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Entre formas minimalistas e maximalistas de participação midiática

Between minimalist and maximalist forms of media participation

ENTREVISTA - DIÁLOGOS MIDIOLÓGICOS 23

Entre formas minimalistas e maximalistas de participação midiática

Between minimalist and maximalist forms of media participation

Nico Carpentier

Entrevista concedida a Leonardo Custódio

Doutorando e pesquisador no Departamento de Jornalismo e Comunicação de Massa da Universidade de Tampere, Finlândia. Atualmente pesquisa formas de participação cidadã em mídias comunitárias no Rio de Janeiro, E-mail: leonardo.custodio@uta.fi

Na entrevista abaixo, Nico Carpentier discorre sobre o conceito de participação, bem como modelos, teorias correlatas e aplicabilidade, analisa nesse aspecto os efeitos da internet e as novas mídias de informação, relacionando-os com a exclusão digital e com as características da mídia tradicional, e ainda faz uma análise do desenvolvimento da pesquisa em comunicação participativa - tudo com uma detalhada contextualização da situação na Europa e América Latina, principalmente.

Revista Intercom - O senhor geralmente descreve "participação"como um termo contestável, além de se referir à Carole Pateman que, nos anos 1970, disse que o uso tão corriqueiro da palavra levou ao desaparecimento de uma definição precisa. Como esta visão permanece tão atual?

