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Representações do Movimento dos Povos Indígenas na etnomídia roraimense

Representaciones del Movimiento de los Pueblos Indígenas en la etnomedia de Roraima

Resumo

A presente pesquisa reflete sobre as práticas etnomidiáticas levadas a cabo pelo portal do Conselho Indígena de Roraima (CIR), a fim de entender como a organização constrói sentidos sobre o Movimento dos Povos Indígenas. Para tanto, caracterizamos o Movimento Indígena e a Etnocomunicação; discutimos as relações entre imperialismo midiático e representação a partir de Mattelart (1978); e acionamos os preceitos da Análise de Discurso, de Souza (2014), para examinar as narrativas do corpus de estudo, constituído por 89 publicações realizadas pelo CIR em 2018. Os resultados desvelam um fazer etnocomunicativo que trabalha na arquitetura de representações discursivas que têm como princípio a circunstância de os nativos serem habitantes originários das áreas delimitadas como Terras Indígenas, determinando a transmissão desse direito a seus descendentes para sua continuidade como povos com relações étnicas pré-colombianas.

Palavras-chave
Etnocomunicação; Etnomídia; Movimento dos Povos Indígenas; Saberes amazônicos; Roraima

Resumen

Esta investigación reflexiona sobre las prácticas etnomidiáticas realizadas por el portal del Consejo Indígena de Roraima (CIR), con el objetivo de comprender cómo la organización construye sentidos sobre el Movimiento de los Pueblos Indígenas. Para ello, caracterizamos el Movimiento Indígena y la Etnocomunicación; discutimos las relaciones entre imperialismo mediático y representación a partir de Mattelart (1978); y movilizamos los preceptos del Análisis del Discurso de Souza (2014), para examinar las narrativas del corpus de estudio, compuesto por 89 publicaciones realizadas por el CIR en 2018. Los resultados muestran un hacer etnocomunicativo que trabaja en la arquitectura de representaciones discursivas que tienen como principio el hecho de que los nativos sean habitantes originarios de las áreas delimitadas como Tierras Indígenas, determinando la transmisión de ese derecho a sus descendientes para su continuidad como pueblos con relaciones étnicas pre-colombianas.

Palabras clave
Etnocomunicación; Ethnomedia; Movimiento de Pueblos Indígenas; Conocimiento Amazónico; Roraima

Abstract

This research reflects on the ethnomedia practices carried out by the portal of the Indigenous Council of Roraima (CIR), in order to understand how the organization constructs meanings about the Indigenous Peoples Movement. To do so, we characterized the Indigenous Movement and Ethnocommunication; we discussed the relationships between media imperialism and representation through Mattelart (1978); and we used the precepts of Discourse Analysis by Souza (2014) to examine the narratives of the corpus of study, consisting of 89 publications by the CIR in 2018. The results unveil an ethnocommunicative practice that operates on the architecture of discursive representations that have as a principle the circumstance that the natives are original inhabitants of the areas delimited as Indigenous Lands, determining the transmission of this right to their descendants for their continuity as peoples with pre-Columbian ethnic relationships.

Keywords
Ethnocommunication; Ethnomedia; Indigenous Peoples Movement; Amazonian knowledge; Roraima

Introdução

Desde a divulgação dos dados do censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Distribuição da População Indígena. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/images/pdf/indigenas/verso_mapa_web.pdf. Acesso em: 13 abr. 2019.
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), Roraima é reconhecido como o estado com, proporcionalmente, o maior número de moradores indígenas do país – cerca de 11% da população. O expressivo contingente de moradores autodeclarados nativos no estado nos fornece pistas valiosas sobre a importância das questões indígenas e de seus movimentos para a região e, consequentemente, sobre a importância da promoção de estudos acerca dos espaços contra-hegemônicos – jornalísticos, culturais, sociais, políticos e científicos – que contemplam a temática.

No contexto específico deste artigo, objetivamos estudar como são movimentados os sistemas de representação no discurso midiático do portal do Conselho Indígena de Roraima (CIR)1 1 Disponível em: https://cir.org.br Acesso em: 13 abr. 2021. acerca do Movimento dos Povos Indígenas e analisar como o portal do CIR representa as temáticas relacionadas ao Movimento Indígena. A discussão se apoia nas contribuições teóricas de Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978., ao considerar o campo midiático como um componente essencial na reprodução de determinada formação social. No caso deste estudo, as determinantes se voltam ao posicionamento das populações indígenas no cenário político do Brasil e do estado de Roraima.

A discussão estabelecida neste artigo utiliza de uma estrutura transdisciplinar de investigação que tenciona o encontro entre teoria, método e prática no desenvolvimento das análises realizadas (MATTELART, 1978MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978.; MALDONADO, 1999MALDONADO, E. Teorias críticas da comunicação: o pensamento de Armand. Intexto, Porto Alegre, n. 6, p. 37-60, 1999.). Para tanto, adotamos como recorte empírico um corpus de investigação composto por 89 publicações textualizadas presentes no portal do CIR.

