RESUMO
A publicidade, uma das primeiras e das mais relevantes retóricas do consumo, vem passando por transformações viscerais em seu modus operandi, em função, entre outros fatores, da utilização de algoritmos e da inteligência artificial generativa. O mesmo ocorre no plano de seus enquadramentos comunicacionais, atendendo a pressão social com a inclusão de pautas e representações antes silenciadas. Face a esse contexto, como ensinar especialmente criação publicitária? O presente artigo relata uma experiência metodológica aplicada em sala de aula em cursos de publicidade e propaganda e demonstra que o investimento na literatura gera não só uma forma de ensino mais atraente como aprofunda a dimensão humana nos estudantes.
Palavras-chave
ensino; publicidade; literatura; retextualização; metodologia
ABSTRACT
Advertising, one of the first and most relevant consumer rhetorics, has been undergoing visceral transformations in its modus operandi, due, among other factors, to the use of algorithms and generative artificial intelligence. The same occurs in terms of its communicational frameworks, responding to social pressure with the inclusion of agendas and representations that were previously silenced. Given this context, how to teach advertising creation? This article reports a methodological experience applied in the classroom in advertising courses and demonstrates that investment in literature not only generates a more attractive form of teaching but also deepens the human dimension in students.
Keywords
teaching; advertising; literature; retextualization; methodology
RESUMEN
La publicidad, una de las primeras y más relevantes retóricas del consumo, ha ido sufriendo transformaciones viscerales en su modus operandi, debido, entre otros factores, al uso de algoritmos y de inteligencia artificial generativa. Lo mismo ocurre en cuanto a sus marcos comunicacionales, respondiendo a la presión social con la inclusión de agendas y representaciones que antes eran silenciadas. Ante este contexto, ¿cómo podemos enseñar especialmente la creación publicitaria? Este artículo relata una experiencia metodológica aplicada en el aula en cursos de publicidad y demuestra que la inversión en literatura no sólo genera una forma de enseñanza más atractiva sino que también profundiza en la dimensión humana de los estudiantes.
Palabras clave
enseñanza; publicidad; literature; retextualización; metodología
Publicidade e literatura: vozes veladas, veludosas vozes
Os atuais tempos de utilização corrente de algoritmos, para compreender o comportamento do consumidor e a ele ofertar novas possibilidades de consumo, vêm também operando mudanças na formação e no efetivo ofício dos profissionais de criação publicitária. Enquanto é preciso dotá-los de habilidades para atuar com competência num campo que exige conhecimento permanente da cultura digital e uso de inteligência artificial generativa, é igualmente essencial conscientizá-los dos incontornáveis dilemas éticos e da obrigatória inserção nos materiais publicitários de representações sociais minoritárias, ainda que, embora legítimas, sejam estrategicamente mobilizadas com o objetivo serem mercantilizadas como discurso alternativo.
Ou seja, de um lado há a necessidade de ensinar aos “criativos” o emprego de recursos tecnológicos para catalisar e tornar mais eficaz o seu trabalho, e de outro manter ativada a sua sensibilidade para propor soluções que afetem o seu público-alvo, não considerado mais como um contingente de números, mas como um grupo de seres semelhantes cuja condição, tão humana quanto a sua, é frágil e efêmera.
O objetivo deste artigo é apresentar uma metodologia que desenvolvemos a partir de uma pesquisa, com devida contextualização e reflexão a seguir, levada a cabo em sala de aula junto a estudantes de dois cursos tradicionais de comunicação social (com habilitação em publicidade e propaganda), precisamente na disciplina de redação publicitária, com base não na capacitação tecnológica, mas na segunda linha de força acima mencionada – a do ensino com ênfase nos afetos, então explorados por meio da literatura em geral, e, em específico, pela ficção literária.
Os versos de exemplares aliterações do poema “Violões que choram”, de Cruz e Souza (1995, p.50-3), “vozes veladas, veludosas vozes”, cabem com precisão, embora de forma invertida, no desdobramento das escolhas e omissões discursivas da publicidade em sua história como texto social: desde os seus primórdios, em sua materialização impressa (cartazes, folhetos, jornais, revistas etc.), a comunicação publicitária operou, em quase a sua totalidade, com as vozes dominantes, deixando as outras em silêncio, veladas; as suas vozes, independentemente dos produtos promovidos, sempre foram majoritárias e veludosas, posto que, ao enquadrar só os seus atributos positivos, com elementos da linguagem capazes de criar efeitos persuasivos, a publicidade se comporta como um tecido liso, avesso ao atrito. Tais elementos são reconhecidos procedimentos de cunho retórico e poético transpostos da literatura, na qual se encontra a sua nascente e o seu próprio habitat.
