RESUMO
O presente artigo analisa os saraus organizados pelo Movimento Cultural Ermelino Matarazzo. O estudo trata de duas frentes produtivas: a) as transmissões midiáticas dos saraus e b) os códigos de uma cultura ativista articulados nesses encontros. Pelo método cartográfico, com base nas teorias da diferença, traçamos a paisagem comunicacional dos saraus e do coletivo enquanto espaço fruto de uma ocupação cultural. Em outra frente, a Semiótica da Cultura possibilita compreender os saraus do coletivo como tecido de significações, afetos e processos heterogêneos, que se articulam frente às desigualdades sociais da cidade de São Paulo.
Palavras-chave
Saraus; Cultura; Periferias; Mídias
ABSTRACT
This article analyses the poetry slams organised by the Ermelino Matarazzo Cultural Movement. The study addresses two productive fronts: a) the media broadcasts of the poetry slams and b) the codes of an activist culture that is articulated in these meetings. Using the cartographic method, based on theories of difference, we trace the communicational landscape of these slams and the collective as a space that results from cultural occupation. On another front, the Semiotics of Culture allows us to understand the collective’s slams as a fabric of significations, affections, and heterogeneous processes, which are articulated in the face of social inequalities in the city of São Paulo.
Keywords
Slams; Culture; Peripheries; Media
RESUMEN
Este artículo analiza los saraos organizadas por el Movimiento Cultural Ermelino Matarazzo. El estudio aborda dos frentes productivos: a) las transmisiones mediáticas de los saraos y b) los códigos de una cultura activista articulada en estos encuentros. Utilizando el método cartográfico, basado en teorías de la diferencia, trazamos el paisaje comunicacional de los saraos y lo colectivo como un espacio resultante de una ocupación cultural. En otro frente, la Semiótica de la Cultura permite comprender los saraos del colectivo como un tejido de significados, afectos y procesos heterogéneos, que se articulan frente a las desigualdades sociales en la ciudad de São Paulo.
Palabras clave
Saraos; Cultura; Periferias; Medios
Introdução
O presente artigo apresenta resultados parciais de um projeto de pesquisa de pós-doutorado1 dedicado ao estudo dos processos de transformação sociocultural de membros de comunidades de um coletivo cultural situado na periferia da cidade de São Paulo, ou mais especificamente, no bairro de Ermelino Matarazzo na Zona Leste da capital paulistana. No início de suas atividades, o coletivo comprometeu-se com problemas locais e depois tornou-se importante mediador entre a comunidade e os órgãos públicos do município. Com o tempo, coletivo passou a se dedicar ao desenvolvimento de ações culturais a partir de atividades artísticas dos moradores do bairro e de sua vizinhança na região.
Muitas das inquietações do Projeto serviram para a formulação da noção de pertencimento como a união em torno de causas comuns que podem se fortalecer e criar sentimento de luta comunitária visando o bem comum. Uma dessas questões diz respeito ao papel das atividades artísticas nos estudos sobre demandas das regiões periféricas e de seu valor no funcionamento geral da metrópole. Ao travar conhecimento das atividades desenvolvidas no que se consolidou como Movimento Cultural Ermelindo Matarazzo (MCEM), a questão mais significativa que mobilizou a demanda de investigação aprofundada foi: como as atividades artísticas emergem no interior de movimentos sociais de luta pelos direitos elementares da vida social criam conexões entre as reivindicações materiais da vida cotidiana e despertam para a necessidade de desfrute de condições sociais que dignifiquem seus cidadãos.
Observou-se que as pessoas que se uniram em torno do sentimento de comunidade questionam e reivindicam para atingir um alvo maior: a existência como sujeitos capazes de realizações cabíveis a todos os seres humanos, sem discriminações. Para isso, as atividades artísticas se mostraram fundamentais. A partir do momento em que passam a integrar o cotidiano das comunidades, mais do que um exercício de ativismo, despertam consciências das próprias capacidades cognitivas e criativas, além de estimular a autoestima e o desenvolvimento de vínculos afetivos sem o qual nenhuma luta – nem mesmo a verdadeira luta política – se sustenta.
A partir dessas primeiras impressões, nota-se que um dos vetores de mobilização e de ação transformadora2 ocorre na adesão dos jovens às atividades, que redirecionam suas forças frente às precariedades de seu entorno. A relação do coletivo com o entorno se constrói no cotidiano. Em uma das observações de campo, por exemplo, notamos que um grupo de crianças, que tinham por volta de 10-12 anos, chegou ao espaço do coletivo, cumprimentou as pessoas e se organizou num canto da sala principal para uma rodada de jogo de xadrez. Trata-se de um espaço a ser apropriado por crianças, jovens e moradores do entorno.