Nico Carpentier - Há diversas maneiras de pensarmos participação. Eu destaco duas. Uma tenta estabelecer diferenças entre boas formas de participação e um conjunto de outras práticas, como, por exemplo, aquelas chamadas de participação manipulada ou pseudo-participação. Esta abordagem leva à dicotomia entre formas verdadeiras e falsas de participação. Pateman fez exatamente isso ao distinguir participação completa de participação parcial; também a famosa escada de participação de Arnstein tem três principais componentes: poder do cidadão, tokenismo e não-participação. Esta é uma abordagem valiosa, mas o problema é que se olharmos os debates sobre participação na sociedade não veremos nada além de contestação sobre o que significa participar. A simples existência deste conflito - um conceito necessário neste tipo de análise - me remete à segunda abordagem de participação. Se aplicarmos termos de teorias discursivas, veremos que nesta abordagem participação funciona como um significante flutuante que exerce um papel fundamental no político. Neste caso, devemos lembrar que o político tem um significado muito amplo e transcende a estrutura da política institucional. Nestas lutas por participação, há posições diferentes que as pessoas podem tomar. Em alguns casos, a participação é simplesmente rejeitada. Em outros casos, formas minimalistas de participação são reforçadas e/ou facilitadas. Além disso, outros atores preferem formas mais maximalistas de tomada de decisão. Neste conflito político permanente por participação, modelos minimalistas permitem que somente certos grupos - geralmente elites - participem do controle do poder. Por outro lado, formas maximalistas de participação permitem relações de poder mais equilibradas entre diferentes atores e grupos. Ao empregar esta dimensão não-dicotômica entre formas minimalistas e maximalistas de participação, surge a possibilidade de analisar intensidades participatórias em campos sociais diferentes. Se, por exemplo, observarmos participação nas artes - como venho fazendo para meu livro Media and Participation - A Site of Ideological-Democratic Struggle [Mídia e Participação - Um Campo de Lutas Ideológicas e Democráticas] (2011, sem previsão no Brasil) - podemos ver que movimentos como o happening e o neocontretismo brasileiro, nas décadas de 1960 e 1970, buscaram maneiras de quebrar hegemonias, afim de desenvolver formas mais maximalistas de participação em que houvessem relações de poder mais amplas e equilibradas. Outro exemplo de tentativa de maximização participativa foi o teatro de Augusto Boal. Ou seja, Pateman ainda tem razão, porque participação é política. A definição e a prática de participação são partes de uma luta ideológica localizada no cerne da democracia. As artes são só um exemplo. Na comunicação participativa para desenvolvimento, há outro debate semelhante. Nos debates sobre mídia e comunicação nos anos 1970, acreditava-se que mídias comunitárias e alternativas na América Latina e em outras regiões eram valorizadas por seus níveis de participação mais maximalistas. Em algumas discussões mais recentes sobre programas de entrevista televisivos, também há uma preocupação com formas minimalistas e maximalistas de participação. O que temos que lembrar é que participação dificilmente perde sua natureza política por ser necessariamente ligada ao conceito de democracia. Participação e representação (ou delegação de poder) sustentam e definem democracia. E estes três conceitos não se aplicam somente a políticas institucionalizadas; eles são completamente difusos por toda sociedade. Há uma variedade incrível tanto de práticas participativas quanto de usos do conceito de participação. Certamente estes discursos e práticas estão interligados: as articulações discursivas de participação impactam nas práticas participativas, assim como interpretamos estas práticas por meio de discursos. Muitos produtores midiáticos consideram seus programas participativos enquanto acadêmicos designam participação para classificar tantos outros processos. Isto é, a palavra está em todos os lugares e em lugar nenhum, como Pateman argumentou. O termo sempre foi usado, mas atualmente não há um esforço maior para distinguir intensidades participativas e lidar com tantas diferenças e disputas que ocorrem nestas diferentes formas de participação. Participação e suas intensidades precisam ser relacionadas à natureza de equilíbrio das relações de poder que estruturam a tomada de decisões nestes processos. Na esfera midiática, podemos ir de um lado (mais extremo) da dimensão minimalista-maximalista ao outro. Um caso interessante são os reality shows. Muitas pessoas, por exemplo, consideram Big Brother participativo sob o argumento de que os telespectadores podem votar para quem deve ou não ficar na casa. Neste sentido, outros argumentam que os participantes têm acesso à esfera midiática. Pensando através da dimensão minimalista-maximalista, eu diria que, se há mesmo participação nestes programas (e não só acesso e interação), há uma forma muito minimalista, especialmente visível nas relações de poder entre produtores e participantes. Nos dois "momentos" participativos em reality shows (o voto da audiência e o acesso do participante à esfera televisiva) podemos observar a maneira com a qual as dinâmicas de poder funcionam nestes tipos de programa. Se, por exemplo, observarmos como o programa Temptation Island [produzido no Brasil pelo SBT, em 2002 e 2003, sob o nome de Ilha da Sedução] é organizado, veremos que as dinâmicas de poder neste tipo de programa são unilaterais e privilegiam a equipe de produção. O participante dificilmente controla alguma coisa. Além disso, há outro agravante. Um estudo que fiz sobre a recepção de Temptation Island, por meio da análise de postagens de telespectadores em fóruns online na Bélgica e na Holanda, demonstrou que o texto televisivo do programa é em si anti-empático. Ele cria