Thomas Tufte é diretor do Institute For Media and Creative Industries da Loughborough University London, onde também é professor titular. Como um dos principais pesquisadores do mundo no campo da Comunicação para a Mudança Social, seu trabalho é internacionalmente reconhecido. Sociólogo cultural de formação, o professor Tufte tem uma longa experiência de trabalho com Comunicação e Mudança Social. Ele também ocupa cargos como Professor Extraordinário na Universidade do Estado Livre e como Pesquisador Associado Sênior na Universidade de Joanesburgo, ambas na África do Sul. Além disso, Tufte é membro da Academia Europea.
Sua expertise acadêmica consiste em explorar criticamente as interrelações entre textos/ fluxos/gêneros midiáticos, práticas comunicativas e processos de engajamento cidadão e mudança social. Ao longo dos últimos anos, tem se concentrado na questão do engajamento cidadão, geralmente no contexto de movimentos sociais, investigado a condição da comunicação na vida cotidiana e como esta se relaciona com os processos de mudança social e de desenvolvimento democrático. Uma das suas fontes de inspiração é Paulo Freire, com quem ele encontrou-se pessoalmente algumas vezes durante a década de 1980 enquanto trabalhava com movimentos sociais e desenvolvimento democrático na América Latina. Ao lado da professora Dra. Ana Suzina, Tufte tem capitaneado uma série de atividades e publicações dedicadas ao legado global de Paulo Freire para a comunicação, o desenvolvimento da sociedade civil e a mudança social.
As publicações de Tufte incluem 18 livros e mais de 100 artigos revisados por pares em revistas científicas e capítulos de livros. Ele também coeditou 7 edições especiais de revistas internacionais revisadas por pares, incluindo o Journal of Communication, Jornal of Media & Journalism, Journal of African Media Studies, International Communication Gazette, Matrizes, MedieKultur e Commons. Trabalhando fluentemente com o inglês, português, espanhol e dinamarquês, suas obras são largamente publicadas nessas línguas, assim como em italiano e grego.
Tufte começou sua carreira trabalhando durante 6 anos em cooperação para o desenvolvimento internacional. Primeiro, na UNESCO em Paris. Em seguidam na Danchurchaid, uma grande ONG dinamarquesa. Finalmente, trabalhou no escritório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em Assunção, Paraguai. Essa experiência prática em desenvolvimento internacional informou significativamente sua carreira acadêmica, durante a qual colaborou com praticantes do desenvolvimento e colegas acadêmicos no Sul Global. Entre as suas colaborações, incluem-se também diversas organizações em mais de 30 países, como Banco Mundial, UNICEF, UNESCO, USAID, Danida, SIDA, International Media Support, The Panos Institute, ADRA, Soul City Institute for Social Justice, Femina Health Information Project, entre outras.
A defesa do doutorado do professor Tufte ocorreu no ano de 1995. Sua tese consistiu em um estudo etnográfico sobre telenovelas, cultura e modernidade no Brasil. Desde então, ele mantém interesse no poder estratégico da narrativa e na compreensão de como o público interpreta seu ambiente mediado em relação à mudança social. Tendo vivido por quatro anos na África do Sul, África Oriental e América Latina, ele possui relações de longas datas com colegas desses respectivos continentes. Isso tem contribuído, até hoje, para um aspecto importante do trabalho de Tufte: o de promover processos coletivos de pesquisa e produção de conhecimento, buscando construir pontes de intercâmbio de conhecimento. Nesse sentido, ele liderou vários projetos de pesquisa internacional e redes de pesquisa envolvendo diversos países.
Em 2016, Tufte mudou-se para o Reino Unido e assumiu o cargo de professor e diretor de pesquisa na Escola de Mídia e Sociologia da Universidade de Leicester. Dois anos depois, tornou-se diretor do Institute For Media and Creative Industries na Loughborough University London, em agosto de 2018. Atualmente, Tufte está trabalhando em um projeto de livro que investiga questões de comunicação, ativismo e bem-estar na era pós-pandemia. Ele faz isso explorando princípios e práticas comunicativas, produção de conhecimento e epistemologias entre cidadãos engajados, ativistas e movimentos sociais. Ainda, Tufte está colaborando com e/ou aconselhando três projetos de pesquisa internacionais no México, Portugal e Brasil. No caso desse último, trata-se da parceria com o grupo de pesquisa Usos Sociais da Mídia, coordenado pela profa. Veneza Ronsini cujo intercâmbio de aprendizado mútuo desembocou nessa presente entrevista gentilmente cedida pelo professor Tufte durante sua missão de visita ao campus da Universidade Federal de Santa Maria, que incluiu workshops e aulas magnas abertas ao público.
