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Indícios de colonialidade nas abordagens comunicacionais brasileiras: o primeiro quadriênio dos anais do Encontro Compós (2000-2003)

Vestigios de colonialidad en enfoques comunicacionales brasileños: el primer cuatrienio de los anales de Compós (2000-2003)

Resumo

O artigo investiga em que medida indícios da colonialidade moderna europeia ocidental e norte-americana se fazem presentes na área de Comunicação no Brasil. O trabalho considera que há colonialidade do saber latino-americano, delimitado nas abordagens comunicacionais brasileiras, elaboradas e sistematizadas nos anais do primeiro quadriênio (2000-2003) do Encontro Compós, período não estudado por outros trabalhos. O evento é um dos principais da área no país. A investigação considera, sobretudo, a categoria de nacionalidade, bem como o gênero e a cor da pele das autorias, que reverberam tal colonialidade. A análise dos dados, coletados manualmente, foi feita por meio da linguagem de programação R e atentou para obras e autores/as mais citados/as, conforme as categorias. Os resultados evidenciam a prevalência de referências de autores brancos, europeus e norte-americanos.

Palavras-chave
América Latina; Colonialidade; Compós; Epistemologia da Comunicação; Teorias da Comunicação

Resumen

El artículo investiga hasta qué punto la evidencia de la colonialidad europea occidental y norteamericana moderna están presentes en el área de la Comunicación en Brasil. El trabajo considera que existe una colonialidad del conocimiento latinoamericano, delimitado en los enfoques comunicacionales brasileños, elaborados y sistematizados en los anales del primer cuatrienio (2000-2003) del Compós, período no estudiado por otros trabajos. El evento es uno de los principales del país. La investigación considera, sobre todo, la categoría de nacionalidad, así como el género y el color de piel de los autores, que reverberan tal colonialidad. El análisis de los datos, recogidos manualmente, se realizó a través del lenguaje de programación R y se intentó mirar las obras y autores más citados, según las categorías. Los resultados muestran la prevalencia de referencias de autores blancos, europeos y norteamericanos.

Palabras clave
América Latina; Colonialidad; Compós; Epistemología de la comunicación; Teorías de la Comunicación

Abstract

This article investigates the extent to which signs of modern European and North American coloniality are present in the field of Communication in Brazil. It considers that there is coloniality of Latin American knowledge, delimited in Brazilian communicational approaches, elaborated and systematized in the papers from the proceedings of the first Compós quadrennium (2000-2003), a period not studied in other papers. The event is one of the main events in the country. The investigation considers, above all, the nationality category, as well as the authors’ genders and their skin color, which reverberate such coloniality. The analysis of the manually collected data was carried out using R programming language and paid attention to the most cited works and authors for each category. The results show the prevalence of European and North American white male authors in such references.

Keywords
Latin America; Coloniality; Compós; Epistemology of Communication; Communication Theory

Introdução

As abrangências empíricas e epistemológicas do termo “comunicação” estão atreladas aos seus diferentes sentidos, colonizados historicamente por abordagens europeias ocidentais e norte-americanas. Como verificamos antes (SALGADO; MATTOS, 2019SALGADO, T. B. P.; MATTOS, M. A. De volta à comunicação: um percurso histórico-etimológico. Revista Alaic, v. 18, p. 48-58, 2019. Disponível em: http://revista.pubalaic.org/index.php/alaic/article/view/1588. Acesso em: 21 jan. 2022.
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), em função da colonização moderna europeia e norte-americana1 1 Período iniciado com as Grandes Navegações e a Era dos Descobrimentos (entre o século XV e o final do século XVI), consolidado pela Revolução Industrial e a afirmação do capitalismo como sistema econômico mundial. , o termo assume sentidos transmissivo, informacional e técnico. Por isso, em detrimento de suas acepções etimológicas, datadas dos séculos XIV e XV, de ação comum, partilha, rompimento com o isolamento, encontro e relação (sentidos comunitário, espiritual ou religioso e retórico); os sentidos prevalentes durante a modernidade (transmissivo, informacional e técnico) são aqueles advindos de sua colonialidade, antropocêntrica e midiacêntrica.

Com o advento dos meios de comunicação, no início do século XX, o termo “comunicação” se ata à transmissão de informações. Isso impacta em como essa palavra é compreendida como habilidades profissionais da área, que passam a entendê-la como ferramenta para determinado fim ou ordenamento com eficácia retórica. Todavia, é válido destacar que tal colonialidade não se efetua e nem se efetiva apenas na Comunicação, mas se estende para as Ciências Sociais e Humanas, configurando um paradigma dominante, conforme Ballestrin (2013)BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2069. Acesso em: 28 maio 2020.
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e Quiroz (2016)QUIROZ, K. O. Desde la teoría crítica hacia el pensamiento decolonial. Un aporte a la comunicología actual. In: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 13, 2016, México, MX. Grupo de Interés 1, Comunicación-Decolonialidad, p. 5-14. Anais […] México: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 2016. Disponível em: http://alaic2016.cua.uam.mx/documentos/memorias/GI1.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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. Em vista disso, durante a modernidade, marcada pelo pensamento racionalista e humanista, há a colonialidade do poder, do saber e do ser.