Nesse sentido, um conjunto de estudos, pesquisas e livros vem demonstrando, mais intensamente nas últimas três décadas, como as artes foram as matrizes (e continuam sendo suas fontes) da publicidade – a literatura cede recursos lingüísticos para o texto publicitário; a pintura é base para a criação da instância visual impressa dos anúncios; a música se põe a serviço dos bens, marcas, causas sociais e das campanhas eleitorais por meio dos jingles; o cinema de longa metragem fornece os estratagemas narrativos que consubstanciam a brevidade dos comerciais etc. Já se destaca, portanto, uma sólida bibliografia no Brasil, ainda que restrita, comprovando as operações miméticas, as adaptações e os ajustes que a linguagem publicitária, na constituição de seu cânone, produz e reproduz a partir das diversas artes.
No amplo âmbito do ensino da criação publicitária, é fundamental citar que surgiram variados e valiosos trabalhos, como Publicidade: arte ou artifício (Piratininga, 1994), Magia e capitalismo (Rocha, 1995), Por uma teoria da publicização (Casaqui, 2011), Criação publicitária (Correa, 2014), Hiperpublicidade (Peres e Barbosa, 2007), além de coletâneas como Publicidade Imaginada (Casaqui et.al, 2011) e Criação publicitária – desafios no ensino (Hansen et.al, 2020), que examina profundamente as condições estruturais e metodológicas do ensino-aprendizagem em publicidade. Na esfera específica que aborda a migração de recursos literários para o texto publicitário, avultam as obras de Carrascoza (1999, 2003, 2004, 2008 e 2014), Citelli (2004), Covaleski (2010) e Hansen (2015), entre outros.
No entanto, o nosso experimento se afastou do propósito desses de índole geral e mesmo das possíveis interfaces dos tópicos da escrita literária com os do texto publicitário, como já mencionado, mas que detalharemos a seguir.
A retórica do consumo vista pela produção literária: a base metodológica
Discutir a produção do discurso publicitário (em especial, a sua poética) e o consumo (entendido como uma prática sociocultural complexa e abrangente), a partir de narrativas literárias, foi o objetivo geral da nossa pesquisa “Consumo e o ensino da publicidade por meio de obras literárias”, realizado no âmbito do PPGCOM no qual estamos integrados como docente e pesquisador, que perdurou pelo período de 2018 a 2022.
Como objetivos específicos, buscamos partilhar e debater as concepções de consumo (material e simbólico) encontradas nas obras de ficção que selecionamos, bem como elementos temáticos que nos permitiram tratar de temas clássicos e/ou emergentes na atividade e no ensino da publicidade, notadamente da criação (e redação) publicitária.
Para tal, na etapa da pesquisa da pesquisa (Bonin, 2006), selecionamos dez obras de literatura, tanto nacional quanto estrangeira, com foco nos gêneros romances e contos, capazes de nos proporcionar angulações distintas, tradicionais e inéditas do discurso publicitário contemporâneo, a saber: os romances Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2001), O rei do cheiro, de João Silvério Trevisan (2009) e Nada, da dinamarquesa Janne Teller (2013), os contos Teoria do Medalhão, de Machado de Assis (1994), Um e outro, de Lima Barreto (2014), O pôster, de Luis Fernando Veríssimo (2013), Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles (2018), Escrito na testa, do italiano Primo Levi (2005), O enorme rádio, do norte-americano John Cheever (2010) e Um episódio distante, do também norte-americano Paul Bowles (2010).