Na entrevista concedida ao grupo de pesquisa supracitado, Thomas Tufte explora o conceito de Buen Vivir, originário das culturas indígenas andinas, destacando sua complexidade e variações na América Latina e Europa. Ele enfatiza a importância do diálogo de saberes e da criação de espaços de confiança para promover a comunicação para a mudança social, ressaltando o papel crucial das comunidades nesse processo. Tufte também aborda a necessidade de fortalecer a comunicação comunitária para combater as desigualdades na mídia.
Além disso, ele discute a influência da grande mídia, o oportunismo desta em relação ao mercado e a importância da legislação para garantir uma mídia mais igualitária. Tufte reconhece o potencial das plataformas digitais para ampliar vozes, mas alerta para as lógicas comerciais das grandes corporações, enfatizando a necessidade de educação digital e regulação adequada.
Na perspectiva pós-pandêmica, ele vê oportunidades de mudança, especialmente com o envolvimento dos movimentos sociais, enquanto destaca a crise climática como um novo desafio. Quanto à comunicação participativa, ele a considera mais do que uma ferramenta, sendo um objetivo em si mesma, e relaciona-a à pedagogia de Paulo Freire. Tufte sugere, ainda, que a discussão sobre desenvolvimento e mudança social deve começar pela sociedade desejada, enfatizando a importância do pluralismo e da flexibilidade na abordagem da comunicação e mudança social.
Revista Intercom - Como você compreende o conceito de Buen Vivir? De acordo com Salón (2014), ainda se trata de um conceito em construção. Mas como nós podemos entendê-lo na prática, levando em conta os contextos latino-americano e Europeu? Diante do atual contexto capitalista em que nos encontramos, isso não seria uma utopia?
Thomas Tufte: Obrigado pela pergunta e pela oportunidade de conversar e discutir algumas das questões que também têm sido discutidas ao longo dos últimos dias aqui em Santa Maria. Suponho que muito do que vamos conversar está relacionado ao seminário e à apresentação que eu fiz aqui essa semana. Eu acho que a questão em torno do Buen Vivir é que é um conceito difícil até de traduzir para o inglês e que alguns já até traduziram como “bem-estar”, pois na Europa há muito debate em torno do conceito de “bem-estar”. Como conceito, (o Buen Vivir) tem uma história que remonta à região andina e está muito ligado às questões dos grupos indígenas da região dos Andes. Nos anos 90 algumas das visões do Buen Vivir foram operacionalizadas, por exemplo, na Bolívia e no Equador pelos seus governos, em grande medida, como reação a um discurso específico de desenvolvimento muito associado a um paradigma de modernização, a um projeto econômico neoliberal para a sociedade, mas também como uma reação da parte de muitos grupos de pessoas e culturas que não se sentiam representados, ouvidos ou que tivessem algum espaço nesse projeto de desenvolvimento. Estou falando dos grupos indígenas, mas você pode expandir esses grupos. Portanto, um modo de enxergar o Buen Vivir é que se trata de um conceito muito aberto e acredito que deva continuar sendo um conceito aberto. É sempre complicado começar a fazer definições muito precisas sobre ele, pois também há o risco de excluirmos grupos futuros em discussões futuras. Eu acredito que ele envolve questões como abertura a outras formas de conhecimento. Outra questão que ele envolve é a do equilíbrio com a natureza, pois muito do que aconteceu nos anos 1990 após a Cúpula das Nações Unidas no Rio em 1992 (em que alguns governos, especialmente o da Bolívia, que foi o pioneiro, tinham, se me lembro bem, um Ministério do Desenvolvimento Sustentável para abordar o desenvolvimento de uma forma muito mais complexa) alinhava-se ao Buen Vivir. Além dos outros saberes, equilíbrio com a natureza, uma questão também fundamental é a de qualidade de vida. Penso que, possivelmente, ela seja mais abordada na Europa dentro das discussões sobre bem-estar do que, talvez, aqui, onde as questões identitárias estão muito evidentes - experiências de relações insustentáveis com a natureza - e também questões como exclusão e não-diversidade. Então há variações nos modos de compreender o Buen Vivir, conforme seja abordado por uma perspectiva latino-americana ou européia. Outro elemento desse debate é que, se você se debruçar sobre outras percepções de desenvolvimento, como a noção Butanesa de felicidade, que utiliza o Gross National Happiness Index como forma de abordar e até avaliar o desenvolvimento e cujo critério principal é bastante similar ao Buen Vivir, exceto que é voltado à “felicidade”... se você analisar os indicadores associados ao modo como eles operacionalizam, põem em prática, você vai encontrar muitas semelhanças. Finalmente, acredito que ainda não falei sobre, é que há uma questão de justiça, de justiça econômica e social, justiça pela natureza, questões sobre justiça e direitos. Tudo isso gira em torno desse debate atual sobre o Buen Vivir. Quando você pergunta se é a formulação de uma utopia, penso que se pode dizer que sim, mas também tem a ver com encontrar maneiras de praticá-lo e operacionalizá-lo, tomando como exemplo o caso da Bolívia e do Equador. Penso que é um trabalho em andamento e que vai continuar sendo. Mas, embora tenha emergido e continue emergindo como uma demanda, um direito da sociedade civil, de grupos “de baixo para cima”, é preciso que os governos também dêem atenção a isso.