A colonialidade do poder e do saber conformam um sistema ocidentalizado, que a ciência reconhece como projeto político e intelectual válido, porque sobreposto a outras vozes não colonizadoras (europeus, brancos, masculinos, ocidentais, do Norte). As modalidades de colonialidade, então, delimitam subalternos e dominadores. Nesse sentido, a colonialidade constrói e impõe um saber pautado na supressão de línguas e culturas daqueles que são colonizados. Este é um projeto político e econômico que instaura e firma, por coerção, um jeito de pensar conforme quem coloniza.

Consideramos como colonialidade o conceito originalmente proposto por Quijano (1992, p. 12, tradução nossa)QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Revista del Instituto Indigenista Peruano, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. Disponível em: https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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: “uma colonização do imaginário dos dominados. Quer dizer, [que] atua na interioridade desse imaginário. Em certa medida, é parte dele”2 2 Consiste, en primer término, en una colonización del imaginario de los dominados. Es decir, actúa en la interioridad de ese imaginario. En una medida, es parte de él. . Os dizeres dos colonizadores desprezam, reduzem, diminuem e esvaziam a intelectualidade e o conhecimento dos colonizados. Como sintetiza Ballestrin (2013)BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2069. Acesso em: 28 maio 2020.
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, o projeto de legitimação do poder imperial, a níveis econômicos e políticos, forja paradigmas epistemológicos nas Ciências Humanas e Sociais calcados na geração de identidades de colonizadores e colonizados. Como resultado, há uma tendência histórica de preferência por autores brancos, europeus ocidentais e norte-americanos para a construção do pensamento. Isso configura o que consideramos e investigamos como indícios da colonialidade europeia e norte-americana no pensamento.

Na Comunicação, conforme Quiroz (2016)QUIROZ, K. O. Desde la teoría crítica hacia el pensamiento decolonial. Un aporte a la comunicología actual. In: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 13, 2016, México, MX. Grupo de Interés 1, Comunicación-Decolonialidad, p. 5-14. Anais […] México: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 2016. Disponível em: http://alaic2016.cua.uam.mx/documentos/memorias/GI1.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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, as visadas europeias e norte-americanas se caracterizam por modelos verticais, unilaterais e paternalistas. Para Villanueva (2015VILLANUEVA, E. R. T. La “comunicación occidental”. Eurocentrismo y Modernidad: marcas de las teorías predominantes en el campo. Journal de Comunicación Social, La Paz, v. 3, n. 3, p. 41-64, 2015. Disponível em: https://www.jcomsoc.ucb.edu.bo/index.php/a/article/view/1062. Acesso em: 28 maio 2020.
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, 2016)VILLANUEVA, E. R. T. La comunicación en clave latinoamericana. In: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 13, 2016, México, MX. Grupo de Interés 1, Comunicación-Decolonialidad, p. 134-139. Anais […] México: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 2016. Disponível em: http://alaic2016.cua.uam.mx/documentos/memorias/GI1.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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, trata-se de uma “Comunicação ocidental”, que privilegia a emissão e os efeitos. A nosso ver, tais abordagens tratam a comunicação pela via da impossibilidade de diálogo, confronto, dissenso, controvérsia, discordância e resistência. Isso reforça e reitera os sentidos transmissivo, informacional e técnico de “comunicação”, historicamente dominantes, instaurados e consolidados durante a primeira metade do século XX. Naquela época, a comunicação de massa era o objeto de investigação de visadas funcionalistas e positivistas norte-americanas. Por isso, os sentidos tecnicista e informativo passam a se atrelar à palavra “comunicação”, reforçando a colonialidade do termo.

A colonialidade moderna é revista pela Teoria Crítica, formulada por Theodor W. Adorno e M. Horkheimer, expoentes da Escola de Frankfurt, entre 1920 e 1950. Nos anos 1970, o pensamento latino revisa a dependência cultural e a reprodução ideológica atribuída à comunicação massiva, e ressalta a dimensão dialógica do processo comunicacional (BELTRÁN, 1986BELTRÁN, L. R. Premisas, objetos y métodos foráneos en la investigación sobre Comunicación en América Latina. In: SPÀ, M. M. (org.). Sociología de la comunicación de masas. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1986. v. 1. p. 73-107.; QUIROZ, 2016QUIROZ, K. O. Desde la teoría crítica hacia el pensamiento decolonial. Un aporte a la comunicología actual. In: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 13, 2016, México, MX. Grupo de Interés 1, Comunicación-Decolonialidad, p. 5-14. Anais […] México: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 2016. Disponível em: http://alaic2016.cua.uam.mx/documentos/memorias/GI1.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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; VILLANUEVA, 2016VILLANUEVA, E. R. T. La comunicación en clave latinoamericana. In: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 13, 2016, México, MX. Grupo de Interés 1, Comunicación-Decolonialidad, p. 134-139. Anais […] México: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 2016. Disponível em: http://alaic2016.cua.uam.mx/documentos/memorias/GI1.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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).

Por premissa, consideramos que há indícios, nas abordagens comunicacionais brasileiras, da colonialidade europeia ocidental e norte-americana com base no gênero e na cor da pele das autorias investigadas, bem como nas nacionalidades delas. Como hipótese, consideramos que trabalhos científicos em Comunicação reverberam a tendência preferencial por epistemologias europeias e norte-americanas, em menções a autores/as dessas regiões, sobretudo a homens brancos. Assim, indícios da colonialidade europeia e norte-americana serão investigados com base em gênero, nacionalidade e cor da pele.