Em consonância com as etapas que determinamos para o projeto, iniciamos a pesquisa produzindo um artigo no qual o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, possibilitou-nos um conjunto de conexões teóricas e analíticas entre consumo e cidadania. Partindo da perspectiva de Calvino (2001) na obra Por que ler os clássicos, contextualizamos a obra de escritor alagoano como um clássico da literatura brasileira e discutimos trechos marcantes do enredo, que envolviam inclusão ou exclusão dos personagens em espaços sociais em função de suas práticas de consumo, com apoio de autores como Canclini (1995). Expandimos a ideia de Baccega (2011), que apontava uma passagem aberta à discussão do sonho de consumo, a ressaltar nessa história o desejo da personagem Sinhá Vitória de possuir uma cama (melhor que a sua) como a de seu Tomás da Bolandeira. Demonstramos que a cachorra Baleia morre sonhando que está consumindo preás, que o Fabiano resolve tirar os sapatos novos para ir à festa na cidade porque não apenas lhe apertam os pés, mas porque não combinam com o seu estilo, além de outras passagens que corroboram estratégias da linguagem literária, desaguadas no discurso publicitário.
Na sequência, Escrito na testa, de Primo Levi, foi o ponto de partida para elaborarmos um texto sobre a coisificação do homem, o advento das novas mídias e a mercantilização do corpo na sociedade de consumo, uma vez que o conto, como o título enseja, traz a história de um casal que se submete à proposta de uma agência de publicidade de ostentar na testa o nome e a logomarca de um produto, um perfume, atuando assim, o marido e a mulher, como mídias portáteis, à semelhança, embora de forma grotesca, dos primeiros homens-sanduíches (forma ainda corrente de se anunciar produtos nos centros urbanos).
Por meio do conto Um e outro, de Lima Barreto, abordamos, no terceiro artigo, a publicidade de bens duráveis (em específico o automóvel), o consumo como identidade social e alguns dos recursos suasórios mobilizados frequentemente pela criação publicitária, valendo-nos do conceito de distinção de Bourdieu (2007). Isso porque a trama da narrativa está centrada numa mulher que se interessa por um homem ao vê-lo dirigindo um carro (coisa rara nas primeiras décadas do século XX), com ele começa um caso amoroso e rompe o relacionamento ao tomar conhecimento de que o veículo não lhe pertence, o homem era apenas um motorista particular – tinha a posse, mas não a propriedade do bem.
A soneca de Gretchen, história de F. Scott Fitzgerald, nos proporcionou investigar – de maneira vantajosa sobre o conto inicialmente escolhido, Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, que abandonamos – o improviso na criação artística (e publicitária), os ready-mades, a rotina de trabalho em agências de publicidade. Comprovamos, pelo conto de Fitzgerald, que os profissionais criativos operam como músicos numa jam session.
Com O pôster, de Luis Fernando Veríssimo, pôster que refere no enredo à célebre foto de Che Guevara, discutimos a intertextualidade na criação publicitária, o uso incomum do lugar-comum na propaganda, a saturação dos signos na mídia.
O romance Nada, de Janne Teller, mostrou-se produtivo para tratarmos do vazio existencial contemporâneo, bem como das estratégias discursivas da publicidade e das lógicas da produção midiática. Nessa obra, jovens usam argumentos (típicos do texto publicitário, como apelo à autoridade, lugar de qualidade, lugar de quantidade, comparação etc.) para convencer um amigo a descer da árvore na qual subiu por desacreditar na vida e optar por não fazer nada, e esse sujeito, entre os galhos, também mobiliza (os mesmos e diferentes) argumentos para se contrapor às razões de seus conhecidos, num embate de posições ideológicas.
No conto O enorme rádio, de John Cheever, um jovem casal consome música tocada nas rádios todas as noites, sintoniza inesperadamente uma estação estranha, na qual há diálogos prosaicos mas também dramáticos de pessoas doentes, crianças maltratadas etc., que, em realidade, são conversas dos moradores de seu próprio condomínio. A história se revelou rica para debatermos temas como a espetacularização do cotidiano, a onipresença da mídia, a invasão de privacidade nos meios de comunicação de massa, o consumo simbólico de valores, imagens e ideologias massivamente produzidos pelas campanhas publicitárias.
