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O discurso midiático e a 'nova classe média': articulações de uma experiência social em processo

El discurso de los medios y la 'nueva clase media': articulaciones de una experiencia social en proceso

Resumo

O texto problematiza diferentes dimensões da "nova classe média", em especial abordagens do discurso midiático que partem de associações com frações de classe de diferente capital econômico. A partir de pesquisa bibliográfica dos temas que articulam teoricamente a questão, observa o fenômeno da "nova classe média" em uma perspectiva relacional e considera seus reflexos na vida concreta de toda a sociedade. Assim, discute o modo como as vivências proporcionadas pelo aumento do poder de consumo entre esses sujeitos são representadas nos meios de Comunicação, remetendo a novas experiências para percepção de si e de sua posição social, colaborando para a conformação da sua identidade de classe e da sua relação com os demais grupos. Por fim, a partir de uma perspectiva que se filia à teoria de Raymond Williams, o texto aborda a "nova classe média" como uma formação cultural em estado pré-emergente, uma experiência social em processo, cujas implicações não estão totalmente classificadas.

Palavras chave
Nova classe média; Ordem social; Estrutura de sentimento; Meios de Comunicação; Consumo

Resumen

El texto analiza las diferentes dimensiones de la "nueva clase media", especialmente enfoques del discurso de los medios que partan de asociaciones con fracciones de clase de diferente capital económico. A partir de una investigación bibliográfica de los temas que teóricamente articulan la cuestión, observa la "nueva clase media" como un concepto relacional y considera su impacto en la vida real de toda la sociedad. Así, refleja la forma en que están representados en los medios las experiencias ofrecidas por el aumento del consumo de poder entre estos sujetos, en referencia a las nuevas experiencias a la percepción de sí mismos y su posición social, contribuyendo a la formación de su identidad de clase y su relación con otros grupos. Por fin, desde una perspectiva que se une a la teoría de Raymond Williams, el texto analiza la "nueva clase media" como una formación cultural en el estado pre-emergente, una experiencia social en proceso, cuyas derivaciones no se clasifican totalmente.

Palabras clave
Nueva clase media; Orden social; Estructura de sentimiento; Medios de comunicación; Consumo

Abstract

The text problematizes different dimensions of the "new middle class", especially approaches of media discourse which depart from associations to class fractions of different economic capital. In thinking the "new middle class" as a relational notion, it observes the phenomenon from the tensioning between different class fractions, considering its reflections in the life of the whole of society. It reflects on the ways in which the experience provided by the increase in consumption power is represented in the media amongst these subjects, referring to new experiences allowing them to perceive themselves and their social position, thus contributing to the conformation of their class identity and of their relation to other groups. Finally, based on theoretical work of Raymond Williams, the text approaches the "new middle class" as a cultural formation in its pre-emergent state, a social experience in progress, whose outcomes are not completely classifiable.

Keywords
New middle class; Social order; Structure of feeling; Media; Consumption

Introdução

O termo "nova classe média", nos últimos anos, tem sido largamente utilizado por diferentes e importantes esferas sociais no Brasil. As diversas abordagens que o tema tem recebido nos meios de Comunicação apontam para o crescimento da classe média, incluindo nesta faixa a parcela da população de classe popular que ascendeu economicamente e aumentou seu poder de consumo. Este foco na renda, no entanto, tem tirado da pauta reflexões sobre as disputas de classe: o que muda e o que se mantém em termos de desigualdade social.

A pesquisa que norteia este artigo tem, entre seus objetivos, localizar e compreender as relações entre valores residuais e emergentes que se fazem presentes nas frações da classe média e da "nova classe média" a partir de diferentes representações sobre ambas no discurso dominante – governo, mercado e, especialmente, nos meios de Comunicação. Partindo de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, propomos neste artigo pensar como essas mudanças se fazem presentes no cotidiano e na conformação da identidade desses sujeitos, tendo como aporte teórico principal os conceitos desenvolvidos por Raymond Williams.

O texto se divide em quatro etapas: na primeira, refletimos sobre a dominação de classe a partir dos tensionamentos entre valores dominantes, alternativos e opositores (WILLIAMS, 2011_______. Cultura e materialismo. Tradução André Glasser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.). A seguir, apresentamos diferentes formas pelas quais os discursos dominantes (político, econômico e, sobretudo, o midiático) têm apresentado a ascensão da "nova classe média", colaborando para a construção de uma "meia verdade" sobre o tema (SOUZA, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). Na terceira, partimos da proposta de Williams (1979)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. de que uma nova classe representa uma nova formação cultural para pensar como as transformações proporcionadas pelo fenômeno podem provocar adaptações e incorporações entre as frações de classe. Por fim, apresentamos a proposta de refletir a "nova classe média" a partir do conceito de "estrutura de sentimento", o que implica considerar esta formação como uma experiência social em processo.

A (nova) classe média e as relações de dominação e subordinação

Entendemos o conceito de classe como imprescindível para compreensão da dinâmica geral da vida social, pois toda a organização e estrutura específicas de uma sociedade estão relacionadas a intenções sociais que são regidas por uma classe particular (WILLIAMS, 2011_______. Cultura e materialismo. Tradução André Glasser. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p.50). Para Jessé Souza (2013)SOUZA, Jessé. O economicismo e a invisibilidade das classes. Anais do 37º Encontro Anais da ANPOCS, Águas de Lindóia/SP, setembro de 2013. p.1-22. Disponível em: < http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1179&Itemid=290>. Acesso em: 21 out.2013.
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, a reprodução e a legitimação da desigualdade se dá a partir da manutenção dos mecanismos de funcionamento da ordem social de forma opaca, de modo a não explicitar os interesses e as vantagens dos que detêm o privilégio de classe.

