Acessibilidade / Reportar erro

Carcinoma mioepitelial de partes moles: um tumor de baixo grau de malignidade?

RESUMO

O carcinoma mioepitelial é uma neoplasia rara, de manifestação muito heterogênea, que encerra um grande desafio na adoção de critérios prognósticos categóricos, uma vez que, apesar de ser classificado como tumor de baixo grau de malignidade, apresenta comportamentos muito agressivos. Enquanto vários estudos indicam a ressecção cirúrgica completa como o melhor tratamento para carcinoma mioepitelial, terapias adjuvantes têm-se revelado efetivas na prevenção da recidiva. Este estudo descreve o caso de uma paciente que desenvolveu carcinoma mioepitelial em coxa direita, acometendo partes profundas, o qual foi conduzido como indica a literatura atual, contudo, apresentando desfecho desfavorável. As informações disponíveis provêm de poucos estudos, logo, ressaltamos a importância de reunir dados a respeito do tema, que ainda são escassos.

Unitermos:
carcinoma; desdiferenciação celular; mioepitelioma; neoplasias de tecidos moles; metástase neoplásica

ABSTRACT

Myoepithelial carcinoma is a rare neoplasm of very heterogeneous manifestation that represents a major challenge to the adoption of categorical prognostic criteria since, despite being classified as a low-grade cancer, it behaves very aggressively. While several studies have indicated complete surgical resection as the best treatment for myoepithelial carcinoma, adjuvant therapies have proven effective in preventing relapse. This study describes the case of a patient who developed myoepithelial carcinoma in the right thigh, affecting deep tissues, which were conducted as indicated in the current literature, however, presenting an unfavorable outcome. The available information comes from few studies; therefore, we emphasize the importance of gathering data on the subject, which are still scarce.

Key words:
carcinoma; cell dedifferentiation; myoepithelioma; neoplasms of soft tissues; neoplastic metastasis

RESUMEN

El carcinoma mioepitelial es una neoplasia rara, de manifestación muy heterogénea, que encierra un gran desafío para la adopción de criterios pronósticos categóricos, puesto que, a pesar de ser clasificado como tumor de bajo grado de malignidad, muestra comportamientos muy agresivos. Mientras varios estudios indican la resección quirúrgica completa como el mejor tratamiento para el carcinoma mioepitelial, terapias adyuvantes se han revelado efectivas para prevenir la recidiva. Este estudio describe el caso de una mujer que presentó carcinoma mioepitelial en muslo derecho, afectando partes profundas, lo cual fue conducido como indica la literatura actual, sin embargo, con un resultado desfavorable. Las informaciones disponibles son producto de pocos estudios, por ello, destacamos la importancia de reunir datos acerca del tema, que aún son escasos.

Palabras clave:
carcinoma; desdiferenciación celular; mioepitelioma; neoplasias de los tejidos blandos; metástasis de la neoplasia

INTRODUÇÃO

Carcinoma mioepitelial, ou mioepitelioma maligno, é um tumor raro, de baixo grau, composto por células basais especializadas, com apresentação em glândulas salivares, epitélio do trato respiratório, mamas e glândulas sudoríparas. Não tem predileção por sexo; em relação à faixa etária, ainda existem divergências na literatura quanto a sua predominância11 Rastrelli M, Fiore PD, Damiani GB, et al. Myoepithelioma of the soft tissue: a systematic review of clinical reports. Eur J Surg Oncol. 2019; 45(9): 1520-6.. Entretanto, sabe-se que frequentemente ocorre malignização na população pediátrica22 Hornick JL, Fletcher CD. Myoepithelial tumors of soft tissue a clinicopathologic and immunohistochemical study of 101 cases with evaluation of prognostic parameters. Am J Surg Pathol. 2003; 27(9): 1183-96.. Morfológica e imunofenotipicamente, esses tumores são similares aos seus correspondentes das glândulas salivares e podem se diferenciar bilateralmente, possuindo tanto características epiteliais quanto miogênicas. Eles foram caracterizados pela primeira vez em 1997 por Kilpatrick et al., em um estudo de caso33 Jo VY, Fletcher CDM. Myoepithelial neoplasms of soft tissue: an updated review of the clinicopathologic, immunophenotypic, and genetic features. Head Neck Pathol. 2015; 9(1): 32-38..

Mais de 90% dos carcinomas mioepiteliais ocorrem nas glândulas salivares44 Silvers A, Som B, Brandwein M. Epithelial-myoepithelial carcinoma of the parotid gland. Am J Neuroradiol. 1996; 17: 560-62. e correspondem a menos de 1% de todos os tumores de glândulas salivares. Carcinomas mioepiteliais de tecidos moles são extremamente raros, e 75% dos casos afetam os membros, principalmente os membros inferiores55 Fletcher CDM, Bridge JA, Hogendoorn PCW, Mertens F, editors. WHO classification of tumours of soft tissue and bone. Pathology and genetics of tumours of soft tissue and bone. 4 ed. Lyon: IARC Press; 2013..

No presente estudo, descrevemos o caso clínico de uma paciente que desenvolveu carcinoma mioepitelial em coxa direita, acometendo partes profundas, e revisamos a literatura para avaliar as condutas tomadas em relação ao desfecho do caso, realçando o potencial de malignidade desse tumor e a importância de reunir dados a respeito do tema, que ainda são escassos33 Jo VY, Fletcher CDM. Myoepithelial neoplasms of soft tissue: an updated review of the clinicopathologic, immunophenotypic, and genetic features. Head Neck Pathol. 2015; 9(1): 32-38..

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 36 anos, negra, sem histórico de tabagismo ou alcoolismo, apresenta tumoração no terço médio da face lateral da coxa direita. Refere que a massa palpável de aspecto firme, imóvel e indolor surgiu em 2009 e teve crescimento progressivo até atingir 5 cm de diâmetro, em 2016. Neste mesmo ano, o primeiro procedimento cirúrgico para exérese completa da lesão foi realizado. O resultado da imuno-histoquímica (Tabela 1) levou-nos a concluir que a lesão era uma neoplasia multilobular pouco circunscrita e com focos de esclerose estromal, cursando com mioepitelioma, sem critérios de malignidade. Porém, suas características de padrão multilobular infiltrativo e focos de celularidade significantes poderiam estar relacionadas com um maior potencial de recidiva, bem como com desdiferenciação, sendo necessário estreito acompanhamento clínico.

Tabela 1
Resultado do exame imuno-histoquímico da lesão em partes moles (coxa direita)

Em 2017, após cerca de oito anos de evolução, a paciente relata recidiva da tumoração no mesmo local, porém, agora com dor. Em abril de 2019, afirma presença de “sangue vivo” na boca, em momentos aleatórios do dia, sem ocorrência de tosse ou vômitos, além de sensação de queimação retroesternal, de intensidade 9/10, sem irradiações, com piora à movimentação e melhora ao decúbito dorsal, sem relação com funções orgânicas. Após esses sintomas, procurou serviço médico na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde foi encaminhada para o Hospital Geral Público de Palmas (HGPP). Realizou radiografia (Rx) e tomografia computadorizada (TC) do tórax; tais exames apresentaram múltiplos nódulos com atenuação de partes moles randomicamente distribuídos por ambos os pulmões, o maior medindo 1,8 cm.

Após 10 dias dos exames de imagem, foi realizada uma cirurgia para remoção dos tumores de um dos pulmões. O exame imuno- -histoquímico apresentou neoplasia mesenquimal com evidências de diferenciação mioepitelial em parênquima pulmonar, com as características descritas na Tabela 2.

Tabela 2
Resultado do exame de imuno-histoquímica da lesão em pulmão

Os aspectos encontrados na biópsia das nodulações pulmonares apresentaram-se semelhantes aos encontrados no exame prévio de coxa direita; trata-se da mesma neoplasia. Portanto, a atual amostra (pulmonar) corresponderia à neoplasia metastática a partir da lesão anterior de 2016 da coxa direita. Na amostra anterior, havia coexpressão de proteína S100 e antígenos miogênicos, caracterizando diferenciação mioepitelial. Na amostra recente, não havia expressão de antígenos miogênicos possivelmente devido ao processo de desdiferenciação a partir da neoplasia primária.

A neoplasia foi melhor classificada como mioepitelioma maligno (carcinoma mioepitelial de partes moles) metastático para pulmão. No dia 22 de julho de 2019, a paciente iniciou tratamento de quimioterapia no HGPP (Figuras 1 e 2).

FIGURA 1
Imagem microscópica (100×) de metástase para o pulmão, notando-se lago de mucina

FIGURA 2
Imagem microscópica (400×) de metástase para o pulmão, com detalhe citológico da neoplasia, contendo mitoses (seta)

DISCUSSÃO

O carcinoma mioepitelial é uma neoplasia rara e de manifestação bastante heterogênea, e os dados disponíveis atualmente são insuficientes para a compreensão holística dessa doença. A adoção de critérios prognósticos categóricos é um dos desafios mais importantes na sua investigação e, considerando o comportamento altamente agressivo do carcinoma mioepitelial, é muito importante estabelecer um diagnóstico o mais rápido possível. Características patológicas como áreas mixoides e citopleomorfismo ou análise imuno-histoquímica seriam ferramentas muito úteis para obtenção de um diagnóstico preciso66 Yokoshe C, Yokoshe C, Asai J, et al. Myoepithelial carcinoma on the right shoulder: case report with published work review. J Dermatol. 2016; 43(9): 1083-7..

Alguns estudos relatam a faixa etária média de 38 anos no momento do diagnóstico e o pico de incidência, que ocorre entre a terceira e a quinta décadas de vida, e ainda mostram que a taxa de acometimento é igual para sexo masculino e feminino22 Hornick JL, Fletcher CD. Myoepithelial tumors of soft tissue a clinicopathologic and immunohistochemical study of 101 cases with evaluation of prognostic parameters. Am J Surg Pathol. 2003; 27(9): 1183-96.. A duração média dos sintomas, assim como a deste estudo, é, em média, de 4 anos, mas com ampla margem de duração (duas semanas a 20 anos). Hornick et al. (2003)22 Hornick JL, Fletcher CD. Myoepithelial tumors of soft tissue a clinicopathologic and immunohistochemical study of 101 cases with evaluation of prognostic parameters. Am J Surg Pathol. 2003; 27(9): 1183-96. ainda relatam que os principais sinais e sintomas são: massa indolor ou dolorosa, dor sem presença de massa, edema e parestesias; eles também verificaram que tumores malignos eram significativamente maiores que os benignos, entretanto, não há dados que amparem fortemente essa situação com um critério prognóstico.

Quanto ao aspecto microscópico, acredita-se que o carcinoma mioepitelial se apresente bem circunscrito ou cercado por uma pseudocápsula fibrosa. Pode manifestar infiltração focal; em alguns casos, não é possível avaliar adequadamente as bordas do tumor. Com frequência, a arquitetura é lobulada ou multinodular, e a maioria apresenta um padrão de crescimento predominantemente reticular, com cordões que se cruzam de células epitelioides, ovoides ou fusiformes, separadas por condromixoide ou estroma colágeno55 Fletcher CDM, Bridge JA, Hogendoorn PCW, Mertens F, editors. WHO classification of tumours of soft tissue and bone. Pathology and genetics of tumours of soft tissue and bone. 4 ed. Lyon: IARC Press; 2013..

O estudo de Hornick et al. (2003)22 Hornick JL, Fletcher CD. Myoepithelial tumors of soft tissue a clinicopathologic and immunohistochemical study of 101 cases with evaluation of prognostic parameters. Am J Surg Pathol. 2003; 27(9): 1183-96. utilizou esses elementos citológicos para classificar os tumores quanto à malignidade: tumores benignos apresentaram pouca atipia, com núcleo pequeno e elementos mais uniformes, com pouca variação de tamanho entre as células; padrão de atipia moderada e com cromatina vesicular ou grossa, nucléolo proeminente, geralmente grande ou pleomorfismo nuclear, determinam os tumores malignos. Uma vez classificado como mioepitelioma de partes moles de alto grau, sua malignidade é conhecida e o tumor deve ser tratado como tal.

A análise microscópica deste caso clínico revelou, em lesão primária, uma estrutura multilobular pouco circunscrita, com focos de esclerose estromal e baixa celularidade de tipo epitelioides em arranjo linear e reticular em estroma mixoide, achados consistentes com mioepitelioma. Embora os critérios de malignidade não tenham sido verificados inicialmente, o padrão multilobular infiltrativo com focos de celularidades significantes revelou maior potencial de recidiva local, incluindo desdiferenciação. Dessa forma, seguimento rigoroso e monitorização evolutiva com pesquisa clínica de eventual neoplasia residual foram indicados, visando à exérese completa da lesão.

Quanto aos achados imuno-histoquímicos, mais de 90% dos mioepiteliomas expressam queratinas de largo espectro, proteína S100 e calponina, além de outros marcadores que direcionam a análise. Os achados do presente estudo foram, igualmente, consistentes com mioepiteliomas, apresentando imunoexpressão focal de S100, caldesmon, HHF-35 e SOX-10 e baixo índice proliferativo de Ki-67.

A maioria dos pacientes com achados de lesão de alto grau são submetidos à excisão completa, cujo objetivo é a cura; no entanto, o estabelecimento da malignidade é complexo em mioepiteliomas que não apresentam atipia, e muitos carcinomas mioepiteliais de baixo grau têm comportamentos muito agressivos22 Hornick JL, Fletcher CD. Myoepithelial tumors of soft tissue a clinicopathologic and immunohistochemical study of 101 cases with evaluation of prognostic parameters. Am J Surg Pathol. 2003; 27(9): 1183-96.. Apesar de muitos autores descreverem a ressecção cirúrgica completa como único e melhor tratamento para carcinoma mioepitelial, a radioterapia adjuvante pode ser efetiva na prevenção da recidiva77 Canon J, Alexander C, Kader H. Am J Clin Oncol. 2017; 40(3): 318-22..

Devido à alta propensão dessa recidiva local, além de possível metastatização, o seguimento desses pacientes é imprescindível e um longo período de vigilância é necessário, mesmo em tumores em estágios clinicamente precoces e submetidos à ressecção cirúrgica completa com margens negativas88 Fonte D, Águas LN, Alves L, Sotto-Mayor C, Pinto G. Carcinoma epitelial-mioepitelial da parótida: um tumor de baixo grau de malignidade? Acta Med Portuguesa. 2011; 24: 675-80.. No que se refere ao nosso estudo, apesar da exérese da lesão realizada no primeiro momento, houve recidiva após um ano; em três anos, verificou-se neoplasia em parênquima pulmonar correspondente à lesão metastática da lesão anterior.

Atualmente, embora seja atribuído um baixo grau de malignidade ao mioepitelioma, as informações disponíveis na literatura sugerem um mau prognóstico a longo prazo para pacientes com lesão maligna. Dessa forma, fica evidente o potencial maligno desse tumor, que apresenta taxa de recorrência de 17% a 50% e taxa de metástases de 8% a 48%11 Rastrelli M, Fiore PD, Damiani GB, et al. Myoepithelioma of the soft tissue: a systematic review of clinical reports. Eur J Surg Oncol. 2019; 45(9): 1520-6.. Os focos de metástases mais comuns incluem pulmão, linfonodos, metástases ósseas e outros tecidos moles55 Fletcher CDM, Bridge JA, Hogendoorn PCW, Mertens F, editors. WHO classification of tumours of soft tissue and bone. Pathology and genetics of tumours of soft tissue and bone. 4 ed. Lyon: IARC Press; 2013..

CONCLUSÃO

Os estudos disponíveis na literatura são escassos, apesar do crescente número e reconhecimento de casos ainda em estágio precoce. Portanto, é fundamental que haja um esforço considerável para coletar informações em um arquivo de dados e unificá-las para uma determinação precisa do prognóstico e o correto seguimento dessa neoplasia.

REFERENCES

  • 1
    Rastrelli M, Fiore PD, Damiani GB, et al. Myoepithelioma of the soft tissue: a systematic review of clinical reports. Eur J Surg Oncol. 2019; 45(9): 1520-6.
  • 2
    Hornick JL, Fletcher CD. Myoepithelial tumors of soft tissue a clinicopathologic and immunohistochemical study of 101 cases with evaluation of prognostic parameters. Am J Surg Pathol. 2003; 27(9): 1183-96.
  • 3
    Jo VY, Fletcher CDM. Myoepithelial neoplasms of soft tissue: an updated review of the clinicopathologic, immunophenotypic, and genetic features. Head Neck Pathol. 2015; 9(1): 32-38.
  • 4
    Silvers A, Som B, Brandwein M. Epithelial-myoepithelial carcinoma of the parotid gland. Am J Neuroradiol. 1996; 17: 560-62.
  • 5
    Fletcher CDM, Bridge JA, Hogendoorn PCW, Mertens F, editors. WHO classification of tumours of soft tissue and bone. Pathology and genetics of tumours of soft tissue and bone. 4 ed. Lyon: IARC Press; 2013.
  • 6
    Yokoshe C, Yokoshe C, Asai J, et al. Myoepithelial carcinoma on the right shoulder: case report with published work review. J Dermatol. 2016; 43(9): 1083-7.
  • 7
    Canon J, Alexander C, Kader H. Am J Clin Oncol. 2017; 40(3): 318-22.
  • 8
    Fonte D, Águas LN, Alves L, Sotto-Mayor C, Pinto G. Carcinoma epitelial-mioepitelial da parótida: um tumor de baixo grau de malignidade? Acta Med Portuguesa. 2011; 24: 675-80.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2020
  • Revisado
    02 Mar 2020
  • Aceito
    02 Mar 2020
  • Publicado
    20 Mar 2021
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica, Rua Dois de Dezembro,78/909 - Catete, CEP: 22220-040v - Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 - 3077-1400 / 3077-1408, Fax.: +55 21 - 2205-3386 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: jbpml@sbpc.org.br