Open-access SONS QUE NÃO COUBERAM NA TECNOLOGIA (sobre as artesanias decoloniais da escuta)

Sonidos que no encajaban en la tecnología (sobre el arte descolonial de escuchar)

Resumo

Este ensaio debate algumas questões-problema dos estudos sobre escuta na Comunicação, com especial enfoque para as relações com os campos da Estética e dos Performance Studies. Reconhecendo a trajetória e as transformações do conceito de escuta, apontamos três eixos sobre os quais as relações entre escuta e comunicação se ancoram: o debate sobre performance; a própria noção de experiência; e as artesanias da escuta como fabulação crítica e inventiva de futuros e existências possíveis. Apontamos, ao final, para a potência dos estudos que enfocam as oraturas, oralituras e escutas como condições de possibilidade de apreensão daquilo que escapa ao discurso.

Palavras-Chave
Escuta; Performance Studies; Experiência; Decolonialidade; Fabulação

ABSTRACT

This essay discusses some problematic issues found on listening studies in Communication, with a special focus on relations with the fields of Aesthetics and Performance Studies. Recognizing the trajectory and transformations of the concept of listening, we establish three axes on which the correlation between listening and communication are anchored: the debate on performance; the very notion of what constitutes an experience; and the craft of listening as a critical and inventive fabulation of possible futures and existences. At the conclusion, we point to the power of studies focused on oratures, oralitures and listening as conditions for the possibility of comprehension of what eludes speech.

Key words
Listening; Performance; Experience; Decoloniality; Fabulation

Resumen

Este ensayo analiza algunas cuestiones problemáticas en los estudios sobre la escucha en la Comunicación, con especial atención a las relaciones con los campos de la Estética y los Estudios de Performance. Reconociendo la trayectoria y transformaciones del concepto de escucha, señalamos tres ejes en los que se anclan las relaciones entre escucha y comunicación: el debate sobre la performance; la noción misma de experiencia; y el oficio de escuchar como fabulación crítica e inventiva de futuros y existencias posibles. Al final, señalamos el poder de los estudios que se centran en las oraturas, oralituras y la escucha como condiciones para la posibilidad de aprehensión de lo que escapa al discurso.

Palabras-claves
Escucha; Estudios de Performance; Experiencia; Decolonialidad; Fabulación

Um espetáculo para escutar ausências

“Venham escutar a mulher invisível”, anuncia um painel em letras brancas, ao lado da porta da Shakespeare Gallery, em Nova Iorque (EUA), um pequeno teatro com vocação para espetáculos populares de vaudeville, quase sempre de gosto duvidoso, em que senhoras da alta sociedade nem imaginavam em entrar mas seus maridos frequentavam com certa frequência. Durante o ano de 1804, mulheres invisíveis povoaram os palcos de entretenimento populares por todos os Estados Unidos, ocupando espaço entre shows de comédia, de cantores brancos fazendo black face e pin ups em trajes íntimos à mostra. A ideia de apresentar a tal “mulher invisível” era análoga aos freak shows, os atrativos de vocação circense que migravam das trupes mambembes e se inseriam nas veias da indústria do entretenimento dando musculatura a um incipiente mercado de espetáculos que se consolidaria no século XIX (Toll, 1982; Sevcenko, 2001).

A profundidade do palco do teatro era reduzida por um pano negro, que ressaltava a dimensão de proximidade entre espectador e atração. No centro do palco já reduzido estava disposta uma caixa de vidro vazia, do tamanho de um caixão, iluminada por lampiões a óleo na medida em que a mulher invisível “aparecia”. A aparição, naturalmente, era sonora. Sons etéreos, simulando canto de sereias, emergiam de dentro da caixa de vidro enquanto a penumbra se instaurava. “Mais do que um espetáculo de horror, o que se tinha ali era uma espécie de espetáculo erótico”, relata a historiadora Jill Lapore, no episódio “The Invisible Lady”, no podcast The Last Archive (2020). Para Lapore, a experiência do espetáculo das mulheres invisíveis foram centrais para a consolidação, anos mais tarde, dos peep shows, as “caixas” em que homens assistiam a mulheres se exibindo sem tocá-las e que, com o advento dos equipamentos de exibição cinematográfica, resultaram na exibição privada de filmes eróticos.

