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Impactos persistentes da cultura de massas na comunicação: a crise da empatia e o rebaixamento cognitivo

Impactos persistentes de la cultura de masas en la comunicación: la crisis de empatía y degradación cognitiva

Resumo

O texto apresenta resultados de pesquisa teórica realizada nos últimos anos acerca da importância da empatia para a comunicação e trata do que se pode considerar uma crise da empatia gerada por um século de comunicação de massas, propondo relações entre comunicação presencial e eletronicamente mediada e perda da propriocepção corporal fundamental para os processos empáticos. A predominância da comunicação eletrônica deixou suas marcas tanto nos processos emocionais e empáticos da comunicação, bem como no que podemos considerar como uma espécie de rebaixamento cognitivo. Ambos os processos estão na base de uma crise social de enormes proporções que se instaura hoje no Brasil e que se revela tanto na crescente intolerância social, quanto na facilidade com que a sociedade é hoje afetada negativamente pela desinformação. O pensamento proposto baseia-se nos entrelaçamentos entre ferramentas conceituais dos estudos de Comunicação e Mídia, de Psicologia e de Etologia Humana.

Palavras-chave
mídia de massas; corpo; vínculo; empatia; tolerância

Resumen

El texto presenta los resultados de las investigaciones teóricas realizadas en los últimos años sobre la importancia de la empatía para la comunicación y trata de lo que puede considerarse una crisis de empatía generada por un siglo de comunicación masiva, proponiendo relaciones entre la comunicación mediada electrónicamente y pérdida de la propriocepción corporal fundamental para los procesos empáticos. El predominio de la comunicación electrónica ha dejado sus notas tanto en los procesos emocionales y empáticos de la comunicación, como en lo que podemos considerar como una especie de degradación cognitiva. Ambos procesos son la base de una crisis social de enormes proporciones que se establece hoy en Brasil y que se revela tanto en la creciente intolerancia social como en la facilidad con la que la sociedad se ve afectada negativamente debido a la desinformación. El pensamiento propuesto se basa en el entrelazamiento entre las herramientas conceptuales de Comunicación y Estudios Mediáticos, Psicología y Etología Humana.

Palabras clave
medios de comunicación de masas; cuerpo; vínculos; empatía; tolerancia

Abstract

The text presents the results of a theoretical research conducted over the last years: the importance of empathy in communication. It also deals with what can be considered a crisis of empathy, generated by a century of mass communications, presenting relationships between physical/presential and electronically mediated communications, the loss of bodily proprioception (which is fundamental for empathy). The prevalence of electronic communication left its mark both in processes dealing with emotion and empathy, as well as in what we can consider a sort of cognitive debasement. Both of these processes are on the foundation of a social crisis of enormous proportions currently found in Brazil, which is brought out in growing social intolerance and how easily today’s society is affected negatively by disinformation. The proposed pondering is based on multidisciplinary work ranging from conceptual tools in Communications and Media Studies, Psychology and Human Ethology.

Keywords
mass media; body; links; empathy; tolerance

Apresentação

Frente aos desafios que se apresentam aos estudos de comunicação no atual momento no Brasil, a presente reflexão afirma a importância de considerarmos os impactos gerados por 100 anos de comunicação de massas, especialmente a partir da onipresença da mídia eletrônica e sua influência na dimensão psicoafetiva e relacional presente na comunicação. Muito além das trocas informativas que se postulava como centro do interesse dos estudos de comunicação há algumas décadas, os últimos 20 anos e os impactos das redes sociais digitais nos alertaram para a relevância das afetividades e dos processos emocionais para a comunicação humana.

Dentre esses processos, a centralidade do caráter emocional da comunicação, que crescentemente se impõe, apontado por vários autores como “afetividade”, tem merecido maior atenção, especialmente a partir das atuais descobertas da neurociência (DAMÁSIO, 2010DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000.) que vinculam indubitavelmente emoção a qualquer tipo de cognição possível.

É nessa direção que este artigo pretende contribuir, apresentando alguns dos resultados da pesquisa teórica realizada nos últimos anos acerca da centralidade das emoções e da empatia para os processos comunicativos, evidenciando o uso ideológico que a Cultura de Massas realiza desses processos por meio da implantação de uma estética própria - e aqui tomamos a palavra em sua raiz, como aisthesis, ou seja, sentidos.

O entendimento sobre a natureza emocional da comunicação e sobre os processos de empatia requerem um olhar interdisciplinar que, somado aos saberes específicos da área de Comunicação, fez com que fosse possível a convergência de contribuições pontuais valiosas da Psicologia, da Etologia e da Neurociência, em busca de aprofundamento e melhor compreensão do objeto teórico em questão.

