Doença das pequenas vias aéreas: quando a “zona silenciosa” fala

CONTEXTO

As vias aéreas humanas consistem em aproximadamente 23 gerações de tubos que se ramificam dicotomicamente da traqueia até os alvéolos. A partir da geração 8 a jusante, as pequenas vias aéreas (< 2 mm de diâmetro) carecem de suporte cartilaginoso, sendo mais facilmente compressíveis/colapsáveis. Dado o aumento exponencial do número de vias aéreas, há um rápido aumento da área total de seção transversal; portanto, a velocidade do fluxo aéreo diminui, e a resistência das pequenas vias aéreas compreende apenas 10-20% da resistência total das vias aéreas. Segue-se que anormalidades funcionais extensas na chamada “zona silenciosa” podem não ser detectadas por testes de função pulmonar de rotina.¹

VISÃO GERAL

Paciente do sexo masculino, 68 anos, não fumante (índice de massa corporal = 41,2 kg/m²) foi encaminhado para avaliação respiratória por dispneia insidiosa aos esforços e tosse seca. Havia sido submetido a transplante de células-tronco hematopoiéticas há aproximadamente um ano no contexto de leucemia mieloblástica aguda. Não havia evidências clínicas ou laboratoriais de doença do enxerto contra o hospedeiro. A espirometria não revelou obstrução, e o FEF_25-75% estava reduzido em proporção a uma CVF baixa. A pletismografia mostrou uma tendência a baixos volumes pulmonares “estáticos” e alta resistência específica das vias aéreas. Em conjunto, esses resultados foram considerados ambíguos em um indivíduo gravemente obeso² com histórico de lobectomia superior direita por doença congênita. Dada a preocupação com uma bronquiolite obliterante incipiente, ele foi encaminhado para exames mais sensíveis de doença das pequenas vias aéreas (SAD, do inglês small airway disease), cujos resultados foram os seguintes: aumento do slope da fase III e da capacidade de fechamento (lavagem de N₂ em respiração única), aumento da heterogeneidade da ventilação nas vias aéreas acinares em relação às vias aéreas condutoras (lavagem de N₂ em respirações múltiplas) e aumento da diferença entre a resistência a 5 Hz e a 20 Hz (oscilometria de impulso). Como pode ser visto no Quadro 1, esses resultados são consistentes com SAD. Apesar do leve aprisionamento gasoso sem atenuação em mosaico na TC de tórax, a consistência dos achados funcionais levou à terapia imunossupressora. Na consulta de acompanhamento de três meses, constatou-se resolução dos sintomas e melhora uniforme em todos os marcadores funcionais de SAD.

Quadro 1
Técnicas selecionadas para o diagnóstico e quantificação da gravidade da doença das pequenas vias aéreas.