Mesmo sendo possível considerar a configuração de um pensamento latino-americano desde meados de 1960 (BERGER, 2018BERGER, C. A crítica une a pesquisa em comunicação na América Latina. In: FERREIRA, G. M.; PERUZO, C. M. K. (org.). Comunicação na América Latina: da metapesquisa aos estudos midiáticos. São Paulo: Intercom, 2018. p. 37-46.), os autores que integram inicialmente essa proposta (Luís Ramiro Beltrán, Paulo Freire, Mário Kaplún, Juan Díaz Bordenave e Armand Mattelart) são pouco ou sequer citados no corpus desta pesquisa. Jésus Martín-Barbero é exceção. Em vista disso, o objetivo central deste artigo é investigar em que medida indícios da colonialidade moderna europeia ocidental e norte-americana se fazem presentes em trabalhos científicos na área de Comunicação no Brasil. Para tanto, iremos considerar o total de 483 textos apresentados em 16 Grupos de Trabalho (GTs) no quadriênio 2000 a 2003, dos encontros anuais Compós, gratuitamente disponibilizados no site oficial do evento3 3 A Compós foi criada em 16 de junho de 1991. Os trabalhos apresentados em anos anteriores a 2000 não estão disponíveis no site oficial do evento. Por isso, não são considerados nesta pesquisa. Disponível em: https://www.compos.org.br/anais_encontros.php. Acesso em: 14 ago. 2020. .

O período foi selecionado para diferenciar este trabalho de outros, dedicados a períodos e a GTs específicos. Martino (2014)MARTINO, L. M. S. Trilhas de um espaço de pesquisa: o GT Epistemologia da Comunicação da Compós. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 11, p. 159-177, 2014. Disponível em: http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/782/pdf_9. Acesso em: 28 maio 2020.
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, por exemplo, se dedicou a pesquisar somente o GT Epistemologia da Comunicação entre 2001 e 2013. França e outros (2016FRANÇA, V. V. et al. Tendências das teorias da Comunicação: mapeamento de campos teóricos contemporâneos. Questões Transversais, São Leopoldo, v. 4, n. 8, p. 1-11, 2016. Disponível em: http://revistas.unisinos.br/index.php/questoes/article/view/14071/PDF. Acesso em: 1 set. 2020.
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, 2018FRANÇA, V. V. et al. Comunicação e Política: um mapeamento de autores/as e teorias que alicerçam essa área no Brasil. Compolítica, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 5-40, 2018. Disponível em: http://compolitica.org/revista/index.php/revista/article/view/183/207. Acesso em: 1 set. 2020.
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, 2019)FRANÇA, V. V. et al. Estudos de televisão no Brasil: uma abordagem de autores/as e teorias. Contemporânea, Salvador, v. 17, n. 2, p. 183-382, 2019. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/28179/19286. Acesso em: 1 set. 2020.
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, por sua vez, trataram dos diferentes GTs da Compós de 2005 a 2016, bem como Simões e outros (2019SIMÕES, P. G. et al. Mapeando as Novas Mídias no Brasil. Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 231, 2019. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/23013/pdf. Acesso em: 1 set. 2020.
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, 2020)SIMÕES, P. G. et al. Mapeando o Campo da Comunicação no Brasil: desafios e descobertas metodológicas de uma metapesquisa. Intexto, Porto Alegre, n. 49, 2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/85730. Acesso em: 15 jun. 2020.
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. Por outro lado, Lemos e Bittencourt (2020)LEMOS, A.; BITTENCOURT, E. Antropocentrismo e Comunicação: uma análise dos artigos dos GT da COMPÓS “Epistemologia da comunicação” e “Comunicação e Cibercultura” de 2017 a 2019. In: Encontro da Associação dos Programas de Pós-graduação em Comunicação, 29, 2020, Campo Grande, MS. Anais […] Brasília: Encontro da Associação dos Programas de Pós-graduação em Comunicação, 2020. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/trabalhos_arquivo_2GHG0HYMM9WNG5WE88RH_30_8304_17_02_2020_10_59_30.pdf. Acesso em: 1 dez. 2020.
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investigaram apenas os textos apresentados em 2018 e 2019 no GT Epistemologia da Comunicação.

Apesar do curto período de tempo selecionado, trata-se de uma primeira aproximação junto aos textos coletados e uma primeira tentativa de tratamento e análise dos dados. O método utilizado possui caráter experimental, e uma primeira testagem dele neste artigo possibilita identificar seus limites e ajustá-lo.

O artigo apresenta mais cinco seções. A primeira traça um breve histórico das abordagens comunicacionais latino-americanas e o estado da arte sobre esse tema e da colonialidade. A segunda seção detalha o método utilizado, explicita os procedimentos de coleta, as tomadas de decisão, os procedimentos de sistematização, tratamento e visualização dos dados. A terceira seção apresenta os resultados mais amplos, referentes aos/às dez autores/as e obras mais citados/as entre 2000 e 2003. A quarta seção indica e analisa os percentuais relativos ao gênero e à nacionalidade dos/as autores/as mais citados/as no período geral. A quinta e última seção, das considerações finais, sintetiza o texto e destaca as limitações e possíveis desdobramentos para futuras pesquisas.