Nesse sentido, na hipótese de fundo da pesquisa formula-se o entendimento das atividades artísticas como fontes de ampliação das relações entre os diferentes sistemas envolvidos, sobretudo, os sistemas sociais, humanitários, ambientais, tecnológicos. Quer dizer, viver com dignidade social significa construir condições saudáveis para pessoas, ambientes, instituições, organizações e tudo o que envolve a vida no planeta. O presente trabalho é parte de uma pesquisa andamento, que se propõe a elaborar uma cartografia3 de alguns coletivos sociais que atuam em diferentes regiões do país. A cartografia à qual nos referimos é inspirada nas teorias da diferença de Deleuze e Guattari (2000), precisamente quando os autores sugerem um método para compreender fenômenos heterogêneos4 descentrados, que configuram experiências de diferença – neste caso, a pesquisa acompanha o objeto em sua processualidade e, a partir desse conhecimento adquirido, traça uma realidade que não está previamente dada (Kastrup; Passos, 2013), mas que significa algo emergente, alternativo – bem como entendemos ser o MCEM enquanto movimento social de cultura. Nos limites deste texto, trataremos dos processos culturais e semióticos dos saraus, enquanto eventos presenciais e midiáticos, organizados pelo MCEM, por entender que nesses encontros as mediações culturais se materializam na linguagem artística.
Para isso, entendemos que a cultura é dinâmica, em diálogo com Iuri Lotman (1996, p. 16), ou seja, é portadora de informações (memórias, códigos) e mecanismos de metalinguagem que descrevem a si mesma, mas também possibilita a produção de novas informações, em momentos de imprevisibilidade e experimentação. É o que observamos nos saraus, enquanto processos culturais dinâmicos no ato de tomar a palavra e recitar um poema, que mantêm certo código caro ao movimento, que diz respeito aos ativismos pela cultura em Ermelino, e, em alguns momentos, assumem temáticas políticas mais atuais (gênero, raça e enfrentamento a desigualdades econômicas), trazidas pelos jovens que assinam as poesias. Selecionamos, para este texto, alguns encontros dos saraus Slam Fluxo, publicados nas páginas do coletivo nas plataformas YouTube e Instagram. Atualmente, os saraus ocorrem no modo presencial com transmissão midiática por redes sociais, o que implica observar como o contexto do coletivo irá ressoar em meio às significações midiáticas – e, não menos importante, entender se esse ambiente midiático possibilita diferenciações nos modos de pensar (Deleuze, 1983) a linguagem artística (neste caso, a poesia). Formulamos, então, a seguinte questão: quais as codificações e as recodificações na linguagem dos saraus enquanto evento midiático? A seguir, algumas observações acerca da dinâmica cultural que marca uma série de atividades do coletivo.
Construção sócio-política do Movimento Cultural Ermelino Matarazzo
A Ocupação Mateus Santos é o resultado de um ato conjunto de uma série de coletivos de cultura situados em Ermelino Matarazzo, cujos primeiros manifestos, em 2011, ocorreram na praça Primeiro de Maio (região central de Ermelino). Para os coletivos, era preciso que Ermelino Matarazzo tivesse uma agenda cultural unificada e um espaço que pudesse abrigar todas as atividades. Em 2016, o movimento amplia suas ações e ocupa o espaço de uma antiga subprefeitura desativada na região, que possui três andares e algumas salas. O nome da ocupação Mateus Santos é inspirado num professor5 e ativista que viveu em Ermelino Matarazzo.
Apesar da produtividade do coletivo em oferecer atividades culturais gratuitas, a ocupação do espaço continuou sendo problema, pois a relação com o poder público foi marcada por uma série de embates. Com a chegada de João Dória (PSDB) à prefeitura, em 2017, ocorreram alguns problemas, sobretudo pela visão que a gestão tinha sobre a cultura – à época, a prefeitura chegou a sugerir que os participantes comercializassem produtos de culinária para levantar verba, num discurso muito próximo ao do empreendedorismo, que em si não é um problema, pois o coletivo participa de eventos nessa temática voltada à periferia, mas esse não era o objetivo central das atividades do movimento. O ponto máximo de tensão ocorreu quando o então secretário de Cultura, André Sturm, ameaçou agredir Gustavo Soares, integrante do MCEM. Após a repercussão na imprensa, o coletivo sofreu cortes de água e luz, numa tentativa de forçar a saída dos jovens do espaço ocupado. O episódio marca uma virada produtiva dentro no movimento, pois se os cortes tentavam fazer com que o espaço fosse desocupado, a saída encontrada pelo coletivo foi ampliar a agenda de atividades e manter o local funcionando.