Neste sentido, tomamos classes como conjuntos de agentes que "ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de decisão semelhantes" (BOURDIEU, 2011________. O poder simbólico. 15.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011., p.136). Para a construção de nossa reflexão, portanto, nos filiamos à proposta de Williams (2011)_______. Cultura e materialismo. Tradução André Glasser. São Paulo: Editora Unesp, 2011. de observar a vida social por meio do funcionamento de um sistema central de significados e valores que são dominantes. Por sua constituição dinâmica, esse sistema não se reconhece apenas em termos abstratos, ele se constrói e se reforça nas práticas que formulam um processo real, de incorporação desses valores.

Assim, a dominação de classe se mantém não apenas por meio do poder ou da propriedade, mas também pela cultura do vivido – o que inclui a experiência, a saturação do hábito, os modos de ver, incorporados e renovados em todas as etapas da vida. Nesse contexto, os valores dominantes não são únicos nem estáticos, eles são tensionados com sentidos alternativos/opositores1 1 Apesar de estarem muito próximos, os sentidos opositores se constituem a partir de forças sociais e políticas precisas (que reivindicam uma mudança do dominante), já o alternativo se refere a algo que desvia do padrão dominante, sem necessariamente combatê-lo (WILLIAMS, 2011). . O processo hegemônico de constituição da vida social funciona por sua atividade e adaptação contínua. Isso significa reconhecer (e acomodar) significados, valores, opiniões e práticas alternativas e opositoras na estruturação da cultura efetiva dominante (WILLIAMS apudCEVASCO, 2001CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001., p.55).

A observação do processo social, a partir de tensionamentos que incluem interesses que divergem dos dominantes, leva Williams (1979)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. a retomar o conceito de hegemonia de Gramsci que, em sua análise, inclui e ultrapassa os conceitos de ideologia e de cultura. Para ele, a noção de hegemonia representa um avanço na observação da vida social à medida em que reconhece o processo social como um todo, sem apontar distribuições específicas de poder e influência. Ou seja, implica perceber a relação entre dominação e subordinação "em suas formas como consciência prática, como efeito de saturação de todo o processo de vida" (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p.111), abrangendo desde as atividades políticas, econômicas e sociais até a construção da identidade e as relações vividas pelos sujeitos. Assim, para Williams (1979, p.113)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. a hegemonia

É todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente. [...] Em outras palavras, é no sentido mais forte uma 'cultura', mas uma cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos de determinadas classes.

Deste modo, vê-se que os valores alternativos e opositores exercem pressão sobre os dominantes que, portanto, não são exclusivos. O contrário também é verdadeiro: os valores alternativos e opositores à lógica dominante são moldados por limites e pressões que vêm da hegemonia – sendo possível reconhecer a produção e adaptação de forças alternativas na própria cultura dominante. Neste sentido, Williams sugere que as formas de política e cultura alternativa são significativas porque, além do rompimento ao hegemônico vindo de sua presença ativa, indicam os limites, as tensões e tudo aquilo que o processo hegemônico procura controlar, transformar ou incorporar. Uma vez que o conceito de hegemonia ultrapassa a noção de simples transmissão de um domínio, "a realidade de um processo cultural deve, portanto, incluir sempre os esforços e as contribuições daqueles que estão, de uma forma ou de outra, fora, ou nas margens, em termos de uma hegemonia específica" (1979, p.116).

A observação da complexidade da cultura a partir de processos variáveis que relacionam valores dominantes e não-dominantes nos remete às noções de residual e emergente (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.). O residual refere-se ao que foi formado no passado, mas que permanece ativo no processo cultural como elemento do presente. Já o emergente refere-se aos significados, valores, práticas e experiências que são criados continuamente. Importante diferenciar, no emergente, os elementos que representam uma nova fase da cultura dominante daqueles elementos efetivamente novos, porque são alternativos ou opositores ao dominante. É perceptível que os dois conceitos são relacionais – pensamos o emergente e o residual sempre em relação ao sentido do dominante. Assim, elementos residuais e emergentes podem (ou não) ser incorporados pelo dominante.

Considerando como dominantes o sistema capitalista e os valores burgueses, propomos refletir sobre a dinâmica que rege a estrutura social no Brasil atualmente, sendo a classe média foco da compreensão desse processo de significação. Deste modo, quais seriam os valores que compõem as culturas alternativas à lógica dominante da classe média? Seria possível localizá-los na fração denominada "nova classe média"? Até que ponto (e por que) interessa à classe média tradicional incorporar ou refutar os elementos representativos da classe emergente? Para articular estas questões é necessário primeiramente contextualizar o que tomamos pelo termo "nova classe média".

'Nova classe média': uma 'meia verdade'?