Em relação ao período de análise, selecionamos como marco temporal (inicial e final) os meses de abril e dezembro de 2018, período que corresponde aos nove meses posteriores à realização da 47ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas – evento anual de deliberação política e organizacional mais importante para o Movimento Indígena roraimense.

A chama que move esta investigação deriva da intensa tensão entre setores da sociedade envolvente (e suas práticas comunicacionais) – sob forte influência de uma política anti-indígena – e a luta em torno do reconhecimento dos territórios originários, baseada no direito precedente, identitário e étnico, como principal marco que mobiliza os atores (de ambos os “lados”).

Nesse cenário, pensar as práticas de Etnocomunicação, suas representações e discursos é tarefa essencial para compreender como (e por que), na contemporaneidade, a comunicação é incorporada, apropriada e instrumentalizada pelos povos nativos em suas práticas sociais e políticas, tentando dar visibilidade a formas de comunicar tidas como não convencionais, mas consagradas nestes espaços.

O Movimento dos Povos Indígenas

Conforme perspectiva adotada por Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978. e Maldonado (1999)MALDONADO, E. Teorias críticas da comunicação: o pensamento de Armand. Intexto, Porto Alegre, n. 6, p. 37-60, 1999., não é possível entender o presente comunicológico sem antes localizá-lo em um processo histórico maior, que esclarece suas relações com as problemáticas sociais e filosóficas gerais da contemporaneidade. Nesse sentido, antes de abordamos as práticas etnomidiáticas do CIR, precisamos entender o processo histórico de mobilização do Movimento dos Povos Indígenas e relacioná-lo a uma trama teórica que confira concretude ao movimento social.

Os povos indígenas têm historicamente reagido à ocupação de seus territórios tradicionais e se articulado na defesa de suas culturas. Conforme Santos (2016)SANTOS, R. Reflexões de lideranças Macuxi e Wapichana sobre as contribuições das TICs para os projetos indígenas locais. 2016. 226p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – São Leopoldo, 2016., desde o período da colonização europeia até meados de 1889 com a instituição do Brasil República, os povos indígenas serviam sumariamente aos interesses dos que controlavam o poder.

Esse contexto só começou a mudar em 1908, durante o XVI Congresso dos Americanistas ocorrido em Viena, no qual o Brasil fora publicamente acusado de massacre aos índios. Em consequência disso, em 1910 foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) – a partir de 1918, apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – com o objetivo de resolver o “problema indígena” e transformar os nativos em trabalhadores nacionais.

Em meados da década de 1960, sob acusações de violência, genocídio e ineficiência, o SPI passa a ser investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Nesse período, foi fortalecida a proposta de criação de um novo órgão de tutela responsável pelos povos indígenas, que sob o controle da Ditadura Militar tem o dever de viabilizar a aculturação dos nativos e apressar sua integração econômica. É assim que em 1967 o SPI é extinto e em seu lugar é criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)2 2 Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br. Acesso em: 13 abr. 2021. .

Paralelamente à FUNAI, em 1972, a Igreja Católica cria o Conselho Indigenista Missionário (CIMI)3 3 Disponível em: https://cimi.org.br. Acesso em: 13 abr. 2021. , que passa a atuar junto aos povos indígenas de diversas regiões do país como representante e parceiro político frente à sociedade nacional, nas reivindicações por seu direito à terra e ao reconhecimento de continuarem sendo índios. A Igreja Católica também é a responsável pela convocação e organização das primeiras Assembleias Indígenas para discussão de demandas relacionadas à demarcação das terras indígenas e à efetiva participação dos sujeitos índios nas políticas públicas indigenistas.

Foram essas reuniões que possibilitaram o conhecimento das distintas etnias do país e o seu reconhecimento na luta por uma causa comum. Tais ações fortaleceram suas causas, criando o caminho que estruturaria o Movimento Indígena atual. As assembleias se multiplicam pelo país e, no final dos anos 1970 e meados dos anos 1980, as lideranças nativas começam a estruturar novas formas organizativas em torno de entidades indígenas e indigenistas.

A fundação da União das Nações Indígenas (UNI) em 1979 é o primeiro resultado dessas articulações realizadas durante as reuniões. Após a criação da primeira organização de representação nacional, o Movimento Indígena volta-se para a consolidação de entidades locais e regionais. É assim que em 1984, em Roraima, é criado o Conselho Indígena do Território de Roraima (CINTERR) – que, em agosto de 1990, se tornaria o atual CIR.