Revista Intercom – Para você a ideia de bem-estar na Europa tem a ver com a crise econômica, com os problemas de saúde mental, com o contato com outras culturas?
Tufte – Gosto da última parte da pergunta, sobre se a discussão europeia em torno do bem-estar tem alguma relação com o contato com outras culturas. Possivelmente, assim esperamos, outras culturas estão articulando, de baixo para cima, outras experiências de vida, como os imigrantes ou grupos de refugiados. Quando você menciona outras culturas, esses grupos de pessoas na Europa possivelmente estão articulando outras perspectivas nesse campo. Mas a discussão sobre bem-estar na Europa está, sobretudo, relacionada à questão da hiper globalização, da aceleração do sistema capitalista neoliberal. Essa aceleração, nós quase não podemos mais lidar com suas consequências, como a perda substancial da biodiversidade em países como o Reino Unido em poucas décadas ou a digitalização da vida laboral que nos mantém presos no trabalho o tempo todo. Portanto, em grande medida, é a aceleração da vida laboral que provoca vários dos problemas de saúde mental, levando a números recordes de indicadores de estresse. Todos esses elementos são muito mais dominantes, pois são a demonstração de um sistema que não é muito social, esse sistema econômico que fundamenta a nossa sociedade. Para ser bem sincero, a nossa sociedade não possui nenhum indicador social, e é a isso que, talvez, nós estejamos reagindo. É em face disso que vejo emergirem algumas articulações em torno do bem-estar e da qualidade de vida.
Revista Intercom – Boaventura de Sousa Santos (2007) considera a necessidade de um diálogo horizontal entre conhecimentos quando se discute sobre Comunicação para a mudança social. Como conduzir esse diálogo considerando a multiplicidade de processos comunicacionais, nos quais, em suas palavras, “estabelece-se um senso comum que serve de base para construir a transformação social” (TUFTE, 2021, s.p.)?
Tufte – Esse diálogo de saberes está no âmago dessa ideia de diálogo horizontal entre conhecimentos. Eu tenho uma breve história de quando encontrei o Paulo Freire pela primeira vez. Foi em maio de 1987, na Zona Leste de São Paulo. Nós nos encontramos em uma missa católica e então pedimos para fazer uma entrevista com ele. Isso foi durante o período das primeiras ocupações de terras urbanas, do início do MST urbano, que estava ocorrendo no momento. Enquanto eu conversava com ele sobre esse movimento social, ele falou algo que acredito que ele também tenha dito em suas publicações: a necessidade de ser pacientemente impaciente. Esse foi um dos pontos, mas também conversamos muito sobre a necessidade da criação de um espaço discursivo. Quando buscamos um lugar para estabelecer esses diálogos horizontais estamos falando da criação de um espaço. Um espaço discursivo, talvez, onde possamos conversar livremente e onde podemos confiar uns nos outros. E em tempos de fake news nós estamos enfrentando uma crise de confiança em relação à nossa comunicação online. Então como nós criamos espaços? Espaços discursivos, mas que também sejam espaços de confiança onde essas articulações e diálogos possam ocorrer. Penso que esses diálogos podem ocorrer online, como esse que estamos estabelecendo aqui nesse momento, mas eu só quero enfatizar esse elemento da criação de espaço como uma maneira de assegurar um diálogo horizontal, e as tecnologias que possuímos hoje podem nos ajudar a construir esses espaços e a expandi-los. Portanto, esse senso comum que emerge desse diálogo nos ajuda a formular as nossas demandas e a ir atrás delas.
Revista Intercom – De que maneiras a noção de comunidade e certos aspectos das relações comunitárias têm relação com ou colaboram para a Comunicação para a mudança social?
