectivas que oferece um sistema institucional ainda com fortes evidências de uma cultura patrimonial, social e ambientalmente degradadora. O fato de que o Brasil seja um dos países mais ricos e mais desiguais e violentos do mundo retrata bem a magnitude e complexidade de suas contradições socioambientais.

O assassinato de lideranças ambientalistas, indígenas e de movimentos rurais, a escravidão no campo e nas cidades, a imposição de reformas legislativas sem considerar parâmetros científicos e o debate e a consulta pública, como se assistiu no processo de reforma do Código Florestal, e a debilidade política das instituições ambientais e reguladoras ilustram bem a atualidade e o vigor da cultura autoritária e patrimonial e da violência nos processos de resolução de conflitos e riscos socioambientais. Em que pese ao contexto institucional europeu e datado da Sociedade de Risco, no Brasil, onde a modernidade nunca deitou raízes profundas, essa teoria permite visualizar uma realidade mais complexa, em que riscos de várias ordens, da pós e da pré (barbárie) modernidade, entrelaçam-se e, muitas vezes, nutrem-se.

Mais do que constatar a impotência política individual e coletiva diante do avanço científico e tecnológico - aquilo que ainda restava como o lado bom da modernidade -, e da economia, Beck deixa no ar a provocação existencial da necessidade paradigmática de renunciar a sonhos e promessas cristalizadas no modo de pensar e viver das pessoas comuns. Nesse sentido, a sua Sociedade de Risco tem o mérito de dar centralidade ao lado obscuro dos legados e projetos individuais e coletivos, de colocar as sociedades diante dos fantasmas da modernidade capitalista e socialista, mesmo que ajude pouco a saber como exorcizá-los.

Nas últimas décadas, mesmo sob fortes restrições e condições desfavoráveis, movimentos socioambientais e segmentos do Estado e do setor privado têm conquistado importantes avanços na reivindicação de direitos de minorias e no reconhecimento de riscos sociais e ambientais, geralmente invisíveis às avaliações e interesses tecnocráticos e tradicionais. Dessa forma, ganham terreno na construção de uma cultura política democrática, superando "etapismo" (distribuição de bens - distribuição de riscos). Ainda assim, essas conquistas não são definitivas nem ampliadas; os desafios teóricos e políticos são enormes, exigindo que se continue a apostar no debate autônomo, interdisciplinar e inclusivo sobre as ameaças, incertezas e alternativas que se apresentam na realidade brasileira e mundial, com as quais e apesar delas, como afirma Beck, temos que continuar vivendo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2013
  • Revisado
    23 Mar 2014
  • Aceito
    22 Maio 2014
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