Em alguma medida, Jill Lapore traduz argumentos semelhantes ao do historiador Nicolau Sevcenko (2001), que demonstra que as experiências do entretenimento do século XIX sedimentaram ideais de modernidade aliadas ao lúdico e ao erótico que foram sendo moldados pelas tecnologias e pelas formas com que o social nomeava moralmente as ações. O que nos interessa neste gesto de resgatar os espetáculos das mulheres invisíveis é recuperar uma espécie de experiência tátil da escuta que permeia compreender os aparatos estéticos das emoções. Ao “sentir” a mulher invisível através da escuta, homens, em geral, brancos de classes sociais médias e altas, também “desincorporavam” essas mulheres, imaginavam cenas ou sensações que não cabiam na educação sentimental do casamento burguês.

Os cantos etéreos que saíam da caixa de vidro em penumbra se convertiam em sussurros apontando para zonas de indiscernibilidade entre o onírico e o erótico. Cantos de sereias ou ninfas tanto moldavam a imaginação masculina quanto aprisionavam a fantasia do feminino (Cavarero, 2011). A experiência da escuta se dava numa cena montada: a caixa de vidro, o palco reduzido, a criação artificial de intimidade, os tubos de sons por onde, em geral, mulheres que trabalhavam na “cozinha” do teatro, camareiras, mulheres negras de vozes potentes, sussurravam e encantavam os homens pela escuta. Mulheres que eram ouvidas e ganhavam vida - mesmo sem rosto - num contexto em que a indústria do entretenimento, com rígidos padrões corporais para mulheres brancas (as pin ups), as impedia de atuar. No fosso dos teatros, em geral, ocupados por orquestras para números musicais, outras “mulheres invisíveis” ganharam forma nas fissuras da escuta.

Então uma primeira questão: em pleno debate sobre visibilidade e representação, que, em alguma medida, incidem na dimensão de aparição ou condições de aparecimento (Butler, 2018), qual o papel da escuta na formulação desses problemas de pesquisa? O que escutar um corpo significa, do ponto de vista, sobretudo estético - entendendo a estética como o campo da formulação entre política, forma e expressão. Sugerimos uma retomada dos escritos de Jacques Rancière (1996), sobretudo quando o autor descreve a constituição de “seres de palavra” que, no processo de emancipação, estão apartados da partilha do sensível e desenvolvem formas de se fazerem ouvir - trata-se de transformação dos murmúrios em formulações.

O conflito separa dois modos do estar-junto humano, dois tipos de divisão do sensível, opostos em seu princípio e no entanto entrelaçados um no outro nas contagens impossíveis da proporção, assim como nas violências do conflito. Há o modo de estar-junto que situa os corpos em seu lugar e nas suas funções segundo suas “propriedades”, segundo seu nome ou sua ausência de nome, o caráter “lógico” ou “fônico” dos sons que saem de sua boca. O princípio desse estar-junto é simples: dá a cada um a parcela que lhe cabe segundo a evidência do que ele é. As maneiras de ser, as maneiras de fazer e as maneiras de dizer — ou de não dizer — aí remetem exatamente umas às outras

(RANCIÈRE, 1996, p. 40)

Os momentos em que os grupos apartados se tornam seres de palavra são aqueles em que, podemos dizer, eles produzem sons articulados capazes de afetar a partilha do sensível institucionalizada. Nesse sentido, a afetação é parte de um duplo movimento: os grupos apartados desenvolvem mecanismos para apreender lógicas de sentido daqueles que possuem parte e os grupos que tomam parte passam a se sensibilizar com a “fala” dos sem parte – que deixa de ser um murmúrio para se tornar uma formulação. A sensibilização com a fala, com a produção de sons, vai depender da capacidade de escuta. É por isso que temos visto, em muitos espaços institucionalizados, a reivindicação da produção de acolhimento mediante uma “escuta”. Trata-se de garantir mais e melhores condições para que os diversos grupos sem parte sejam ouvidos, protegidos e articulem alianças no processo de reorganização da partilha do sensível.

