A doença renovascular aterosclerótica (DRVA) pode se apresentar de forma assintomática, como um achado incidental de estenose da artéria renal (>50% de redução luminal). No entanto, suas manifestações clínicas mais graves — como hipertensão renovascular, nefropatia isquêmica e descompensação de doenças cardiovasculares (incluindo insuficiência cardíaca e acidente vascular cerebral) — demandam maior atenção. Trata-se de uma condição vascular altamente prevalente, especialmente entre idosos, acometendo cerca de 6,8% da população acima de 65 anos1.
A DRVA é frequentemente associada a outras comorbidades — como hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, doença renal crônica, doença arterial periférica, doença arterial coronariana e insuficiência cardíaca — e apresenta prognóstico desfavorável. Entre idosos com DRVA, de acordo com dados do Medicare (EUA), as taxas anuais de acidente vascular cerebral, síndrome coronariana aguda, insuficiência cardíaca e mortalidade foram de 18%, 30%, 19% e 17%, respectivamente2. No estudo CORAL (Stenting and Medical Therapy for Atherosclerotic Renal-Artery Stenosis), após um seguimento médio de 43 meses, 35,4% dos pacientes atingiram o desfecho primário. Entre os desfechos secundários, observaram-se: infarto agudo do miocárdio em 8,3%, acidente vascular cerebral em 4,2%, progressão da doença renal crônica em 17,8%, internação por insuficiência cardíaca em 8,4% e mortalidade geral em 14,9%3. A DRVA, portanto, deve ser compreendida no contexto da doença aterosclerótica sistêmica.
Com o objetivo de avaliar a sobrevida global e livre de eventos cardiovasculares em 1, 5 e 10 anos, Vassalo et al. desenvolveram um escore prognóstico a partir de uma coorte de 872 pacientes com DRVA, acompanhados entre 1986 e 2014. O modelo contemplou as seguintes variáveis: idade, taxa de filtração glomerular estimada (TFGe), histórico de revascularização renal, infarto agudo do miocárdio, presença de insuficiência cardíaca e doença arterial obstrutiva periférica4. Como grande parte dos pacientes foi incluída em uma era pré-estatinas (considerando que a lovastatina foi lançada nos EUA em 1987), o impacto dessas medicações não foi considerado na modelagem.
No estudo publicado nesta edição do Brazilian Journal of Nephrology, Salome et al. contribuem ao aplicar o escore de Vassalo em uma coorte contemporânea de 103 pacientes com DRVA acompanhados por mais de 12 anos5. A principal constatação foi uma discrepância marcante entre a sobrevida observada e predita no subgrupo de pacientes em uso de estatina. Esses indivíduos apresentaram sobrevida significativamente superior à estimada pelo modelo, com diferenças de 9% no primeiro ano (0,95 vs. 0,87), 95% em 5 anos (0,88 vs. 0,45) e 380% em 10 anos (0,72 vs. 0,15). Por outro lado, entre os que não utilizavam estatinas, as curvas de sobrevida observada e esperada foram bastante semelhantes.
O grupo em uso de estatinas apresentou maior prevalência de dislipidemia, doença arterial coronariana e uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) ou bloqueadores do receptor de angiotensina (BRA). Além disso, a TFGe inicial média era superior nesse grupo (42 vs. 33,6 mL/min/1,73m2). Embora essa diferença não tenha atingido significância estatística, é plausível que tenha contribuído para os melhores desfechos, considerando que tanto a TFGe reduzida quanto seu declínio ao longo do tempo estão associados a maior risco cardiovascular e à mortalidade6,7. Assim, a TFGe inicial pode ter atuado como importante fator de confusão nos resultados. Outro aspecto relevante a ser considerado foi a diferença temporal, como bem apontado pelos autores, entre a coorte original utilizada no escore de Vassalo (década de 1980) e a coorte mais contemporânea, iniciada na década de 1990, em que estatinas, IECAs e betabloqueadores já eram amplamente utilizados.
Nos últimos anos, diretrizes internacionais, como as do Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) e da European Renal Association, passaram a recomendar o uso de estatinas na DRVA, com o objetivo de reduzir tanto a progressão da estenose aterosclerótica quanto o risco cardiovascular8,9. Em uma coorte canadense com 4.040 idosos com DRVA, o uso de estatinas foi associado a uma redução de 49% no risco de eventos cardiorrenais (HR 0,51; IC 95%: 0,46–0,57).
Além das estatinas, o tratamento da DRVA deve incluir o controle rigoroso da pressão arterial (preferencialmente com IECA/BRA), o controle glicêmico, a cessação do tabagismo e o uso de aspirina em baixa dose. A revascularização por angioplastia transluminal percutânea, com ou sem stent, permanece controversa. No entanto, pacientes com hipertensão resistente, insuficiência cardíaca, episódios de edema agudo de pulmão ou deterioração rápida da função renal podem se beneficiar desse procedimento. Estenoses >70% e achados ultrassonográficos, como rim >8 cm, córtex >0,5 cm e índice de resistência >0,8 também são preditores de boa resposta à revascularização.
Em síntese, as estatinas são fármacos com sólida evidência na prevenção de eventos cardiovasculares, e seu papel na DRVA deve ser amplamente reconhecido. O estudo de Salome et al.5 demonstrou que modelos prognósticos que não consideram o uso dessas medicações podem subestimar a sobrevida dos pacientes. Assim, os elementos discutidos reforçam a importância de revisitar e atualizar escores prognósticos à luz das transformações clínicas e terapêuticas que ocorrem ao longo do tempo. A incorporação desses fatores, bem como os achados reportados por Salome et al.5, na avaliação prognóstica de pacientes com DRVA, reforçam essa necessidade.
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Editado por
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Responsabilidade Editorial
Editor-chefe: Miguel Carlos Riella https://orcid.org/0000-0003-4181-613X.Editor Associado: Thyago Proença de Moraes https://orcid.org/0000-0002-2983-3968.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Out 2025 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2025
Histórico
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Recebido
05 Ago 2025 -
Aceito
08 Ago 2025
