A ultrassonografia realizada por nefrologistas: realidade e desafios

A realização de exames de ultrassonografia por médicos não radiologistas é, hoje em dia, uma prática difundida em todo o mundo. Diferentes especialidades médicas abraçaram o método, quase que como complemento propedêutico, e incorporaram o sonógrafo ao arsenal de equipamentos utilizados no exame físico do paciente. No meio nefrológico, a prática se resumia a um ou outro caso esporádico na década de 1990, mas, atualmente, um grande número de profissionais utiliza-se da técnica de forma corriqueira, como método de imagem, para vários procedimentos, como a realização de biópsias renais e implantação de cateteres de duplo-lúmen. Em pelo menos um caso particular, o serviço de nefrologia se utiliza do método para indicação/contraindicação de biópsia renal, com base nos achados de tamanho do rim e ecogenicidade cortical relativa ao fígado, por meio de exame realizado pelo próprio nefrologista¹. O centro que dispõe do equipamento pode reduzir drasticamente o tempo de espera pelo exame. Segundo Asif, 2003, esse tempo pode ser de apenas 4,7 dias em oposição a 46,5 dias, quando depende do encaminhamento do paciente para um serviço de radiologia².

Pelo exposto, fica justificado o entusiasmo com que saudamos o artigo publicado neste número do Brazilian Journal of Nephrology, em que Bastos et al. apresentam o resultado de um levantamento envolvendo cinco departamentos de Medicina de quatro diferentes estados da federação³. Para esse levantamento, dirigido a nefrologistas, foram enviados 3.500 e-mails, que resultaram em 517 respostas, perfazendo 15% da amostra inicial. Entre os dados positivos mais relevantes, podem ser citados o percentual de 78% das instituições públicas ou privadas que dispõem do equipamento de ultrassonografia e a possibilidade de utilização pelo nefrologista em 72% dos casos. Por outro lado, 64% dos participantes não utilizaram o método durante a formação em nefrologia, na grande maioria dos casos (70%), pela falta de um membro do “staff” com experiência em ultrassonografia. No entanto, 95% declararam interesse no aprendizado da técnica. Apesar do elevado percentual de interessados entre os que efetivamente participaram, não se pode deixar de ressaltar que esse número revela, provavelmente, um viés de seleção, como bem destacado pelos autores. Se levarmos em conta que, em 85% dos casos, os nefrologistas nem sequer se interessaram em participar, é muito improvável que a grande maioria dos que receberam o questionário tenha interesse no aprendizado, principalmente sabendo-se que os questionários foram enviados repetidamente em cinco ocasiões diferentes.

Entre as dificuldades levantadas pelos participantes, a falta de tempo para aprender (23%) só foi suplantada pelo custo do equipamento (26%). No entanto, muitos nefrologistas estão desinformados sobre esse assunto. De acordo com a American Society of Diagnostic and Interventional Nephrology, a certificação de nefrologistas para realizar e interpretar o exame de ultrassonografia dos rins e da bexiga requer um período de apenas seis semanas devotado ao treinamento⁴.

No artigo, os autores referem-se à ultrassonografia e ao ultrassom como sinônimos, quando, sabidamente, o primeiro refere-se ao método de obtenção da imagem; e o segundo, ao princípio físico utilizado. Apesar da utilização intercambiável das duas palavras nas conversas do dia a dia, em um artigo científico, a diferenciação deve ser mantida. Também seria melhor deixar bem claro, para o leitor menos afeito ao tema, que a expressão ultrassonografia “point-of-care” é o exame de ultrassonografia realizado à beira do leito. Soube do caso de um colega que pensava que a ultrassonografia “point-of-care” incorporava algum tipo de princípio físico particular que tornava o exame distinto, com melhor resolução de imagem. Na verdade, o termo foi tomado de empréstimo, por assim dizer, de “point-of-care”, utilizado para se referir aos avanços no método de determinação da glicose, na década de 1970, que possibilitou a dosagem à beira do leito⁵.