Já o mundo solar da publicidade, os mecanismos de persuasão e a “magia” do discurso publicitário, conforme estudos de Rocha (1995) em Magia e capitalismo- um estudo antropológico da publicidade, discutimos num artigo a partir da retextualização do conto Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles – que, além do mais, pode também ser explorado por outro vértice teórico, em virtude de o Natal ser a data mais importante do calendário promocional em países de forte tradição cristã como o nosso. A narrativa de Lygia foi exemplar para mostrarmos o “modo de ver” da publicidade, o discurso luminar sobre os produtos, focado numa lírica de superfície, com a ênfase para situações do cotidiano e tipo humanos engraçados como o Garoto Bombril, distanciando-se da lírica de sombras, sombras que, queiramos ou não, se espraiam pela nossa existência.
Substituímos o antes selecionado conto Um episódio distante, de Paul Bowles, pela história Semplica girl – Os diários, do norte-americano George Saunders, que se mostrou mais adequado à discussão e à análise para tratarmos do mundo das marcas, do uso do cartão de crédito (como facilitador do consumo) e dos efeitos da tecnologia nos meios de comunicação.
E, por fim, também fora de nossa lista inicial de obras selecionadas, em substituição ao romance O rei do cheiro, de João Silvério Trevisan, trabalhamos com o conto Uma questão temporária, da britânica Jhumpa Lahiri (2014), para apresentar variadas abordagens teóricas do fenômeno do consumo, sobretudo a de Douglas e Isherwood (2006), as suas articulações com a comunicação publicitária, os não-ditos discursivos e as implicações do não-consumo.
Examinamos, portanto, nessa dezena de textos, diversas questões prementes da publicidade, seu processo de criação publicitária, e seu ensino corrente no Brasil, valendo-nos do conceito de retextualização, segundo Bettetini (1996) – a apropriação de textos de um domínio (no caso, o artístico, literário) para investigação e produção de textos de outro domínio (o científico – precisamente aqui o estudo do consumo, da publicidade e de seu processo criativo). Na estrutura analítica basilar dos artigos, operamos com procedimentos de Análise de Discurso de linha francesa (ADF), pressupostos de teoria literária, elementos da semântica argumentativa, recursos retóricos e concepções sócio-culturais de consumo.
Cumpre agora ressaltar que cada um dos dez textos foi concebido para ser desdobrado em uma ou duas aulas no curso de publicidade e propaganda, em disciplinas teóricas ou práticas, somando conteúdo suficiente para 20 aulas, um semestre inteiro com a carga horária entre 20 e 40 horas. Acompanhando cada artigo, criamos sugestões de atividades e exercícios para os alunos. Nossa ação proposta de ação seria dessa forma: a) na primeira aula, fazer em sala a leitura da obra literária, sublinhando as suas condições de produção e os dados sobre o seu autor e b) na aula subseqüente, apresentar o artigo no qual a obra foi retextualizada para debater (partilhar e ampliar) tópicos do ensino da publicidade, propondo em seguida uma interação prática para os estudantes sedimentaram o aprendizado.
A lição das coisas: a pesquisa em sala de aula
Conforme nosso objetivo e, com o intuito de investigar a aceitação do novo método de trabalho, ou seja, a utilização em sala de aula dos artigos que elaboramos, abordando aspectos da poética da publicidade e suas interações com o consumo por meio de textos literários, fizemos uma sondagem com três amostras – duas formadas por alunos de graduação do curso de publicidade e propaganda e uma constituída de professores de graduação de cursos de publicidade e propaganda e estudantes de pós-graduação stricto sensu.
Foram no total 110 questionários, resultando no seguinte universo de entrevistados:
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25 alunos do 6o semestre do curso de Publicidade e Propaganda da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo;
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75 alunos do 5o semestre do curso de Publicidade e Propaganda da Escola Superior de Propaganda e Marketing (unidade de São Paulo);
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10 professores de graduação de cursos de publicidade e propaganda (SENAC, FMU e ESPM), mestrandos e doutorandos do PPGCOM-ESPM.
Os alunos e professores tiveram acesso dois artigos em março de 2022 com uma semana de prazo para lê-lo. Na semana seguinte, responderam o breve questionário que estruturamos com sete questões fechadas e uma aberta (para que pudessem se expressar livremente) sobre a leitura efetuada.
Nosso intuito foi medir o aproveitamento da atividade de leitura de duas (das dez) retextualizações que desenvolvemos, uma logo no início do projeto (o conto Escrito na testa, de Primo Levi) e outra mais no final (o conto Natal na barca, de Lygia Fagundes Telles) ambas, tanto quanto as demais, escritas como adjuvantes aos conteúdos ministrados em sala de aula sobre o processo criativo publicitário, suas estratégias discursivas, seu consumo simbólico.