Hoje, juntamente com a pandemia de COVID-19, os povos indígenas de Roraima têm de enfrentar uma nova onda de invasão dos seus territórios. De acordo com Baines (2012)BAINES, S.G. O movimento político indígena em Roraima: identidades indígenas e nacionais na fronteira Brasil-Guiana. Caderno CRH, v. 25, n. 64, p. 33-44, 2012., foi sempre um contexto belicoso que os povos indígenas de Roraima e do país tiveram que enfrentar para começar a exigir mais respeito pelas suas culturas e etnias. É a partir deste processo de conhecimento e reconhecimento que o Movimento dos Povos Indígenas se configura como étnico, distinto de outros movimentos sociais no Brasil.

O imperialismo midiático

O Movimento dos Povos Indígenas tem historicamente reagido às formas de opressão e ao genocídio da sociedade nacional dominante. Nesse cenário, a mídia, enquanto ferramenta de poder do capital hegemônico, tem contribuído para a reprodução dessa formação social massacrante, como destacam os estudos de A. Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978., que trazem contribuições essenciais para denunciar o controle geopolítico das classes dominantes sob os meios de comunicação no mundo.

Como explica Maldonado (1999)MALDONADO, E. Teorias críticas da comunicação: o pensamento de Armand. Intexto, Porto Alegre, n. 6, p. 37-60, 1999., a preocupação crítica de Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978. reside em entender de forma mais detalhada as relações entre o capitalismo e o poder da mídia nas sociedades contemporâneas. Por esse ângulo, o interesse de Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978. reside em analisar as diferentes maneiras como as classes dominantes e os grupos explorados utilizam os produtos da mídia – os primeiros como forma de assegurar o controle ideológico sob as camadas menos privilegiadas e os segundos como ferramenta de luta contra-hegemônica.

Ainda na concepção de Maldonado (1999MALDONADO, E. Teorias críticas da comunicação: o pensamento de Armand. Intexto, Porto Alegre, n. 6, p. 37-60, 1999., 2002)MALDONADO, E. A problemática do sujeito e das estruturas: pensar a cidadania a partir do comunicacional: o modelo Mattelartiano. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25., 2002, Salvador. Anais [...]. Salvador: Intercom, 2002. p. 1-20., o pensamento de Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978. situa a análise da produção e circulação da comunicação e da cultura no contexto da economia global, evidenciando as formas como a ideologia opera e cria redes de dominação, com papel decisivo na comunicação de massa na América Latina. Cabe destacar que os trabalhos de Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978., assim como Hall (1997)HALL, S. The work of representation. In: HALL, S. (org.). Representation: cultural representation andcultural signifying practices. London/ThousandOaks/New Delhi: Sage/Open University, 1997. p. 13-74., entendem a ideologia como representações que atuam legitimando interesses da classe dominante para a conformação de sentidos no espaço social em que a vida cotidiana é moldada.

Ao trabalhar com a Teoria da Dependência, Mattelart, Piccini e Mattelart (1976)MATTELART, A.; PICCINI, M.; MATTELART, M. Los medios de comunicación de masas: la ideología de la prensa liberal en Chile. Buenos Aires: El Cid Editor, 1976. abordam os princípios organizativos da ideologia (representações) nos veículos de comunicação, destacando as problemáticas da dependência informacional das populações dos países latino-americanos. Tais teóricos criticavam a mídia por reforçar ideias de desenvolvimento dependente do capitalismo internacional, beneficiando as classes dominantes que continuavam a se privilegiar desse sistema. Conforme eles, essa minoria privilegiada, com seu poder econômico, influencia na produção da mídia impondo suas próprias representações e sentidos sobre o mundo e os sujeitos.

Ao evidenciar que a mídia se encontra inevitavelmente relacionada ao poder econômico, Mattelart, Piccini e Mattelart (1976)MATTELART, A.; PICCINI, M.; MATTELART, M. Los medios de comunicación de masas: la ideología de la prensa liberal en Chile. Buenos Aires: El Cid Editor, 1976. concluem que a informação é apenas um dos muitos produtos comerciais desenvolvidos e gerenciados por alguns grupos privilegiados. Ao trazer essa reflexão, os autores expõem que a classe dominante com o seu monopólio sob os meios de produção tende a impor a sua visão particular do mundo como algo único.

Nessa perspectiva, a análise das mídias deve descobrir o que está além da aparente realidade, trabalhando na identificação dos discursos e seus significados inerentes. Mattelart e Mattelart (2004)MATTELART, A.; MATTELART, M. Pensar as mídias. São Paulo: Edições Loyola, 2004. acrescentam ainda que, na leitura das representações, as mensagens revelam-se repletas de significados, manifestando marcas e interesses de uma sociedade.

Diante disso, percebemos que a mídia possui um papel notável na construção e estruturação do real e torna-se objeto de disputa. Como resultado, como adverte Maldonado (2002)MALDONADO, E. A problemática do sujeito e das estruturas: pensar a cidadania a partir do comunicacional: o modelo Mattelartiano. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25., 2002, Salvador. Anais [...]. Salvador: Intercom, 2002. p. 1-20., a mídia torna-se fruto vinculante dos conglomerados comunicacionais, que usurpam grande parte do espaço midiático para empregar suas matrizes representacionais, contribuindo para o fortalecimento das diversas formas de opressão estabelecidas nas sociedades capitalistas.