O termo "nova classe média" ganhou repercussão após divulgação de estudo da Fundação Getúlio Vargas, em 2008, que demonstrava o aumento do poder aquisitivo da "classe C". Classificados conforme a renda familiar (incluída na faixa entre R$ 1.343,00 e R$ 5.971,002 2 Valores atualizados por Kerstenetzky, Uchôa e Silva (2013). Na versão inicial da Neri (2008), variava entre R$ 1.126,00 e R$ 4.854,00 (ou U$485 e U$ 2.080,00 em cotação de 2008). ), este público foi observado e valorizado devido a suas proporções: são quase 95 milhões de pessoas (mais da metade da população brasileira), dentre as quais 30 milhões migraram das classes D e E nos últimos dez anos. Além de numerosa, a "nova classe média" foi apresentada como dominante do ponto de vista econômico por concentrar mais de 45% do poder de compra dos brasileiros – potencial proporcionado pelo aumento da renda e acesso ao crédito advindos de políticas públicas e da estabilização da economia (NERI, 2010_______. A nova classe média: O Lado Brilhante dos Pobres. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2010.).

Apesar de a pesquisa coordenada por Marcelo Neri (2008NERI, Marcelo (Coord). A nova classe média. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, CPS, 2008.; 2010)_______. A nova classe média: O Lado Brilhante dos Pobres. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2010. ter sido utilizada como referência nas análises econômicas e governamentais, na pauta acadêmica, a maior parte das citações ao estudo são críticas à sua abordagem economicista (SOUZA, 2013SOUZA, Jessé. O economicismo e a invisibilidade das classes. Anais do 37º Encontro Anais da ANPOCS, Águas de Lindóia/SP, setembro de 2013. p.1-22. Disponível em: < http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1179&Itemid=290>. Acesso em: 21 out.2013.
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) e ao emprego equivocado do conceito de classe (SOBRINHO, 2011SOBRINHO, Guilherme G. de F. Xavier. "Classe C" e sua alardeada ascensão: nova? classe? média? Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v.38, n.4, p.67-80, 2011.), uma vez que observa essa fração somente pelo referencial da renda.

Para Jessé Souza (2013)SOUZA, Jessé. O economicismo e a invisibilidade das classes. Anais do 37º Encontro Anais da ANPOCS, Águas de Lindóia/SP, setembro de 2013. p.1-22. Disponível em: < http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1179&Itemid=290>. Acesso em: 21 out.2013.
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, os dados estatísticos (tais como usados por Neri) são muito ricos por fornecerem informações relevantes para a análise da estrutura social. Mas não são um dado "em si", é preciso de uma densa reflexão teórica para compreendê-los. Ou seja, de acordo com Souza, ao apresentar números que demonstram o aumento do poder de consumo de uma parcela da população, Neri desconsidera o engendramento dos demais capitais (social e cultural) na conformação do habitus de classe desses sujeitos e os reflexos desse conjunto de modo mais contextual – na manutenção da ordem social e da desigualdade.

A proposta de Souza de não nominar este grupo como "nova classe média" e sim como "nova classe trabalhadora" (por considerar que existem diferenças marcantes entre o habitus deste grupo e aquele reconhecido como classe média) é endossada pela maior parte dos autores que trabalham com a temática na atualidade3 3 UCHOA; KERSTENETZKY, 2013; SOBRINHO, 2011; JORDÃO, 2011, para citar alguns. . O que deve ser observado, ainda, é que também há consenso entre os pesquisadores que existem transformações reais na vida dessas pessoas nos últimos anos – mesmo que essas mudanças não tenham a mesma envergadura que propõe Neri, de torná-los membros de uma outra classe social.

Além disso, é preciso considerar que, apesar de criticado no ambiente acadêmico, o conceito da "nova classe média" mantém-se presente de maneira marcante no discurso dominante (meios de Comunicação, governo e mercado). Jessé Souza (2010)SOUZA, Jessé. O economicismo e a invisibilidade das classes. Anais do 37º Encontro Anais da ANPOCS, Águas de Lindóia/SP, setembro de 2013. p.1-22. Disponível em: < http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1179&Itemid=290>. Acesso em: 21 out.2013.
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observa esse entusiasmo em torno da "nova classe média" como uma visão distorcida e intencional da cultura dominante, que apresenta a ascensão desse grupo como um fato sem conflitos ou contradições. Não se mostra, por exemplo, a que custo esse grupo conseguiu ascender – que sacrifícios e dificuldades são impostos para a ascensão social desses sujeitos desde o seu nascimento. O que acaba por atenuar a percepção da diferença de classe, que se mantém, e por enaltecer as mudanças materiais como completas transformações na vida dessas pessoas. Isso, para o autor, é uma violência simbólica.

A "meia verdade" sobre o desenvolvimento da "nova classe média" sustentada pela cultura dominante fala de mudanças reais, mas não abre espaço para discutir a desigualdade de classe, uma vez que oculta a falta de acesso aos aparatos que possibilitariam a ascensão social, tais como educação, saúde e demais capitais que, somados e em relação, garantem a manutenção do privilégio de classe do grupo dominante (SOUZA, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.).