“A periferia se move ao contrário, sempre que vem uma perseguição a gente amplia o nosso fazer [...] a gente passou a usar a sivirologia, tecnologia periférica, para ter eventos no espaço”6, comenta Gil Douglas, do MCEM, ao falar sobre os cortes de água e luz. O conceito de sivirologia deriva do jargão popular “si vira”, expressão à qual os coletivos de cultura geralmente recorrem para enfatizar suas ações de resistência. Figura influente nos movimentos culturais periféricos de São Paulo, o ativista Mestre Soró7, da Comunidade Cultural Quilombaque, usava a expressão com frequência, sintetizando estratégias variadas de trabalhar com os recursos disponíveis, na experimentação, como observa Cleiton Ferreira (2023), integrante da Quilombaque:
Ancorados nos pressupostos e fundamentos da visão sistêmica criamos uma metodologia, multidimensional para diagnosticar, planejar e agir sobre a realidade, produzir conhecimento e aprender de modo processual e permanente, ou seja, se você tem, você faz, se você não tem, você faz do mesmo jeito, VOCÊ SE VIRA!
(Ferreira, 2023)
A capacidade de se posicionar frente a problemas que são gerados por desigualdades históricas, engrenagens de poder e paradigmas sistêmicos exigiu que os coletivos lançassem mão de práticas experimentais. Essa possibilidade de trabalho independente que se articula deve ser menos entendido como improviso do que como estratégia na construção de possibilidades, geralmente marcadas pela emergência de solidariedades – no texto citado de Cleiton Ferreira (2023), por exemplo, há menção às práticas de resistência dos quilombos, cujos arranjos culturais em torno de novas sociabilidades produziam alternativas e novas possibilidades de luta.
Quando nos deparamos com o termo sivirologia, não estamos diante de um jargão interno ao movimento cultural, mas de um conceito que nos convida a pensar sobre a própria condição de país questionada nos ativismos periféricos – ou seja, é preciso perguntar, de modo semelhante à noção de perspectiva trabalhada por Eduardo Viveiros de Castro (2002): o que o coletivo diz quando usa o termo sivirologia? Essa modalidade popular de organização sugere um conjunto de aprendizados, táticas de enfrentamento às desigualdades e experimentações em linguagens midiáticas e artísticas. Há, portanto, constantemente algo por vir desses encontros.
O mesmo vale para o uso das redes, que até pode parecer semelhante, em termos técnicos, ao que está dado na própria engrenagem dessas tecnologias (marcações, hashtags, transmissões ao vivo etc.), no entanto, alguns elementos diferem: a linguagem dos jovens, as questões sociais tratadas nas produções midiáticas, o bairro de Ermelino como centro das articulações e produções etc. Os integrantes do MCEM, na maioria jovens, são os principais agenciadores da reformulação de estratégias de ação, sobretudo porque nasceram já sob o domínio das tecnologias de comunicação e atuam em redes sociais, criando um outro nível de interação que, no mundo virtual, situa pessoas e coletivos de bairros distantes, num mesmo espaço comunicativo, ampliando possibilidades de ação, pensamento e tomadas de decisão. É comum o uso da engrenagem tecnológica em marcações, hashtags, transmissões ao vivo, gravação em vídeo curtos (cortes) dos eventos e de uso de programas digitais para a criação de bases musicais na apresentação dos saraus. Os jovens criam um universo particular, inclusive no uso da linguagem pontuada por idioletos, isto é, termos específicos usados para caracterizar uma determinada situação. Trata-se de responder politicamente (e eticamente) a um histórico de desigualdades estruturais que marcam a própria configuração de uma cidade como São Paulo (Rolnik, 2004).
Hoje a comunicação coletivo-moradores8 é potencializada pelo uso de redes sociais e aplicativos de envio de mensagens – há, inclusive, um grupo aberto no WhatsApp pelo qual a agenda é constantemente atualizada. As tecnologias são um desdobramento na linguagem midiática das mediações culturais, cultivadas e ampliadas desde o período de ocupação em praça pública, que originou o movimento.