Se a mídia se encontra sob domínio de indivíduos e instituições privilegiados, cabe às populações marginalizadas encontrar formas contra-hegemônicas e alternativas de comunicação para começar a negociar sentidos que atualizem suas existências no mundo. Essas expressões alternativas de comunicação surgem como formas de resistência frente às representações impostas pelos grandes conglomerados de mídia.

A etnomídia e os princípios da Etnocomunicação

À vista das discussões realizadas na seção anterior, ponderamos, conforme Maldonado (2002)MALDONADO, E. A problemática do sujeito e das estruturas: pensar a cidadania a partir do comunicacional: o modelo Mattelartiano. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25., 2002, Salvador. Anais [...]. Salvador: Intercom, 2002. p. 1-20. e Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978., que formas de comunicação alternativas seriam necessárias para subverter o domínio do capital sob as populações marginalizadas. Diante disso, pretendemos, nesta seção, pensar a relação das comunidades étnicas com a comunicação midiática, junto com o papel representativo da etnomídia indígena na construção de discursos.

Adotamos, como perspectiva para se pensar as práticas de etnomídia, as experiências de comunicadores indígenas, destacando a relevância do processo pessoal como parte do processo de construção de conhecimentos (MALDONADO, 2002MALDONADO, E. A problemática do sujeito e das estruturas: pensar a cidadania a partir do comunicacional: o modelo Mattelartiano. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 25., 2002, Salvador. Anais [...]. Salvador: Intercom, 2002. p. 1-20.).

Santi e Araújo (2019)SANTI, V.; ARAÚJO, B. Comunicar para mobilizar: as práticas etnocomunicativas do Conselho Indígena de Roraima. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 28., 2019, Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Anais [...]. Porto Alegre: Compós, 2019. explicam que em um cenário de batalhas discursivas, as práticas etnomidiáticas indígenas emergem e se consolidam – filosoficamente orientadas, geograficamente localizadas e politicamente úteis. Essas práticas comunicacionais híbridas surgem a partir do processo de midiatização, no qual diversos campos da sociedade, incluindo aqui os campos étnicos e os movimentos sociais, se apropriam das linguagens e lógicas da mídia. De acordo com Tupinambá (2016)TUPINAMBÁ, R. M. Etnomídia, uma ferramenta para a comunicação dos povos originários. Brasil de Fato, Niterói, p. 1-2, 11 ago. 2016. Disponível em: https://www.brasildefatopr.com.br/2016/08/11/etnomidia-por-uma-comunicacao-dos-povos-originarios. Acesso em: 11 ago. 2018.
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, em um cenário de violência e disputas por terra, a apropriação das ferramentas digitais de comunicação possibilitou aos nativos serem “seus próprios interlocutores”.

Para Tupinambá (2016, s.p.)TUPINAMBÁ, R. M. Etnomídia, uma ferramenta para a comunicação dos povos originários. Brasil de Fato, Niterói, p. 1-2, 11 ago. 2016. Disponível em: https://www.brasildefatopr.com.br/2016/08/11/etnomidia-por-uma-comunicacao-dos-povos-originarios. Acesso em: 11 ago. 2018.
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, tal apropriação permitiu aos indígenas fazerem ouvir sua voz e defenderem-se, provando que a tradição e modernidade podem ser aliadas na preservação de suas culturas e seus povos. A partir dessas considerações, a jornalista conceitua etnomídia como “[...] uma ferramenta de empoderamento cultural e étnico, por meio da convergência de várias mídias dentro de uma visão etno. Por isso o uso deste prefixo”.

Baniwa (2017)BANIWA, D. Upurandú resewara: entrevista com Denilson Baniwa. Revista Usina. Disponível em: https://revistausina.com/artes-visuais/upurandu-resewara-entrevista-com-denilson-baniwa. Acesso em: 30 jun. 2017.
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, um dos fundadores da Rádio Yandê, em entrevista para a página Revista Usina4 4 Disponível em: http://revistausina.com. Acesso em 13 abr. 2021. , perguntado sobre o conceito de etnomídia indígena, respondeu: “[...] é uma mídia que não é mastigada para a massa, mas sim para o entendimento de um grupo, de um grupo que sofre as mesmas coisas, que vê as mesmas coisas, e que anseia pelas mesmas coisas”.