Histórico de abordagens comunicacionais latino-americanas

Entre os/as pesquisadores/as latino-americanos/as da Comunicação, não há consenso acerca da existência de uma Escola ou um pensamento comunicacional do continente, embora a perspectiva crítica tenha percorrido a trajetória de estudiosos/as da área, em meados de 1960, como desdobramento dos anos anteriores. Acerca disso, Berger (2018, p. 38)BERGER, C. A crítica une a pesquisa em comunicação na América Latina. In: FERREIRA, G. M.; PERUZO, C. M. K. (org.). Comunicação na América Latina: da metapesquisa aos estudos midiáticos. São Paulo: Intercom, 2018. p. 37-46. afirma que “[c]ompreender a dimensão política da comunicação engendrava a produção de uma crítica genuinamente regional”, em face de intervenções militares em vários países, bem como a expansão do capitalismo, que explorou as nações periféricas ao impor valores, estilos de vida, modos de pensar e produtos culturais.

A submissão sociocultural, econômica e política de países latino-americanos a países capitalistas impulsionou a produção de diversos conceitos, teorias e abordagens destinados a denunciá-la e a criticá-la, como a Teoria da Dependência Cultural. Alternativas de comunicação junto aos setores populares da região foram propostas, com diferentes denominações: comunicação popular, comunicação comunitária, comunicação horizontal e dialógica, entre outras. Nessa direção, abordagens comprometidas com a transformação social, a democratização e a crítica ideológica à importação de produtos, saberes e práticas socioculturais foram sendo construídas. Desse modo, “[a] virada latino-americana se deu na conjunção do pensamento de pesquisadores de formação muito distinta e distantes fisicamente: Antonio Pasquali, Luiz Ramiro Béltran, Paulo Freire e Mario Kaplún, com os quais se juntaram Juan Dias Bordenave e Armand Mattelart [...]” (BERGER, 2018BERGER, C. A crítica une a pesquisa em comunicação na América Latina. In: FERREIRA, G. M.; PERUZO, C. M. K. (org.). Comunicação na América Latina: da metapesquisa aos estudos midiáticos. São Paulo: Intercom, 2018. p. 37-46., p. 39).

Outras perspectivas foram elaboradas, como os estudos semióticos e antropológicos de argentinos (Eliseo Verón e Héctor Shumucler), peruanos (Rafael Roncacliolo e Maria Afaro) e chilenos (Fernando Reys Matta, Juan Somavía e Diego Portales) (BERGER, 2018BERGER, C. A crítica une a pesquisa em comunicação na América Latina. In: FERREIRA, G. M.; PERUZO, C. M. K. (org.). Comunicação na América Latina: da metapesquisa aos estudos midiáticos. São Paulo: Intercom, 2018. p. 37-46.). Destacamos as abordagens que entrelaçam comunicação e cultura, como os estudos do espanhol Jésus Martín-Barbero, do argentino Néstor García Canclini e do mexicano Guillermo Orozco Gómez. Eles se tornaram referência para pesquisadores/as latino-americanos/as e repercutiram os estudos latino-americanos alhures. Apesar dessa importância, questionamos neste trabalho se tais autores e contribuições se fazem presentes nas abordagens comunicacionais brasileiras.

Dito isso, retomamos as modalidades de colonialidade (poder, saber e ser), propostas por Quiroz (2016)QUIROZ, K. O. Desde la teoría crítica hacia el pensamiento decolonial. Un aporte a la comunicología actual. In: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 13, 2016, México, MX. Grupo de Interés 1, Comunicación-Decolonialidad, p. 5-14. Anais […] México: Congreso Latinoamericano de Investigadores de la Comunicación, 2016. Disponível em: http://alaic2016.cua.uam.mx/documentos/memorias/GI1.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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. Ao atentar para o termo “colonial”, Ballestrin (2013)BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2069. Acesso em: 28 maio 2020.
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mostra que a colonialidade moderna incide sobre as fronteiras de gênero, etnia ou raça, em situações de opressão diversas que enaltecem o ideal de pureza da raça branca. A autora sublinha que nem todas as situações de opressão decorrem da colonialidade. Nessa dinâmica, as relações coloniais são antagônicas, pois impedem que o outro (não branco, não homem, não europeu) seja ele mesmo, impactando a conformação de identidades, posto que o outro é silenciado. Em suma, “a colonialidade é o lado obscuro necessário da modernidade; é a sua parte indissociavelmente constitutiva” (MIGNOLO, 2003 apud BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2069. Acesso em: 28 maio 2020.
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, p. 100). Assim, não há modernidade sem colonialidade, ou economia-mundo capitalista sem as Américas (QUIJANO, 2000QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Revista del Instituto Indigenista Peruano, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992. Disponível em: https://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf. Acesso em: 28 maio 2020.
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apud BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbcp/article/view/2069. Acesso em: 28 maio 2020.
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).

Na área de Comunicação, ao atentar para a polaridade branco/negro derivada da colonialidade epistêmica moderna em 12 revistas da área, em inglês, conforme cadastro na National Communication Association (NCA) e na International Communication Association (ICA), entre 1990 e 2016, Chakravartty e outros (2018)CHAKRAVARRTTY, P. et al. #CommunicationSoWhite. Journal of Communication, v. 68, n. 2, p. 254–266, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1093/joc/jqy003. Acesso em: 28 maio 2020.
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concluíram que pesquisadores/as não brancos/as continuam a ser sub-representados/as em citações, publicações e postos editoriais. Os resultados variam de 5% a 32% de autores/as de cor citados/as, conforme sobrenome e acesso à imagem de cada pessoa. Ao longo das décadas, há reforço de racismo e sexismo nas citações e na escrita de artigos científicos da área.

