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Doença de Fabry: pacientes em risco no Brasil!

A doença de Fabry (DF) é causada por deficiência ou ausência da atividade da α-galactosidase A, que é uma enzima lisossomal cujo substrato é a globotriaosilceramida (GB3 ou GL-3). Portanto, nessa doença ocorre acúmulo do GB3 nos lisossomas de todas as células do corpo humano, comprometendo as funções de diversos órgãos. A DF tem herança ligada ao cromossomo X, acomete todas as etnias e tem uma incidência não bem determinada entre 1/100.000 a 1/500.000 habitantes. Além disso, já foram descritas mais de 600 mutações no gene da α-galactosidase A11 Desnick RJ, Ioannou YA, Eng CM. α-galactosidase a deficiency: Fabry disease. In: Scriver CR, Beaudet AL, Sly WS, Valle D, eds. The metabolic and molecular bases of inherited diseases. 7th ed. New York: McGraw-Hill; 1995. p. 2741-84.. O quadro clínico é muito variável, depende do tipo de mutação e do sexo dos pacientes. Na forma clássica, que acomete crianças do sexo masculino, o quadro clínico é exuberante, com a presença de angioqueratomas, depósito em córnea, acroparestesia, intolerância ao calor; com o passar dos anos, ocorrem acometimentos renais, cardíacos e gastrointestinais. Nos portadores de mutações menos graves e no sexo feminino, o início das manifestações é mais tardio, e muitas vezes apenas um órgão é acometido22 Germain DP. Fabry disease. Orphanet J Rare Dis. 2010 Nov;5:30..

O diagnóstico é feito com base no quadro clínico, na história familiar e na procura ativa da doença em grupos de riscos (screenings), como pacientes em diálise, pacientes com hipertrofia miocárdica sem causas aparentes e pacientes com acidentes vasculares encefálicos precoces33 Caudron E, Molière D, Zhou JY, Prognon P, Germain DP. Recent advances of Fabry disease screening for at risk population. MedSci (Paris). 2005;21(11 Suppl 1):S48-S50.. Nesta edição, Sodré L et al44 Souza LSS, Huaira RMNH, Colugnati FAB, Carminatti M, Braga LSS, Coutinho MP, et al. Screening of family members of chronic kidney disease patients with Fabry disease mutations: a very important and underrated task. J Bras Nefrol [Internet]. 2020 Sep 14; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002020005033201&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0080
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. avaliaram parentes de 71 pacientes portadores de mutação de DF detectados entre 36.442 pacientes em diálise num estudo prévio. A partir desses 71 pacientes, foram detectados por anamnese médica 1.214 possíveis portadores de DF. Nestes pacientes, foi avaliada a atividade da enzima α-galactosidase A, e nos casos que apresentaram alterações foi feito o estudo genético para confirmar a mutação da DF. Por fim, foram detectados 115 pacientes com a mutação de DF (9,47%), sendo 66,1% mulheres e 74% com idade menor do que 44 anos. Portanto, por meio do screening realizado foi possível encontrar um número muito grande de pacientes portadores de uma doença rara. As vantagens dessa abordagem é que ela permite o diagnóstico precoce e a instituição de tratamentos específicos antes que os órgãos afetados fiquem gravemente comprometidos.

O tratamento da DF consiste na terapia de reposição enzimática (TRE) com enzimas recombinantes da α-galactosidase A no intuito de evitar ou retirar os depósitos intracelulares de GB3. Além disso, os pacientes devem receber tratamentos específicos para os acometimentos dos diversos órgãos, como drogas antiproteinúricas, inibidores da enzima de conversão da angiotensina ou bloqueadores dos receptores de angiotensina II, no caso do acometimento renal. Mais recentemente, uma nova abordagem para certos tipos de mutações menos graves foi disponibilizada no Brasil. Uma droga, ofertada por via oral, que estabiliza a enzima alterada (chaperona), retornando a funcionalidade da enzima. Segundo uma diretriz europeia, nos homens com forma clássica a TRE é recomendada assim que houver sinais clínicos de envolvimento renal, cardíaco ou cerebral, mas pode ser considerada em pacientes com idade ≥ 16 anos, na ausência de sinais ou sintomas clínicos de envolvimento de órgãos. Já as mulheres e os homens com DF não clássica devem ser tratados assim que houver sinais clínicos precoces de envolvimento renal, cardíaco, cerebral e gastrointestinal55 Biegstraaten M, Arngrímsson R, Barbey F, Boks L, Cecchi F, Deegan PB, et al. Recommendations for initiation and cessation of enzyme replacement therapy in patients with Fabry disease: the European Fabry Working Group consensus document. Orphanet J Rare Dis. 2015 Mar;10:36..