As ponderações de Tupinambá (2016)TUPINAMBÁ, R. M. Etnomídia, uma ferramenta para a comunicação dos povos originários. Brasil de Fato, Niterói, p. 1-2, 11 ago. 2016. Disponível em: https://www.brasildefatopr.com.br/2016/08/11/etnomidia-por-uma-comunicacao-dos-povos-originarios. Acesso em: 11 ago. 2018.
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e Baniwa (2017)BANIWA, D. Upurandú resewara: entrevista com Denilson Baniwa. Revista Usina. Disponível em: https://revistausina.com/artes-visuais/upurandu-resewara-entrevista-com-denilson-baniwa. Acesso em: 30 jun. 2017.
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evidenciam as possibilidades de os povos indígenas buscarem seu protagonismo negado através dos meios de comunicação alternativos, como havia esclarecido Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978., processo este que parte da apropriação e reapropriação das lógicas e ferramentas do campo midiático.

Etnomídia surge, assim, como uma alternativa para a expressão da identidade étnica e autonomia política e social dos povos indígenas. O uso dessa forma de comunicação pelo Movimento dos Povos Indígenas é caracterizado como um modo de expressão alternativo-popular que reconfigura as ferramentas midiáticas às necessidades e interesses de sua coletividade.

De acordo com Baniwa (2017)BANIWA, D. Upurandú resewara: entrevista com Denilson Baniwa. Revista Usina. Disponível em: https://revistausina.com/artes-visuais/upurandu-resewara-entrevista-com-denilson-baniwa. Acesso em: 30 jun. 2017.
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, ao fenômeno relacionado ao surgimento de diversas plataformas que enfocam a etnicidade na produção de conteúdo, dá-se o nome de Etnocomunicação. O jornalista lembra que, nessa construção, cada povo estabelece seus formatos próprios para atender suas necessidades.

Na busca por novos regimes de visibilidade, a etnomídia indígena conjuga então práticas midiáticas, processos socioculturais e aspirações políticas em uma configuração comunicacional específica – a fim de projetar o indígena para além das sociedades anteriores, posteriores ou exteriores – causando desconforto. Os povos indígenas se apropriam das ferramentas midiáticas para construir e evidenciar sua existência e a existência do seu movimento étnico social, já sintonizados com esse novo formato de sociabilidade instituído pelo campo da mídia.

A Etnocomunicação surge para os povos indígenas como necessidade e oportunidade de se trabalhar a comunicação de uma forma alternativa, não estereotipada e que represente de maneira adequada a cultura, as políticas sociais e a identidade de seu povo diante das novas formas de organização da sociedade. Surge como mecanismo que garante acesso à comunicação em um grupo historicamente deslocado do contexto hegemônico da mídia imperialista convencional.

A Análise de Discurso e as perguntas heurísticas

Na sequência, utilizamos a Análise de Discurso (AD) enquanto instrumento metodológico com o propósito de compreender o lugar da cultura contra-hegemônica no processo de construção do texto midiático enunciado pelo CIR. Pois, conforme Souza (2014)SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014., é papel da AD evidenciar o processo de instituição de sentido através da língua e esclarecer por qual motivo o sentido é um e não outro. É na análise do texto midiático – entendido como qualquer produção material que conceba interpretação (notícias, fotografias, vídeos, áudios, silêncios etc.) – que buscamos delimitar as Formações Discursivas (FDs) e vinculá-las às Formações Ideológicas (FIs), para entender o lugar de fala do sujeito e dos sentidos nas produções textuais que acionamos (SOUZA, 2014SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014.). As FIs representam os sentidos em sua condição primitiva, sendo a ideologia sua matéria prima. Como não é possível acessar a ideologia sem um sistema de signos que lhe atribua materialidade, ela precisa se organizar através da língua em FDs.

Seguindo os postulados de Souza (2014)SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014., tentamos refazer esse caminho de forma inversa, buscando nos discursos publicizados pelo CIR em seu portal e nas chamadas “marcas textuais” esclarecer o que eles podem significar no processo discursivo e quais as características do seu discurso. Assim, conseguimos identificar quais FDs integram e saber a FIs que sustenta os seus sentidos.

Tais marcas textuais funcionaram como pontos de entrada para nossa análise e foram estabelecidas após uma leitura flutuante, na qual buscamos as características principais dos textos a serem incluídos ou excluídos de nosso corpus de investigação. Depois da leitura dos materiais para sua identificação, iniciamos o segundo momento de análise, com a delimitação do conceito-análise. Neste artigo, o conceito-análise identificado se relaciona com o próprio objeto da investigação – Movimento dos Povos Indígenas. Com ele, buscamos apurar como os textos de nosso corpus construíram sentidos sobre o movimento social.

Com a definição do conceito-análise, percebemos no material quem tem algo a dizer sobre a temática, o que ajuda a identificar nos textos seus principais enunciadores. Nesta etapa, reunimos como corpus de estudo 89 textos publicados no portal do CIR; desses, por saturação e esgotamento das temáticas, selecionamos duas publicações sobre o Movimento dos Povos Indígenas publicados entre abril e dezembro de 2018. Em seguida, organizamos as publicações através de Sequências Dicursivas (SDs) para evidenciar as marcas textuais que suportam as FDs.