Procedendo inicialmente a tabulação da primeira amostra, notamos que os 25 entrevistados na ECA-USP, portanto 100%, disseram prontamente que a atividade lhes despertou interesse. Todos também reconheceram com facilidade conteúdos estudados em matérias de seu curso. Igualmente – e mais importante para nós –, 100% desses estudantes afirmaram ter aprendido algo sobre publicidade e consumo por meio do artigo. Da mesma forma, os 25 entrevistados concordaram que as obras literárias se constituem atrativos para se estudar publicidade e gostariam de ler outros textos sobre o assunto a partir de textos literários. Perguntados se, feita a leitura do texto que discute a lógica da publicidade por meio do conto Escrito na testa, de Primo Levi, motivaram-se a ler outras histórias desse escritor italiano, 22 estudantes responderam que sim (88%) e apenas 3 disseram que não (12%). Seguindo a mesma linha, 21 estudantes afirmaram que se sentiram motivados a ler obras sobre publicidade e consumo citadas no artigo, somando 84% de aprovação. Na última pergunta do formulário, solicitamos aos alunos que, se fosse de seu desejo, escrevessem livremente sua opinião sobre a atividade. A seguir, alguns desses comentários espontâneos:
Achei interessante e inovadora a forma de abordar o conteúdo literário e a publicidade. Essa forma de abordar o tema tornou a leitura mais fácil e despertou minha atenção.
Muito diferente de qualquer outro artigo científico que eu já tenha lido. Achei muito interessante.
Atividade muito interessante por abordar estratégias, táticas e até contexto geral da publicidade de forma mais figurativa, dionisíaca, tornando o tema mais interessante.
Gostei da abordagem da publicidade atrelada a textos literários, pois é uma alternativa original aos tradicionais estudos de cases.
A segunda amostra, constituída pelos alunos da ESPM-SP, revela números semelhantes. De 75 entrevistados, 73 apontaram que a atividade lhes despertou interesse, ou seja, 97% desse grupo. Indagados se haviam reconhecido facilmente no artigo conteúdos das matérias de seu curso, 71 estudantes (95% da amostra) responderem que sim.
Quase na mesma dimensão numérica da amostra da ECA-USP, 99% dos alunos da ESPM-SP responderam que aprenderam algo novo sobre publicidade e consumo depois de ler o artigo em que tratamos de aspectos da poética publicitária assentados no conto “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles. 72% dos estudantes, inclusive, disseram-se motivados, depois da atividade, a ler as obras sobre publicidade e consumo citadas na no artigo. E 66% se motivaram, também, a ler outras histórias dessa escritora brasileira.
Mais relevante ainda, para nossa pesquisa, é que 68 estudantes, de 75 entrevistados, 91% portanto, acreditam que as obras literárias se constituem atrativos para o estudo da publicidade e cerca da mesma porcentagem deles (88%) gostaria de ler outros artigos sobre publicidade que partissem de obras literárias.
Os comentários deixados junto à última pergunta (a única aberta) do questionário por quase todos os estudantes da ESPM-SP são, em geral, bem extensos – e seguem o mesmo tom positivo dos entrevistados da ECA-USP, como pode ser atestado nos exemplos abaixo:
Eu nunca havia lido textos com um ponto tão claro como este, adorei a maneira as obras eram citadas para exemplificar sobre o tal fazer crer da propaganda e a sua importância na mente dos consumidores. Acredito que o storytelling é uma maneira divertida de assimilar algo, principalmente quando se trata sobre uma marca ou a propaganda em si. A atividade teve maior relevância para mim do que esperado, confesso que fui tocada pela história da professora e sua fé, fiquei interessada no texto e me despertou curiosidade. Sobre publicidade, não foram grandes descobertas apresentadas por causa do texto, mas alguns pontos nunca antes pensados por mim ficaram mais esclarecidos.