Tufte – Eu suponho que a comunidade é exatamente uma resposta para essa criação de espaço. Quando falamos de comunidades, geralmente pensamos em comunidades relativamente pequenas, como nossas vizinhanças, nossos ambientes de trabalho, nossas escolas e ambientes de ensino, nas comunidades em que vivemos no âmbito do cotidiano. Esses são espaços de relações pessoais, de relações de confiança e de possíveis diálogos. O que precisamos fazer, então, é aumentar esses espaços e conectá-los. Então a comunidade possui um papel chave em relação ao diálogo horizontal para o intercâmbio de conhecimentos. No seminário de ontem nós falamos sobre não romantizar o local ou, em outros termos, não romantizar a comunidade. Porque ela também é repleta de tensões, disputas de poder e conflito. Por outro lado, são espaços onde nós sabemos com quem estamos lidando, nós podemos nos ver, nós nos conhecemos. Então penso que podem ser considerados comunidades de confiança. É isso que precisamos construir e um bom ponto de partida são, é claro, as nossas vizinhanças, pois são espaços onde vivemos cotidianamente e transitamos em nosso dia a dia. Esses espaços estão se tornando cada vez mais mediados digitalmente. Isso, evidentemente, acarreta algumas mudanças, mas acredito que a comunidade como conceito continua e vai continuar desempenhando um papel fundamental nessa criação horizontal de espaço e de diálogo.
Revista Intercom – Em um texto que você publicou com Alfonso Gumucio-Dragon (DRAGON; TUFTE, 2006) você argumentou que os resultados do processo de comunicação para a mudança social vão além do comportamento individual, levando também em consideração a influência das normas sociais, valores, das políticas em vigor e da cultura. Como esses processos acontecem na prática, que exemplos podem ser considerados e qual o ponto de partida para esse processo de comunicação para a mudança social?
Tufte – Acho muito interessante a pergunta sobre qual o ponto de partida. Novamente, acabo remetendo a esses últimos três dias de discussão com estudantes de mestrado, de doutorado e com colegas durante o seminário aqui em Santa Maria. Quando pedi a eles que trouxessem exemplos da sociedade civil de como a comunicação participativa acontece, todos eles mencionaram experiências muito orgânicas “de baixo para cima”, desafiando o meu modo habitual de pensar a respeito de onde fica esse ponto de partida. Sendo de um país doador, como o Reino Unido ou a Dinamarca, meu país de nascimento, nós acabamos pensando um pouco “de cima para baixo” no modo como elaboramos um determinado projeto, como a necessidade financeira e de apoio para a realização de tal projeto. Porque o que eu ouvi ontem é que o ponto de partida de qualquer processo de Comunicação para a mudança social está na formulação das demandas, baseadas nas experiências vividas. Então, partindo dessa perspectiva, penso que uma forma de apoiar tais processos nas iniciativas de Comunicação para a mudança social é através da construção cuidadosa de relações com essas iniciativas “de baixo para cima” de base comunitária, com pequenas ONGs, grandes ONGs, com movimentos organizados, talvez até com startups ou mesmo alguns tipos de negócios. Acredito que é uma questão de gerenciar ou estabelecer relações. Então, se a questão é elaborar uma iniciativa de Comunicação para mudança social, isso inclui a co-criação e co-formulação de objetivos: o que pretendemos conquistar? E então, pensando em estratégias, como podemos utilizar a comunicação nesse sentido? E nem tudo se trata, necessariamente, de comunicação participativa. Às vezes trata-se de divulgar algumas mensagens sobre tópicos específicos. Mas eu gosto bastante daquilo que veio à tona na palestra de ontem, de que o ponto de partida está na construção de relações e conexões que possam contribuir sejam como um suporte técnico, como um financiamento ou pela indicação de alguém que possua recursos financeiros ou outros tipos de recursos. Muitos dos exemplos que eu ouvi ontem giram em torno da possibilidade de se construir iniciativas e movimentos “de baixo para cima”. Eu gostaria de fazer um adendo. O que não ouvi muito durante essa troca de experiências em torno da Comunicação Participativa foi sobre pensamento estratégico. Penso que deve haver algum aspecto dedicado, também, a como nós retomamos Paulo Freire e a criação de um espaço discursivo para a negociação de poder, para a conquista de um espaço de poder. Como podemos fazer isso estrategicamente? Penso que nos movimentos com iniciativas “baixo para cima” existe, frequentemente, muita frustração ou demandas por direitos. Mas às vezes é preciso pensar estrategicamente em como abordar e desafiar as hierarquias e as situações, os detentores do poder, os tomadores de decisões. Como fazer isso? Acredito que, em alguma medida, o pensamento estratégico, criar estratégias, é importante.