Os meios de Comunicação e a 'nova classe média': o que evidencia e o que encobre

Com o mesmo entusiasmo de sua aparição, a "nova classe média" passou a ser fruto de debates e discussões em vários campos sociais, tendo a Comunicação um papel importante na constituição desse discurso dominante que define o que vem a ser o termo. Aquilo que se evidencia ou que se oculta nos meios de Comunicação tem relevância para o controle hegemônico e a manutenção das distinções de classe. Neste sentido, "a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de organização social, constituindo-se assim em elementos indispensáveis tanto para forças produtivas quanto para as relações sociais de produção" (WILLIAMS, 2011_______. Cultura e materialismo. Tradução André Glasser. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p.69).

Ao considerar essa circulação de discursos sobre a "nova classe média" que perpassam os meios, seus receptores (também coprodutores de textos que circulam midiaticamente) e demais esferas sociais, Grohmann (2013)GROHMANN, R. N. A Midiatização da Nova Classe Média: identidades discursivas na revista IstoÉ Dinheiro. In: Comunicon 2013: São Paulo. Anais do Comunicon, 2013. Disponível em: <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2013/comunicon_2013/gts/gtcinco/GT05_Grohmann.pdf>. Acesso em: 15 out. 2013.
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, propõe pensar em uma "midiatização das classes sociais", pois elas estão "nas revistas, nas novelas, nos aplicativos de celular, nas redes sociais, nos blogs, na moda, na publicidade, como uma 'explosão de classes midiatizadas' capazes de dotar de sentido e significado as interações e as práticas de consumo dos sujeitos" (GROHMANN; 2013GROHMANN, R. N. A Midiatização da Nova Classe Média: identidades discursivas na revista IstoÉ Dinheiro. In: Comunicon 2013: São Paulo. Anais do Comunicon, 2013. Disponível em: <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2013/comunicon_2013/gts/gtcinco/GT05_Grohmann.pdf>. Acesso em: 15 out. 2013.
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, p.6).

Para o autor, em boa parte dos textos jornalísticos, o ethos do receptor imaginado é diferente daquele do sujeito que integra a "nova classe média". Isto porque os textos se destinam a "desvendar" quem são essas pessoas, seus hábitos, suas expectativas de consumo. Alguns evidenciam, inclusive, os caminhos a partir dos quais as empresas têm se adaptado para aproveitar o poder de consumo recém descoberto desta camada – numa clara evidência da mercantilização dessa expressão.

Grohmann (2013)GROHMANN, R. N. A Midiatização da Nova Classe Média: identidades discursivas na revista IstoÉ Dinheiro. In: Comunicon 2013: São Paulo. Anais do Comunicon, 2013. Disponível em: <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2013/comunicon_2013/gts/gtcinco/GT05_Grohmann.pdf>. Acesso em: 15 out. 2013.
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também aponta os ethé da "nova classe média" segundo o Jornalismo: trata-se de um sujeito ávido pelo consumo (normalmente parcelado), cujos "desejos" estão sendo transformados em "conquistas". Este acesso ao consumo, por sua vez, é atribuído ao esforço individual, que se favorece de um contexto nacional de economia estável – o que amplia o tom de otimismo da abordagem.

A tendência de evidenciar o protagonismo da classe popular também é perceptível na telenovela. Neste contexto, é importante ressaltar que a presença dos núcleos ricos e pobres é recorrente nas tramas brasileiras, que costumeiramente associam a ascensão dos desfavorecidos como fruto da trajetória individual de seus personagens – o que reforça a ideologia meritocrática (RONSINI, 2012RONSINI, Veneza M. A crença no mérito e a desigualdade. A recepção da telenovela do horário nobre. Porto Alegre: Sulina, 2012.).

Fato mais recente (ou pelo menos mais frequente) na abordagem das telenovelas é a inclusão desses personagens entre os protagonistas, o que tende a revelar as relações de preconceito e exaltar as virtudes das classes populares (2012). A evidência dos conflitos entre personagens de classe tradicional e emergente – demarcando a diferença de habitus (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp/ Porto Alegre: Zouk, 2008.) dos dois grupos – se fez presente em três tramas recentes das 21 horas da Rede Globo4 4 Fina Estampa (2011/2012), escrita por Aguinaldo Silva; Avenida Brasil (2012), de João Emanoel Carneiro e Salve Jorge (2012/2013), da autora Glória Perez. . No entanto, esta abordagem não se limita ao interesse dos autores em discutir questões sociais, mas especialmente pela intenção de ampliar a audiência entre as classes populares (RONSINI, 2012RONSINI, Veneza M. A crença no mérito e a desigualdade. A recepção da telenovela do horário nobre. Porto Alegre: Sulina, 2012.).

Se o surgimento da "nova classe média" é uma meia-verdade a ser observada com cautela no campo social, para o mercado publicitário essa ascensão trouxe mudanças no foco e, consequentemente, nos anúncios veiculados. Neste sentido, ao ser questionado em entrevista para o jornal O Globo (SCOFIELD JR.; D'ERCOLE, 2010SCOFIELD JR., Gilberto; D'ERCOLE, Ronaldo. Para sócios da AlmapBBDO, publicidade, que 'há 20 anos falava com a classe média e deixava de .... O Globo. Economia, Rio de Janeiro, 3 jul. 2010. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/economia/para-socios-da-almapbbdo-publicidade-que-ha-20-anos-falava-com-classe-media-deixava-de-2984079>. Acesso em: 21 out.2013.
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) sobre o impacto na publicidade a partir do crescimento das classes C, D e E, o publicitário Marcelo Serpa (sócio da renomada ALMAP BBDO) reflete o fato de modo bem interessante:

Há 20 anos, você falava com o público urbano, classe média, e deixava de lado o resto, que, apesar de assistir à mesma mensagem, não tinha como consumir. Era uma mensagem super sofisticada e irônica para um público restrito. Hoje, isso mudou completamente com a massificação. A linguagem precisa ser mais simples, objetiva e direta. O conteúdo tem de ser voltado para um 'afegão médio' compreender. A ironia, a metáfora e a hipérbole morreram. A publicidade tem de ser também mais popular para atingir o maior número possível de pessoas. Isso não significa que ela tenha necessariamente de ser pior, ou ruim. Pode ser de bom gosto, divertida, só que é outra linguagem. O risco de fazer uma campanha que ninguém entende é jogar o dinheiro pela janela.

Dois aspectos são expressivos neste depoimento. O primeiro deles revela a classe popular como público anteriormente inexistente para a publicidade, o "resto" que "não tinha como consumir". O segundo refere-se à observação da composição da classe popular por sujeitos munidos de capital cultural insuficiente para compreender mensagens mais complexas. Para a publicidade tornar-se popular, segundo o publicitário, seria preciso abandonar a sofisticação e reconhecer o interlocutor como um "afegão médio". É possível dizer que essa abordagem, no mínimo, legitima o pensamento dominante e reitera a posição social de inferioridade a qual está representada a classe popular.

É neste sentido que reflete Janaina Jordão (2011)_______. Cultura e materialismo. Tradução André Glasser. São Paulo: Editora Unesp, 2011., ao analisar a estética dos anúncios de varejo voltados para a "classe C". A autora parte da declaração de Serpa e de uma pesquisa publicada pelo Data Popular, em 2011, que revela a falta de conhecimento das agências de publicidade para lidar com o público popular – apenas 8,6% dos entrevistados afirmaram estar preparados para falar com as classes C, D e E. A noção de gosto de Pierre Bourdieu, como uma forma de classificação que une e separa grupos conforme as suas disposições, serve para a autora pensar o que se produz e o que se percebe em termos de estética publicitária – neste caso, aquela voltada para a classe popular. Como parte do grupo dominante, publicitários e anunciantes "trabalham na lógica da distinção, não produziriam para as classes populares o que produziriam para si mesmos. Entra aí o sistema de classificações sobre o gosto refinado e o gosto popular, a partir da lógica da produção" (JORDÃO, 2011JORDÃO, J. V. P. Comunicando o gosto: a publicidade para a Classe C. In: Anais do Comunicon 2011. São Paulo: ESPM, 2011. p.1-15. Disponível em: <http://www2.espm.br/comunicon2011>. Acesso em: 15 out. 2013.
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, p.8).

Os exemplos aqui mencionados de diferentes formas de representação da "nova classe média" nos meios de Comunicação pressupõem também diferentes caminhos de apropriação desse conteúdo. Falamos, portanto, de um espaço importante em que se situa a Comunicação para pensar as diferenças e, especialmente, os tensionamentos, as negociações e articulações necessários para fazer da hegemonia um processo de dominação social em que inclui sedução e cumplicidade das classes subalternas que reconhecem, em alguma medida, como seus os interesses que são sustentados pela classe dominante (MARTÍN-BARBERO, 2006MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006., p.112).

'Nova classe média': conflitos e adaptações em uma nova formação cultural

Partindo deste cenário, que observa as formas de manutenção do controle, é interessante estender a questão para as mudanças que estão por trás da "formação de uma nova classe". É preciso considerar algumas transformações que, ao longo do tempo, vêm se materializando no cotidiano desses sujeitos. Nos referimos a um crescimento no acesso à educação formal em diferentes modalidades, a experiências e subjetivações diversificadas a partir de novas formas de lazer e consequente apropriação de capital cultural.

O reconhecimento da educação como fator preponderante para a ascensão social é consenso entre sujeitos de todas as classes sociais. No entanto, segundo pesquisa de Souza e Lamounier (2010)SOUZA; Amaury de; LAMOUNIER, Bolívar. A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier / Brasília: CNI, 2010., existe uma diferença entre as aspirações e as expectativas educacionais dos pais conforme a classe a qual pertencem: "[...] como as pessoas de nível mais alto, os semiescolarizados também desejam que seus filhos conquistem um diploma superior. Mais de um terço deles (36%), reconhece, porém que provavelmente as realizações dos filhos ficarão abaixo de tal aspiração" (SOUZA, LAMOUNIER, 2010SOUZA; Amaury de; LAMOUNIER, Bolívar. A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier / Brasília: CNI, 2010., p.57).

Este tensionamento entre o esperado e o possível, esbarra em limites que muitas vezes são ocultados ou apresentados de forma distorcida pelo discurso dominante. Apesar de se constatar entre os jovens da nova classe trabalhadora uma escolaridade maior que a da geração anterior5 5 15% dos jovens entre 19 e 29 anos estão no ensino superior, o dobro do percentual dos pais (KERSTENETZKY; UCHÔA, 2013, p.9). , a proporção de acesso e qualidade à educação ainda é muito diferente da realidade vivida pela classe média (KERSTENETZKY, UCHÔA, 2013KERSTENETZKY, Celia Lessa; UCHÔA, Christiane. Moradia inadequada, escolaridade insuficiente, crédito limitado: em busca da nova classe média. Texto para Discussão n.076, CEDE/UFF. Niterói. Maio 2013., p.11).