Em abril de 2023, a avenida na qual o coletivo está localizado foi atingida por uma grave enchente. Tanto o espaço do MCEM como os comércios da região sofreram alagamentos, com muitos prejuízos e perda de equipamento. Aproveitando o contato de longa data com a prefeitura de São Paulo, o coletivo agendou uma audiência pública com o subprefeito regional, realizada no espaço da ocupação. O encontro foi não só foi divulgado nas redes sociais, convidando os moradores para um debate público presencial com um representante da gestão municipal, mas transmitido pelas redes com a possibilidade do envio de perguntas.
O uso das redes e ferramentas digitais marca também os encontros do sarau Slam Fluxo, trataremos com maior profundidade neste texto. Os saraus organizados pelo coletivo acontecem no espaço do movimento cultural e também em bibliotecas e outros lugares culturais da região Leste – como o encontro9 ocorrido em dezembro de 2021, na Biblioteca Paulo Setúbal. A transmissão online, em boa medida, se coloca como alternativa midiática, pois o apresentador Kenyt interage com os comentários recebidos pelas redes sociais, ao fazer leituras das mensagens enviadas ao celular, em suas intervenções em meio aos revezamentos dos/as poeta. Os jovens que se revezam ao microfone, por vezes, fazem leituras de seus textos no próprio celular, cuja linguagem é atravessada por questões locais (problemas específicos das periferias) e por elementos mais globalizados que também estão em disputa, a exemplo de temáticas de gênero e LGBTQIAP+, meio ambiente etc. Trata-se de um entremeio de significações. Esse aspecto abre algumas questões: o atual momento midiático teria alguma ressonância no modo de escrita dos textos? E nos ambientes midiáticos, haveria alguma diferenciação produzida pelo coletivo? São questões que também iremos perseguir.
Os saraus do MCEM: semioses, ativismos e mídias
Quando falamos em uma cartografia do MCEM, ela deve ser pensada tanto no espaço físico do movimento cultural como também no virtual, das linguagens midiáticas e redes digitais. Nesses espaços há também uma singularidade nos processos comunicacionais do MCEM, que diferem dos modos dominantes de “estar nas redes”, idealizados pelo Vale do Silício – o locus para publicidades de toda sorte, oferecidas estrategicamente por influencers e algoritmos. As mediações culturais provenientes do MCEM produzem também nos espaços virtuais um processo de significação com base na heterogeneidade do coletivo – e, sobretudo, na dinâmica cultural local, que inscreve um tecido de afetos que lhe são próprios: as vivências no bairro, as memórias, as parcerias, as desigualdades sociais etc.
Após uma das edições do sarau Slam Fluxo, realizado na biblioteca Paulo Setúbal, que reuniu mulheres poetas, a artista Natália Santos publicou o seguinte texto em seu perfil na rede social Instagram:
“O @movimentoculturalem é também minha escola. Em março, estive nesse corre lindo tentando ser slam master do Slam Fluxo, mó missão! máximo respeito as que vieram antes. A Ocupa me dá asas pra voar no dia a dia, poder fazer curadorias de literatura/ estar presente no movimento literário da quebrada onde moro e ainda rodar a cidade, me mantém perto de mim mesma! No mais, rs, isso de #tbt ajuda bastante pessoas que, como eu, não conseguem dar conta de alimentar esse bicho que tá sempre pedindo atenção. Queria ver se o instagram guentava me seguir nas ruas! rs”
O texto demonstra a ressonância nas redes de uma subjetividade posicionada nos ativismos pela cultura nas periferias. A artista celebra em seu texto os aprendizados no coletivo de Ermelino, inclusive ao fazer menção às mulheres que vieram antes do que ela no movimento cultural. Em termos semióticos, a publicação difere dos sentidos marqueteiros e de consumo, decorrentes da cultura de “empreendedorismos” e “influenciadores” digitais, que marcam a engrenagem majoritárias das redes sociais. Natália produz uma diferenciação ao se expressar no Instagram, pois as significações de seu texto indicam um modo de enunciação periférica e, se a artista usa a hashtag #tbt, é para subverter seu uso, ao formular em seu post uma crítica à necessidade de alimentar a rede com frequência.
Os encontros intitulados Slam Fluxo ocorrem semanalmente no espaço físico do MCEM – precisamente numa espécie de garagem, que possui um palco com iluminação, cadeiras para o público e um amplo equipamento de som. Para participar, os artistas se inscrevem antecipadamente, são três ou quatro a cada edição. Com a condução do mestre de cerimônias Kenyt, integrante antigo do MCEM, os encontros também trazem uma atração musical – com prioridade para participação de artistas de diferentes regiões periféricas da cidade. Após uma rodada de poemas, o grupo ou o artista convidado faz uma apresentação de duas ou três canções. A transmissão pelas redes sociais permite que o público que não está no espaço físico participe, inclusive podendo votar no artista de sua preferência. Sobre a votação, trata-se menos de uma “disputa” do que um estímulo à participação da audiência, que é convidada a prestar atenção nas poesias ali compartilhadas.