desidentificação e desacreditação entre o telespectador e o participante. A audiência segue uma leitura dominante: "não se identifique com estas pessoas: elas são idiotas. Delicie-se com suas desgraças, pois eles decidiram estar ali por conta própria". E esta desidentificação é alimentada por diversas lógicas, como esta atribuição de responsabilidade pessoal. Eles são "tolos", mas "responsáveis por suas próprias ações" porque eles se "voluntariaram a participar". Estas são formas muito mínimas de participação, em que participantes têm pouco controle e são retratados de maneira desrespeitosa, enquanto a resposta do telespectador é extremamente problemática. Se olharmos sobre o que de fato a audiência pode decidir por meio de seu voto em programas similares - não há votação em Temptation Island - a participação é, novamente, mínima. Os produtores controlam a produção, desenvolvem o conceito e decidem as representações dos participantes, entre tantas outras coisas. A votação esconde a falta de poder da audiência para decidir mais significativamente. Certamente, há algum poder entre os participantes e os telespectadores, mas de uma forma muito mínima, numa relação de poder demasiadamente desequilibrada. Do lado maximalista, um exemplo na grande mídia é o projeto Video Nation, da BBC. Originalmente televisivo [agora online, disponível em: www.bbc.co.uk/videonation/network/], o foi desenvolvido pela Unidade de Programas Comunitários (CPU) da BBC, criada na década de 1970 para desenvolver programas participativos. Mesmo dentro das restrições de uma grande emissora pública, é possível identificar tentativas bem-sucedidas para promover participação de uma maneira mais maximalista. Muito antes da existência de canais como o You Tube, pessoas tinham permissão e assistência técnica para produzir seus próprios materiais para emissoras de televisão da BBC. Havia uma relação respeitosa de colaboração entre profissionais de mídia e participantes. Antes do Video Nation, havia outro projeto chamado Video Diaries [Diários em Vídeo], no qual a produção era baseada na relação direta entre o diretor e a pessoa que seria retratada no documentário. Participantes e diretores decidiam coletivamente, de uma forma bem balanceada. Até a edição era feita em conjunto. Atualmente, estas relações equilibradas de poder ainda estruturam a produção de vídeo para o website (chamado de Video Nation Network). Uma segunda esfera midiática é constituída por uma multidão de organizações alternativas e comunitárias distribuídas pela Europa, América Latina e outras regiões. Nestas organizações há formas de participação muito estruturais/maximalistas, em que pessoas decidem coletivamente o conteúdo, as regras, o planejamento em longo prazo e a administração. Em muitos casos, são pessoas comuns - voluntários fora das posições subjetivas de profissionais de mídia - que produzem conteúdos. Recentemente, num projeto de pesquisa sobre rádios comunitárias suíças e austríacas, eu testemunhei formas impressionantes de descentralização e organização horizontal. As relações de poder eram muito equilibradas na administração e na produção de conteúdos. Mas temos que ter cuidado para não celebrar demasiadamente estas organizações comunitárias e alternativas. Eu também observei lutas e dificuldades constantes para manter o equilíbrio de poder. Durante as entrevistas na Suíça e Áustria, eu percebi a importância do conceito de qualidade para os grupos. Sob uma perspectiva teórica, qualidade parece um fenômeno muito rígido, com uma definição muito estática e hegemônica: algo tem ou não tem qualidade. Mas, nestas rádios comunitárias, qualidade era compreendida de outras maneiras. Uma destas formas é a chamada "qualidade democrática", na qual o termo não remete apenas a questões técnicas ou estéticas. Para estes produtores de rádio comunitária, o processo participativo também define qualidade. Mais importante, a análise mostrou um segundo tipo, a denominada "qualidade negociada". A construção da definição de qualidade se tornou uma parte importante do processo participativo. Eles negociavam dentro das emissoras sobre o que poderia e deveria ser considerado qualidade. Não era apenas um grupo privilegiado de pessoas que impunha critérios de qualidade sobre outros participantes: havia um diálogo interno (e às vezes externo) permanente para definir qualidade. E assim, aquela noção rígida se tornou aberta e contestável. Normalmente, processos participativos são vistos como ameaças à qualidade, culminando em material "amadorístico", mas para estes produtores era exatamente o contrário: participação era um componente fundamental por definir qualidade. Estes são exemplos de formas muito maximalistas. Se a função do comunicador se torna parte do processo participativo, se o poder de decisão é compartilhado para definir tanto o que é qualidade quanto as identidades do produtor e da tecnologia, se a entrada no processo de negociação for permitida, então se alcançam formas mais maximalistas de participação. Obviamente, há posições intermediárias. Este modelo nos permite observar um continuum onde há tipos diferentes de processos participativos em organizações e comunidades diferentes. Também não devemos esquecer que estas formas de participação tendem a mudar com o tempo e elas são contestadas e às vezes estruturalmente rejeitadas. Pode não ser fácil, por exemplo, introduzir negociações de qualidades participativas na grande mídia. Organizações midiáticas não devem tampouco ser consideradas homogêneas. No caso da BBC, a CPU, que produziu o Video Nation, acabou sendo considerada uma organização subcultural dentro da emissora. "Eles" eram a resistência interna, definida como um movimento de guerrilha dentro da própria BBC, exatamente por usar princípios participativos maximalistas e não agir "como devem os profissionais". Isto mostra que mesmo dentro de organizações midiáticas há conflitos e disputas por participação.