Chakravartty e outros (2018)CHAKRAVARRTTY, P. et al. #CommunicationSoWhite. Journal of Communication, v. 68, n. 2, p. 254–266, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1093/joc/jqy003. Acesso em: 28 maio 2020.
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evidenciam que, em campos correlatos, os trabalhos ainda perpetuam a “brancura” encontrada nos textos em Comunicação. Uma vez que o privilégio na escolha de autores/as a serem citados/as recai sobre o conhecimento colonizador canônico, a centralidade racial diminui, a despeito do relativo crescimento de pesquisadores/as não brancos/as na Academia.

No Brasil, não identificamos nenhum trabalho que tenha se voltado para o percentual relativo à cor da pele ou ao gênero de autorias de eventos da área, como os encontros anuais da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós)4 4 Apesar de reconhecermos outras manifestações de gênero, consideramos para essa categoria as nomenclaturas “masculino” e “feminino”, para evitarmos discussões acerca de questões de gênero, que não é o foco deste trabalho, bem como para facilitar a análise em um primeiro momento, de teste e experimentação. . Por isso, realizamos esta pesquisa. O evento foi escolhido em função da importância e da relevância do mesmo quanto à sua abrangência geográfica (reúne diferentes pesquisadores e pesquisadoras oriundos de diversos Programas de Pós-Graduação em Comunicação em todo o Brasil) e temática (variados GTs).

O caminho percorrido

O método recorre à revisão de literatura específica sobre colonialidade, para contextualizar os/as leitores/as e abrir espaço para a análise. Igualmente, fundamentamo-nos na análise descritiva simples dos dados, que foram manualmente coletados para evitar informações ausentes no banco de dados da associação Compós5 5 Acessamos os dados coletados entre 2006 e 2015, conforme link indicado por Simões e outros (2020), para tomarmos como modelo de sistematização e coleta. Contudo, os mesmos apresentam erros de configuração e ausência de referências, não mencionados por tais autores/as. . Vários textos não apresentam uma lista de autores/as na seção Referências, mas em notas de rodapé ou apenas no corpo do texto. Soma-se a essa opção manual o fato de vários escritos apresentarem erros ortográficos ou informações faltantes relativas a coautorias das referências utilizadas e ao nome das obras (mencionam apenas a autoria).

Sistematizamos os dados em uma planilha, ordenando as referências (nomes, se coautoria ou não, o gênero, a nacionalidade, o título da obra citada, o título do texto apresentado no evento, o GT correspondente e o ano de apresentação) em respectivas colunas para cada metadado. Para identificar o gênero e a nacionalidade, pesquisamos no Google, Google Acadêmico, Google Livros, Wikipédia, Currículo Lattes, nos próprios artigos e/ou livros e capítulos de livros, citados em cada texto. Muitas vezes, não foi possível identificar tais dados. Por isso, sistematizamos apenas autorias cujo dado (ao menos um) estivesse disponível ou pudesse ser encontrado nas buscas.

Para identificação do gênero, consideramos, primeiramente, o nome. Quando houve dúvida, utilizamos o recurso de imagens do Google, para visualizarmos o rosto do/a autor/a. Para a nacionalidade, consideramos o local de nascimento, mesmo que o/a autor/a tenha desenvolvido carreira acadêmica alhures. Quando não foi possível encontrar esse dado, optamos pelo local atual de atuação do/a autor/a ou de sua trajetória acadêmica. Padronizamos os nomes de autores/as e de obras – as que apresentavam apenas título foram completadas com o subtítulo.

Optamos por não coletar dados relativos à autoria dos textos principais, apresentados nos GTs, pois isso demandaria um esforço e uma equipe mais ampla, bem como por isso já ter sido feito por outros/as autores/as, os/as quais foram mencionados/as antes. O tratamento dos dados e a produção de resultados (ocorrências, hierarquização, percentuais) foram feitos por meio de fórmulas específicas criadas na linguagem R e por meio do uso do software R Studio.

Autores/as e obras mais citados/as

O Quadro 1 apresenta os dez autores mais citados durante os anos de 2000 a 2003 em todos os GTs. Consideramos a ocorrência múltipla de autores/as para os dados analisados e os resultados alcançados, pois citar um/a mesmo/a autor/a em um mesmo texto indica que obras distintas dele/a foram utilizadas, o que quer dizer que o/a mesmo/a deve ser contado/a conforme o número de vezes que foi mencionado/a em um mesmo artigo, o que pode incluir autocitações.

Quadro 1
Dez autores/as mais citados/as - Compós - 2000 a 2003 - Brasil - R Studio

Não há nenhuma mulher entre os dez autores mais citados; as mais citadas, a francesa Michèlle Mattelart e a brasileira Lúcia Santaella, se encontram, respectivamente, nas 31a e 32a posições (em 3.537 posições de autores/as distintos/as), com 24 menções cada. A primeira aparece em coautoria com o belga Armand Mattelart, na obra História das teorias da comunicação. O único homem negro da lista é o jamaicano-britânico Stuart Hall. Tais aspectos evidenciam a colonialidade de abordagens comunicacionais brasileiras no primeiro quadriênio dos anais do Encontro Compós por parte de homens brancos europeus e norte-americanos.