Comunicação de massas hoje

O advento da Internet e a criação de um ambiente de redes gerou a ilusão de que a Comunicação de Massas estava superada, ou ao menos que seu impacto estava diluído significativamente. Mas foi preciso apenas duas décadas para que percebêssemos que a coisa não era assim tão simples, tão linear como alguns propagaram ao avaliarem os novos cenários que a web comunicação descortinava. Após praticamente 100 anos de comunicação de massas - e aqui me refiro especialmente à comunicação eletrônica que marcou o século XX, propiciando por seus meios técnicos uma enorme vascularização dos meios de comunicação -, foi ingênuo acreditar que seria possível apagar toda a programação estética, cognitiva e ideológica gerada pelo rádio e pela TV, já por usa vez herdeiros do cinema, sobretudo, no Brasil, do hollywoodiano.

Passados aproximadamente 40 anos da popularização dos computadores pessoais e 30 anos do advento da Internet, são ainda poucos os usos culturais e comunicativos realmente originais e transgressores da ordem anterior que vemos atingirem um número elevado de usuários. O que veio de mais radicalmente novo nesse meio foram as estratégias comerciais, propiciando mais recursos comerciais para o mercado, efetivando a ação da globalização econômica, servindo à sobrevivência do Capitalismo, e as redes sociais, logo cooptadas também para usos econômicos e político-partidários.

Justamente por isso foi inglória a crítica levantada a partir dos anos 1980 em torno das potenciais consequências do uso crescente e indiscriminado dos meios de comunicação eletrônicos, especialmente os de fácil portabilidade – celulares, smartphones, tablets -, que triunfaram na tarefa de nos condicionar ao seu uso ininterrupto. O discurso publicitário e tecno-encantado do mercado triunfou e nos convenceu, sem grandes dificuldades, da necessidade de nos adaptarmos às novas formas de comunicação interpessoais, que passaram a se pautar mais pela mediação eletrônica do que pela imediação.

As tentativas nos debates travados em espaços acadêmicos de tensionar a aparente inevitabilidade de seus usos - ou ao menos relativizá-los -, foram quase sempre rechaçadas pelo fascínio exercido por todos os aspectos aparentes desse novo modo de viver: conexão ilimitada, destruição de barreiras espaço-temporais, facilitação das trocas de informação, velocidade nas trocas, enfim, a lista é grande e todos a conhecemos porque ela foi exaustivamente propagada pela publicidade e defendida por uma série de estudos alinhados a um pensamento subserviente aos interesses do mercado neoliberal mundial dos eletrônicos.

Como toda virtualização abriga uma abstração, sempre nos coube perguntar: o que foi abstraído? E a resposta generalizante, de que o que foi abstraído, ou melhor, subtraído, foi a dimensão do concreto, apenas escondeu as implicações subjetivas diretas desse processo; tratou-se de fato do apagamento do corpo e do seu protagonismo nas relações comunicativas.

Kamper (1998)KAMPER, D. O trabalho como vida. São Paulo: Annablume, 1997., em seu brilhante ensaio sobre como o trabalho inflou em importância e se apropriou de todos os outros espaços da vida, deu continuidade à conhecida reflexão de Weber (2004)WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004. sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo. A direção que une essas duas obras aponta para o apagamento do corpo, instrumentalizado pelo aparato tecno-funcional dos meios de produção.

Nesse sentido, buscamos resgatar o papel do corpo e dos vínculos comunicativos na comunicação humana e esse percurso nos levou ao diagnóstico de que vivemos uma profunda crise da empatia, que pode ser inclusive amplamente atestada por meio da observação e da vivência social contemporânea.

Sobretudo no Brasil, que é um país com índices altos de analfabetismo1 1 Avaliando os índices de analfabetismo do IBGE, consta que “em números absolutos, a taxa representa 11,5 de pessoas que ainda não sabem ler e escrever. A incidência chega a ser quase três vezes maior na faixa de população de 60 anos ou mais de idade, 19,3%, e mais que o dobro entre pretos e pardos (9,3%) em relação aos brancos (4,0%). Disponível em:: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21255-analfabetismo-cai-em-2017-mas-segue-acima-da-meta-para-2015. Acesso em: 20 nov. 2020. , e no qual se avalia que três entre dez brasileiros considerados alfabetizados de fato sejam analfabetos funcionais2 2 Disponível em: http://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Inaf2018_Relat%C3%B3rio-Resultados-Preliminares_v08Ago2018.pdf. Acesso em: 20 nov. 2020. ; e cujos censos apontam para índices de 9 horas e 14 minutos por dia de uso de Internet entre 14 a 64 anos3 3 Disponível em: https://wearesocial.com/blog/2018/01/global-digital-report-2018. Acesso em: 20 nov. 2020. , temos de nos perguntar sobre que consequências traz o fato de termos uma vida quase exclusivamente pela Internet.

Queremos aqui propor a relação existente entre esse uso intensivo das telecomunicações com a crise da empatia e, consequentemente, com o exercício ético da alteridade nas relações sociais, hoje, em sua quase totalidade mediadas eletronicamente.