Quando os espetáculos de mulheres invisíveis já estavam em declínio, sobretudo em função da criação da luz elétrica e do maravilhamento das imagens, o ensaísta Thomas Wentworth Higginson (1881) escreveu um texto em que afirmava que a “mulher invisível” tinha sido uma importante metáfora para pensar a política em torno das questões de gênero no contexto do século XIX. Reclusas em seus fossos, sem rostos, as mulheres invisíveis, na perspectiva do autor, sintetizavam a premissa de que mulheres tinham que ser “guardadas” fora do alcance do social - e aqui ele estava endossando os movimentos sufragistas de luta por direito a voto das mulheres. A guinada política na interpretação de Higginson condiciona apreender os paradoxos e ambiguidades da escuta: a invenção da privacidade para as mulheres burguesas, como relata Sennett (2015), permite reconhecer o enclausuramento convertido em ausência de visibilidade, ao mesmo tempo, nas brechas dessa intimidade, vozes passam a aparecer dando uma espécie de “vida invisível” a outras mulheres. As vozes etéreas e oníricas das mulheres invisíveis apontam para questionamentos em torno da política das performances da escuta: vozes femininas seriam também apaziguadoras, geradoras de bem-estar.

Essa aparente dialética nas abordagens sobre escuta - entre as questões de linguagem e performance em consonância com aspectos identitários e políticos, dão relevo ao que se convencionou chamar de epistemologias aurais (Gautier, 2015), ou seja, a escuta e os regimes aurais como organizadores das diferenças e desigualdades do mundo e que propõem uma espécie de revisão ou virada teórica para reenquadramento dos problemas de pesquisa nas Ciências Sociais a partir da escuta. Na perspectiva de Gautier, escuta-se a diferença na medida em que o mundo em desigualdade permitiria certos sons e certas vozes “aparecerem” e outros sons e corpos não.

Performance

Os espetáculos das mulheres invisíveis não possuem registros gravados, ou seja, são parte do que Diana Taylor chama de repertórios da performance (Taylor, 2013), ou episódios que são narrados ou corporificados por atores sociais traduzindo a experiência em forma de vivência, memória ou fabulação. A ausência de arquivos sobre espetáculos populares atravessa questões sobre o cânone e suas dinâmicas de exclusão, ao mesmo tempo, lega para a história oral e para as práticas epistemológicas no campo da História, parte significativa da construção do conhecimento. Em alguma medida, estamos nos vinculando aos questionamentos de Taylor sobre como interpretar os arquivos em suas ausências, em suas lacunas e ambiguidades. A perspectiva é problematizar ainda mais os eixos investigativos da autora e sublinhar a pergunta: de que maneira é possível escutar um arquivo ausente? Propomos um gesto mais transversal que implica em debater o que significa a escuta nos Estudos de Performance na Comunicação.

Neste sentido, a busca será por refazer problemas de pesquisa numa espécie de revisionismo aural dos escritos sobre Performance. Ao debater performance, recepção e leitura, Paul Zumthor (1993, 1997, 2000) enfatiza o caráter da oralidade como central numa espécie de pragmática performática. Há nesta perspectiva uma espécie de escrita gestual e tentativa de dimensionar avanços nos campos da Linguística e da Teoria da Literatura, primordialmente. Ao enfatizar a pragmática da leitura e da oralidade, o autor também acionaria o caráter emocional da escuta. Na voz, atesta Zumthor, a palavra é memória-em-ato de um contato, acionamento que recupera e corporifica a dimensão fenomenológica da performance.

Esta perspectiva estava bastante conectada aos argumentos de estudos musicológicos em consonância com uma antropologia da escuta, como apresentada por Tia Denora (2000). A escuta permitiria formar cenários cotidianos em que vivências, afetos e conexões se dariam numa profunda inter-relação entre espacialidades e experiências. A autora vai detalhar, por exemplo, os casos de escuta individual (através de fones de ouvido) em espaços públicos e a sobreposição cinestésica entre escuta e experiência urbana, transformando paisagens em lugares habitados pelo corpo ouvinte.

Cássio Lucas (2019 e 2022) adensa o debate da relação entre escuta e performance. Recorre ao termo escutas expandidas para reforçar as dificuldades metodológicas neste campo:

Não se há acesso direto a uma escuta (conforme vivida por alguém), mas somente expressões da escuta. Rastros, indícios materiais, simbolizações para o que se escutou. Qualquer relato de escuta é a tentativa de abordar essa escuta sob determinado aspecto comunicacional. Qualquer expressão de escuta (seja uma fala pessoal ou a arriscada experimentação imagético-sonora a que nos referimos) é a atualização de uma escuta possível: uma pista para uma investigação comunicacional.