Após a delimitação do corpus, iniciamos a atividade de decodificação e interpretação dos textos elegidos. Aqui uma segunda leitura dos materiais foi imprescindível para aprimorar nossa percepção acerca dos elementos catalogados e seus discursos. Junto com essa segunda leitura analítica, acionamos as três perguntas heurísticas de Souza (2014)SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014. – a saber: (i) Qual é o conceito-análise presente no texto?; (ii) Como o texto constrói o conceito-análise?; e (iii) A que discurso pertence o conceito-análise da forma que o texto constrói? –, com a pretensão de melhor esclarecer os sentidos presentes nos discursos dos textos selecionados.

Ressaltamos que a primeira pergunta encontrou sua resposta no primeiro momento de análise a partir da definição do conceito-análise. Com a segunda pergunta, partimos em busca de um sentido para o conceito-análise durante o próprio movimento de interpretação do texto. Continuamos descrevendo e decodificando o corpus até saturar este sentido, depois passamos para a terceira pergunta. Com ela buscamos identificar o sentido construído no discurso para esclarecer o exercício da ideologia no processo de textualização (SOUZA, 2014SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014.).

Lembramos que a escolha dos textos analisados priorizou escutar a voz do CIR. À vista disso, circunscrevemos a análise para os nove meses (abril a dezembro) após a realização da 47ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, ocorrida no Centro Cultural Lago Caracaranã, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A Assembleia reúne anualmente os povos Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona, Sapará, Taurepang, Wai-Wai, Yanomami e Yekuana em uma programação extensa de debates, análises conjunturais e eventos culturais. Dessa maneira, é recorrente encontrar textos sobre as consequências da Assembleia neste recorte de tempo.

Do material disponível no portal, escolhemos apenas o conteúdo midiático textualizado, originalmente escritos e publicados pelo CIR; excluindo, deste modo, entrevistas, artigos de opinião e textos republicados. Todos os textos utilizados para análise são de autoria da jornalista indígena, Mayra Wapichana, que na época trabalhava como Assessora de Comunicação da organização.

Para questões de organização do processo de análise, seguiremos as recomendações de Benetti e Lago (2007), denominando de SD os trechos recortados para análise e os utilizando nas respostas das perguntas heurísticas.

Os resultados e as tentativas de resposta

Lembramos que as (possíveis) respostas que perseguimos com esta investigação estão pautadas pelos princípios da Etnocomunicação Indígena, a partir de Baniwa (2012) e Tupinambá (2016)TUPINAMBÁ, R. M. Etnomídia, uma ferramenta para a comunicação dos povos originários. Brasil de Fato, Niterói, p. 1-2, 11 ago. 2016. Disponível em: https://www.brasildefatopr.com.br/2016/08/11/etnomidia-por-uma-comunicacao-dos-povos-originarios. Acesso em: 11 ago. 2018.
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; pelos preceitos da Teoria da Dependência e da Representação de Mattelart (1978)MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978. e Hall (1997)HALL, S. The work of representation. In: HALL, S. (org.). Representation: cultural representation andcultural signifying practices. London/ThousandOaks/New Delhi: Sage/Open University, 1997. p. 13-74., e pelos postulados da AD de Souza (2014)SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014..

Com estes termos postos, passamos à análise do primeiro texto selecionado, que foi publicado no portal do CIR no dia 12 de abril de 2018, cerca de um mês após a realização da 47ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima. O texto possui a manchete “Sustentabilidade e o bem viver dos povos indígenas de Roraima”. Após a leitura flutuante do texto, optamos por descrever e explicitar que sentido de conceito-análise é construído pela matéria. Utilizamos a pergunta heurística dois para identificar nesse texto as seguintes marcas textuais sintáticas: “o fruto do trabalho das lideranças tradicionais” (SD1), “as conquistas e os desafios dos povos indígenas” (SD2), “além de encarar problemas territoriais” (SD3), “A principal conquista” (SD4), “conquista das 32 terras indígenas demarcadas e homologadas” (SD5) e “usufruto exclusivo dos povos indígenas” (SD6).

Por meio do exercício interpretativo, estas marcas textuais nos levam a um determinado conceito de Movimento dos Povos Indígenas, através da SD1, como parte de um processo histórico de lutas e conquistas travados pelas lideranças tradicionais. É nas SD2, SD3, SD4, SD5 e SD6 que o conceito-análise começa a assumir a forma de um movimento de luta por oportunidades políticas e garantia dos direitos constitucionais indígenas, essenciais na atual organização das comunidades do estado de Roraima. Esses elementos se tornam claros quando o texto fala dos desafios, conquistas, dos problemas territoriais, das terras homologadas e demarcadas, assim como do usufruto exclusivo dos nativos da região.