O papel dos vínculos na comunicação

Os estudos relativos às teorias da Comunicação e da Mídia só há poucos anos têm dado a devida atenção às questões relativas ao vínculo. Ainda hoje, a maior parte dos trabalhos que esbarram nesse tema se restringe a igualar o vínculo a conexões tecno-instrumentais. Na melhor das hipóteses, vemos serem consideradas, de um lado, as dimensões sociais e políticas das relações comunicativas, e de outro, sua natureza imaginária, afetiva, emocional e até religiosa; no entanto, a relação entre essas questões tem sido pouco apontada, mesmo considerando que há pouquíssima racionalidade no comportamento do “público” dos meios de massa, ou até mesmo na enorme adesão atual às redes sociais virtuais e às manobras ideológicas que elas operam.

Boris Cyrulnik, em suas pesquisas sobre os processos de resiliência no contexto da Etologia Humana, tem oferecido uma contribuição fundamental acerca do papel do vínculo para as relações humanas, chegando a afirmar, que “não pertencer a ninguém é não se tornar ninguém” (CYRULNIK, 1995CYRULNIK, B. Do sexto sentido – o homem e o encantamento do mundo. Lisboa: Editora Instituto Piaget, 1999., p. 75). Todo o seu trabalho parte, de certa forma, da constatação de que temos uma natureza que ele chama de “porosa”, ou seja, somos sistemas vivos e abertos, e constantemente assimilamos porosamente nosso meio ambiente. Essa porosidade é exatamente o que nos torna empáticos. Cyrulnik nos diz ainda que: “O indivíduo é um objeto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser o mesmo quando o biotipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar a ponto de se tornar ele mesmo um bocado de meio ambiente” (CYRULNIK, 1999CYRULNIK, B. Do sexto sentido – o homem e o encantamento do mundo. Lisboa: Editora Instituto Piaget, 1999., p. 92). Em seguida, propõe um termo precioso para a compreensão da centralidade do vínculo e das relações que o geram: “De todos os organismos, o ser humano é, provavelmente, o mais dotado para a comunicação porosa (física, sensorial e verbal), que estrutura o vazio entre dois parceiros e constitui a biologia do ligante” (CYRULNIK, 1999CYRULNIK, B. Do sexto sentido – o homem e o encantamento do mundo. Lisboa: Editora Instituto Piaget, 1999., p. 92). Isso que Cyrulnik designa como “biologia do ligante” traz para o foco de nossa atenção o papel da comunicação nos processos de efetivação dessas ligações em âmbito social.

Morin (1988)MORIN, E. O paradigma perdido: o enigma do homem. Lisboa: Publ. Europa-América, 1988. partiu dos estudos dos sistemas vivos para construir sua proposta acerca do Método da Complexidade e destacou desde o início a natureza relacional do mundo vivo, propondo uma visão de humano centrada nas constantes trocas com o meio ambiente, pontuando desde o início nossa natureza relacional, nossa codependência, especialmente quando considerou que o processo de amadurecimento de nossa espécie é mais longo do que o de outras espécies, o que ele chamou de juvenilização. Essa prolongada dependência em relação ao meio social se une às codependências de caráter imaginário (o caráter demens), gerando uma rede entrelaçada de vínculos.

Sob a ótica da Psicologia Arquetípica, Hillman (1992)HILLMAN, J. Encarando os deuses. São Paulo: Editora Cultrix, 1992. aproxima o vínculo do termo ‘necessidade’, utilizando para isso a imagem mítica da deusa grega Ananke. Hillman coloca uma ênfase especial nas acepções de canga/coleira/laço que a etimologia da palavra apresenta, e afirma que grande parte das vezes em que queremos sentirmo-nos autônomos somos possuídos por uma profunda agonia por causa dessa condição de sermos feitos para e pelo vínculo. Segundo Hillman (1992)HILLMAN, J. Encarando os deuses. São Paulo: Editora Cultrix, 1992., essa condição psicológica é fruto de muita resistência, apesar de ser ela intrínseca ao ser humano, tornando o sentimento de pertença tão importante para nós.

Baitello Jr. (In: MARCONDES FILHO, 2014) e os estudos interdisciplinares de seu grupo de pesquisa4 4 Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia – PUC/SP (www.cisc.org.br). , bem como os últimos trabalhos de Muniz Sodré (2006)SODRÉ, M. As Estratégias Sensíveis: afeto, mídia e político. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006., têm apresentado a importância do vínculo para os estudos da Comunicação, apontando para a dimensão emocional e vinculadora dos processos comunicativos e tratando da reflexão acerca de como o espaço mediático tem - ou não - acolhido as práticas vinculares. A centralidade dessa discussão sobre os processos de vinculação para os estudos da mídia reside em repensar a noção de relação comunicativa, evitando a concepção de que sejam essas relações meras trocas informativas que se possam equiparar a relações comerciais e instrumentais, e chamando a atenção para a importância dos processos de significação e do compartilhamento de emoções que estão presentes nessa relação.