A leitura do artigo reforçou, alguns conceitos que já haviam sido transmitidos para mim, através de disciplinas relacionadas ao ramo de humanas (sociologia, psicologia e antropologia) e criação publicitária, sobre a propaganda necessitar ter viés “fantasioso e mágico”, uma vez que o ser humano necessita de refúgio do real, alimentando sua imaginação, através de histórias, para então raciocinar sobre os assuntos que lhe são transmitidos, de forma a entender diferentes pontos de vista. Assim como aprendemos em cursos que envolvem a conceituação de estratégia, através de exemplos de estratégias de generais romanos, entre outros participantes de guerras remotas, porém reais, a utilização de obras literárias para se usar como material de estudo da publicidade, pode ser estimulante e servir de exemplo de como entreter o interprete da mensagem.
O artigo é muito interessante, rico. Nunca tinha visto a publicidade pelos olhos de um texto literário. E percebi que os conteúdos que tive na faculdade, principalmente a aula de Semiótica, me ajudaram muito a entender esse paralelo traçado. Os argumentos utilizados para explicar e estabelecer esse laço entre a teoria literária e a linguagem publicitária estão muito bem explicados e escritos e fazem todo o sentido, facilitando a compreensão dessa relação. Além disso, o artigo contribuiu bastante para saber que a publicidade pode ser vista sob muitas formas e pontos de vistas. É possível olhar a publicidade de um jeito fora do “comum”, do natural, diferentemente do jeito como sempre estamos acostumados a olhá-la.
Achei o artigo bem interessante. O texto abrangeu conteúdos de diversas matérias que aprendi, desde o primeiro semestre até hoje. Até me recordei de algumas coisas que já havia esquecido, como alguns conteúdos de lógica. É interdisciplinar sem perder a conexão, de uma forma objetiva e clara o artigo é gostoso e rápido de ler.
A terceira amostra, composta por 10 entrevistados, entre professores de várias instituições de ensino superior, engajados em cursos de publicidade e propaganda (SENAC, FMU e ESPM), além de mestrandos e doutorandos do PPGCOM-ESPM (membros do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação, Consumo e Arte), ratifica, junto aos educadores e pesquisadores da área a vantagem das retextualizações como método de ensino e discussão da poética publicitária e do consumo. 100% dos entrevistados desse grupo afirmaram que a atividade lhes despertou interesse. E os mesmos 100% reconheceram no artigo conteúdos que costumam trabalhar nas disciplinas que ministram nos cursos de publicidade e propaganda, ou que se relacionam com o consumo como fenômeno sócio-cultural complexo.
Da mesma forma, os 10 entrevistados (100%) disseram ter aprendido articulações novas entre publicidade e consumo por meio do artigo e se sentiram motivados a ler outras histórias de Primo Levi, já que fizeram a leitura do artigo correspondente, o mesmo solicitado aos alunos da ECA-USP. 80% desses entrevistados se sentiram motivados a ler a bibliografia citada no artigo; 100% acreditam que as obras literárias são atrativas para o estudo da publicidade; e 90% se mostraram desejosos de ler outros artigos sobre publicidade e consumo fundeados em textos literários. A seguir, alguns comentários sobre a atividade e a metodologia proposta:
Ótima alternativa para uma aproximação aos estudos de consumo, que não devem, como muitas vezes acontece, ser estudados como fenômenos dissociados de outras práticas culturais.
Os cursos de publicidade necessitam de novas abordagens. A análise de peças publicitárias acaba sendo um processo de olhar para o próprio umbigo. É necessária a percepção de que “há” publicidade em outros discursos e esse demonstra isso.
Acho que trazer artigos como este para a aula incentiva os alunos a se tornarem mais observadores e a enxergarem a comunicação e o consumo em outras obras.
Diante dos resultados obtidos com três amostras distintas, acreditamos na viabilidade da aplicação da metodologia proposta como complementação dos conteúdos regulares dos cursos que abordam os aspectos evolutivos das técnicas publicitárias, sua história e suas ligações com os estudos sobre o consumo. E sentimos o imperativo de investigar com outras turmas a experiência de lerem os demais oito textos que elaboramos com essa finalidade, verificando assim se foram abordagens igualmente frutíferas e ratificando ainda mais o método.
