Remissão de doença hepática e renal a longo prazo induzida pelo HCV após terapia antiviral de ação direta

Resumo

Além da doença hepática, o vírus da hepatite C (HCV) tem sido associado a fenômenos autoimunes, como crioglobulinemia mista (CM) e glomerulonefrite (GN). Até recentemente, a hepatite crônica e as manifestações extra-hepáticas do HCV eram tratadas com peg-interferon com ribavirina; no entanto, essas drogas apresentavam baixa eficácia e induziam efeitos colaterais graves. Atualmente, a hepatite crônica por HCV tem sido tratada com antivirais de ação direta (AAD), mas estudos sobre a terapia com AAD para glomerulonefrite associada ao HCV são escassos. Aqui, descrevemos dois casos de glomerulonefrite associada ao HCV que foram tratados com AAD. Nestes dois casos, previamente tratados com peg-interferon e ribavirina, a terapia com sofosbuvir com simeprevir foi eficaz, sem efeitos colaterais significativos, e interrompeu a evolução de pelo menos 20 anos de doenças hepáticas e renais. Esses casos se juntam aos sete casos descritos anteriormente que foram tratados com essa associação de AAD.

Descritores:
Hepacivirus; Glomerulonefrite; Sofosbuvir; Simeprevir; Crioglobulinemia

Abstract

In addition to liver disease, the hepatitis C virus (HCV) has been associated with autoimmune phenomena, such as mixed cryoglobulin and glomerulonephritis (GN). Until recently, both chronic hepatitis and HCV extra-hepatic manifestations were treated with peg-interferon plus ribavirin, however these drugs presented low efficacy and induced severe side effects. Nowadays, the HCV chronic hepatitis has been treated with direct acting antivirals (DAA), but studies on the DAA therapy for HCV-associated glomerulonephritis are scarce. Here, we describe two cases of HCV-associated glomerulonephritis that were treated with DAAs. In these two cases, previously experienced to peg-interferon plus ribavirin, the sofosbuvir plus simeprevir therapy was effective, without significant side effects, and interrupted the evolution of at least 20 years of both hepatic and renal diseases. These cases join the seven previously described cases that were treated with this DAAs association.

Keywords:
Hepacivirus; Glomerulonephritis; Sofosbuvir; Simeprevir; Cryoglobulinemia

Introdução

A infecção pelo vírus da hepatite C (HCV) afeta aproximadamente 71 milhões de pessoas, representando 400.000 mortes por ano em todo o mundo¹. A infecção pelo HCV causa alta morbimortalidade, levando a cirrose hepática e carcinoma hepatocelular em 4 a 20% dos infectados^1,2. Além da doença hepática, esse vírus tem sido associado a fenômenos autoimunes, envolvendo crioglobulinemia, distúrbios linfoproliferativos e glomerulonefrite^2,3.

Inicialmente, pacientes com HVC com glomerulopatias, em particular glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP), foram tratados com interferon (IFN) ou peg-interferon (PEG-IFN) associado à ribavarina (RBV), mas essa terapia induzia efeitos colaterais graves e baixas respostas virológicas sustentadas (RVS), geralmente menor que 50%^3,4. O novo tratamento antiviral de ação direta (AAD) está sendo considerado uma terapia antiviral revolucionária, levando à cura da infecção por RVS em mais de 90% dos pacientes, sem efeitos colaterais importantes^3,5.

Embora o primeiro relato de tratamento livre de IFN para pacientes com glomerulopatia associada ao HVC tenha sido publicado em 1996, com uso isolado de RBV⁶, existem poucos relatos de tratamento com AAD em pacientes com HVC com manifestações extra-hepáticas, como glomerulopatias^3,4. Como o uso isolado de RBV promove apenas efeitos transitórios na replicação do HCV, desde 2016 surgiram novos relatos usando AAD (tratamento sem IFN) em pacientes com glomerulopatias associadas ao HCV. De fato, Saadoun et al. descreveram cinco pacientes com glomerulopatias associadas ao HCV tratados com sofosbuvir mais RBV por 24 semanas que atingiram RVS⁷.

Este estudo teve como objetivo descrever o tratamento de dois pacientes com infecção crônica pelo HCV associada a crioglobulinemia e glomerulopatia, que foram tratados com os novos AAD sofosbuvir (SOF) com simeprevir (SIM) e atingiram a RVS. Os dois pacientes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para a publicação dessas descrições.