Diante do exposto, pensamos que a diferença de capital social e cultural impede que a equiparação (quando há) de capital econômico possa equivaler à identidade de classe dos sujeitos das duas frações. Assim, apesar de considerar a importância da manutenção da desigualdade como tema de análise, nos interessa discutir de que maneira a formação de uma "nova classe" representa uma nova formação cultural (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p.127).

É certo que a formação da "nova classe média", como fonte de práticas culturais, mantém seu espaço desigual e subordinado de origem (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.). Ou seja, estamos falando da fração ascendente da classe popular. No entanto, a partir do momento em que as práticas destes sujeitos são reconhecidas (por meio de uma adaptação ou incorporação) na cultura dominante, temos um tensionamento de elementos dominantes e emergentes (em sua maior parte alternativos e por vezes opositivos) que altera a realidade vivida pelos dois grupos.

De forma prática, a partir de situações provocadas especialmente pela aproximação do capital econômico, temos sujeitos de ambos os grupos dividindo espaços e capitais que antes eram exclusivos aos membros da classe média tradicional. E mesmo que a simples presença dos membros da "nova classe média" nos espaços materiais e simbólicos não inverta a lógica da dominação, algo tem se transformado nesta relação entre os dois grupos.

Da parte da classe dominante, é possível observar incorporação dos elementos culturais emergentes que, em grande parte, se respalda por sua presença nos produtos midiáticos mais variados. Esta incorporação, obviamente, segue a demanda crescente do consumo midiático por parte deste público6 6 Para se ter ideia de alguns números que representam esta realidade, entre 2006 e 2012, cresceu em 400% o número de vendas de aparelhos de TV de LCD ou plasma entre a "nova classe média"; a TV por assinatura hoje atinge 27% dos lares de classe C; 41% dos acessos à internet são provenientes deste público e os jornais impressos populares dominam a circulação paga do país há mais de uma década. Os meios e veículos, assim, têm adaptado seus conteúdos e criado novos produtos para atender à "nova classe média" (RIBEIRO, 2012). . Por outro lado, observa-se uma resistência à presença da "nova classe média" nos espaços tidos como tradicionais da classe média estabelecida – o que se traduz, mesmo que de forma velada, em um racismo de classe (SOUZA, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p.49). No Jornalismo, são recorrentes matérias que evidenciam a insatisfação da classe média tradicional em função das mudanças provocadas no seu cotidiano a partir do aumento do poder de consumo da "nova classe média", sendo este incômodo por vezes traduzido em números:

De acordo com o levantamento, 55,3% dos consumidores do topo da pirâmide acham que os produtos deveriam ter versões para rico e para pobre, 48,4% afirmam que a qualidade dos serviços piorou com o acesso da população, 49,7% preferem ambientes frequentados por pessoas do mesmo nível social, 16,5% acreditam que pessoas mal vestidas deveriam ser barradas em certos lugares e 26% dizem que um metrô traria 'gente indesejada' para a região onde mora (CARVALHO, 2013CARVALHO, Pedro. Dados apontam que ascensão da classe C incomoda consumidores da classe AB. Economia iG. São Paulo, 12 set. 2013. Disponível em: < http://economia.ig.com.br/2012-09-12/dados-apontam-que-ascensao-da-classe-c-incomoda-consumidores-da-classe-ab.html>. Acesso em: 17 set. 2013.
http://economia.ig.com.br/2012-09-12/dad...
, p.1).

Da parte da nova classe trabalhadora, é necessário considerar que as vivências proporcionadas pelo aumento do poder de consumo apresentam aos sujeitos novas formas de utilização do tempo, novos modos de sociabilidade, novos bens materiais e simbólicos que, uma vez inseridos no cotidiano, provocam um sentimento de mudança da percepção de si. A vida não é mais como era antes e, provavelmente, não será a mesma no futuro.

É importante perceber que o consumo, nestes termos, deve ser analisado para além da materialidade dos bens adquiridos para ser visto como um "conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e o uso dos produtos" (CANCLINI, 2008CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008., p.60). Nestes termos, não se pode desconsiderar que o consumo material e simbólico a que teve acesso esta parcela da população também serve para pensar os processos de identificação e distinção social, logo, de conformação das identidades. O consumo, visto desta forma, ajuda a pensar os conflitos de classe (e suas frações), uma vez que a associação do bem ao seu proprietário torna-se classificada e classificadora, hierarquizada e hierarquizante (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp/ Porto Alegre: Zouk, 2008.).

No entanto, é preciso também observar que, no caso desse grupo, o aumento do capital econômico não garante a elevação dos capitais culturais ou sociais (essenciais para a manutenção e dominação da classe média), não sendo possível tomar como equivalentes ambas as frações de classe aqui debatidas. Ou seja, a classe média incorpora e aceita elementos alternativos (especialmente como forma de manter a dominação) e a "nova classe média" incorpora e adapta elementos dominantes (na tentativa de se aproximar do dominante e/ou de se diferenciar de frações das classes populares). Em outras palavras, dos dois lados há incorporação e adaptação de valores, mas isso não os torna equivalentes.