Nesses saraus, o público é formado majoritariamente por jovens artistas da Zona Leste de São Paulo, que trazem consigo modos específicos de vivenciar a cidade – notadamente as regiões periféricas, a “quebrada”. Soma-se a essa posição enunciativa uma aderência à cultura digital que marca a contemporaneidade. No entanto, como vimos no post de Natália, o ato de estar nas redes não é codificado pelos fluxos dominantes das redes sociais – por exemplo: tratar de temas mais impulsionados por algoritmos; fazer postagens de refeições, idas à academia ou “joguinhos” e enquetes animadas; menções a temáticas que envolvem celebridades digitais etc. –, mas por códigos culturais10 que dizem respeito a ser jovem-artista-periférico em Ermelino Matarazzo. Trata-se de uma aderência midiática negociada, nos termos de Stuart Hall (2003), uma vez que afirmação de marcadores locais irão mobilizar outros sentidos. A midiatização das práticas culturais do MCEM se posiciona, portanto, nos entremeios de uma semiótica que ora se mostra voltada à Ermelino ora se deixa permear por elementos midiáticos globalizados de comunicação – nesse aspecto, nota-se que há uma preocupação cara ao movimento cultural de se portar também como mídia, a exemplo da página11 do coletivo no YouTube, intitulada Ocupa TV. A seguir faremos uma breve análise semiótica de algumas edições dos saraus Salam Fluxo.
Poética slam12: a fala cantada das novas sensibilidades políticas
No contexto de nossa reflexão sobre a estética dos coletivos, o corpo e a voz dos poetas, sejam eles street dancers, repentistas, rappers ou slammers, ocupam o centro da cartografia estético-política aqui esboçada. Neles podemos dimensionar as novas sensibilidades políticas insurgentes dos ativismos de periferias. Primeiro pelo vínculo com as tradições da cultura oral, principalmente no que se refere a disputa, que ressoa na voz e no corpo da fala cantada, praticada pelos rappers do hip hop brasileiros. Segundo, pela inserção na contemporaneidade dos processos de ruptura que marcam a virada do milênio, do século XX para o século XXI na civilização ocidentalizada em que vivemos.
A ruptura que nos interessa é a discursiva – aquela em que uma construção estética, historicamente compreendida como cultura popular, portanto, distinta da cultura erudita. Uma ruptura impulsionada pela disseminação dos meios de comunicação de massa. Ainda que nas décadas que se seguiram ao pós-guerra os meios se concentraram sob o domínio de grandes veículos de comunicação, a transmissão se tornou descentralizada ampliando as possibilidades e o alcance da circulação de mensagens, naturalmente nos produtos da indústria cultural de entretenimento. Considerar esse contexto como parte da cartografia estético-política de nosso estudo significa situar a atualidade da poesia que se quer compreender. Os poetas a que nos referimos são filhos da tecnologia eletrônico-digital forjada pelos meios de comunicação depois ampliados em mídias sociais de redes digitais que são os principais mediadores da oralidade na qual foi gerada a prática discursiva de criação poética que desaguou na poesia slam – palavra que está longe de ser apenas uma referência à geopolítica da língua inglesa também impulsionada pelo pós-guerra.
Na verdade, a poesia falada pratica da pelos slammers é a expansão das formas criadas pela cultura negra estadunidense que encontrou no movimento de luta política um canal de transmissão que for rapidamente irradiado pelo continente americano. A razão de sua proliferação é uma só: a onda negra transatlântica que amplificou a luta pelo reconhecimento dos direitos civis humanitários universais dos povos afrodiaspóricos. Luta que em cada país do continente ocorreu de um modo, mas que ganhou força, em todos eles, pelo processo de independência do Haiti iniciado ainda no século XVIII.