Descrição dos Casos

Caso 1 - Um homem de 41 anos com diagnóstico de infecção crônica por HCV associada a glomerulopatia foi acompanhado nos serviços de referência em Gastroenterologia e Nefrologia por 21 anos. Em 1997, com 20 anos de idade, apresentava anasarca, depuração da creatinina de 82,4 mL/min/1,73m², proteinúria de 6,72 g/24h, crioglobulinemia positiva e RNA-HCV positivo, sendo diagnosticado por análise histopatológica com hepatite crônica, com alterações inflamatórias mínimas e glomerulonefrite proliferativa mesangial. Inicialmente, os diuréticos foram introduzidos e, após a regressão do edema, ele foi tratado com IFN-α mais RBV por 24 semanas, evoluindo com normalização das aminotransferases, negatividade do RNA do HCV e melhora da proteinúria. No entanto, alguns meses depois, apresentou recidiva viral. Permaneceu estável por alguns anos, mas em 2005 foi admitido no serviço de Nefrologia com anasarca e aumento da proteinúria. Nesta ocasião, a infecção pelo genótipo 1b do HCV foi confirmada por PCR e a nova biópsia hepática mostrou um escore METAVIR de A1F1. Desta vez, ele recebeu PEG-IFN mais RBV, mas o tratamento foi interrompido devido a falha terapêutica após 24 semanas. Em 2016, ele apresentou carga viral de 2.064.684 UI/mL e log 6; a creatinina sérica estava em 1,1 mg/dL, a proteinúria estava em de 3,4 g/24h e a elastografia por onda de cisalhamento pontual (pSWE) mostrou 1,7 m/s (METAVIR ≈ F0). Ele foi tratado com SOF (400 mg/dia) com SIM (150 mg/dia) por 12 semanas, evoluindo com normalização das aminotransferases e negatividade do RNA do HCV no final do tratamento e, após 12 semanas (RVS), negatividade da crioglobulinemia e redução significativa da proteinúria. O paciente progride assintomático e está sendo acompanhado pelo serviço de Nefrologia.

Caso 2 - Um homem de 50 anos foi diagnosticado há 24 anos com infecção pelo HCV antes da doação de sangue e foi encaminhado a um serviço de Hepatologia. Em 1995, ele foi submetido à biópsia hepática, que revelou hepatite crônica persistente. Ele perdeu o acompanhamento ambulatorial e retornou em 2005, quando a infecção pelo genótipo 1b foi identificada. Iniciou o tratamento com PEG-IFN e RBV, que foi interrompido após 24 semanas devido a nenhuma resposta virológica. Foi acompanhado ambulatorialmente e em 2011 teve uma carga viral de 791.479 UI/mL (log 5,9), quando uma nova biópsia hepática mostrou um escore METAVIR de A2F3. Em 2014, apresentou carga viral de 1.193.977 UI/mL (log 6,08), evoluindo para trombocitopenia, hipoalbuminemia, ascite e diminuição da função renal, além de hematúria e cilindros hemáticos. Foi diagnosticado com glomerulopatia associada ao HCV, mas a biópsia renal não foi possível devido a trombocitopenia. Apresentou consumo de C3 e C4, depuração da creatinina de 65 mL/min/ 1,73m², proteinúria de 4,33 g/24h e crioglobulinemia positiva. Espironolactona e furosemida foram prescritos com melhora do edema. Em 2015, ele realizou o pSWE, com resultado de 3,01 m/s (METAVIR ≈ F4). Em 2016, ele foi tratado com SOF (400 mg/dia) e SIM (150 mg/dia) por 12 semanas, evoluindo para normalização das transaminases, negatividade do RNA do HCV ao final do tratamento e após 12 semanas (RVS), crioglobulinemia negativa e redução significativa da proteinúria foram obtidas. Ele está assintomático, mas continua a ser acompanhado nos serviços de Hepatologia e Nefrologia.

Discussão

A partir de 2014, os primeiros casos de uso de AAD com os inibidores de proteases NS3-4A (boceprevir e telaprevir) no tratamento da glomerulopatia associada ao HCV foram publicados, e a melhora clínica após a erradicação do HCV foi descrita. No entanto, esses AAD de primeira geração sempre foram administrados em associação com PEG-IFN/RBV e utilizados por longos períodos, desencadeando efeitos colaterais graves, principalmente anemia severa^8,9,10.

No ano seguinte, 2015, um estudo descreveu os dois primeiros casos de glomerulopatias associadas ao HCV tratadas com ADD de segunda geração, associando SOF com PEG/RBV por 12 semanas, e ambos os casos mostraram melhora clínica após RVS⁹.