Ainda será preciso expandir a discussão acerca de como o processo pelo qual os meios de comunicação sociais filtram do imaginário, da noosfera, uma série de conteúdos e práticas, retrabalhando-os e os ressignificando, para em seguida os repropor à sociedade, para que se apresente com maior clareza a importância dessa relação entre mídia e imaginário na contemporaneidade5 5 É em parte esse desafio que o Grupo de Trabalho de Imagem e Imaginário Midiáticos da Compós tem buscado enfrentar, já há 10 anos. . Esse universo imaginário replicado pelos meios gera uma espécie de esfera imaginária própria, a mediosfera. Essa mediosfera se constitui por um tipo de vínculo centrado na simpatia, como Morin (1986)MORIN, E. Cultura de massas no século XX. 2 volumes. São Paulo: Editora Forense-Universitária, 1986. demonstrou há praticamente 40 anos, e podemos afirmar que os seres da noosfera (da ordem do imaginário) nascem de relações de sentido, sempre coletivas, em um ambiente de sociabilidade cujo caráter emocional é intenso, pautado pelos processos de empatia. Esses seres do imaginário, da noosfera, são gerados por vínculos empáticos, enquanto os seres da mediosfera, do imaginário proposto pelos meios de comunicação, resultam das relações de projeção e identificação, marcadamente inconscientes.

Essa distinção, de fato, merece ser atentamente considerada, sobretudo por trazer para o foco da discussão um fator central para se compreender a natureza da comunicação de massa, o apagamento do corpo e das vivências presenciais e concretas.

O apagamento do corpo na sociedade mediática

Damásio (2000)DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000. irá afirmar que no caso da empatia estamos tratando de emoção, e não de sentimento, e isso porque os processos empáticos, de alguma forma, antecedem as funções cerebrais envolvidas no trabalho cognitivo consciente ou intelectual do cérebro humano. O caráter inconsciente das emoções é apontado por Damásio (2000)DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000. quando ele afirma que é preciso diferenciar esses processos cognitivos daqueles designados por sentimento, considerando que são as reações corporais/somáticas que essencialmente caracterizam uma emoção.

Damásio propõe que podemos observar a existência de dois tipos diferentes de emoção, primárias e secundárias, sendo que as secundárias introduziriam elementos diferenciais em relações às primárias que são bastante relevantes e que exigem uma reflexão mais aprofundada. Ele diz que:

No entanto, o processo não termina com as alterações corporais que definem uma emoção. O ciclo continua, pelo menos nos seres humanos, e o passo seguinte é a ‘sensação da emoção’ em relação ao objeto que a desencadeou, a percepção da relação entre objeto e estado emocional do corpo

(DAMÁSIO, 2000DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000., p. 161).

Essa “sensação de emoção” contém um elemento comparativo da relação entre sujeito e objeto que introduz necessariamente o papel da consciência. É por isso que ele afirma que sentir os estados emocionais equivale a “afirmar que se tem consciência das emoções” (DAMÁSIO, 1998DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000., p. 162). Segue defendendo que essa consciência das emoções tem um papel fundamental na medida em que “oferece-nos flexibilidade de resposta com base na história específica de nossas interações com o meio ambiente” (DAMÁSIO, 1998DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000., p. 162). E, para ele, essa capacidade de “sentir as emoções” de forma mais consciente é o sentimento.

Já Carl G. Jung alertou para essa diferença entre emoção e sentimento, apresentando uma compreensão praticamente igual à de Damásio e se referindo às teorias do psicólogo dinamarquês William James sobre emoção: “A palavra ‘emocional’ é invariavelmente aplicada quando surge uma condição caracterizada por enervações fisiológicas... E nesse momento (da emoção) existe uma condição física realmente tangível e observável...” (JUNG, 2008JUNG, C. G. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Editora Vozes, 2008., p. 21).

Compreendendo emoção em sua dimensão centralmente somática, ele também considera que o sentimento trate de algo mais consciente, menos atávico, e mais relacionado aos valores pessoais. Ao considerar o sentimento uma função que abriga certo grau de racionalidade, Jung (2008)JUNG, C. G. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. está apontando para o fato de ser o sentimento da esfera da consciência, enquanto a emoção segue sendo de caráter mais inconsciente. Ele afirma que considera que podemos ficar de fato “tomados”, “possuídos” pelas emoções, inclusive as coletivas. Essa reflexão sobre o poder de arrebatamento das emoções coincide com o seu caráter predominantemente inconsciente.

Sobre a empatia, J. R. Goldim6 6 José Roberto Goldim, pesquisador especialista em Bioética, refere-se em seus trabalhos à necessidade de resgatar as noções de Empatia e Simpatia, ressaltando a centralidade dessas emoções para a constituição das relações humanas. Considerando a teoria de David Hume (Tratado da Natureza Humana, 1738), Goldim afirma ser a simpatia algo que vincula as pessoas umas às outras. Disponível em: http://www.bioetica.ufrgs.br/compaix.htm. Acesso em: 20 nov. 2020. , retomando as reflexões de Hume sobre o assunto, propõe uma questão fundamental: não só a empatia é uma emoção central para as relações humanas, como é por meio da capacidade empática do homem que é possível construir as “semelhanças” entre os membros de uma mesma sociedade. Sobre isso, Hume (apud. GOLDIM, 2009GOLDIM, J. R. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Revista da AMRIGS. Porto Alegre, v. 53, n. 1, p. 58-63, jan./mar. 2009. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/complexamrigs09.pdf. Acesso em: 20 nov. 2020.
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) afirmou que é provável que se deva aos processos empáticos a espantosa uniformidade dos humores e dos modos de pensar de um mesmo grupo social.