Revista Intercom - Como a distinção entre participação, acesso e interação pode clarificar ainda mais este debate sobre a dimensão minimalista-maximalista de participação?

Carpentier - A fluidez do conceito de participação cria um problema analítico em que a falta de uma espécie de ponto de ancoragem dificulta a compreensão deste significante flutuante. Uma maneira de resolver este problema é aceitar que participação não é tudo e diferenciar este de outros conceitos. Por meio desta estratégia negativa-relacional, pode-se estabelecer os limites do campo discursivo no qual seja possível estudar a fluidez da idéia de participação. Os conceitos que apresentam esta oportunidade estratégica são acesso e interação, que são muito diferentes de participação, ainda que tenham alguma semelhança. Mais especificamente, eu definiria acesso e interação como condições de possibilidade de participação. Antes da dimensão minimalista-maximalista, estas noções se sobrepõem e nos permitem movimentar dentro deste continuum. Ter acesso é adquirir uma forma de presença, como em relação a uma tecnologia. Eu estou aqui, perto do computador e eu tenho acesso a ele. Eu posso usá-lo. Acesso pode se referir também à permissão para entrar nos espaços físicos e virtuais de organizações midiáticas. Estas compreensões de acesso são cruciais para falarmos de participação. Não se pode participar ou decidir junto em relações mais equilibradas de poder sem que haja acesso aos locais e às tecnologias de participação. Mas acesso é só um primeiro passo. Há também interação, que é um conceito social, não necessariamente relacionado com o político da mesma maneira que participação. Interação se refere a como pessoas se relacionam e se comunicam com outras. Obviamente, há dimensões de poder, mas interação não é necessariamente relacionada com tomada de decisões. Ainda assim, para participar, é preciso interagir porque se não há interação com a organização, com os produtores e outros participantes, então não há condições de entrada no processo participativo.

Revista Intercom - Esta noção de acesso tem um papel central nos debates sobre a exclusão digital. Recentemente, o governo brasileiro lançou o programa "Um computador por aluno", em que computadores portáteis são distribuídos nas escolas públicas. O então presidente Lula da Silva descreveu o programa como "fundamental para a igualdade de oportunidades e para a construção de um país mais justo". Os objetivos do programa lembram os documentos da União Europeia para a primeira fase da CMSI (Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação). Em uma análise naquela época, o senhor disse que o conceito de participação deveria ser incluído nos debates. Como essa inclusão afetaria as discussões?

Carpentier - Primeiramente, a exclusão digital é uma questão de acesso à tecnologia, mas talvez não devêssemos restringir o debate à informática. O acesso a tecnologias diferentes - como gravadores digitais, mini discos, estúdios de rádio e televisão, fax e copiadoras, entre outras - também deveria ser proporcionado. Ao ampliarmos lentamente esta abordagem, poderemos em seguida nos confortar com a capacidade dos indivíduos de lidar e interagir com essas tecnologias, assim como com outros usuários. Se quisermos organizar sociedades mais justas, talvez precisemos organizar diversos espaços públicos onde pessoas possam se encontrar e interagir uns com os outros. Isto é algo que não é tão promovido, como se este tipo de interação acontecesse automaticamente. Por fim, precisamos olhar como estas tecnologias midiáticas estão sendo usadas de maneira participatória e como elas empoderam seus usuários. No caso da internet, estas questões se relacionam com formas de participação e nossas posições de poder online. Precisamos de mecanismos e ferramentas que nos permitam participar de maneira mais igualitária, não só dentro da mídia - internet, neste caso -, mas também na sociedade. Como esta participação vai nos permitir co-decidir em âmbitos sociais locais, nacionais ou globais? Como poderemos nos fazer ouvir? Podemos inclusive dar um passo adiante e observar como esta participação gera relações de poder mais equilibradas no âmbito da produção de tecnologia em si. Afinal, nós adquirimos os programas, adquirimos a caixinha chamada computador, mas temos pouquíssimo poder para decidir o que está lá dentro, exceto o que é providenciado de antemão pelas lógicas de consumo. Há uma exceção muito significativa: o movimento de open source [código aberto] permite que pessoas participem do que está na caixinha, que tipo de programas estão sendo usados e produzidos, se vão servir a semi-monopólios da indústria de software ou se devem servir a usuários e movimentos participativos de programação. Considerar que o simples acesso à tecnologia desencadeará tudo isso é altamente problemático. O que geralmente está por trás destas lógicas é a individualização do usuário. O computador pessoal tem uma tela e um teclado, é uma pessoa que usa o computador e interage com ele; é daquela pessoa que se espera participação. Eu acredito que esta seja uma lógica muito problemática. A redução do usuário a indivíduo serve, em muitos casos, a uma agenda neoliberal que exclui indivíduos de comunidades, de organizações, de tipos diferentes de redes, sejam elas arborescentes ou rizomáticas. Os indivíduos são excluídos discursiva e materialmente de seus ambientes sociais. Este aspecto é problemático nestes tipos de programas de inclusão digital. É como dar um computador - o objeto - e depois dizer à pessoa que tudo vai ficar bem. Se olharmos estes níveis diferentes, poderemos argumentar que, continuando na lógica elementar de acesso à tecnologia, estaremos criando expectativas muito difíceis de serem realizadas na prática.