Revista Intercom – Você afirma que a Comunicação para a mudança social deve usar estrategicamente a mídia para lidar com e, às vezes, desafiar as condições estruturais que ordenam os processos de mudança social. Por exemplo, as dinâmicas de poder da sociedade que geram e aumentam a injustiça social. Como fazer isso considerando que o sistema midiático no Brasil é, há anos, controlado por uma elite que utiliza efetivamente esse sistema em prol dos seus interesses? Como reduzir as desigualdades relacionadas à comunicação e às representações midiáticas? Você considera a comunicação comunitária como uma possível saída?
Tufte – A pergunta sobre o papel da mídia, na minha análise, é que o modo de compreender a grande mídia é menos preto-e-branco. Eu me recordo de uma vez que eu fiz uma análise da Rede Globo em 1985. Nós sabemos que a grande mídia é oportunista, ela vai aonde mercado está, onde o público está. E, em 1985, o movimento pela democracia estava efervescente no Brasil, e aquilo que era “Tancredo Já” se tornou “Democracia Já”, e a mídia estava embarcando nesse sentimento coletivo. Então, de uma hora pra outra, ela magicamente se tornou a favor da democracia. Portanto, considero que a grande mídia se fundamenta em uma lógica comercial, norteada pelas dinâmicas de mercado e, como resultado, ela acaba sendo oportunista. Diante disso, como trabalhar com a mídia servindo a uma agenda que preze pela igualdade comunicativa e pela representação igualitária? Penso que há uma dimensão legislativa envolvida. Sei que o Brasil é um país que possui uma mídia comercial e privada muito forte, embora vocês também possuam uma mídia pública muito interessante, mesmo que pequena. A legislação é uma forma de assegurar que haja algum serviço público de broadcasting (que, novamente, é um mecanismo de criação de espaço). Obviamente, você precisa criar essas leis e implementá-las, e, durante o último governo isso ficou severamente restrito e os recursos reduziram-se drasticamente, como, por exemplo, em relação à produção cinematográfica. No entanto, considero que a legislação da mídia pode ser também utilizada para regular a mídia privada. Há ainda a questão do que você pode ou não exibir, mas sempre respeitando a liberdade de expressão. Esse é um elemento fundamental. Quanto à sua terceira pergunta, a respeito da mídia comunitária, até onde sei ainda existem muitas e variadas rádios comunitárias. Lembro dos números levantados por Cicília Peruzzo, acredito que cerca de dez anos atrás, que demonstravam a existência de cerca de 10 mil estações de rádio comunitárias. Talvez não seja mais essa quantidade, eu não estou a par dos dados mais atualizados no Brasil, mas penso que elas desempenham um papel chave. O modus operandi delas pode estar mudando, saindo do analógico para o digital, o que oferece algumas oportunidades. Mas, retomando o que eu disse antes, sobre o papel chave das comunidades, isso também está muito associado às rádios comunitárias como fornecedoras de espaços de representação e de dar voz a grupos que têm dificuldade de acesso à grande mídia, seja pública ou privada.
Revista Intercom – Como você analisa o uso de plataformas digitais de comunicação, como as redes sociais digitais e os podcasts, pelos grupos marginalizados ou subalternos? Você acredita que essas plataformas são uma possibilidade de ampliar as vozes desses grupos? Ou você considera que essas plataformas apenas reproduzem as lógicas comerciais hegemônicas, uma vez que são serviços controlados por grandes corporações?
Tufte – Outra pequena anedota me vem à memória, ocorrida em Myanmar. Eles obtiveram acesso à internet muito tarde e, até muito recentemente, quando eles acessavam a internet pelo telefone, os aplicativos iam direto para o Facebook, de modo que eles entenderam, erroneamente, que a Internet em si era o Facebook. O Facebook era a Internet para as pessoas de Myanmar. E acho que isso demonstra o que você fala sobre a hegemonia de algumas dessas grandes corporações e como elas utilizam a tecnologia a serviços dos seus próprios interesses. Isso posto, também penso que, ao longo dos últimos dez anos, tomando como exemplo a Primavera Árabe dez anos atrás, vimos despontar uma onda de fascinação por como essas novas tecnologias estavam nos trazendo novas oportunidades. Os cidadãos podiam se conectar, podiam falar, suas vozes eram ouvidas. Movimentos pelo mundo todo estavam sendo documentados, transmitidos ao vivo. Quando um governo autoritário pretendia acabar com algum movimento, ele simplesmente desligava a internet. Portanto, a Internet teve um papel muito importante no Egito e em muitos lugares pelo mundo. Lembro que ocorreu também no Brasil na época, especialmente por volta de 2013-14, em função de alguns problemas. Mas, respondendo à sua pergunta, acredito que as plataformas