Para Bourdieu, a estrutura da relação de classes se dá por meio da observação de um corte sincrônico, em que há um estado relativamente estável da distribuição do "volume global do capital", que justifica a formação do espaço dos estilos de vida distintos. Esta estabilidade do volume total dos capitais, no entanto, não pode ser confundida com inércia. Dentro das próprias classes (e entre as diferentes classes) há a formação de uma dinâmica constante, fruto dos conflitos e da reconversão dos capitais, que permite observar os campos e subcampos também de forma diacrônica. Daí se vê a importância de conceber a dinâmica dos campos e a composição das classes em frações, que variam conforme a relação entre os capitais e suas posições – que podem ser declinantes, estáveis ou ascendentes (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp/ Porto Alegre: Zouk, 2008.).

É preciso compreender, entretanto, que a questão que aqui colocamos não se restringe a uma adequação de nomenclatura ou estratificação de um grupo. Quando procuramos localizar a fração, o espaço social em que se encontra a "nova classe média", realizamos um esforço para compreender a dinâmica deste subcampo, tanto em suas transformações internas, quanto nas suas relações com os demais grupos. Implica assumir a importância de se observar, no nível empírico, "como regras e princípios sociais abstratos se tornam 'carne e osso', 'sofrimento e sonho' de pessoas comuns que enfrentam dilemas cotidianos" (SOUZA, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p.40, grifos do autor).

Identidade de classe como experiência em processo

O que entendemos, ao observar este cenário, é que estamos diante de uma transição, de um elemento cultural cuja significação não se dá somente nas evidências fixas. A cultura emergente, para Williams (1979, p.129)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., não se observa apenas na prática imediata, há em sua gênese uma emergência preliminar – algo que ainda não está articulado, mas que já atua e pressiona no presente. Isso nos permite refletir sobre a "nova classe média" a partir da noção de estrutura de sentimento, de Raymond Williams.

Para o autor, existem experiências sociais que estão em processo e, portanto, não são institucionais ou formais e, muitas vezes, sequer são ainda reconhecidas como sociais. São modificações de presença, que "embora sejam emergentes ou pré-emergentes, não tem de esperar definição, classificação ou racionalização antes de exercerem pressões palpáveis e fixarem limites efetivos a experiência e a ação" (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p.134).

Neste sentido, Williams diferencia a consciência prática da consciência oficial: o que realmente está sendo vivido e o que acreditamos que está sendo vivido (1979, p.133). Quando observamos a construção que o dominante faz em torno da "nova classe média", é evidente a articulação de uma série de discursos (midiático, governamental, mercadológico) que auxilia na constituição de uma consciência oficial que nos remete àquilo que acreditamos que está sendo vivido por esse grupo. No entanto, ao pensarmos na consciência prática, nas experiências que têm sido vividas por esses sujeitos nos últimos anos, temos em vista "um tipo de sentimento e pensamento que é realmente social e material, mas em fases embriônicas, antes de tornar uma troca plenamente articulada e definida. Suas relações com o que já está articulado e definido são, então, excepcionalmente complexas" (1979, p.133).

Ou seja, as mudanças na vida dos sujeitos da "nova classe média" são reais e têm se articulado com elementos culturais que estavam sedimentados pelo grupo. As novas experiências vividas pelos sujeitos ainda provocam transformações e por isso não estão formalizadas, classificadas. São, portanto, experiências sociais em processo que podem ser vistas como modificações de presença que têm constituído (ainda que não de forma evidente) a maneira como os sujeitos desse grupo conformam sua identidade de classe. "Metodologicamente, portanto, uma 'estrutura de sentimento' é uma hipótese cultural, derivada na prática de tentativas de compreender esses elementos e suas ligações, numa geração ou período, e que deve sempre retornar, interativamente, a essa evidencia" (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p.135).

Para Raymond Williams (1979, p.137)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. o surgimento de uma nova estrutura de sentimento muitas vezes está associado à ascensão de uma classe ou ao rompimento/ mutação dentro de uma classe. Neste último caso, uma formação cultural aparenta se distanciar das normas de classe, mesmo que conserve sua essência. Ao nosso ver, estes são princípios instigantes para observar o que se denominou "nova classe média". Ou seja, os tensionamentos que relacionam elementos dominantes, alternativos e opositores são, na verdade, constituintes daquilo que está em formação, mas que já faz parte da vida concreta de toda a sociedade.

Considerações finais

Não temos a intenção, neste texto, de inferir conclusões sobre o tema, até porque defendemos que estamos observando uma experiência social em processo, portanto ainda não acabada, não formada. Perceber as sutilezas desse cenário é um desafio que se põe à pesquisa social e que queremos pôr em destaque.

Portanto, pensamos a "nova classe média" como uma noção que não se inscreve objetivamente, porque é relacional, existe na e pela relação, na e pela diferença que se constitui no tensionamento entre diferentes frações de classe (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp/ Porto Alegre: Zouk, 2008.). Isso diz respeito também a observação do que se altera e o que se mantém nas relações de dominação e subordinação entre frações de classe distintas, e permite pensar sobre conflitos de classe e possíveis alterações vividas não apenas no cotidiano deste grupo específico, mas também entre sujeitos de frações de maior ou menor capital econômico.