Revista Intercom - Neste sentido, o senhor tem sido muito crítico em relação às grandes expectativas colocadas sobre a internet e novas mídias de informação, ao referir-se a este debate como "megalomania futurista", por exemplo. Em resposta, o senhor tem chamado a atenção para o potencial das "velhas" mídias. Como as mídias tradicionais podem proporcionar a realização de formas mais maximalistas de participação?

Carpentier - Esta é uma questão muito difícil. A desconstrução dos discursos das novas mídias e da exclusão digital - para o qual eu tenho tentado contribuir - é um passo fundamental. O determinismo tecnológico que define novas tecnologias como motores da sociedade precisa ser desconstruído por ser o discurso da novidade que nos aterroriza há séculos. Toda vez que aparece uma nova tecnologia, nós depositamos nossas esperanças, ou mesmo medo, e desenvolvemos uma série de perspectivas um tanto reducionistas sobre elas. Esta fantasia de ter um mundo maravilhoso criado por novas tecnologias requer desconstrução permanente. Neste sentido, eu não acredito que a oposição entre utopia e distopia seja benéfica. Não precisamos de perspectivas utópicas ou distópicas, precisamos de pesquisas e teorias críticas decentes. Precisamos estar cientes dos problemas do exagero dos impactos das novas tecnologias, mesmo que o estabelecimento e reconhecimento do potencial destas novas tecnologias continuem sendo absolutamente cruciais. Deste modo, há um argumento interessante que diz que o foco de análise deve ser posto exatamente sobre a fantasia por novas tecnologias. Estamos sonhando com um mundo novo e melhor, onde aparentemente poderemos participar intensamente. Não é por acaso que toda a perspectiva utópica em relação às novas mídias seja alimentada por uma fantasia de participação total. A ideia de que poderemos alcançar este nível amplo de participação nas práticas sociais circula na sociedade. Acredito que seja um erro pensar que novas tecnologias midiáticas nos levarão a este fim, mas este equívoco não desmerece a fantasia em si. Eu defino esta fantasia como utopia, como um horizonte, um imaginário social muito precioso: uma fantasia participativa e democrática que está muito viva. E acredito que, como sociedade, nós sejamos imprudentes ao esperar que novas tecnologias nos conduzam a este fim. Esta é uma visão ingênua e extremamente problemática. Mas a fantasia em si é algo que devemos valorizar e investigar enquanto lembrarmos que este é um horizonte que nunca alcançaremos. Este tipo de fantasia é importante por ser uma força estruturante, que constitui nossos ambientes sociais, políticos, culturais e tecnológicos. É por isso que esta desconstrução deve ser direcionada à natureza supostamente automática dos elos entre tecnologia e transformações sociais, sem desacreditar a fantasia utópica que alimenta esta lógica.

Revista Intercom - Há um número cada vez maior de estudos sobre mídia e participação em regiões diferentes e menos desenvolvidas do que a Europa e a América do Norte. Como esta diversidade contribui para o desenvolvimento deste campo de pesquisa?