digitais oferecem possibilidades para ampliar vozes. Mesmo hoje nós temos um exemplo como o Irã, das mulheres iranianas e a luta delas pelos seus direitos. Se não fosse pela Internet nós não saberíamos o que realmente está acontecendo no Irã neste momento. Então isso exemplifica que, apesar das estruturas comerciais hegemônicas e interesses comerciais, também há esse outro lado da ampliação de vozes, documentação e visibilidade. E nós não podemos esquecer que essas plataformas são apenas tecnologias e que, por trás delas, existem pessoas, políticas, práticas. Penso que nós também precisamos trabalhar com as pessoas, as políticas e as práticas por trás dessas tecnologias. Desse modo, nós, como cidadãos, também precisamos da literacia digital, da visão crítica, para sabermos como reagir às fake news e aos algoritmos que nos conduzem o tempo todo para uma certa direção. Como reagimos a isso, como cidadãos, como pessoas, como tomadores de decisões? Os tomadores de decisões, os políticos, estão pelo menos entre cinco a dez anos atrás das grandes corporações em termos de habilidades tecnológicas. Portanto, a legislação está ficando muito para trás. Há, por exemplo, algumas dificuldades desse tipo na Europa, pois só agora, dez anos depois, a legislação da União Europeia está finalmente se atualizando. Existe essa lentidão do sistema público, dos tomadores de decisões. Então, sim, acredito que existem algumas oportunidades, mas também que nós temos que trabalhar com aqueles que usam as tecnologias, aqueles que criaram essas tecnologias e aqueles que regulamentam essas tecnologias.
Revista Intercom – Em uma excelente conferência ministrada em 2021 sobre Comunicação para a mudança social em um mundo pós-pandemia, você argumenta que o impacto da Covid tornou visível as hierarquias globais de poder e a injustiça distributiva de recursos (TUFTE, 2021). Na ocasião, você chama atenção para a necessidade urgente de repensarmos não somente as nossas políticas e práticas, mas também as nossas ontologias e epistemologias. Para você, já é possível avaliarmos o rumo que estamos tomando nesse cenário pós-pandêmico, especialmente no caso de países com alto nível de desigualdade social, como o Brasil?
Tufte – Esta é uma pergunta difícil de responder, porque nós ainda estamos no processo de sair da pandemia. Isso me faz pensar sobre o papel de uma crise. Vocês no Brasil passaram por uma dupla crise: uma crise de governo e uma crise da pandemia, ao mesmo tempo, impactando duplamente a sociedade do país, o que me leva a falar sobre o papel desse tipo de crise, que é o de mostrar que, quando uma crise atinge a sociedade, uma ruptura ocorre. Algumas das verdadeiras dinâmicas que regulam e operam em uma sociedade emergem e se tornam visíveis. Você de repente consegue saber quem é que decide a respeito da distribuição de vacinas, quem, em vários níveis, toma as decisões da sociedade em âmbito global. Mas penso que você também começa a ver oportunidades, começa a ver outros mundos, começa a ver atos de solidariedade, começa a ver outras vozes aparecendo de repente. São momentos propícios para gerar novas oportunidades. Infelizmente, no passado, vimos que esses momentos são crises que expõem a dura realidade do mundo, as desigualdades, e as visões que também emergem e são formuladas durante esses momentos têm dificuldade de se sustentarem. Dito isto, eu estou muito feliz de estar de volta ao Brasil. Esse foi o último lugar onde eu estive antes da pandemia. Eu deixei o Brasil em março de 2020 e agora eu estou de volta pela primeira vez. O que eu estou observando ressurgir na sociedade civil é que, em certa medida, ela está acreditando que outros mundos são possíveis e articulando isso na mídia e nos espaços a que tem acesso. Eu também percebo uma certa rearticulação de políticas públicas. Eu tenho entrevistado membros da sociedade civil e percebo o quanto é importante, para eles, fazer referência às leis (na maior parte, a leis que foram formuladas há um certo tempo). Além disso, as relações com o Estado, com ministérios, com entidades públicas, prefeituras e outras instâncias de governança estão sendo rearticuladas, renovadas. Penso que esse é um momento de oportunidade que deve ser avaliado, desenvolvido e sustentado para que não haja o risco de, como infelizmente ocorre com frequência, que aqueles que detêm o poder derrotem os que possuem menos poder. Considero que esse é, realmente, um momento estratégico para prosseguir na construção de espaços (especialmente para a sociedade civil) e de relações. Eu não estou me aprofundando em responder a pergunta sobre epistemologias, mas considero que elas também são sobre articulação: essas outras epistemologias, outros saberes em relação às oportunidades que nos têm sido dadas depois dessa crise avassaladora que o planeta vivenciou.