Por fim, as marcas selecionadas evidenciam o Movimento dos Povos Indígenas como uma atividade histórica responsável pela garantia dos direitos dos nativos da região, como uma ação coletiva que deve sobreviver nas mãos das novas lideranças indígenas que precisam continuar lutando pela garantia dos direitos já conquistados e por novos avanços nesse meio.

O segundo texto selecionado foi publicado no dia 09 de agosto de 2018, Dia Internacional dos Povos Indígenas. A matéria tem o título “VII Marcha dos Povos Indígenas de Roraima: dois mil indígenas cobraram cumprimento dos direitos garantidos na Constituição Federal Brasileira de 1988 e Convenção 169 da OIT”. Neste texto, algumas marcas chamam a atenção: “direitos garantidos na Constituição Federal Brasileira” (SD9), “ameaças que atacam os direitos indígenas” (SD10), “lembrar ao Estado brasileiro das suas obrigações constitucionais” (SD11), “proteger e garantir os direitos indígenas” (SD12), “Lembrou as 23 mortes causadas ao longo do processo de luta pela terra” (SD13) e “preocupação com o avanço dos garimpeiros, madeireiros, pescadores e outros invasores” (SD14).

Postas em relação parafrástica, essas marcas constroem um certo conceito de Movimento dos Povos Indígenas que dialoga com os sentidos encontrados na primeira publicação, de uma representação marcada pela presença histórica e luta incansável das populações nativas de Roraima, até mesmo referências às perdas ocorridas nas reivindicações do movimento foram encontrados nas SD12 e SD13. As SDs reafirmam a representação realizada pelo CIR como uma ação política voltada à preservação dos direitos garantidos em lutas anteriores, assim como uma recordação constante dos sacrifícios necessários para a conquista desses direitos. É destacado o valor dessas conquistas para as futuras gerações que, assim como as anteriores, devem se esforçar para preservar o legado.

Estas marcas discursivas também acrescentam novas significações e contextos ao conceito-análise. A título de exemplo, as SD09 e SD11 lembram que as conquistas indígenas são direitos constitucionais. Essas são marcas textuais que constroem o sentido de Movimento Indígena enquanto articulação de luta por um direito garantido na Constituição (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 nov. 2022.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co...
), possuindo, portanto, o mesmo nível de relevância que direitos outros.

O último e mais recorrente dos sentidos acerca do conceito-análise apresentados nas marcas textuais é encontrado nas SD10 e SD14. Estas sequências discursivas abordam as recorrentes ameaças às populações nativas residentes do estado de Roraima. Esses são problemas que na maioria dos casos ameaçam a integridade das terras indígenas por meio de atividades realizadas ilegalmente no território nativo como exploração de garimpos, madeira e pesca. O movimento indígena, nessas situações, assume a posição de defensor de seu território.

Esses elementos demonstram claramente como os princípios da Etnocomunicação – etnicidade, territorialidade e reconhecimento (SANTI; ARAÚJO, 2019SANTI, V.; ARAÚJO, B. Comunicar para mobilizar: as práticas etnocomunicativas do Conselho Indígena de Roraima. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 28., 2019, Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Anais [...]. Porto Alegre: Compós, 2019.) – atuam de forma recíproca e interdependente nos produtos de mídia do CIR e nos conflitos de representação convocados nos textos – os quais emergem por meio dos discursos midiáticos manifestos, formatados pela representação (midiática) construída pelo portal do CIR acerca da questão. Aqui as ferramentas de mídia também atuam como concretização tecnológica das representações; como encenações de natureza predefinida e/ou como ferramentas para transpor perspectivas e padrões representacionais (MATTELART, 1978MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978.; HALL, 1997HALL, S. The work of representation. In: HALL, S. (org.). Representation: cultural representation andcultural signifying practices. London/ThousandOaks/New Delhi: Sage/Open University, 1997. p. 13-74.).

A partir das verificações das marcas textuais, da construção do conceito-análise dos textos interpretados e do delineamento da FD principal, podemos enfim perseguir a FI acionada e as respostas referentes à terceira pergunta heurística para identificar a que discurso pertence o objeto discursivo da forma como o texto constrói (SOUZA, 2014SOUZA, S. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. Manaus: Instituto Census, 2014.). Para tanto, optamos por refazer a terceira pergunta heurística incluindo alguns elementos específicos relacionados com a temática estudada.

Com esse rearranjo, podemos enunciá-la da seguinte forma: que discurso representa o Movimento dos Povos Indígenas como uma ação coletiva de luta e garantia por direitos relacionados à homologação e demarcação de terras, construção de representações políticas e preservação ambiental, assim como o reconhecimento e respeito às identidades étnicas indígenas?

Percebemos que a resposta para essa pergunta pode ser encontrada no entorno de uma FI que ultrapassa o midiático e se agrega ao discurso do Indigenato. Mas o que seria este discurso? E qual a relação dele com a construção do conceito-análise de Movimento dos Povos Indígenas nas matérias publicadas no portal do CIR?