Carpentier - Primeiramente, nossos continentes são como caixas extremamente difíceis de serem abertas e que segmentam o pensamento intelectual. Na Europa, durante o século XX, a Guerra Fria causou uma desconexão entre duas tradições intelectuais. Eu sempre me senti frustrado porque mesmo dentro do continente ficou muito difícil chegar a acadêmicos da Rússia e outros países do Leste Europeu e Europa Central. Hoje em dia, ainda há várias nações europeias que são fechadas em si; suas tradições intelectuais se mantêm muito enraizadas em tradições nacionais que restringem suas ambições e suas capacidades de dialogar - mesmo dentro da Europa. A academia permanece como um dos locais de troca internacional, mas ainda há um longo caminho a seguir. Eu e vários colegas temos tentado intervir nesta problemática por meio do nosso trabalho na ECREA (Associação Européia de Pesquisa em Comunicação e Educação). Acredito que deste modo estejamos contribuindo efetivamente para o fortalecimento do campo europeu de comunicação e estudos de mídia e, ao mesmo tempo, superando os problemas da segmentação ao evitar a construção de mais barreiras da "Fortaleza Europa". Em relação ao diálogo acadêmico /intercontinental, o quadro é de pouco otimismo. Obviamente, o desequilíbrio nas estruturas globais de poder desfavorece este tipo de diálogo, mas esta situação não pode nos impedir de continuar tentando. Por meio da ECREA, nós temos nos dedicado a estabelecer conexões com associações regionais de todo o mundo. Estamos desenvolvendo relações de trabalho com a ALAIC, por exemplo. Mas em geral tem sido muito difícil. Enfim, não quero soar pessimista. Certamente há conexões, como as alianças desenvolvidas entre acadêmicos portugueses e brasileiros. É possível encontrar pontes que tenham sido construídas e existe muito espaço para intensificar estes diálogos intra e intercontinentais. Mas em geral ainda é uma situação preocupante. Porém, em pesquisas sobre participação, as relações surgidas a partir das pesquisas de comunicação participativa e desenvolvimento foram muito importantes. O trabalho do professor belga Jan Servaes, por exemplo, tem possibilitado o trânsito de um número significativo de acadêmicos latino-americanos no espaço acadêmico europeu. Há também o trabalho de vários autores individuais que conseguiram atravessar o oceano e ser reconhecidos em diversos continentes, como Jesus Martin-Barbero. Há também uma ponte institucional: a IAMCR (Associação Internacional de Estudos em Comunicação Social). A Associação tem feito um ótimo trabalho na promoção do diálogo global, inclusive sobre participação e comunicação participativa. Ainda existem muitos obstáculos que dificultam encontros (ex.: custos de viagem e taxas de registros para conferências), mas, pelo menos, há canais organizacionais que permitam a circulação de conhecimento. Mas apesar destas pontes, eu ainda me sinto frustrado por não ter acesso a trabalhos que sei que são bons em outros continentes (em parte por causa dos idiomas). Parece que os fluxos acadêmicos seguem com muito mais facilidade da Europa para, por exemplo, a América Latina do que o sentido inverso, o que torna a configuração estrutural atual muito injusta. Ainda há muito mais pontes e conexões a serem construídas neste sentido.

Revista Intercom - Mesmo com a escassez destas pontes, é possível dizer que os esforços acadêmicos em regiões diferentes ajudaram a prevenir um paradigma eurocêntrico de pesquisa em participação? Neste sentido, qual foi a importância da América Latina?