Além dessa memória histórica fundamental que carrega o tom discursivo de luta que, agora, focaliza os problemas cruciais dessa desigualdade que só fortaleceu o racismo, interessa destacar como este tom discursivo é traduzido na poesia slam, unindo jovens dos bairros de periferias de diferentes regiões da cidade traduzem numa comunidade com características próprias. Mesmo sem as acrobacias das danças urbanas, a poesia slam recodifica no discurso aquilo que observamos nas quebras disruptivas e agressivas da gestualidade break do hip hop. É em nome dessa agressividade e ruptura que as palavras são selecionadas e arranjadas nas frases cujo ritmo não segue uma melodia articulada, mas sim a entonação de uma fala que parece “fora de tom, sem melodia”13, o que motiva a quebra na fala e na escrita dos versos. Há dois motivos para a agressividade: seja pelo teor do protesto que sempre se dirige a alguma representação do poder seja pelo caráter do evento em que o slam é entoado, isto é, as competições públicas que acontecem no espaço urbano ou em palcos.
O MCEM incorporou em suas práticas o slam que mobiliza, até hoje, jovens para o desafio criativo-poético de suas insurgências vivenciais em seus saraus. Além de toda a luta para motivar moradores às ações coletivas da comunidade, os saraus se tornaram importantes espaços comunitários de pertencimento como já foi relatado anteriormente. e, principalmente, de enfrentamento de dificuldades. Muitos jovens ao atender o desafio do trabalho poético, descobrem-se capazes de desfrutar do uso língua como sujeitos e como criadores, ampliando não apenas o repertório como também as capacidades discursivas da interação social. Isso sem falar no aprendizado com seus próprios colegas.
A partir do momento que os jovens se integram às suas comunidades, as performances no centro da cidade deixam de ser o único espaço de manifestação. Já não se trata de marcar presença em lugares que lhes pareciam hostis, mas de irradiar o trabalho para todos os lugares em que pessoas estivessem dispostas a ouvir. Não sem bons motivos que os saraus do MCEM são gravados e podem ser visualizadas no YouTube. Das apresentações a que tivemos acesso, podemos acompanhar não apenas o talento criativo dos participantes, como também as articulações da cartografia urbana dos coletivos da região que se tornou objeto de estudo da pesquisa em curso focada nas redes com entrecruzamentos de formas artísticas e textos culturais que escoam no tempo e no espaço. Os jovens são os principais agenciadores dessas articulações cartográficas da cultura, mesmo que ainda não possam ter o alcance de tudo que realizam.
As próprias competições de poesia slam ao se apresentarem em saraus que já se consolidaram nos coletivos como manifestação de arte ativista em São Paulo. Nas performances poéticas realizadas, conservam-se o vigor da disputa na performance composicional e interpretativa do momento em que a voz ecoa no espaço, golpeando o ar com palavras. São poemas falados ou cantados, gravados com recursos que a tecnologia digital oferece e que os jovens sem patrocínio ou grandes estúdios exploram sem se intimidar com produção caseira. É esta experiência estética que não só desperta no jovem a energia criativa para a performance de seus poemas, mas também desperta nele a consciência da sensibilidade política.
É o que pudemos verificar no Sarau Slam Fluxo idealizado e realizado pelo MCEM, com incentivo do Fomento: A cultura da Periferia.
Poeta slammer Clamant e o Apresentador e poeta Kenyt, no sarau Slam Fluxo, em Ermelino Matarazzo, São Paulo
Comandado pelo MC14 Kenyt, que além de apresentar os concorrentes, também entoa a vinheta do sarau: “Quem tá no correria tá no? Fluxo!” – com marcação na entoação da sílaba “flu” e um alongamento na pronúncia de “xo” (/kso/).
Apesar de os temas abordados serem inspirados no entorno de violência nos bairros que afetam os jovens, força da criatividade nasce da tradução de vivências nas composições entoadas com ritmos e rimas muito bem marcados. O modo entonativo de compor, de descobrir a melodia da fala articulada no fluxo dos timbres e intensidades da declamação é que decide onde colocar suas ênfases e concentrar a energia criativa e expressiva da poesia. Ao ritmo e à rima cabe distribuir a dimensão semântico-poética, mesmo que para isso seja necessário quebrar a ordem sintática e abrir caminhos para a inserção de outros falares misturados com todos os sotaques que compõem os falares brasileiros.
A enunciação dos versos indica uma diversidade de referenciais que diz respeito a uma realidade (re)construída criticamente em linguagem artística. Tomar a palavra ao microfone é protagonizar vivências, reorganizá-las em busca de outras realidades possíveis. Os poemas expressam uma multiplicidade periférica tecida por ativismos, críticas sociais, arte e pertencimento ao bairro, cujas situações tratadas traçam condições mudança à realidade periférica – semelhante a fenômenos heterogêneos e descentrados, que para Deleuze e Guattari (2000) indicam outras modalidades existenciais.