(LUCAS, 2019, p. 2)

O argumento de Lucas indica uma espécie de giro comunicacional que coloca em relevo as zonas limítrofes entre os estudos de Escuta na Musicologia e na Comunicação. Na medida em que aponta que escuta é sempre relato, o autor parece interessado em debater a construção, qualidade e natureza deste relato sobre o ato de escutar - neste caso, especificamente, música. Haveria, na perspectiva do autor, uma espécie de espaço vazio entre a produção de escuta musicológica, técnica, elencando acordes, harmonias, timbres e acentos; e uma escuta comunicacional, em que ouvintes sem “letramento” musicológico, fora dos conservatórios e escolas de música, deixam os rastros de sua escuta em redes sociais, testemunhos em vídeos e análises críticas jornalísticas. Particularmente, é essa escuta digamos banal, ordinária, que nos interessa, justamente pelo seu aspecto vernacular, popular e repleto de vestígios que narram consensos e dissensos sobre as maneiras ampliadas de escutar o mundo.

Experiência

Os rastros e indícios materiais ou simbólicos que chamam atenção Cássio Lucas também são as chaves para pensar os estudos sobre experiência e experiência estética. Quando se iniciam os estudos para compreender a experiência de escuta de determinados gêneros musicais no campo da Comunicação, Gisela Castro (2005) e Jorge Cardoso Filho (2010) destacaram que as próprias tecnologias empregadas eram formas de interagir com o ambiente, paisagem ou contexto cultural, e, por isso, a escuta deveria ser pensada como uma prática, que poderia ser exercitada a fim de perceber as propagações dos sons a partir da vibração entre corpos.

Nesse sentido, espaços, animais, plantas e outros seres vivos (nos cabe pensar também em outros seres) possuem a capacidade de “experienciar”, desde que estabeleçam relações de troca e interação com seus respectivos ambientes. O desenho argumentativo aqui é dimensionar a relação tátil da escuta com o mundo, partindo de Dewey para uma espécie de discussão sobre bioacústica (Laiolo, 2010), pensando as vibrações, projeções, sentidos e sensibilidades das vibrações aurais que foram centrais para o debate das ciências naturais e seus deslocamentos para a Comunicação. A bioacústica consiste num amplo campo do conhecimento utilizado desde a zoologia, biologia, oceanografia, entre outras áreas, que estuda o comportamento de comunicação dos animais através de sinais sonoros. A dimensão de experiência da bioacústica, quanto deslocada para o campo da Comunicação, contribui tanto para a observação de práticas e léxicos profundamente interdisciplinares quanto para o debate sobre o papel das tecnologias e das mídias nas leituras, interpretações, categorizações e estetizações da escuta no campo das artes e da cultura audiovisual.

Ao pensar o papel da escuta na preservação de faunas, entidades e seres não-humanos, debate-se uma epistemologia aural que parece deslocar e alocar os conhecimentos dos povos indígenas sobre a escuta da floresta, das árvores e os saberes de uma prática de vida em concomitância com avanços tecnológicos que habilitam a ciência a escutar os seres vivos. A perspectiva é pensar o quanto a bioacústica conecta hermenêuticas holísticas a desdobramentos das chamadas ciências naturais, aquela que se desenvolveu - e se desenvolve - graças ao desenvolvimento tecnológico e construção de aparatos artificiais capazes de ler, interpretar e datificar sons. A partir das epistemologias aurais, uma ecologia de saberes se interpenetra, relativizando o caráter positivista e evolucionista da ciência e apontando para regimes de simultaneidade de conhecimentos que parecem reconhecer temporalidades espiralares (Martins, 2021) nas formas de construção de saberes.

A bioacústica se converte tanto numa aproximação com as dimensões aurais indígenas quanto às práticas artísticas de Land art, Earth art ou Earthwork, em que o terreno natural, ao invés de prover ambiente para a obra de arte, ele mesmo se converte em material para a criação artística. Uma das principais obras em que as epistemologias aurais dão relevo a premissas que tanto promovem uma escuta da terra quando apontam para o aspecto profundamente tecnológico da formação de uma escuta poética é o Sonic Pavilion, localizado no complexo artístico Instituto Inhotim e desenvolvido a partir da experiência do artista Doug Aitken. Dentro de uma galeria envidraçada, construiu-se um orifício de 202 metros de profundidade, por onde passam um conjunto de microfones que captam os sons da terra. “Transmitido em tempo real, os ruídos emitidos ocupam todo o ambiente. Os vidros da galeria são revestidos de um filtro que torna a paisagem – de vales e montanhas – nítida quando vista de frente, e difusa quando observada a partir de qualquer outro ângulo”, descreve o texto disponível no site do Instituto.