Carpentier - Primeiro, ao invés de um paradigma europeu rivalizado por paradigmas latino-americano, americano e africano, eu gostaria de ver um diálogo global sobre paradigmas. Esta é a diferença crucial. Não devemos descartar cegamente o que já está estabelecido, mas questionar, desconstruir e trabalhar com os paradigmas existentes. Devemos entrar em um diálogo acadêmico sobre as dinâmicas de poder que têm favorecido o ocidente. E devemos repetir este processo o tempo todo, porque há uma tendência de persistência e repetição destes problemas. Com esta ressalva, é importante enfatizar não somente a relevância do trabalho acadêmico na América Latina, mas também as práticas desenvolvidas na região, se pensarmos comunicação participativa e alternativa como paradigmas. As ações de organizações participativas na América Latina provam ser de importância significativa e peculiar para o trabalho intelectual europeu. Na Europa Ocidental (e na Europa em geral), houve o forte estabelecimento da grande mídia. Nas décadas de 1980 e 1990, assim como nos anos 2000, mídias alternativas e comunitárias eram fracas em comparação às emissoras comerciais e públicas dominantes. Em muitos países europeus, elas estavam isoladas, segregadas, sem reconhecimento e marginalizadas. Os exemplos da América Latina - onde havia formas mais radicais de mídias alternativas e comunitárias (radicais no sentido de participação mais maximalista) - provaram-se exemplos cruciais. Estas experiências não marcaram como nomes ou estações de rádio específicas, mas como aglomeradas discursivamente como um todo. Como discurso, estas mídias certamente desempenharam um papel importantíssimo na Europa. Este processo se deve também à mediação da AMARC (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), que em alguns casos conseguiu reunir comunicadores comunitários de diversos continentes. No campo de mídia participativa na Europa, havia muito apoio estimulado pela idéia de que na América Latina fazia-se um grande trabalho no desenvolvimento de experiências mais maximalistas. Mas o preço pago foi o anonimato, pois experiências individuais foram aglomeradas num espaço de princípios, lógicas e discursos. Sabia-se pouco destas experiências também por razões práticas: organizações participativas têm uma tendência para localismos. Ser local não era (ou é) somente uma questão ideológica, mas estes grupos precisavam solucionar seus próprios problemas. Além disso, a AMARC têm tido problemas que a impede de ter mais força internacional. Certamente é uma organização vital e merece ter sua existência celebrada, mas há muito tempo ela tem tido dificuldades em captar recursos financeiros e humanos para desenvolver trabalhos regionais, continentais e globais. Ao mesmo tempo, é difícil analisar teoricamente este campo por sua diversidade de práticas alternativas, comunitárias e participativas. Muitos dos trabalhos desenvolvidos por acadêmicos pelo mundo são estudos de caso. Não há muita teoria de mídias comunitárias. É um dos projetos ao qual eu tento dar uma modesta contribuição. Por muitos anos, eu tenho trabalhado numa base teórica para o estudo de mídias comunitárias e alternativas, mas a diversidade complica a execução de análises mais abrangentes. Por causa desta diversidade, a concentração em estudos de caso é quase natural. Há certamente uma grande quantidade de casos que mostram a importância - às vezes de forma muito celebratória - de mídias participativas, alternativas e comunitárias. No entanto, este tipo de abordagem reforça o predomínio de análises mais locais em detrimento de investigações mais amplas das complexidades das mídias do terceiro setor. Esta prevalência de estudos de caso também diminui a atenção ao que outros acadêmicos em outros continentes têm feito, além de impedir o desenvolvimento de análises mais abrangentes e um diálogo intercontinental sobre estas mídias.

Revista Intercom - Então podemos dizer que a variedade de termos baseados em estudos de caso (como "mídia aborígene", "mídia alternativa", "mídia comunitária" entre tantos) dificulta a elaboração de uma teoria que englobe estes fenômenos?

Carpentier - Há um "sim" e um "não" para esta pergunta. Estes rótulos se tornam necessários, pois tentam capturar a diversidade do campo. No meu trabalho, eu uso termos como mídia comunitária, mídia alternativa, mídia rizomática e mídia da sociedade civil. Cada um destes conceitos tenta capturar um aspecto específico destes fenômenos: o serviço à uma comunidade, a alternativa à grandes mídias, o papel na sociedade civil ou a função de ponto de encontro para movimentos e suas relações com o estado e o mercado. No entanto, se articularmos estes conceitos e abordagens como um quebra-cabeça, nos aproximaremos de uma imagem mais completa da mídia do terceiro setor. Se compararmos estas mídias comunitárias e alternativas às emissoras comerciais, encontraremos diferenças em pelo menos dois níveis. Primeiro, como um setor, mídias comunitárias e alternativas são distintas por sua diversidade. Certamente há diversidade nos setores de mídia comercial e pública. Porém, há uma diferença de intensidade. O terceiro setor, com suas muitas formas de mídias, é constituído por esta diversidade. Assim, a diversidade é tanto uma causa de problemas analíticos quanto, ao mesmo tempo, resulta destas análises. Segundo, apesar da diversidade, ao observar algumas definições - como a do Fórum Europeu de Mídia Comunitária e da AMARC -, percebemos que as mídias de terceiro setor também têm um componente em comum importante: a participação. É perfeitamente possível que haja emissoras públicas de pequeno porte, assim como é possível haver rádios comerciais locais. Mas o que une as mídias do terceiro setor é o compromisso com formas mais maximalistas de participação. A diversidade destas organizações causa o dilema de escolher qual termo usar. É um debate complicado porque alguns defendem determinado conceito e tentam protegê-lo, enfatizando as diferenças entre esta ou aquela versão. Em geral, algumas análises focam em um componente (comunidade, alternativa, sociedade civil ou rizoma) e olham para casos que se encaixem nestes rótulos. Mas acredito que outra abordagem também seja possível, sem necessariamente dizer que seja melhor que a anterior. Esta segunda abordagem de fato combina estes conceitos e rótulos, e sustenta que todas estas mídias têm componentes participativos, mas em formatos diferentes. Mídias comunitárias são participatórias por permitir a participação da comunidade. Mídias alternativas são definidas numa relação antagônica com as grandes mídias, onde se diferenciam justamente por organizar participação. Nas mídias de sociedade civil, cidadãos participam ao exercer o seu direito à comunicação, seja no quotidiano ou em debates políticos mais amplos. Mídia rizomática combina as abordagens alternativa e de sociedade civil, mas coloca-se mais ênfase na sua hibridez, diversidade e flexibilidade sem deixar de valorizar práticas participativas.