Desse modo, a cartografia identifica a emergência de um conhecimento situado, a partir da dinâmica cultural do MCEM, cujos códigos são mobilizados em diversas atividades ocorridas no espaço do coletivo – a exemplo dos saraus. Para Lotman (1990), as dinâmicas de geração de sentidos nas linguagens mobilizam não apenas uma mensagem a ser transmitida, mas uma mensagem sobre a própria linguagem (metalinguagem), o que nos permite, no caso das produções midiáticas do MCEM, pensar criticamente a cultura midiática digital, uma vez que ela é posicionada em novas bases ético-políticas nas apropriações que o coletivo faz dessas ferramentas. Por essa perspectiva, a cultura é pensada como fenômeno processual, daí a opção pelo método cartográfico – acompanhar processos, traçar novas paisagens comunicacionais e existenciais (Kastrup; Passos, 2013). Desse modo, os saraus enfrentam desigualdades de modo transversal e coletivo, ao acionarem sensibilidades e afetos que sugerem saídas possíveis para problemas periféricos (pensar criticamente a periferia, estimular as pessoas a participar dos encontros e, quem sabe, a tornarem-se poetas também). O processamento de determinadas situações-problema leva a táticas e a estratégias de organização, que dependem das questões postas para criar modos de agir dentro e fora das redes. Os saraus Slam Fluxo configuram, assim, uma das frentes nas quais é possível observar as mediações culturais que constituem o MCEM, que envolvem as preocupações com a melhoria de vida nas periferias e questões de diversidade e inclusão.
Considerações finais
A breve análise que traçamos sobre o funcionamento semiótico dos saraus organizados pelo Movimento Cultural de Ermelino Matarazzo (MCEM) é um fragmento cartográfico de uma pesquisa em andamento. Pelos dados empíricos levantados, notamos que os saraus são um espaço de partilha de afetos que sugerem resistências e ativismos em busca de uma vida melhor no contexto das periferias. As significações que se mobilizam nos versos são atravessadas por mediações locais e por engajamentos caracterizados por disputas contemporâneas à temporalidade das redes digitais – por isso entendemos o MCEM a partir da noção de Lotman (1996), que entende a cultura como estrutura heterogênea, com códigos que lhe são próprios, mas permeáveis a novos sentidos. Assim funciona o coletivo, possui certa memória local de ativismos pró-cultura e assume outras temáticas de luta na atualidade. Ao optarmos pelo método cartográfico, traçamos algumas significações que constituem o MCEM enquanto espaço de transversalidades, que indica um fenômeno descentrado e produtor de diferenças (Deleuze; Guattari, 2000).
A continuidade da presente pesquisa irá somar à análise dos saraus outros dados de campo, produzidos em pesquisa participante, que complementam o entendimento do território semiótico do coletivo – em seu espaço físico e em suas ressonâncias midiáticas. Posteriormente, a cartografia do MCEM será trabalhada em proximidade à de coletivos de outras regiões, com o objetivo de traçar mapa dos impactos sociais produzidos por diferentes ativismos locais, bem como suas expressões midiáticas, em busca da organização teórica de um cenário comunicacional e midiático alternativo, plural e inclusivo a ser explorado no âmbito acadêmico.
Disponibilidade de Dados
Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados no corpo do artigo.
-
Detalhes Editoriais
Sistema duplo cego
-
Editoração e marcação XML:
IR Publicações
-
Financiamento:
Este artigo é resultado parcial de pesquisa de pós-doutorado financiado com bolsa CNPq - Chamada nº 32/2023 – Pós-Doutorado Júnior.
-
Como citar:
MACHADO, Irene de A. e CARVALHO, Nilton Faria de. Os saraus no movimento cultural Ermelino Matarazzo: Semioses, ativismos e mídias. S. Paulo: INTERCOM - Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 48, e2025107. https://doi.org/10.1590/1809-58442025107pt.
-
1
Pesquisa de pós-doutorado intitulado “Práticas comunicacionais de diferenças: uma cartografia de experimentações nas mídias”, conduzida na Escola de Comunicações e Artes-USP, sob a supervisão da Profa. Dra. Irene de Araújo Machado, com Bolsa CNPq, Chamada nº 32/2023 – Pós-Doutorado Júnior.
-
2
De um ponto de vista teórico, tal articulação foi definida por Félix Guattari (1985), estudioso de manifestações coletivas semelhantes, como demonstração de uma escolha que sugere outras formar de viver.