A análise dos dados compilados revelou que as situações mais comuns de utilização do método ficaram por conta dos procedimentos clássicos em nefrologia: o acesso vascular central (68%), a biópsia renal (58%) e a avaliação renal (50%). Talvez por não terem sido questionados diretamente sobre o tema, nenhum dos participantes fez referência à utilização da ultrassonografia na avaliação do rim transplantado, uma lacuna importante, quando se sabe que a ultrassonografia é o exame de imagem de primeira linha no pós-operatório imediato do paciente submetido ao transplante renal⁶.

Para além dos resultados e das conclusões obtidos pelos autores, vale salientar a contribuição desse levantamento para o despertar de empreendimentos voltados para estimular o interesse dos médicos recém-formados, pela especialidade de nefrologia. A inclusão da técnica, na grade curricular dos programas de residência médica, como parte integrante da formação do nefrologista, pode contribuir, sem dúvida, para reduzir a escassez de interessados na especialidade, um fenômeno que tem sido detectado pelas Sociedades de Nefrologia de outros países^7-9. A ultrassonografia, com todas as virtudes inerentes ao método, pode funcionar como o fator a suplantar o “lack of inspirational role model” referido por Glassock, 2017⁷. No entanto, isso requer uma ação muito bem-coordenada, que, a meu ver, deveria ser capitaneada pela Sociedade Brasileira de Nefrologia, com o intuito de reverter o desinteresse aparente dos 85% que não responderam ao questionário. Os serviços que já dispõem de uma estrutura bem-montada nesse sentido poderiam servir como centros de difusão da ideia. Em função do interesse pelo tema, tomando-se por base o levantamento apresentado, os quatro centros responsáveis pelo manuscrito se apresentam na linha de frente, como bem apropriados para o cumprimento desse papel.

References

• ¹
  Araújo NC, Rebelo MAP, Rioja LS, Suassuna JHR. Sonographically determined kidney measurements are better able to predict histological changes and a low CKD-EPI eGFR when weighted towards cortical echogenicity. BMC Nephrol. 2020 Apr;21(1):123.
• ²
  Asif A. Interventional nephrology: a call to action. Int J Artif Organs. 2003 Jun;26(6):447-51.
• ³
  Bastos MG, Vieira AL, Nascimento MM, Barros E, Kirsztajn GM. Ultrassonografia "point-of-care" em nefrologia: uma pesquisa nacional transversal entre nefrologistas brasileiros. Braz J Nephrol. 2020 Oct 05; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0023
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0023
• ⁴
  American Society of Diagnostic and Interventional Nephrology (ASDIN). Homepage [Internet]. Clinton, MS: ASDIN; 2019. Available from: www.asdin.org
  » www.asdin.org
• ⁵
  Mendosa D. History of blood glucose meters: transcripts of interviews. Mendosa.com [Internet]. 2006 Feb. Available from: http://www.mendosa.com/history.htm
  » http://www.mendosa.com/history.htm
• ⁶
  Kolofousi C, Stefanidis K, Cokkinos DD, Karakitsos D, Antypa E, Piperopoulos P. Ultrasonographic features of kidney transplants and their complications: an imaging review. ISRN Radiol. 2012;2013:480862.
• ⁷
  Glassock R. A future for nephrology?. Braz J Nephrol. 2017 Dec;39(4):486-90.
• ⁸
  Obregón JMV, Anjos MF. O nefrologista entre o poder e a vulnerabilidade em tempos tecnológicos. Braz J Nephrol. 2018;40(4):403-9.
• ⁹
  Herrera-Anazco P, Mezones-Holguin E, Hernandez AV. Nefrologia: uma especialidade pouco atrativa para os médicos peruanos? J Bras Nefrol. 2014 Mar;36(1):102-3.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Fev 2021
• Data do Fascículo
  Jan-Mar 2021

Histórico

• Recebido
  09 Dez 2020
• Aceito
  10 Dez 2020