Revista Intercom - Por fim, se considerarmos a Rádio Favela como um exemplo brasileiro de comunicação comunitária e participativa, qual seria a maior diferença entre este caso e aqueles que o senhor conhece na Europa? Existe algum tipo de formato brasileiro e formato europeu?

Carpentier - Acredito que as dinâmicas de participação, assim como a necessidade e o desejo de nivelar relações de poder, é algo observável em vários continentes. Mas os contextos sociais, culturais e políticos onde estas organizações estão inseridas são incrivelmente diferentes. A Rádio Favela é um caso interessante porque originalmente lutou contra um regime autoritário, em um contexto estruturalmente diferente, no qual os comunicadores sofriam repressões severas. Há também um contexto histórico muito diferente, uma realidade pós-colonial. Mas rotular estas práticas participativas como tipicamente brasileiras, belgas ou européias é problemático porque prejudica a diversidade. Quando investiguei as rádios suíças e austríacas, eu observei como a participação acontecia naquelas organizações midiáticas, e como o poder era compartilhado na administração das emissoras. Cada uma delas possuía mecanismos distintos para permitir uma forma mais equilibrada de tomada de decisão dentro das rádios. E estas diferenças eram bem substanciais, mesmo em rádios da mesma região geográfica. Assim, precisamos ter cautela com este tipo de análise para que não eliminemos a diversidade que é tão importante para este campo de pesquisa. Por outro lado, contextos nacionais existem e impactam na realidade social. Eles são complicados, híbridos e diversificados. Há legislações, culturas, políticas institucionais e outros fatores que diferenciam estas práticas participativas. Ainda assim, eu diria que as diferenças estão mais em como participação é articulada, concebida, vivida, apreciada e recebida. Mas o que une estas práticas midiáticas participativas, o que define suas naturezas - sem querer parecer muito essencialista - é o foco em relações de poder mais niveladas. Esta parece ser uma fantasia compartilhada por todos nós.

Quem é Nico Carpentier

Nico Carpentier é professor assistente do Departamento de Estudos Comunicacionais da Vrije Universiteit Brussel (VUB - Universidade Livre de Bruxelas). É também codiretor do centro de pesquisa CEMESO, da VUB, e vice-presidente da Associação Europeia de Pesquisa em Comunicação e Educação (ECREA). Seu foco teórico se concentra em teoria do discurso, com pesquisa que se situam na relação entre mídia, jornalismo, política e cultura, especialmente em relação às temáticas de guerra e conflitos, ideologia, participação e democracia.

Nos últimos três anos, seus artigos foram publicados em diversas revistas acadêmicas, como: Journal of Language and Politics, International Communication Gazette, International Journal of Cultural Studies, Telematics and Informatics, Social Semiotics, Journalism: Theory, practice and criticism e CM, Communication Management Quarterly.

Carpentier editou e co-editou 11 livros, incluindo Reclaiming the Media: Communication Rights and Democratic Media Roles (2007); Culture, Trauma & Conflict - Cultural Studies Perspectives On Contemporary War (2007); Discourse Theory and Cultural Analysis - Media, Arts and Literature (2008); e Trans-reality Television - The Transgression of Reality, Genre, Politics and Audience (2010). Em 2007, escreveu Understanding Alternative media, em parceria com Olga Bailey e Bart Cammaerts. Seu novo livro, Media and Participation - A Site of Ideological-Democratic Struggle, tem previsão de publicação em 2011, pela editora Intellect.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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