O consumo, deste modo, se revela como um viés muito especial para esta observação, uma vez que permite visualizar por meio dos diferentes usos, a expressão e a distinção dos gostos e estilos de vida, conforme a posição social que ocupam os sujeitos (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp/ Porto Alegre: Zouk, 2008.). Assim, adaptações e incorporações de valores alternativos no universo da classe média (e vice-versa), que circulam de modo muito frequente nos meios de Comunicação, refletem tensões que permeiam a realidade cotidiana tanto na classe tradicional, quanto na classe emergente.

Reiteramos que, apesar de discordarmos da construção parcial que sustenta a noção da "nova classe média" no discurso midiático, acreditamos que mudanças reais ocorreram na vida destes sujeitos – resta dimensioná-las e observá-las de forma a ultrapassar os indicadores numéricos. Entendemos que temos a formação de uma fração de classe que se pode chamar de nova "posto que resultado de mudanças sociais profundas que acompanham a instauração de uma nova forma de capitalismo no Brasil e no mundo" (SOUZA, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p.26).

Williams (1979, p.134)WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. sugere que as experiências que constituem a estrutura de sentimento se tornam mais reconhecíveis em fase posterior, quando se tornam classificadas, formalizadas e até mesmo incorporadas pelas instituições e formações. Neste caso, entendemos que haverá o momento em que será possível perceber de forma mais evidente, mais consolidada a instituição desta fração de classe, quando as experiências proporcionadas pelo acesso ao capital econômico e cultural tenham sido articuladas e incorporadas de forma mais definitiva para estes sujeitos.

Neste momento, então, acreditamos ser possível falar na formação de um habitus da "nova classe média". Esta nomenclatura, por fim, perderá seu sentido em definitivo, pois não será possível chamar de "nova" – porque não serão emergentes, mas sedimentados – nem de "classe média", porque se terá desenhado a conformação de seu próprio estilo de vida e um conjunto de práticas e preferências específicas que permitirão reconhecer o seu habitus de classe específico.

  • 1
    Apesar de estarem muito próximos, os sentidos opositores se constituem a partir de forças sociais e políticas precisas (que reivindicam uma mudança do dominante), já o alternativo se refere a algo que desvia do padrão dominante, sem necessariamente combatê-lo (WILLIAMS, 2011_______. Cultura e materialismo. Tradução André Glasser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.).
  • 2
    Valores atualizados por Kerstenetzky, Uchôa e Silva (2013)KERSTENETZKY, C. L.; UCHOA, C.; SILVA, N. V. Padrões de consumo e estilos de vida: em busca da nova classe média no Brasil. In: Anais do 37º Encontro da ANPOCS. São Paulo: ANPOCS, 2013. p.1-24. Disponível em: < http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=1179&Itemid=290>. Acesso em: 21 out.2013.
    http://www.anpocs.org/portal/index.php?o...
    . Na versão inicial da Neri (2008)NERI, Marcelo (Coord). A nova classe média. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, CPS, 2008., variava entre R$ 1.126,00 e R$ 4.854,00 (ou U$485 e U$ 2.080,00 em cotação de 2008).
  • 3
    UCHOA; KERSTENETZKY, 2013KERSTENETZKY, Celia Lessa; UCHÔA, Christiane. Moradia inadequada, escolaridade insuficiente, crédito limitado: em busca da nova classe média. Texto para Discussão n.076, CEDE/UFF. Niterói. Maio 2013.; SOBRINHO, 2011SOBRINHO, Guilherme G. de F. Xavier. "Classe C" e sua alardeada ascensão: nova? classe? média? Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v.38, n.4, p.67-80, 2011.; JORDÃO, 2011JORDÃO, J. V. P. Comunicando o gosto: a publicidade para a Classe C. In: Anais do Comunicon 2011. São Paulo: ESPM, 2011. p.1-15. Disponível em: <http://www2.espm.br/comunicon2011>. Acesso em: 15 out. 2013.
    http://www2.espm.br/comunicon2011...
    , para citar alguns.
  • 4
    Fina Estampa (2011/2012), escrita por Aguinaldo Silva; Avenida Brasil (2012), de João Emanoel Carneiro e Salve Jorge (2012/2013), da autora Glória Perez.
  • 5
    15% dos jovens entre 19 e 29 anos estão no ensino superior, o dobro do percentual dos pais (KERSTENETZKY; UCHÔA, 2013KERSTENETZKY, Celia Lessa; UCHÔA, Christiane. Moradia inadequada, escolaridade insuficiente, crédito limitado: em busca da nova classe média. Texto para Discussão n.076, CEDE/UFF. Niterói. Maio 2013., p.9).
  • 6
    Para se ter ideia de alguns números que representam esta realidade, entre 2006 e 2012, cresceu em 400% o número de vendas de aparelhos de TV de LCD ou plasma entre a "nova classe média"; a TV por assinatura hoje atinge 27% dos lares de classe C; 41% dos acessos à internet são provenientes deste público e os jornais impressos populares dominam a circulação paga do país há mais de uma década. Os meios e veículos, assim, têm adaptado seus conteúdos e criado novos produtos para atender à "nova classe média" (RIBEIRO, 2012RIBEIRO, Igor. Divina classe. Meio e mensagem. Especial meio e mercado, 24 de setembro de 2012. São Paulo: Editora Meio e Mensagem, 2012.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2014
  • Aceito
    30 Ago 2015
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