Porém, a disponibilidade desses tratamentos para os pacientes portadores de DF no Brasil está sendo ameaçada. O relatório preliminar da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) considerou que as evidências científicas disponíveis sobre o uso da terapia de reposição enzimática com alfa-agalsidase ou beta-agalsidase em pacientes com doença de Fabry não demonstram benefício em desfechos clínicos importantes ou modificação do curso natural da doença. Além disso, a melhor evidência disponível é limitada quanto ao número de pacientes incluídos e tempo de acompanhamento curto considerando a cronicidade da doença e o uso contínuo dos medicamentos. Apontou-se, ainda, o grande impacto orçamentário que a incorporação representaria ao SUS. Este relatório foi submetido à consulta pública, que foi finalizada no dia 14/09/2020.

A DF é devastadora e merece um tratamento dirigido para o seu defeito original, que é a falta ou deficiência da enzima α-galactosidase A. Diabetes tipo 1 não é tratado com sintomáticos, mas sim com a reposição da insulina faltante, que é oferecida pelo SUS aos pacientes. A anemia da doença renal, causada pela deficiência de um hormônio, a eritropoietina, também é tratada com a reposição de eritropoietina recombinante humana, que também é oferecida pelo SUS.

Diferentemente do diabetes, a DF é uma doença rara, o que dificulta a demonstração da eficácia terapêutica dos tratamentos existentes. Na avaliação da CONITEC, foram incluídos apenas estudos aleatorizados. Estudos mecanicistas, um importante instrumento de avaliação de eficácia terapêutica em doenças raras, não foram considerados. Nos estudos aleatorizados, foram incluídos pacientes já em fase avançada da doença, o que dificulta a demonstração da eficácia da reposição enzimática em órgãos já irreversivelmente comprometidos.

A esperança é que, com esta consulta pública, esse entendimento da CONITEC seja alterado, para o bem dos pacientes portadores de DF no Brasil.

References

  • 1
    Desnick RJ, Ioannou YA, Eng CM. α-galactosidase a deficiency: Fabry disease. In: Scriver CR, Beaudet AL, Sly WS, Valle D, eds. The metabolic and molecular bases of inherited diseases. 7th ed. New York: McGraw-Hill; 1995. p. 2741-84.
  • 2
    Germain DP. Fabry disease. Orphanet J Rare Dis. 2010 Nov;5:30.
  • 3
    Caudron E, Molière D, Zhou JY, Prognon P, Germain DP. Recent advances of Fabry disease screening for at risk population. MedSci (Paris). 2005;21(11 Suppl 1):S48-S50.
  • 4
    Souza LSS, Huaira RMNH, Colugnati FAB, Carminatti M, Braga LSS, Coutinho MP, et al. Screening of family members of chronic kidney disease patients with Fabry disease mutations: a very important and underrated task. J Bras Nefrol [Internet]. 2020 Sep 14; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002020005033201&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0080
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002020005033201&lng=en» https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0080
  • 5
    Biegstraaten M, Arngrímsson R, Barbey F, Boks L, Cecchi F, Deegan PB, et al. Recommendations for initiation and cessation of enzyme replacement therapy in patients with Fabry disease: the European Fabry Working Group consensus document. Orphanet J Rare Dis. 2015 Mar;10:36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2020
  • Aceito
    10 Dez 2020
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