Dois em um: publicidade ensinada e literatura promovida
As reconfigurações da atividade publicitária e a conseqüente formação, nos atuais cursos de publicidade e propaganda, de profissionais capazes não só de atuarem de olho nas métricas algorítmicas e por vezes usando a inteligência artificial generativa, também exigem que os novos publicitários ganhem conhecimentos artísticos e valores que os aprimorem na imersão no mundo do sensível, no qual se expande a compreensão e o respeito pela condição humana.
Comprovamos que o ensino de publicidade, com ênfase nos aspectos do processo criativo (mas não só) a partir de obras de ficção literária, se revela produtivo nesse contexto. O potencial do método que apresentamos é vultoso, uma vez que podemos escolher para futuros estudos tanto obras clássicas, de qualquer país e tempo histórico, quanto as que acabam de sair das gráficas.
No primeiro caso, lembremos o clássico experimento antropológico de Laura Bohannan (1968), que introduziu a história de Hamlet, de Shakespeare, aos indígenas Tivs da Nigéria, e como são imensas as possibilidades de encontrarmos nas peças de Shakespeare angulações para o ensino da comunicação interpessoal e da social pela via publicitária. No segundo, três livros de narrativas publicados no final de 2023 e início deste ano (2024) se evidenciam plenamente pertinentes para a retextualização voltada ao ensino da publicidade: Dia da libertação, de George Saunders (2023), veterano ficcionista norte-americano, vencedor do Man Booker Prize com o romance Lincoln no limbo; Friday Black, estreia do escritor novaiorquino Nana Kwame Adjei-Brenyah (2023) e Coelho maldito da jovem sul-coreana Bora Chung (2024). Saunders, no conto homônimo, “Dia da libertação”, narra o cotidiano numa Companhia de trabalhadores lobotomizados, cuja memória é apagada a fim de satisfazerem o público de um parque de diversões – situação que nos insta a pensar no expediente ubíquo de profissionais de criação publicitária. Na obra de Adjei-Brenyah, várias histórias violentas e grotescas tematizam o terror do capitalismo e suas relações trabalhistas, como “Friday black” (que nos remete à luta inescrupulosa de consumidores para garantir mercadorias pelo menor preço na Black Friday), ou “Como vender uma jaqueta, segundo o Rei Gelo” e “No varejo”, nos quais abundam as técnicas de persuasão operadas pela publicidade. As narrativas “A cabeça”, que atualiza o Retrato de Dorian Gray (e seu culto à beleza) de Oscar Wilde (2012), “Adeus, meu amor”, na qual andróides se tornam pares artificiais românticos – uma amostra inédita da preconizada liquidez das relações amorosas, preconizada por Bauman (2004) –, entre outras da coletânea de Bora Chung, finalista do International Booker Prize, são igualmente apropriadas para discussões de questões polêmicas no plano das representações midiáticas contemporâneas.
Em suma, a clássica formulação retórica e mercadológica “compre um e leve dois” se mostra, pelo relato aqui feito dos nossos resultados de pesquisa, também aplicável em relação ao emprego da literatura, que não se restringe à função radicular de fornecer insumos expressivos para a publicidade, mas se alarga promovendo a difusão da leitura e a expansão de repertório dos universitários.
Assim, levando a teorização por meio de artigos que ensinam etapas do processo de criação, técnicas de elaboração de peças publicitárias por associação de ideias, recursos lingüísticos e outras fontes catalisadoras e amplificadoras de soluções criativas, o estudante, futuro profissional, ou já atuando na área, ganha conhecimentos duplos: os de sua própria atividade, a comunicação publicitária, e os da arte literária, raiz e ramagem para o impulso – e o salto – de sua criatividade.
Disponibilidade de Dados
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Detalhes Editoriais
Sistema duplo cego
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Editoração e marcação XML:
IR Publicações
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Finaciamento:
CNPq
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Como citar
Carrascoza, João A. Garoto Bombril e Hamelet: o ensino d publicidade pela ficção literária. S. Paulo: INTERCOM - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 48, e2025106. https://doi.org/ 10.1590/1809-58442025106pt.
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Editado por
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Editoras Chefes:
Dra. Marialva BarbosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJDra. Sonia Virginia MoreiraUniversidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ
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Editores Executivos:
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Editor Associado
Dr. Sandro Torres de AzevedoUniversidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
24 Set 2024 -
Aceito
18 Nov 2024 -
Publicado
15 Maio 2025