Essa relação entre vivências corporais, emoção e empatia nos ajuda a compreender a afirmação de Manuel Castells de que as comunidades de identidade atuais têm como uma das principais estratégias de sua criação “a autodefinição por exclusão do outro, daqueles que não são como nós. Ou seja, a distinção xenofóbica” (CASTELLS, 2018CASTELLS, M. Ruptura – a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2018., p. 85).

A comunicação presencial nos atira ao incontornável das emoções; a situação, o contexto, evoca-nos algo, age de tal maneira sobre nós que não podemos ignorar a existência do apelo do outro presente, mesmo que nos neguemos a dar seguimento e transformá-lo em uma relação mais significativa e responsável. Todos sabemos como é bem mais fácil desligar ou silenciar um aparelho de comunicação do que se “livrar” de uma presença inconveniente.

Quando não há a possibilidade de exercício pleno da consciência, contamos com a sabedoria arcaica do corpo, da espécie, daquilo que por um lado antecede o indivíduo, mas por outro lado o transcende. Talvez por isso a tradição gnóstica acreditasse que essa reação primordial ao outro era desempenhada pelo fígado, hepatos, de onde a raiz etimológica dos dois termos aqui discutidos. Trata-se do entendimento de que empatia é uma reação visceral, ou seja, originada no âmago do corpo.

Goldim (2009)GOLDIM, J. R. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Revista da AMRIGS. Porto Alegre, v. 53, n. 1, p. 58-63, jan./mar. 2009. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/complexamrigs09.pdf. Acesso em: 20 nov. 2020.
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afirma ainda que a empatia se refere mais à estética do que à ética, e, nesse sentido, a associação entre empatia e experiências estéticas, compreendida como aisthesis, é de fato reveladora quando consideramos que, para Francisco Varela, são exatamente os processos estéticos que estão implicados em algo que ele chama de “processos de enação corporais”, pré-requisitos para a criação de noções éticas. Ele propõe que uma ética adequada não pode prescindir de fundamentos estéticos enactivos, que ele assim apresenta:

Em síntese, a abordagem enactiva sublinha a importância de dois pontos entre si ligados: (1) a percepção é formada por ações perceptivamente guiadas; (2) as estruturas cognitivas brotam de esquemas sensórios-motores recorrentes que capacitam a ação perceptivamente guiada”

(VARELA, 1992, p. 22).

Com isso ele reforça o papel dos esquemas sensórios-motores para a cognição necessária para o surgimento de noções éticas. Sem propriocepção não há mundo com o qual se importar, não há demanda real que convoque uma decisão consciente ou ética sobre o que quer que seja.

A consideração das experiências enactivas faz então da empatia estabelecida nas relações interpessoais uma emoção no sentido exato do termo, mas faz da simpatia projetiva/identificativa da cultura mediática (MORIN, 1995MORIN, E. O método 4: as ideias. Lisboa: Europa-América Edições, 1992.) quase um simulacro de emoção no qual o corpo pouco ou nada entra em cena, como ocorre no jogo das mútuas contaminações existentes nas práticas sociais concretas. Nesse último caso, ainda que algo aconteça no corpo, esse acontecimento não convoca sua performance espaço-temporal concreta, e o que ocorre são estertores imóveis.

No ambiente contemporâneo do espetáculo toda a ação do espectador pode existir apenas na esfera da virtualidade, da descorporificação, de uma reação à distância. Essa posição reativa do espectador dos meios de comunicação de massas foi então ideologicamente direcionada para um único sentido, o consumo. Frente à despotencialização da ação corporal, o consumo respondeu a esse desempoderamento, gerando a ilusão de potência, como bem alertou Baudrillard (2000)BAUDRILLARD, J. A sociedade do consumo. Lisboa: Edições 70, 2000..

Cultura de massas, internet e as tecnologias da distração – o rebaixamento cognitivo

Se o que perdemos em propriocepção e consciência corporal, e consequentemente em empatia, tivesse sido substituído pelo desenvolvimento de uma cognição abstrata capaz de responder adequadamente aos desafios da alteridade por meio de princípios éticos racionais, talvez não estivéssemos vivenciando tanta intolerância e xenofobia em pleno século XXI. Porém, o que revelam os crescentes conflitos raciais e o crescimento de uma simpatia social pelos ideais partidários da direita fascista, como foi atestado nas últimas eleições no Brasil, em 2018, não seguimos exatamente em direção a uma mentalidade que poderíamos considerar esclarecida acerca da complexidade das relações sociais e do imperativo da negociação para a máxima inclusão, próprios do fazer social.

Ainda que a questão seja complexa e que demande análises econômicas e político-ideológicas aprofundadas, não podemos deixar de nos perguntar sobre o papel dos meios de comunicação de massa na criação dessa mentalidade simplista que pretende tratar as diferenças pela exclusão.

Especialmente o fenômeno das Fake News, que pautou as últimas eleições no Brasil, e que está sendo muito estudado por especialistas da área7 7 São muitos os trabalhos que se ocupam do fenômeno das fake News, mas podemos citar alguns que nos parecem elucidativos do que estamos aqui tratando: http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376; http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1272; http://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/4813; http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/moci/article/view/3760. , apresenta-nos um aspecto que se relaciona diretamente ao ponto que aqui desenvolvemos. Não se trata apenas de compreender a máquina mediática da criação e operacionalização das Fake News, mas de nos perguntarmos acerca de como milhares de pessoas que possuíam grau de instrução relativo e que, esperava-se, deveriam possuir a mínima perspectiva crítica e crivo para a identificação de notícias absurdas e mentirosas, apresentaram uma atitude de total credulidade frente às mais variadas notícias falsas e grotescas.

Para além dos embates político-ideológicos próprios de um contexto complexo e conturbado como o do Brasil, acreditar em certas notícias que foram divulgadas, elegendo candidatos que mal conseguiam discursar por quatro minutos sem cometer erros grotescos de língua e de raciocínio, fez com que intelectuais, professores universitários e pesquisadores se perguntassem como era possível que não se percebesse a extrema limitação cognitiva de alguns candidatos e as contradições explícitas de seus discursos, antes até de que se pudesse questionar sobre suas posições políticas e ideológicas. Os absurdos que eram falados evidenciavam não apenas se tratar de Fake News, mas chamaram a atenção para outro fenômeno que considero mais grave e que talvez não estivesse tão claro até então: o atual e extremo rebaixamento cognitivo frente a estados emocionais contagiantes promovidos pelos meios de comunicação de massas e pelas redes sociais.

Pensávamos já ter superado o estado de cegueira das massas arrastadas por contágios emocionais, tais como havíamos visto tristemente no nazi-fascismo, mas o que vimos foi exatamente novas formas da ação desses contágios8 8 Sobre a ação dos contágios psíquicos nos meios de comunicação, podemos citar a tese de Torres (2020) sobre o tema. , pautadas por um rebaixamento cognitivo inimaginável até então, considerando-se tratar de pessoas constantemente submetidas aos telejornais e às redes de informação.

Apesar de haver uma distinção que precisa ser feita entre meios de comunicação de massa e a comunicação em rede, mais aspectos acabaram por aproximá-los do que por distingui-los, a se considerar os usos sociais da Internet e da comunicação das redes, como temos acompanhado nos estudos realizados sobre o tema. Não podemos tratar ingenuamente o argumento de que os meios de comunicação de massa se distinguem da comunicação em rede pelos primeiros tratarem de poucas centrais emissoras para milhões de receptores, num desenho claramente vertical de comunicação, e a rede tratar de comunicação ponto a ponto, horizontal. Na última década pode-se verificar que as agências de notícias continuaram centralizando a produção de informações e o uso comercial das redes sociais se desenvolveu bem mais do que as ferramentas de sociabilidade propriamente ditas. Como resultado da explosão da informação do final do século XX, tivemos uma saturação da informação imprevista, que tornou uma tarefa quase impossível a constante checagem da credibilidade das fontes (SERVA, 2005SERVA, L. Jornalismo e desinformação. São Paulo: Ed. Senac, 2005.), gerando, por um lado a sobrevivência do poder legitimador de centrais de notícias já consagradas pelo velho modelo, e por outro o fenômeno nefasto das Fake News.

Nesse sentido, apesar das potencialidades da comunicação em rede e do crescimento das redes sociais, a comunicação de massas e os processos de formação e deformação da opinião pública por ela gerados continuaram a agir fortemente, e o bom e velho modelo da televisão pautou a maior parte da produção individual que vemos em espaços como o YouTube, por exemplo. Seria ingênuo demais pensar que os 100 anos de formação estética e ideológica operada pelos meios de comunicação de massas deixassem lugar a uma nova estética e mentalidade de rede, mais democrática e plural, sem resistência e sem deixar suas marcas implantadas. Por esse motivo podemos considerar que vários processos próprios da comunicação de massas se reproduzam e estejam presentes também na Internet e na comunicação das redes.

Retomando a nossa questão, a pergunta que nos colocamos é: de que maneira os meios de comunicação participaram do processo de criação desse rebaixamento cognitivo que vemos em ação?

Carr (2011)CARR, N. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011., em provocante livro intitulado “A geração superficial – o que a Internet está fazendo com os nossos cérebros”, ajuda-nos a compreender a relação entre meios de comunicação e processos cognitivos. Certamente que tudo o que tratamos anteriormente sobre a sedação do corpo (BAITELLO JR., 2012BAITELLO JR., N. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2012.) frente aos aparatos de comunicação é fundamental para entender esse processo, mas há outro aspecto, para o qual Carr nos chama a atenção, que nos parece também digno de consideração. Carr afirma que:

Toda tecnologia intelectual incorpora uma ética intelectual, um conjunto de suposições sobre como a mente humana funciona ou deveria funcionar. (...) É a ética intelectual de uma invenção que tem o efeito mais profundo sobre nós. A ética intelectual é a mensagem que um meio ou outro instrumento transmite às mentes e cultura de seus usuários

(CARR, 201CARR, N. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011., p. 71).

Ao tratar de ética intelectual, ele está de certa forma apontando para a questão já bem conhecida sobre a falácia da neutralidade da tecnologia e, consequentemente, da comunicação que se estabelece por meio de uma nova tecnologia. A Internet trouxe uma alteração não apenas nas formas de nos comunicarmos, alterou de fato a maneira como temos pensado. Carr afirma que as infinitas janelas que podemos abrir em sobreposição nos levam a uma dispersão implícita na própria ferramenta: “A divisão da atenção exigida pela multimídia estressa ainda mais nossas capacidades cognitivas, diminuindo nossa aprendizagem e enfraquecendo a nossa compreensão” (CARR, 2011CARR, N. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011., p. 180).

Não é novidade que a alteração na percepção de espaço e tempo altera as formas de pensamento9 9 Todo o trabalho de educadores e cognitivistas, como Piaget e Vigotsky, por exemplo, evidenciaram essas imbricações, mas também o excelente trabalho de Marshal Berman, “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, aborda essa questão de maneira clara e poética ao tratar sobre a “aventura da Modernidade”. , e o uso excessivo das ferramentas de comunicação virtual, como apontamos anteriormente, especialmente os celulares, smartphones e tablets, estão operando uma mudança na cognição humana, estão, como sugere Carr, gerando um pensamento superficial, ou seja, estamos perdendo “a capacidade de saber, em profundidade, um assunto por nós mesmos, e construir, dentro das nossas próprias mentes, o conjunto rico e idiossincrático de conexões que dão origem a uma inteligência singular” (CARR, 2011CARR, N. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011., p. 198).

Assim, a facilidade com que agências de notícias particulares trabalham na criação de tendências de opinião pública a partir de Fake News se justifica em grande parte pelo rebaixamento cognitivo que se manifesta na incapacidade crescente do cidadão médio de construir um raciocínio mais complexo e demorado, que exija mais conexões lógicas, bem como na impaciência frente às informações recebidas, já que a checagem da credibilidade da informação e a legitimidade das fontes demanda cada vez mais tempo de dedicação e, de certa forma, certa expertise para separar “o joio do trigo” nesse oceano de desinformação (MORIN, 2003MORIN, E. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2003.). Facilitação, aliás, é um conceito chave apontado por Carr:

A ironia do esforço da Google para trazer maior eficiência à leitura é que ele solapa o tipo de eficiência muito diferente que a tecnologia do livro trouxe à leitura - e às nossas mentes - em primeiro lugar. Ao nos libertar da luta para decodificar o texto rapidamente - lemos, se é que lemos, mais rápido do que nunca -, mas não mais somos levados a uma compreensão profunda, construída pessoalmente, das conotações do texto. Em vez disso, somos apressados para ir adiante até um outro pedaço de informação relacionada, e outra, e outra. O garimpo superficial do ‘conteúdo relevante’ substitui a lenta escavação do significado

(CARR, 2011CARR, N. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011., p. 227).

Nesse cenário, a resposta afetiva é rápida e salta na frente de qualquer esforço de criticidade, ao qual, aliás, estamos cada vez menos acostumados. Ficamos com respostas afetivas e escolhemos crer nas informações que, de certa maneira, confirmem nossa visão de mundo, reforçando preconceitos e crenças pessoais ou de grupo. Não raro as pessoas que são consultadas acerca do porquê terem acreditado numa informação falsa, justificam afirmando terem-na recebido de uma pessoa amiga e confiável. A afetividade das trocas implantada na comunicação em rede quase sempre suplanta a vontade e a disposição para a longa e trabalhosa checagem da veracidade da informação e da legitimidade das fontes. Somos menos movidos por uma racionalidade na qual poderíamos confiar do que gostamos de crer10 10 Sobre o papel e o impacto das emoções e da mimese no pensamento humano e nas práticas comunicativas temos investigado já há anos (CONTRERA, 2012). . A ação da mimese nas práticas sociais tem sido considerada ao falarmos de crianças, de educação infantil e modelos aprendido, mas temos subestimado essa ação quando pensamos em adultos, já que, como bem demonstraram Wulf e Gebauer (2004)WULF, C.; GEBAUER, G. Mimese na cultura: agir social, rituais e jogos, produções estéticas. São Paulo: Editora Annablume, 2004., os comportamentos miméticos são a base de toda a sociabilidade também no mundo adulto, sobretudo nas relações pautadas pela estética, próprias da sociedade mediática, especialmente se consideramos a relação entre pessoas que convivem e que possuem vínculos afetivos de qualquer espécie.