-
3
Cartografia que compreende dois eixos: a) o funcionamento semiótico dos coletivos e, em outra frente, b) entende os coletivos em sua dimensão midiática de diferenciações e experimentações.
-
4
Essa reflexão está na obra Mil platôs – vol. 1, na qual Deleuze e Guattari (2000) discutem o entendimento da figura ontológica do rizoma, que, em linhas gerais, pelo fato de ser descentralizada requer um método capaz de desenhá-la como alternativa. A cartografia seria esse método.
-
5
Há uma sala no espaço do coletivo dedicada à memória do lugar, na qual é possível encontrar vários escritos do professor e ativista que reivindicavam equipamentos de cultura em Ermelino.
-
6
Trecho retirado de um material multimídia sobre coletivos de cultura organizado pelo Sesc São Paulo. Ver Sesc (2021).
-
7
Educador e ativista cultural, integrante do coletivo Quilombaque, do distrito de Perus, São Paulo. Soró falecei em 2019.
-
8
Buraco Quente e Santa Inês são as regiões mais pobres do entorno, e também as que mais participam da programação oferecida no MCEM.
-
9
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QTqTh5WlDAY&t=897s>. Acesso em 7 ago. 2023.
-
10
Códigos culturais caracterizam e diferenciam os sistemas semióticos (Machado, 2003, p. 35). Trata-se, por exemplo, de um ritmo musical usado em determinado contexto de religiosidade ou os gestos que dão sentido a determinadas situações para uma comunidade ou povo.
-
11
Disponível em: <https://www.youtube.com/@ocupa_tv>. Acesso em 07 dez. 2023.
-
12
Histórico do surgimento do slam, características composicionais e, sobretudo, o pioneirismo de coletivos em São Paulo pode ser encontrado nos estudos de Roberta Estrela D’ Alva (2019) e Cyntia A. B. Neves (2017).
-
13
Verso da canção É proibido proibir (1968), de Caetano Veloso.
-
14
Acróstico para Mestre de Cerimônias introduzido pelos rappers que, no Brasil teve nos Racionais MC’s seus desbravadores.
Referências
- D’ALVA, Roberta Estrela. Slam: vozes de levante. Rebento, n. 10, p. 268-286, 2019.
-
FERREIRA, Cleiton. A arte da Sevirologia na quebrada., p. 1-3, c2023. In: Sivirologias periféricas Disponível em: < https://www.sevirologiasperifericas.com.br/biblioteca-de-estudos>. Acesso em: 25 jul.
» https://www.sevirologiasperifericas.com.br/biblioteca-de-estudos - GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
- DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.
- DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2000.
- HALL, Stuart. Codificação/decodificação. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 387-406.
- KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Revista Fractal, v. 25, n. 2, p. 263-280, mai./ago., 2013.
- LOTMAN, Iuri, M. La semiosfera I Semiótica da cultura y del texto. Madri: Ediciones Frónesis Cátedra Universitat de Valencia, 1996.
- LOTMAN, Yuri M. Universe of the mind A Semiotic Theory of Culture. Bloomington: Indiana University Press, 1990.
- MACHADO, Irene. Escola de Semiótica – a experiência de Tartú-Moscou para o estudo da cultura. São Paulo: Ateliê Editorial/Fapesp, 2003.
- NEVES, Cyntia A. B. Slams – letramentos literários de reexistência ao/no mundo contemporâneo. Linha D’Água, v. 30, n. 2, p. 92-112, 2017.
- ROLNIK, Raquel. O que é cidade São Paulo: Brasiliense, 2004.
-
SESC. Ocupação Cultural Mateus Santos, de Ermelino Matarazzo, c2021. Página inicial. Disponível em: <https://www.sescsp.org.br/ocupacao-cultural-mateus-santos-de-ermelino-matarazzo/>. Acesso em: 28 fev.
» https://www.sescsp.org.br/ocupacao-cultural-mateus-santos-de-ermelino-matarazzo/ - VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Revista Mana, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002.
Editado por
-
Editor Associado
Dr. Sandro Torres de AzevedoUniversidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ
-
Editores Executivos:
Dr. Jorge C. Felz FerreiraUniversidade Federal de Juiz de Fora, UFJFDra. Ana Paula Goulart de AndradeUniv. Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ
-
Editoras Chefes:
Dra. Marialva BarbosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJDra. Sonia Virginia MoreiraUniversidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
10 Out 2024 -
Aceito
25 Mar 2025 -
Publicado
30 Jun 2025


Fonte: Print do vídeo: