Acessibilidade / Reportar erro

Oligúria perioperatória: resposta fisiológica adequada ou risco para a injúria renal aguda?

A injúria renal aguda (IRA) é uma complicação grave no contexto cirúrgico, associando-se à elevação de custos11 Hobson C, Ozrazgat-Baslanti T, Kuxhausen A, Thottakkara P, Efron PA, Moore FA, et al. Cost and Mortabltality Associated With Postoperative Acute Kidney Injury. Ann Surg. 2015;261(6):1207-14. e a desfechos clínicos adversos, em curto e longo prazos22 Cho E, Kim SC, Kim MG, Jo SK, Cho WY, Kim HK. The incidence and risk factors of acute kidney injury after hepatobiliary surgery: a prospective observational study. BMC Nephrol. 2014;15:169.,33 Ryden L, Sartipy U, Evans M, Holzmann MJ. Acute kidney injury after coronary artery bypass grafting and long-term risk of end-stage renal disease. Circulation. 2014;130(23):2005-11.. Ademais, sua etiologia multifacetada e fisiopatologia complexa desafia a adoção de medidas preventivas universais44 Gumbert SD, Kork F, Jackson ML, Vanga N, Ghebremichael SJ, Wang CY, et al. Perioperative Acute Kidney Injury. Anesthesiology. 2020;132(1):180-204.. A identificação de fatores de riscos específicos para a IRA perioperatória é essencial para o desenvolvimento de estratégias adequadas de prevenção e tratamento. Alguns fatores, como idade, raça, obesidade e doenças preexistentes, não são modificáveis. Outros, como tempo cirúrgico prolongado, manipulação de grandes vasos, instabilidade hemodinâmica e exposição a drogas nefrotóxicas, dependem da atuação médica44 Gumbert SD, Kork F, Jackson ML, Vanga N, Ghebremichael SJ, Wang CY, et al. Perioperative Acute Kidney Injury. Anesthesiology. 2020;132(1):180-204.,55 Ostermann M, Cennamo A, Meersch M, Kunst G. A narrative review of the impact of surgery and anaesthesia on acute kidney injury. Anaesthesia. 2020;75 Suppl 1:e121-e33..

Modernamente, o diagnóstico da IRA baseia-se em dois critérios funcionais: creatinina sérica e diurese. Embora sejam a base dos sistemas correntes de estratificação de gravidade da IRA, como RIFLE, AKIN e KDIGO, as duas variáveis carecem de precisão no período perioperatório44 Gumbert SD, Kork F, Jackson ML, Vanga N, Ghebremichael SJ, Wang CY, et al. Perioperative Acute Kidney Injury. Anesthesiology. 2020;132(1):180-204.. A elevação da creatinina sérica é tardia, tende a ser minimizada pela reposição volêmica e pela redução da sua produção após cirurgias de grande porte ou doença crítica. Já a diurese sofre com a pouca confiabilidade das técnicas de monitoração, não tem especificidade etiológica, é afetada pelo emprego de diuréticos no tempo anestésico e, principalmente, confunde-se com respostas fisiológicas que influenciam o débito urinário.

Quase toda cirurgia de grande porte é realizada sob um estado antidiurético fisiológico devido ao necessário jejum pré-anestésico, que é agravado pelo emprego de agentes narcóticos e anestésicos e pela manipulação de vísceras e do peritônio66 Melville RJ, Forsling ML, Frizis HI, LeQuesne LP. Stimulus for vasopressin release during elective intra-abdominal operations. Br J Surg. 1985;72(12):979-82.. Ocorre ainda vasoconstrição reflexa mediada por respostas neuroendócrinas, trauma cirúrgico, perda de sangue e perdas insensíveis de líquidos inerentes aos procedimentos e da ventilação mecânica.

Influências hemodinâmicas adicionais, que podem incluir vasodilatação e depressão miocárdica, são determinadas pela anestesia, principalmente quando se empregam agentes voláteis. Dessa forma, para manutenção da perfusão do rim e dos outros órgãos, o ato anestésico exige a reposição de soluções cristaloides ou coloides e, ocasionalmente, o uso de vasoconstritores. Desse delicado reequilíbrio participam ainda mecanismos intrínsecos de autorregulação do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular, além dos sistemas nervoso simpático e renina-angiotensina-aldosterona e o hormônio antidiurético. Não é incomum que a restauração do equilíbrio volêmico resulte em redução fisiológica transitória do débito urinário. Outro ponto relevante é a associação de balanço hídrico perioperatório positivo com risco de complicações77 Voldby AW, Brandstrup B. Fluid therapy in the perioperative setting-a clinical review. J Intensive Care. 2016;4:27., o que tem se traduzido por estratégias mais restritivas de reposição de volume durante a anestesia e menor diurese ao longo da cirurgia.

Depreende-se, portanto, que, no cenário perioperatório, a diminuição do débito urinário como critério de IRA não tem especificidade, sendo demonstrada sua falta de associação com desfechos desfavoráveis, incluindo desenvolvimento de IRA, tempo de internação e mortalidade88 Alpert RA, Roizen MF, Hamilton WK, Stoney RJ, Ehrenfeld WK, Poler SM, et al. Intraoperative urinary output does not predict postoperative renal function in patients undergoing abdominal aortic revascularization. Surgery. 1984;95(6):707-11.,99 Knos GB, Berry AJ, Isaacson IJ, Weitz FI. Intraoperative urinary output and postoperative blood urea nitrogen and creatinine levels in patients undergoing aortic reconstructive surgery. J Clin Anesth. 1989;1(3):181-5., embora essa não seja uma observação universal1010 Mizota T, Yamamoto Y, Hamada M, Matsukawa S, Shimizu S, Kai S. Intraoperative oliguria predicts acute kidney injury after major abdominal surgery. Br J Anaesth. 2017;119(6):1127-34.,1111 Shiba A, Uchino S, Fujii T, Takinami M, Uezono S. Association Between Intraoperative Oliguria and Acute Kidney Injury After Major Noncardiac Surgery. Anesth Analg. 2018;127(5):1229-35..

Esse número do BJN traz o trabalho "Intraoperative oliguria does not predict postoperative acute kidney injury in major abdominal surgery: a cohort analysis"1212 Inácio R, Gameiro J, Amaro S, Duarte M. Intraoperative oliguria does not predict postoperative acute kidney injury in major abdominal surgery: a cohort analysis. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 2020. Ahed of Print. https://www.scielo.br/pdf/jbn/2020nahead/2175-8239-jbn-2019-0244.pdf
https://www.scielo.br/pdf/jbn/2020nahead...
, de Inácio e colaboradores. Em uma série com 165 pacientes submetidos a cirurgia eletiva abdominal de grande porte, os autores definiram a oligúria perioperatória como diurese inferior a 0,5 mL/k/h, o que ocorreu em apenas 20 pacientes. O número reduzido de participantes e, principalmente, dos casos com o desfecho sob análise, subtraiu o poder estatístico do estudo. Ainda assim, mais uma vez, não se observou associação entre oligúria transoperatória e o desenvolvimento de IRA definida pelo sistema KDIGO e nem impacto sobre o tempo de hospitalização e sobre a mortalidade.

A mensagem que fica é que, talvez, o critério "débito urinário" dos atuais sistemas de estratificação de gravidade da IRA não seja um instrumento adequado no centro cirúrgico. Em uma proporção de pacientes, a oligúria perioperatória pode ser apenas a expressão da resposta fisiológica ao trauma, à exposição aos agentes anestésicos e às perdas de líquido que ocorrem antes e durante o procedimento. Somando-se à possibilidade de que a ressuscitação volêmica excessiva seja deletéria, não parece ser interessante utilizar a diurese transoperatória como marcador perfusional isolado, visto seu limitado impacto. No cenário atual, em que cirurgias cada vez mais complexas são realizadas em pacientes cada vez mais frágeis, a compreensão da fisiologia renal durante o ato cirúrgico/anestésico, a adequação da reposição volêmica, de preferência guiada por parâmetros dinâmicos1313 Rocha PN, de Menezes JA, Suassuna JH. Hemodynamic assessment in the critically ill patient. J Bras Nefrol. 2010;32(2):201-12., e o cuidado atento ao longo do estresse cirúrgico, e após ele, são armas muito mais poderosas do que qualquer parâmetro isolado para minimizar o risco de IRA pós-operatória.

References

  • 1
    Hobson C, Ozrazgat-Baslanti T, Kuxhausen A, Thottakkara P, Efron PA, Moore FA, et al. Cost and Mortabltality Associated With Postoperative Acute Kidney Injury. Ann Surg. 2015;261(6):1207-14.
  • 2
    Cho E, Kim SC, Kim MG, Jo SK, Cho WY, Kim HK. The incidence and risk factors of acute kidney injury after hepatobiliary surgery: a prospective observational study. BMC Nephrol. 2014;15:169.
  • 3
    Ryden L, Sartipy U, Evans M, Holzmann MJ. Acute kidney injury after coronary artery bypass grafting and long-term risk of end-stage renal disease. Circulation. 2014;130(23):2005-11.
  • 4
    Gumbert SD, Kork F, Jackson ML, Vanga N, Ghebremichael SJ, Wang CY, et al. Perioperative Acute Kidney Injury. Anesthesiology. 2020;132(1):180-204.
  • 5
    Ostermann M, Cennamo A, Meersch M, Kunst G. A narrative review of the impact of surgery and anaesthesia on acute kidney injury. Anaesthesia. 2020;75 Suppl 1:e121-e33.
  • 6
    Melville RJ, Forsling ML, Frizis HI, LeQuesne LP. Stimulus for vasopressin release during elective intra-abdominal operations. Br J Surg. 1985;72(12):979-82.
  • 7
    Voldby AW, Brandstrup B. Fluid therapy in the perioperative setting-a clinical review. J Intensive Care. 2016;4:27.
  • 8
    Alpert RA, Roizen MF, Hamilton WK, Stoney RJ, Ehrenfeld WK, Poler SM, et al. Intraoperative urinary output does not predict postoperative renal function in patients undergoing abdominal aortic revascularization. Surgery. 1984;95(6):707-11.
  • 9
    Knos GB, Berry AJ, Isaacson IJ, Weitz FI. Intraoperative urinary output and postoperative blood urea nitrogen and creatinine levels in patients undergoing aortic reconstructive surgery. J Clin Anesth. 1989;1(3):181-5.
  • 10
    Mizota T, Yamamoto Y, Hamada M, Matsukawa S, Shimizu S, Kai S. Intraoperative oliguria predicts acute kidney injury after major abdominal surgery. Br J Anaesth. 2017;119(6):1127-34.
  • 11
    Shiba A, Uchino S, Fujii T, Takinami M, Uezono S. Association Between Intraoperative Oliguria and Acute Kidney Injury After Major Noncardiac Surgery. Anesth Analg. 2018;127(5):1229-35.
  • 12
    Inácio R, Gameiro J, Amaro S, Duarte M. Intraoperative oliguria does not predict postoperative acute kidney injury in major abdominal surgery: a cohort analysis. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 2020. Ahed of Print. https://www.scielo.br/pdf/jbn/2020nahead/2175-8239-jbn-2019-0244.pdf
    » https://www.scielo.br/pdf/jbn/2020nahead/2175-8239-jbn-2019-0244.pdf
  • 13
    Rocha PN, de Menezes JA, Suassuna JH. Hemodynamic assessment in the critically ill patient. J Bras Nefrol. 2010;32(2):201-12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2020
  • Aceito
    24 Set 2020
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com