Conforme o Quadro 1, em primeiro lugar está o sociólogo francês Pierre Bourdieu, mencionado 95 vezes. As obras de sua autoria que se destacam, na devida ordem, são O Poder Simbólico, Sobre a televisão: a influência do jornalismo e os jogos olímpicos, A Economia das Trocas Simbólicas e A Economia das Trocas Linguísticas: o que falar quer dizer. A primeira obra é mais citada no GT Comunicação e Política e no GT Estratégias e Políticas da Comunicação. Isso indica que as discussões acerca da política no período se voltam, principalmente, para os diferentes modos de exercício de poder, e que o poder simbólico é um poder invisível.

Na segunda posição, identificamos o filósofo e sociólogo de origem tunisiana, com carreira acadêmica consolidada na França, Pierre Lévy. As obras mais citadas são As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática, Cibercultura e O que é o virtual?. Os GTs que mais citam essas obras são Comunicação e Sociedade Tecnológica, Comunicação e Sociabilidade, Comunicação e Poéticas Digitais, Tecnologias Informacionais de Comunicação e Sociedade, e Estudos de Jornalismo. Lévy é o autor mais citado em diferentes GTs, pois suas produções tratam como as tecnologias, a cibercultura e o virtual impactam os modos de sociabilidade, as dimensões estéticas da comunicação digital e as práticas e os objetos jornalísticos.

Em terceiro lugar, temos o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. As obras mais citadas são Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, Teoria da Ação Comunicativa e Técnica e Ciência como Ideologia. A primeira obra é mais citada no GT Comunicação e Política. A segunda, em Epistemologia da Comunicação, que também conta com mais referências à terceira obra. Os resultados expressam que a discussão em torno da política se complementa com a noção de esfera pública burguesa, tratada como categoria sociológica, produzida historicamente pelo capitalismo, e as estruturas sociais modernas dela decorrentes. Na questão epistemológica, a discussão centra-se na noção de “agir comunicativo”, na esteira crítica da sociedade, que implica a racionalidade comunicativa. Trata-se de uma tentativa de explicar os paradoxos da modernidade, atrelando-os ao mundo da vida.

Na quarta posição, encontramos o semioticista, filósofo e antropólogo espanhol Jésus Martín-Barbero, com forte atuação na Colômbia. A obra Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia é a mais citada, seguida por Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la telenovela en Colombia e sucedida pelo livro Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção televisiva, escrita com Germán Rey. Os GTs que mais se utilizam dessas obras são, respectivamente, Mídia e Recepção e Epistemologia da Comunicação. De fato, a discussão acerca dos meios e da recepção é pautada pelas proposições de Martín-Barbero, que ressalta as incidências das múltiplas mediações nos processos comunicacionais. Há, como objetos de estudo privilegiados por tal autor, a televisão e a telenovela, também privilegiados em Mídia e Recepção, e que impactam nas escolhas analíticas.

Em quinto lugar está o filósofo e historiador francês Michel Foucault. As obras As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas, A ordem do discurso e A Arqueologia do saber são as mais citadas em Produção de Sentido nas Mídias, Comunicação e Campo do Inconsciente, Comunicação e Cultura, e Comunicação e Sociedade Tecnológica. Nas obras, Foucault examina os problemas contemporâneos, focalizando a questão do poder, do saber, do sujeito e do discurso. Outros franceses encontrados foram Roland Barthes e Jean Baudrillard, respectivamente na sexta e na nona posições. Da Itália, apenas Umberto Eco figura na lista. Da Jamaica, temos Stuart Hall, o único homem negro da lista. Não há homens ou mulheres latino-americanos/as nos autores/as mais citados/as.

Autores importantes na formulação do pensamento comunicacional latino-americano, como Luís Ramiro Beltrán, Paulo Freire, Mario Kaplún e Juan Díaz Bordenave não aparecem na lista dos dez autores mais citados. O primeiro, o terceiro e o quarto sequer são citados. O segundo é mencionado sete vezes. O belga Armand Mattelart apresenta 30 ocorrências, número sete vezes superior a Paulo Freire. Isso indica invisibilidade ou mesmo nenhuma fundamentação do pensamento comunicacional brasileiro.

O Quadro 2 apresenta as obras mais citadas, considerando suas versões em idiomas distintos. Optamos por mencionar o nome da obra em português. Como passamos a explicar, nem todos os autores das obras mais citadas correspondem aos autores mais citados do período, pois obras distintas de um mesmo autor podem ser mais citadas, e esse número pode superar as vezes que uma mesma obra foi citada. Por outro lado, quando uma obra é mais citada, isso indica que um mesmo autor se limita apenas à(s) obra(s) mais mencionada(s), indicando pouca variedade de citações de outras obras do/a mesmo/a autor/a ou poucas citações dessas outras obras do/a mesmo/a autor/a em textos distintos.

Quadro 2
Dez obras mais citadas - Compós - 2000 a 2003 - Brasil

A obra Dos meios às mediações... foi uma referência importante nos textos da Compós, com 35 menções no período, seguida de Marxismo e filosofia da linguagem, de Bakhtin, e de Mudança estrutural da esfera pública, de Habermas, com 21 citações cada. Três obras de Lévy figuram na lista, cada uma delas com um número representativo de citações. O que se destaca no Quadro 2 são obras de autores como Mikhail Bakhtin, Mauro Wolf, Peter Berger e Thomas Luckmann, que não figuram nos autores mais citados, pois suas obras (mesmo título) são mais vezes citadas em textos distintos, ao passo que para os autores mais citados, mais obras distintas (título variáveis) são citadas. Novamente, nas obras mais citadas, há indícios de colonialidade, com incidência de homens, brancos, europeus, sem menção a mulheres ou negros/as.