A dimensão artística de escutar a terra, quando colocada em perspectiva a partir de uma clivagem da ordem da experiência, permitiria situar, por exemplo, de forma relacional, a obra artística Sonic Pavilion ao trabalho funcional de monitoramento da “saúde” dos oceanos num projeto como “Listen to the Deep Ocean Environment (LIDO), do Laboratório de Bioacústica Aplicada (LAB), da Universidade Técnica da Catalunha, na Espanha. A estrutura de software utilizada permite identificar, avaliar ruídos, classificar e obter localização das fontes acústicas como sons que vão desde recursos naturais (chuvas, terremotos) até artificiais (plataformas, barcos) e biológicos (animais marinhos) com a finalidade de acompanhar os fluxos das ações oceânicas, ainda mais importantes na preservação da vida e precaução de acidentes diante das mudanças climáticas.

Parte das ecologias de saberes aurais aqui descritas também se conecta a argumentos da Antropologia da Escuta (Domínguez Ruiz, 2015, Bieletto-Bueno, 2017 e 2019), em que o trabalho de campo permite elaborar problemas de pesquisa a partir da experiência etnográfica. Aqui, uma virada cultural e inserção de problemas investigativos a partir da América Latina se faz necessária. Ao debater como a noção de silêncio é ressignificada na Cidade do México, Natalia Bieletto-Bueno reconstitui o trauma de escutar a tragédia a partir de um traço eminentemente geográfico e cultural: o terremoto. A perspectiva da autora é debater o quanto a ideia de ruído e silêncio são culturalmente inscritas em memórias, fraturas e experiências em que a “escuta da terra” passa a ser um dado cultural, experienciado por um povo. O silêncio, para moradores da Cidade do México que viveram os horrores dos maiores terremotos de sua história, é parte resultante de um acontecido. E o início dos horrores das buscas por sobreviventes.

Bieletto-Bueno conjuga, através da Antropologia da Escuta, um duplo gesto interpretativo para o som culturalmente inscrito na sociedade mexicana: de um lado, o letramento dos moradores que “sabem” quando o terremoto se aproxima, a partir de relatos e interpretações sônicas de ruídos; de outro, a capacidade de escuta de bombeiros para resgatar sobreviventes em terremotos: sussurros, rastros de respiração e de vibrações são traços fundamentais para encontrar corpos vivos que pulsam através dos ouvidos. Aqui, a bioacústica conjuga uma ecologia de saberes que aproxima humanos, não humanos e dispositivos tecnológicos, promovendo enredamentos que permitem a busca pela vida. Com ajuda de aparelhos de ausculta e também de cães farejadores, tem-se uma conjunção de dispositivos técnicos, sensoriais e animais em trabalhos de resgate. A triangulação de aspectos permite reconhecer a relação entre escuta e experiência como uma rede de sensibilidades (do bombeiro que conduz a operação, do aparelho técnico - auscultador - e do animal com sua natureza sensível particular).

Uma chave fabulatória

Voltamos ao espetáculo das “mulheres invisíveis”, Nova Iorque, século XIX. Em todos os arquivos que buscamos, não há registro sobre que mulheres eram essas que criavam sons, que habitavam as entranhas do entretenimento e da criação. Mulheres que encantavam com cantos, misto de vozes, sussurros, lamentos. Robert C. Toll (1982), ao descrever a incipiente indústria musical nos Estados Unidos, resgata o uso de mulheres negras como vozes desincorporadas, emprestando garganta-glote-pulmão para outros corpos de outras mulheres brancas. Algo que iria se consolidar na indústria da música em que compositores negros criavam músicas para ídolos brancos, como foi o caso de Elvis Presley - um rosto branco para o cancioneiro negro do rock, colocando em relevo o racismo como parte da formação da indústria do entretenimento.