Revista Intercom – Como você analisa o papel dos movimentos sociais na Comunicação para a mudança social? Considerando os cenários brasileiro e global, quais atores nós podemos mencionar como relevantes nesse processo de Comunicação para a mudança social?
Tufte – Analisando por uma perspectiva histórica, todo processo de mudança veio de baixo, veio de um movimento social. Ao longo da história, muitos direitos foram alcançados devido a algum tipo de resistência, mobilização, deliberação e assim por diante. Tipicamente de baixo para cima. Mas, ao mesmo tempo, e eu já falei isso antes muitas vezes, há uma contradição terminológica quando queremos fazer a comunicação para a mudança social, pois a mudança social não é algo que acontece estrategicamente e “para” a qual você possa comunicar, pois é um processo de baixo para cima. Então penso que não há dúvidas de que os movimentos sociais são fundamentais na articulação da mudança. E, novamente, estou me repetindo um pouco, penso que o que veio com a Primavera Árabe foi uma reação à crise financeira. O movimento que vimos ocorrer por volta de 2011, 2012 e 2013 foi uma reação à crise financeira mundial de 2008. Em um metanível, é dessa forma que nós podemos enxergar isso hoje. Agora nós temos outra crise que é a crise da pandemia. Nós vimos algumas mobilizações serem articuladas com dificuldade durante a pandemia e não estamos vendo isso agora. É um outro tipo de crise. Desse modo, como se mobilizar, ir adiante e tomar novas direções na sociedade é algo mais difícil de identificar e de falar sobre. Mas, se você acrescentar algo além da pandemia e além do, digamos assim, “populismo” que o Brasil vivenciou durante o seu último governo, você tem outro elemento de crise, que é a crise climática. Em relação a essa última, vemos muitas coisas acontecendo, muitas mobilizações ocorrendo mundo afora hoje. E, talvez, no âmbito desses diferentes aspectos, nós podemos voltar ao Buen Vivir como uma espécie de meta-movimento, como um movimento de ideias, de outros mundos se tornando possíveis, do reconhecimento da diversidade, tanto em termos de visão de sociedade quanto de práticas cotidianas. Portanto, penso que a resposta simples à sua pergunta é que, sim, os movimentos sociais são fundamentais na articulação da mudança e, desse modo, na comunicação para a mudança social. É uma questão de explorar, apoiar e elaborar estratégias para o que já está em movimento, cocriar estratégias em torno disso. Espero ter respondido à pergunta. É uma pergunta difícil.
Revista Intercom – É verdade. Como os conceitos de comunicação participativa e comunicação para a mudança social dialogam? Considerando os estudos de Paulo Freire, poderia a comunicação participativa ser considerada uma ferramenta para a Comunicação para a mudança social?
Tufte – Acho que isso é subestimar a comunicação participativa, pois ela é mais do que uma ferramenta. É mais do que um meio para um fim, mas um fim em si mesmo. É um objetivo por si só. Novamente, tem a ver com essas diferentes terminologias de Comunicação para a mudança social. Eu mesmo tenho falado cada vez mais sobre Comunicação e Mudança Social porque eu quero tentar evitar a imposição de que a Comunicação “conduz” a mudança social. Mas eu sou ambivalente a respeito disso, porque penso que, no melhor dos mundos, a comunicação, como uma prática emancipatória, passa pelo Paulo Freire, deixa-se inspirar por suas ideias, por esse “chamamento ontológico” que eu mencionei outro dia em minha aula magna, sobre o qual ele fala em Pedagogia do oprimido, em 1968 (FREIRE, 1968). Ele fala de coisas como respeito, humildade, diálogo e amor como princípios que fundamentam a sua pedagogia. E é a pedagogia dele que fundamenta a comunicação participativa, que, por sua vez, é o que fundamenta essa relação entre comunicação e mudança social. São duas faces da mesma abordagem de comunicação, eu diria.
Revista Intercom – Na introdução do livro “Communicating for change”, editado conjuntamente com Jo Tacchi, você fala da variação de nomenclaturas do termo desenvolvimento e mudança social, do anamorfismo do termo, isto é, que o termo não é estandardizado, não segue uma estrutura geral e que isso pode indicar diferenças ontológicas e epistemológicas, mas que essas diferenças permeiam o trabalho relacionado à comunicação e desenvolvimento (TACCHI; TUFTE, 2020). Qual o seu entendimento a respeito dos termos desenvolvimento e mudança social? O segundo procede o primeiro? Trata-se de termos similares? Existe uma noção segundo a qual o termo desenvolvimento remeteria a algo maior, ligado a uma transformação. Como você compreende isso? Como podemos compreender os conceitos de comunicação e desenvolvimento e mudança social?