Gênero e nacionalidades mais citados

Encontramos um total de 6.714 homens e 1.373 mulheres, quando buscamos por ocorrências múltiplas, isto é, quando um/a mesmo/a autor/a é citado/as mais de uma vez. Os homens são citados aproximadamente cinco vezes mais que as mulheres. Isso reforça a dimensão masculina e paternalista da colonialidade moderna apresentada antes.

Quando buscamos o número de homens e mulheres citados/as em ocorrências múltiplas por ano, obtemos os dados sistematizados na Tabela 1. A proporção entre homens e mulheres citados/as desde 2000 até 2002 apresenta um ligeiro decréscimo, de 4,92, para 4,82, em um ano, e depois outra redução, para 4,68, em mais um ano. Entretanto, de 2002 para 2003, há um salto de 4,68 para 5,15, indicando aumento no número de citações de homens em relação a mulheres. A proporção de mais ou menos cinco vezes permanece em todo o período. Com isso, é possível concluir que as mulheres representam apenas 20% das citações no período.

Tabela 1
Número de citações por gênero, por ano - ocorrências múltiplas - 2000 a 2003 - Brasil

O Quadro 3 apresenta as nacionalidades mais citadas. A nacionalidade de um mesmo/a autor/a pode ser contabilizada mais de uma vez se o autor/a tiver sido citado/a mais vezes. Em primeira posição está o Brasil, onde o Encontro Compós é realizado, tendo o português como idioma oficial. O mesmo dado indica uma variedade de obras e autores/as únicos/as brasileiros/as que não tenham sido citados/as em outros textos. Isso aumenta o total de autores/as brasileiros/as e suas ocorrências, impactando os dados relativos à nacionalidade e ao gênero. Em outros termos, a prevalência de nacionalidade brasileira indica, ao mesmo tempo, ocorrências múltiplas e um número exponencial de ocorrências únicas. Por outro lado, os autores estrangeiros mais citados têm maior incidência de ocorrências múltiplas.

Quadro 3
Dez nacionalidades mais citadas - Compós - 2000 a 2003 - Brasil

Os autores brasileiros mais citados são Arlindo Machado, André Lemos, Wilson Gomes, Antonio Albino C. Rubim e Muniz Sodré. As autoras brasileiras mais citadas são Lúcia Santaella, Janice Caiafa, Maria Immacolata Vassalo de Lopes, Vera França e Simone Pereira de Sá.

Seis países europeus predominam – França (2a posição), Inglaterra (4ª), Alemanha (5ª), Itália (6ª), Espanha (7ª) e Áustria (10ª) –, seguidos por dois países norte-americanos – Estados Unidos (3ª) e Canadá (9ª), em uma lista com 76 posições. Além do Brasil, o único país latino-americano na lista das dez nacionalidades mais citadas é a Argentina, com Néstor García Canclini, Eliseo Verón e Beatriz Sarlo.

Outros países latino-americanos são México (17ª posição), Colômbia (20ª), Chile (21ª), Cuba (42ª), Uruguai (44ª), Venezuela (52ª), Equador (53ª), Porto Rico (60ª), Bolívia (63ª) e Panamá (71ª). Os dois últimos contam com apenas uma menção em todo o corpus. Entre os/as autores/as latino-americanos/as mais citados/as, exceto Brasil, temos o chileno Francisco Varela, o mexicano Guillermo Orozco Gómez e o chileno Humberto Maturana. Na quinta posição temos o colombiano Germán Rey e os mexicanos Jesús Galindo Cáceres e Jorge A. G. Sánchez. Em termos de variedade de autores por países latino-americanos, o México apresenta mais diferentes autores mais citados. Em contraste, as mulheres latino-americanas, exceto brasileiras, praticamente não são citadas, com ocorrências que variam de duas (somente Sònia Munõz) a uma citação (as demais).

Embora os dez autores mais citados sejam europeus, exceto Stuart Hall, os brasileiros são os mais citados no total. Isso indica forte tendência de citação de referências nacionais, como em autocitações, aspecto que não exploramos neste trabalho, mas fortemente presente nos dados. Os resultados apontam, ainda, para a predominância de ocorrências únicas de obras de brasileiros/as, como únicos/as autores/as, como destacado antes. Isso indica a ausência de escolas ou mesmo poucos autores/as de referência no Brasil.

Em busca de autores franceses mais citados, encontramos Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Roland Barthes, Jean Baudrillard e Gilles Deleuze, entre os cinco primeiros. Os quatro primeiros, homens brancos, figuram na lista dos dez autores mais citados, incluindo todas as nacionalidades, em todo o período. Em busca das autoras francesas mais citadas encontramos Michèle Mattelart em primeira posição.

Ao buscar por autores norte-americanos, encontramos John B. Thompson (muitas vezes creditado como inglês), George P. Landow, Frederic Jameson, Michael Schudson e Steven Johnson. A busca por autoras norte-americanas resultou em Sherry Turkle, Gaye Tuchman, Donna Haraway, Nancy Fraser e Janice Radway. Nenhum/a autor/a norte-americano/a figura entre os dez mais citados/as. Todos/as os/as autores/as norte-americanos/as são brancos/as.