De acordo com Barbosa (2009)BARBOSA, M. A. Os povos indígenas e as organizações internacionais: Instituto do Indigenato no direito brasileiro e autodeterminação dos povos indígenas. Revista Eletrônica História Em Reflexão, v. 1, n. 2, 2009., a expressão Indigenato refere-se a uma reconfiguração dos territórios indígenas pelo Direito Português, quando o Alvará Régio de 1º de Abril de 1680 firmou o princípio de que os povos indígenas são os senhores originais de suas terras, sendo sempre reservado o seu direito a elas. Ou seja, um direito originário dos povos indígenas ao seu território tradicionalmente ocupado e anterior à criação do Estado brasileiro, sobrepondo-se, portanto, a todos os outros títulos de propriedade.

Santos (2016)SANTOS, R. Reflexões de lideranças Macuxi e Wapichana sobre as contribuições das TICs para os projetos indígenas locais. 2016. 226p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – São Leopoldo, 2016. explica que o Indigenato é de fato operacionalizado por meio da concepção de posse permanente, não sendo esta regulada pelo direito civil, sendo assim declaratória e uma garantia para o futuro. Dessa forma, compete à União proceder com a demarcação, conforme estabelecido pelo Artigo 67 do Ato das Disposições Transitórias da Carta Magna de 1988.

Outro fator importante acerca do discurso Indigenato é que, conforme a Constituição do Brasil de 1988, a terra indígena é definida pela ocupação e não pela demarcação. Desta maneira, a União precisa usar parâmetros antropológicos para o reconhecimento, como os critérios de organização de uma comunidade, suas práticas, costumes e etnia.

A questão do reconhecimento étnico entra, desta forma, como base do discurso Indigenato, pois, além de ser utilizada como forma de organização sociopolítica pelos grupos para os quais é relevante, também é empregada para a conquista e reivindicação de oportunidades políticas coletivas garantidas a grupos étnicos pela legislação (BARTOLOMÉ, 2006BARTOLOMÉ, M. A. As etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político. Mana, v. 1, n. 12, p. 39-68, 2006.).

Portanto, o discurso do Indigenato, responsável por determinar as representações do Movimento dos Povos Indígenas realizadas pelo portal do CIR, integra uma FI que tem como princípio a circunstância de nativos serem habitantes originários da terra, determinando a transmissão desse direito a seus descendentes para sua continuidade como povos com relações étnicas e identitárias pré-colombianas.

Considerações Finais

No presente artigo, o campo midiático aflora como o principal difusor das matrizes representacionais. A maneira como essas representações são realizadas contribuem para a organização dos agentes sociais e a consequente atualização/manutenção das posições culturais, econômicas e políticas impostas às diversas coletividades e sujeitos (MATTELART, 1978MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978.). É nesse contexto que diferentes campos da sociedade se apropriam das ferramentas midiáticas a fim de atualizar discursos que normatizam determinadas relações de poder, privilegiando alguns grupos em detrimento de outros.

No decorrer deste estudo, entendemos as práticas etnomidiáticas levadas a cabo pelo Portal do CIR como um espaço de luta e resistência (MATTELART, 1978MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978.). Nesse sentido, demonstramos a essencialidade de se pensar a relação das comunidades indígenas com a comunicação midiática e o papel representativo da etnomídia na construção de discursos.

Isto posto, atestamos que o portal do CIR se estabelece nesse campo utilizando os princípios da Etnocomunicação Indígena na busca por novos regimes de visibilidade, conjugando aspirações ético-filosóficas, geográfico-territoriais e etno-política. Os povos indígenas se apropriam das ferramentas midiáticas para evidenciar a existência de discursos étnicos outros, mesmo se utilizando da forma de visibilização instituída pelo campo da mídia. Pois essa é a ferramenta mais à mão.

Assim, por meio da AD, compreendemos como ocorre essa apropriação e quais suas lógicas de organização interna dos discursos e suas intenções. Entendemos, com isso, que o CIR utiliza das ferramentas midiáticas para dar voz e apresentar representações próprias do Movimento dos Povos Indígenas – que partem dos próprios sujeitos representados para fabricar seus discursos.

Em síntese, o que fica de mais importante do presente artigo é a percepção de que no cenário de conflito representacional e discursivo (MATTELART, 1978MATTELART, A. The nature of communications practice in a dependent society. Latin American Perspectives, v. 5, n. 1, p. 13-34, 1978.), as práticas etnomidiáticas afloram e se fortalecem a partir de um contexto histórico marcado pela luta e resistência (SANTI; ARAÚJO, 2019SANTI, V.; ARAÚJO, B. Comunicar para mobilizar: as práticas etnocomunicativas do Conselho Indígena de Roraima. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 28., 2019, Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Anais [...]. Porto Alegre: Compós, 2019.).

Referências

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Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2021
  • Aceito
    06 Nov 2022
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