Então, em 2016, foram descritos os casos de mais cinco pacientes com glomerulopatia associada ao HCV tratados por 24 semanas com um esquema verdadeiramente livre de IFN, usando SOF e RBV. Todos alcançaram RVS e quatro apresentaram melhora da doença renal⁷. Após, foram descritos 12 pacientes com síndrome de crioglobulinemia mista (CM) associada ao HCV, sete deles com glomerulopatias. A história da CM variou de 1 a 17 anos. Desses sete pacientes, seis foram tratados com SOF mais SIM e o outro, que apresentou o genótipo 2, com SOF mais RBV. Seis dos sete pacientes atingiram não apenas a RVS, mas também melhora na taxa de filtração glomerular e da proteinúria¹¹. Um estudo anterior relatou uma série de 44 pacientes com crioglobulinemia mista associada ao HCV, dos quais quatro (9%) também tinham glomerulopatias com taxa de filtração glomerular reduzida e proteinúria. Três foram tratados com SOF e RBV associado a SIM ou daclatasvir (DAC) ou ledipasvir (LED) e um paciente com SOF e RBV. Todos esses quatro pacientes alcançaram RVS, além de melhora na taxa de filtração glomerular e da proteinúria¹².

Em 2017, um paciente com glomerulopatia membranosa associada ao HCV, genótipo 1b, tratado com SOF e LED por 12 semanas, alcançou RVS na semana 12 com melhora na taxa de filtração glomerular e melhora da proteinúria¹³. Posteriormente, foi descrita uma série de 18 pacientes com CM, dos quais 10 (55%) apresentavam comprometimento renal. Todos foram tratados com AAD com e sem PEG-IFN e sete atingiram RVS¹⁴. Outro paciente com CM associada ao HCV, genótipo 3a, foi tratado com SOF mais DAC por 24 semanas. Ele alcançou RVS com taxa de filtração glomerular e melhora da proteinúria, permitindo suspensão dos anti-hipertensivos e diuréticos. No entanto, persistiu com crioglobulinemia e hematúria microscópica¹⁵.

Também em 2017, foi descrita uma série de 41 pacientes com CM associada ao HCV, dos quais cinco (12%) também tiveram envolvimento renal, quatro deles com GNMP. Todos os cinco pacientes foram tratados com SOF mais DAC por 12 ou 24 semanas, obtendo melhora da RVS e da proteinúria, e a hematúria desapareceu em quatro dos cinco casos na semana 24¹⁶.

Em seguida, foi descrita uma série de 35 pacientes com CM associada ao HCV, dos quais sete (20%) apresentavam comprometimento renal. Todos os sete foram tratados com AAD e alcançaram RVS, além de melhora da taxa de filtração glomerular, diminuição da proteinúria e desaparecimento da hematúria¹⁷. Outra série de 22 pacientes com CM associada ao HCV, dos quais quatro (18%) apresentaram glomerulonefrite por crioglobulinemia e foram tratados com AAD, todos atingiram RVS¹⁸.

Em 2018, foi publicada uma série de 63 pacientes com CM associada ao HCV, sete dos quais (11%) apresentaram glomerulonefrite. Todos foram tratados com SOF mais DAC por três meses, alcançaram RVS e desaparecimento da crioglobulinemia, e cinco também apresentaram melhora da doença renal¹⁹.

Mais recentemente, foi relatada a terapia com ombitasvir-paritaprevir-ritonavir mais dasabuvir por 12 semanas em 9 pacientes com CM associada ao HCV e glomerulonefrite. Todos os pacientes apresentaram RVS, mas apenas dois tiveram recuperação clínica completa, e seis apresentaram persistência ou piora da CM e receberam terapia imunossupressora²⁰.

A análise da eficácia da nova terapia com AAD foi descrita no artigo de revisão de Fabrizi et al., (2019), revelando que a RVS pode ser alcançada em 95% (297 de 313) dos pacientes com CM³ associada ao HCV³. Esses resultados são semelhantes aos observados na literatura com o uso de AAD no tratamento do HCV de pacientes sem CM⁵. Desses 313 pacientes, 52 (17%) apresentavam CM com comprometimento renal, dos quais 49 (94%) atingiram RVS, 17 (33%), resolução completa da GN e 15 (29%) com melhora da doença renal³. Os dois novos casos relatados neste artigo confirmam a alta eficácia dos AAD no tratamento de CM associado ao HCV com envolvimento renal, já que ambos alcançaram RVS, negatividade da crioglobulinemia e melhora da proteinúria após o uso de SOF e SIM. No entanto, alguns casos de aparecimento ou a recidiva da CM associada à glomerulonefrite pelo HCV foram descritos após o tratamento bem sucedido (RVS) com AADs^3,20. Nesses casos de recidiva, agentes imunossupressores, como o rituximabe, poderiam ser utilizados^3,20.

Em conclusão, nesses dois casos de crioglobulinemia e comprometimento renal associados ao HCV, previamente tratados com PEG-IFN mais RBV, a terapia SOF mais SIM foi eficaz, sem efeitos colaterais significativos, e interrompeu a evolução de pelo menos 20 anos em pacientes com doenças hepáticas e renais.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  05 Out 2020
• Data do Fascículo
  Jan-Mar 2021

Histórico

• Recebido
  14 Dez 2019
• Aceito
  26 Jul 2020