Os autores ingleses mais citados são Anthony Giddens, David Harvey, David Morley, James Curran e Gregory Bateson. As autoras inglesas mais mencionadas são Dorothy Hobson, Valerie Walkerdine, Charlotte Brundson, Susan Blackmore e Marie Gillespie. A discrepância entre o percentual de autores e autoras ingleses é remarcável, pois enquanto a variação nos homens vai de 34 a 11 citações, o intervalo nas mulheres alterna de quatro a duas citações, para os/as cinco primeiros/as autores/as. Todos/as os/as autores/as ingleses/as são brancos/as.

A Alemanha se destaca na quinta posição e apresenta, entre os autores masculinos mais citados: Jürgen Habermas, Walter Benjamin, Friedrich Nietzsche, Niklas Luhmann e George Simmel. Os dois primeiros figuram na lista dos dez mais citados e integram a Escola de Frankfurt. Cabe destacar a influência de tais autores no pensamento comunicacional brasileiro pela via filosófica e sociológica. No que tange às autoras alemãs, a principal é Hannah Arendt (17 menções), enquanto as demais possuem duas menções (duas autoras) ou uma menção (as demais). Os resultados, novamente, revelam indícios de colonialidade europeia ocidental e norte-americana no pensamento comunicacional brasileiro.

Considerações finais

O trabalho investigou os indícios de colonialidade europeia ocidental e norte-americana nas abordagens comunicacionais brasileiras com base em 483 textos, apresentados entre 2000 e 2003, em 16 GTs distintos, no Encontro Compós. Igualmente, este artigo discutiu em que medida tais indícios se fazem presentes nesses trabalhos científicos da área de Comunicação, analisados por meio de três categorias que evidenciam a modalidade de colonialidade do saber: gênero, nacionalidade e cor da pele.

Os resultados apontam para a diversidade de autorias e de nacionalidades, com predomínio de homens brancos europeus ocidentais e de norte-americanos. Entre os países europeus se destacam França, Alemanha, Espanha e Itália. As obras mais citadas também se referem a autores de tais países, mas incluem autores da Rússia (Bakhtin), Áustria (Berger) e Eslovênia (Luckmann). Entre os norte-americanos, se destacam aqueles dos Estados Unidos. Apenas um homem negro, Stuart Hall, jamaicano-inglês, está na lista dos dez autores mais mencionados, apesar de não figurar como autor das obras mais citadas. Não há menção de mulheres, negras ou mesmo brancas, nas listas de dez autores e obras mais citados. Portanto, tais resultados evidenciam a colonialidade moderna de homens brancos europeus ocidentais e de norte-americanos no pensamento comunicacional brasileiro entre 2000 e 2003.

Como limitação, apontamos a falta de dados completos nos sites de busca acerca de autores/as de referência acionados/as nos textos do Encontro Compós, bem como erros ortográficos e informações neles ausentes, seja de nomes de autores/as e nomes de obras. Igualmente, não há padrão, pois muitas referências se encontram em notas de rodapé ou no corpo do texto. Isso dificulta a criação de uma fórmula específica para produção de resultados via R, que será testada nas próximas investigações, juntamente com uma fórmula para automatização da coleta. A vastidão do corpus também dificulta, mas não impossibilita, a padronização de nomes e títulos de obras.

Como possíveis desdobramentos, destacamos a necessidade de investimento em metapesquisas que abordem o tema da colonialidade na comunicação brasileira e latino-americana, uma vez que estudos desse cunho se centram entre 1960 e 1980. Outro empreendimento nosso é a ampliação do corpus para 2004 a 2019, o que totaliza 20 anos de abordagens comunicacionais nos anais apresentados durante o Encontro Compós. Certamente que de 2003 até aqui muito se modificou, por isso o esforço de ampliar o escopo temporal de nossa pesquisa. Por outro lado, reconhecemos que os autores e as obras mais citados nos trabalhos analisados ainda são referências importantes na área de Comunicação no Brasil.

  • 1
    Período iniciado com as Grandes Navegações e a Era dos Descobrimentos (entre o século XV e o final do século XVI), consolidado pela Revolução Industrial e a afirmação do capitalismo como sistema econômico mundial.
  • 2
    Consiste, en primer término, en una colonización del imaginario de los dominados. Es decir, actúa en la interioridad de ese imaginario. En una medida, es parte de él.
  • 3
    A Compós foi criada em 16 de junho de 1991. Os trabalhos apresentados em anos anteriores a 2000 não estão disponíveis no site oficial do evento. Por isso, não são considerados nesta pesquisa. Disponível em: https://www.compos.org.br/anais_encontros.php. Acesso em: 14 ago. 2020.
  • 4
    Apesar de reconhecermos outras manifestações de gênero, consideramos para essa categoria as nomenclaturas “masculino” e “feminino”, para evitarmos discussões acerca de questões de gênero, que não é o foco deste trabalho, bem como para facilitar a análise em um primeiro momento, de teste e experimentação.
  • 5
    Acessamos os dados coletados entre 2006 e 2015, conforme link indicado por Simões e outros (2020)SIMÕES, P. G. et al. Mapeando o Campo da Comunicação no Brasil: desafios e descobertas metodológicas de uma metapesquisa. Intexto, Porto Alegre, n. 49, 2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/intexto/article/view/85730. Acesso em: 15 jun. 2020.
    https://seer.ufrgs.br/intexto/article/vi...
    , para tomarmos como modelo de sistematização e coleta. Contudo, os mesmos apresentam erros de configuração e ausência de referências, não mencionados por tais autores/as.

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Editado por

Editora responsável: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2020
  • Aceito
    13 Fev 2022
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