Ainda temos de considerar que ao fenômeno da superinformação une-se o imperativo da velocidade própria dos nossos tempos dromocráticos. Nada que demanda mais tempo de dedicação é sedutor para o homem contemporâneo; chamemos de relações líquidas, como propõe Bauman, ou de dromocracia, como propõe Virilio, o fato é que o cidadão mediano não está disposto a “perder tempo” demais no tratamento com as informações e notícias sobre assuntos que extrapolam sua ação cotidiana mais imediata. Alegamos não termos tempo, mas o que se revela de fato é a nossa predileção crescente por relações e informações ligeiras, para depois saltarmos logo para outro assunto, outra situação; sempre algo nos atrai para não permanecermos muito tempo em nada, os apelos do consumo não deixam tempo para nos demorarmos ou ousarmos qualquer aprofundamento: “é difícil resistir às seduções da tecnologia, e na nossa era de informação instantânea, os benefícios da velocidade e da eficiência parecem ser genuínos, e seu desejo, indiscutível” (CARR, 2011CARR, N. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2011., p. 304).

Considerações finais

Gostamos de pensar na comunicação humana como algo meramente instrumental, que não interfere diretamente sobre as relações sociais de tolerância e empatia, mas nada tem se mostrado mais equivocado do que essa pretensa neutralidade dos meios de comunicação.

Os mais de 100 anos da comunicação de massas deixaram marcas profundas nas sociedades ocidentais industrializadas e entre elas ocupa um lugar de relevância a dessubjetivação do corpo11 11 Esse conceito é proposto por David Le Breton, em seu livro “Adeus ao corpo” (BRETON, 2003). advinda das práticas de sedação trazidas pela mídia eletrônica. Sem consciência e propriocepção corporal não há estética viva, ou seja, uma resposta sinestésica ao mundo, já que o mundo propriamente dito deixou de importar enquanto experiência e vivência. Um mundo que eu não percebo ou que não é locus de minhas vivências não consegue me afetar a ponto de me despertar questões de consciência ética.

Sem vivências corporais concretas também não se pode desenvolver habilidades empáticas, já que a empatia demanda mapeamentos sensório-motores, é um gesto do corpo, como nos propõe De Waal (2009)WAAL, F. de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Cia. Das Letras, 2009., a partir da ação da autorregulação dos corpos e da ação dos neurônios-espelho na construção desses acoplamentos. E sem vivências concretas também não é possível construir ou acessar as emoções. Emoções não são meros afetos, são afetos que nos movem, que nos deslocam literalmente, na realidade espaço-temporal do mundo concreto, e simbolicamente, possibilitando o exercício da consciência, como afirmou Jung (2019)JUNG, C. G. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. e Damásio (2000)DAMÁSIO, A. O mistério da consciência. São Paulo: Editora Cia. das Letras, 2000.. Baitello Jr. nos diz que: “Se o corpo pede corpo e não é atendido, criam-se mecanismos para que ele se contente com o que recorda o preenchimento de sua carência. E, às vezes, ele se contenta com imagens (internas ou externas), recordações, resquícios, formas de vazio (BAITELLO JR., 2012, p. 105).

Esse contentamento, no entanto, apenas aprofunda o estado anestésico que torna tudo tolerável, mas sem sentido. A própria busca do sentido, tanto próprio como do mundo, deixa de ser buscado, deixa-se de acreditar que qualquer sentido seja possível; e é na crise do sentido que se aprofunda a intolerância e se instaura a propensão a aderir a versões delirantes da realidade.

Considerando ainda a saturação da informação gerada nas últimas décadas pelos meios de comunicação de massas e as transformações cognitivas advindas das novas tecnologias, da Internet e da comunicação em rede, chegamos à constatação de que estamos frente a um processo de rebaixamento cognitivo, próprio de processos de informação ligeiros e mobilizados pelo afeto, que por sua vez estimulam todo o tipo de desinformação e preconceito.

O cenário propõe um enorme desafio para o qual não temos encontrado respostas inequívocas. Ao menos estamos começando a entender como foi que chegamos a esse cenário apocalíptico, ou seja, a aquele estado de coisas em que os autoenganos não são mais possíveis e precisamos nos abrir para uma revelação, nesse caso, a da responsabilidade dos meios de comunicação e de todos que com eles estão envolvidos.

A contemporaneidade impõe a constatação de que a velha ética judaico-cristã falhou (NEUMANN, 1991NEUMANN, E. Psicologia profunda e nova ética. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.); talvez uma nova ética possa ser construída a partir do resgate do corpo, das vivências, da empatia, e da reconquista do tempo lento do pensamento e da reflexão. Se isso não for enfrentado, temo que a regressão da consciência e o rebaixamento cognitivo sejam de fato os processos pelos quais o ser humano do século XXI se tornará conhecido pela História, se ainda restar alguém para lembrar.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Dez 2019
  • Aceito
    19 Dez 2020
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