Wayne Koestenbaum (2013), ao investigar os manuais de canto de Ópera do século XIX, relata as semelhanças anatômicas entre a garganta e a vagina, numa perspectiva de pensar uma relação entre voz e âmago, também voz e alma, que se converteria em emissão vocal e adentramento de outro corpo. Na conjugação entre os dois autores Toll e Koestenbaum e na fissura dos arquivos e documentações bibliográficas, fabula-se a existência do corpo negro de uma mulher que, no fosso de um teatro empoeirado, canta. Trata-se da construção do som, da elaboração poética de uma voz, como sugere pensar Adriana Cavarero (2011). Uma política que se faz na voz que seduz e vacila sobre o tecido social. Fosso do teatro, garganta do corpo: a emissão que corporifica, desincorporando. Dialética entre performance e experiência.

Há algo que vaza nos arquivos e que permite estabelecer a fabulação crítica (Hartman, 2020 e 2022) na escuta. As artesanias sonoras das mulheres negras nos fossos dos teatros criam a ilusão de que as “mulheres invisíveis” vão contar outros modos e narrativas sobre a escuta. Propõe-se então o debate em torno da noção de artesania decolonial da escuta, ou em alguma medida, a busca fabular pelos sons que se perderam em arquivos ausentes. Ao invés de pensar como Simon Frith (1996), que dispositivos tecnológicos foram capazes de armazenar, amplificar e reconfigurar as vozes e os sons, refazer o percurso: que sons não couberam nas tecnologias? Por isso, a noção de artesania como uma espécie de resposta às insuficiências da dimensão arquival. E também como gesto metodológico para a recuperação da memória não-ouvida. As artesanias da escuta são inscrições metodológicas da história oral que permitem recontar narrativas ausentes a partir de lacunas arquivais que se configuram em formas de questionar o caráter colonial (que dividiria o mundo em validações de experiências e a partir de relações de exploração e extrativismo), repensar como a escuta é um aparato para repensar o estágio do capitalismo (a mercantilização do mundo, exploração através do consumo, trabalho e natureza) e situar o legado opressor do patriarcado (que desvalorizou corpos de mulheres, bem como vida social e práticas diversas).

Mais do que uma ontologia, propomos aqui pensar a artesania da escuta como uma ética comunicacional que questiona a própria noção de autoria - e portanto, os alicerces dos grandes autores e teóricos das práticas científicas. Nas artesanias, a escuta compreende, no mínimo, uma diluição da noção de autoria, abrindo-se para práticas coletivas de construção de conhecimento, em que saberes populares, ancestrais, calcados em outros sistemas que não os arquivais da ciência, se constituem como acentuadores de uma crise de autoridade do relato científico. Debater a escuta como método decolonial reconhece a existência de intermediários, mediadores e intensificadores da construção do conhecimento, propondo, assim, a retirada da transparência e da neutralidade daquilo que está sendo contado. Revisar os parâmetros metodológicos da escuta pressupõe não apenas rever protagonismos no campo científico, mas apontar para detalhamentos que visam rever práticas da colonialidade (Quijano, 2020) e suas incidências e permanências no contemporâneo.

O que propomos a partir da artesania da escuta é algo que se assemelha ao gesto de criação da noção de oratura, em que o linguista ugandês Pio Zirimu (1998) entende que há um sistema literário, ficcional, que permanece na epiderme da cultura negra como parte de um processo que converte o trauma em existência, vivência e esperança. A noção de oratura mune a dimensão de oralitura que vai consagrar Leda Maria Martins (2021), na virada étnico-racial dos Estudos de Performance, em que, por mais que a colonialidade tenha se imposto nas relações de poder simbólicas e culturais através dos arquivos, dos museus, do furto de bens culturais e materiais, há algo que persiste à revelia das violências coloniais e que seria, portanto, a espiral que faz permanecer parte dos sons e memórias negras.

  • Detalhes Editoriais
    sistema duplo cego
  • Finaciamento
    CNPq
  • Como citar
    CARDOSO FILHO, Jorge C. e SOARES, Thiago. SONS QUE NÃO COUBERAM NA TECNOLOGIA (sobre as artesanias decoloniais da escuta) INTERCOM - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 48, e2025103. https://doi.org/10.1590/1809-58442025104pt.
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    Dr. Jorge C. Felz Ferreira
    Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF
    Dra. Ana Paula Goulart de Andrade
    Univ. Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ
  • Editor Associado
    Dr. Sandro Torres de Azevedo
    Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2024
  • Aceito
    18 Nov 2024
  • Publicado
    15 Maio 2025
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