Tufte – Vocês estão fazendo perguntas difíceis. Eu acho que precisamos tomar cuidado para não sermos instrumentais demais em nossas abordagens. Quando eu e Alfonso (Gumucio-Dragon) estávamos editando aquela grande antologia sobre Comunicação para a mudança social nós discutimos muito sobre isso. Alfonso insistia que Comunicação não é o mesmo que Informação ou que Informação não é Comunicação e ele argumentava veementemente a favor da Comunicação como processo. A Comunicação é um processo entre pessoas, assim como o desenvolvimento e a mudança social. Eu sempre defendi o desenvolvimento. Apesar de todo o seu legado como algo ligado a um certo paradigma de modernização e muito baseado em um modelo neoliberal de sociedade e de economia, eu sempre defendi que ele “serve para pensar” quando usado como conceito heurístico para criticar esse modelo. Mas talvez eu o abandone agora. Penso que ele possui muitas limitações e talvez nós devamos colocá-lo de molho, deixá-lo morrer. Penso que, fundamentalmente, antes de começarmos a falar sobre comunicação, nós precisamos falar sobre sociedade. E a transformação social é sobre discutir que sociedade queremos e, é claro, a comunicação é sobre discutir como chegamos lá. Voltando ao Buen Vivir, mas adicionando uma outra coisa, que é a noção de pluriverso, penso que o que estava muito atrelado ao pensamento pós Segunda Guerra Mundial e ao projeto de modernização era que “um” mundo era possível, uma só receita era possível para tudo. E agora temos essa universalidade sendo desafiada dentro das discussões sobre pluriversidade, portanto, quando pensamos em que tipo de sociedade queremos, creio que precisamos pensar em quais sociedades queremos, no plural. Porque nós somos diferentes, portanto, acho que todos nós queremos estabilidade, paz e igualdade. Nós todos queremos uma boa vida, mas talvez de diferentes maneiras, então nós precisamos respeitar a diversidade, nós temos que respeitar as diferentes cosmovisões. Então eu penso que a discussão sobre que sociedade queremos envolver isso. E aí vem a comunicação: como, então, nós chegamos lá? Penso que algumas das ideias acerca da justiça comunicativa que a Ileana Herrera e seus dois colaboradores articularam no livro deles se relaciona muito bem com algumas dessas questões. E talvez nós possamos expandir mais isso. Nós aqui estamos discutindo sobre como, talvez, expandir ainda mais alguns desses conceitos, mas penso que colocar a comunicação nesses contextos e associá-los a essas ecologias de saberes, ao diálogo de saberes e começar a discutir estratégias… é aí que entra a comunicação, mas situada dentro dessa noção de pluriverso, da qual estou me tornando cada vez mais fã, por assim dizer. Ela contém a diversidade necessária e a flexibilidade necessária para discutirmos comunicação e mudança social,
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Finaciamento:
CNPqCapes
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Como citar:
Rossini, V.M.; Foletto, L. R.; Marão, M.; Medeiros, R. F. (2025). Diálogo de saberes, Buen Vivir e comunicação participativa: mudanças sociais na era pós-pandêmica (entrevista). INTERCOM, Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 48, e2025101. https://doi.org/10.1590/1809-58442025101pt
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sistema duplo cego
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@Imagem: autores
Referências
- DAGRON, Alfonso Gumucio; TUFTE, Thomas (Ed.). Communication for social change anthology: Historical and contemporary readings. CFSC Consortium, Inc., 2006.
- FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
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SALÓN, Pablo. Vivir Bien: Notes for the Debate, Attac France, Focus on the Global South, and Fundacion Solon. Disponível em: <www.systemicalternatives.org> acesso em 09 set 2023
» www.systemicalternatives.org - SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos CEBRAP, n. 79, p. 71–94, nov. 2007.
- TACCHI, Jo; TUFTE, Thomas (Ed.). Communicating for change: Concepts to think with. Springer Nature, 2020.
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TUFTE, Thomas. Conferencia “Comunicación para el cambio social en el mundo postpandemia”. Difusión AMIC YouTube, 16 nov. 2021. Disponível em: <https://youtu.be/EHl749g8Mw8> Acesso em: 09 set. 2023.
» https://youtu.be/EHl749g8Mw8
Editado por
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Editoras Chefes:
Dra. Marialva BarbosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJDra. Sonia Virginia MoreiraUniversidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ
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Editores Executivos:
Dr. Jorge C. Felz FerreiraUniversidade Federal de Juiz de Fora, UFJFDra. Ana Paula Goulart de AndradeUniv. Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ
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Editor Associado
Dr. Sandro Torres de AzevedoUniversidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
17 Dez 2023 -
Aceito
20 Dez 2024 -
Publicado
03 Abr 2025