Fundamentos das técnicas	Base lógica para variáveis-chave	Ressalvas e limitações
Espirometria Fluxo de ar anormalmente lento em relação ao volume expiratório forçado sinaliza obstrução das vias aéreas. O ar das vias aéreas maiores proximais é expirado mais cedo e em maior velocidade, enquanto o ar das vias aéreas menores distais é expirado mais tarde e em velocidade mais lenta.	· ⇩ FEF25-75% À medida que o volume pulmonar cai, as pequenas vias aéreas doentes colapsam mais cedo e mais perto do alvéolo. Isso reduz o fluxo expiratório máximo que pode ser alcançado na expiração média a tardia. • ⇩ VEF3/CVF e/ou ⇧ 1 − (VEF3/CVF) Ao considerar os fluxos por um período mais longo, VEF3 inclui uma maior fração das pequenas vias aéreas, estimando-se a proporção crescente de unidades com constantes de tempo mais longas. • ⇩ VEF1/VEF6 e/ou ⇩ VEF3/VEF6 O uso de VEF6 pode reduzir o impacto da variabilidade da CVF nessas relações, • ⇧ diferença CV lenta (CVL)-CVF Na presença de SAD, mais ar é exalado quando há menos compressão das vias aéreas durante a manobra lenta. Isso pode levar a VEF1/CVL baixa apesar de VEF1/CVF preservada.	Os efeitos broncodilatadores da inspiração profunda podem aumentar os volumes expiratórios forçados, mascarando uma broncoconstrição (leve). O FEF25-75%, em particular, é altamente dependente da CVF: alterações na CVF afetarão marcadamente essa parte da curva fluxo-volume. Nenhuma dessas variáveis é específica da SAD; além disso, são a) relativamente insensíveis à doença precoce, b) redundantes à VEF1/CVF na doença mais avançada; e c) dependentes de esforço. Há falta de valores de referência para a VEF1/CVL: essa relação diminui com o envelhecimento mais rapidamente do que a VEF1/CVF, potencialmente superdiagnosticando a obstrução em idosos.
Pletismografia ⇧ alterações na pressão da caixa em relação a variações na pressão da boca (“alveolar”) ao final da expiração corrente sinalizam ⇧ volume pulmonar (CRF): o VR é dado por CRF − VRE. ⇧ alterações na pressão necessária para gerar fluxo indicam ⇧ resistência das vias aéreas em um determinado volume pulmonar (sRaw).	•⇧ VR e/ou ⇧ VR/CPT O VR e a VR/CPT se elevam na presença de fechamento prematuro das vias aéreas e aprisionamento aéreo. A VR/CPT pode ser um marcador mais útil de aprisionamento gasoso, pois a CPT pode estar aumentada na doença pulmonar obstrutiva. • ⇧ sR aw ou ⇩ 1/sR aw (sG aw ) A sRaw e a sGaw podem estar anormais na presença de SAD generalizada. O VEF1 é sensível a alterações que ocorrem a montante do ponto de estrangulamento, enquanto a sRaw é sensível a alterações na resistência em qualquer ponto das vias aéreas. A sRaw pode se alterar sem alteração significativa no VEF1.	O VR não é medido diretamente: erros na CI pré-expiração e/ou na CVL podem levar a um VR falsamente elevado. Relação VR/CPT elevada na presença de CPT preservada pode ser observada em pacientes com fraqueza da musculatura expiratória. A sRaw e a sGaw são muito sensíveis a patologia das vias aéreas centrais, mas menos sensíveis a alterações periféricas (a menos que haja SAD generalizada). Ambas têm amplos limites de normalidade.
Lavagem de N2 em respiração única Após a inalação de O2 a 100%, o N2 exalado é medido a partir da CPT até o VR. Na fase I, o N2 exalado não é detectado (Vdana). Posteriormente, o N2 exalado sobe rapidamente (fase II), seguido de um “platô” alveolar que se eleva lentamente (fase III). Na fase IV, o N2 exalado aumenta quando as unidades mais ventiladas se fecham e as regiões menos ventiladas (menos expostas ao O2; portanto, mais ricas em N2) se esvaziam.	• ⇧ slope da fase III Slope da fase III achatado indica que todas as unidades receberam a mesma quantidade de O2, esvaziando-se simultaneamente. Slope da fase III íngreme indica o esvaziamento sequencial de unidades com diferentes concentrações de N2 em virtude de doença esparsa. • ⇧ volume acima do VR no qual se inicia a fase IV (capacidade de fechamento) Quanto maior a capacidade de fechamento como fração da CV, mais precoce será o fechamento das pequenas vias aéreas dependentes da gravidade. Portanto, quanto maior a capacidade de fechamento, maior a tendência de aprisionamento gasoso.	O gradiente de pressão pleural pode contribuir para diferenças regionais na concentração de N2: diferenças regionais na complacência do espaço aéreo podem criar diferenças no tempo necessário para encher e esvaziar diferentes regiões pulmonares. Alterações em qualquer geração das vias aéreas condutoras podem afetar o slope da fase III. A capacidade de fechamento aumenta com o aumento da pressão intra-abdominal, a idade, a diminuição do fluxo sanguíneo pulmonar e da doença pulmonar parenquimatosa pulmonar associada à baixa complacência.
Lavagem de N2 em respirações múltiplas Após a inalação de O2 a 100%, respirações sequenciais simples são seguidas à medida que o N2 é progressivamente eliminado. Enquanto os slopes da fase III das respirações iniciais são fortemente influenciados pela Sacin, acredita-se que o aumento progressivo dos slopes subsequentes seja influenciado pela Scond.	· ⇧ índice de depuração pulmonar Quanto maiores as trocas pulmonares (equivalentes de CRF) necessárias para remover o gás traçador (N2) para 1/40 da concentração original, menor a eficiência da mistura gasosa em todo o pulmão, ou seja, baixa homogeneidade da ventilação global. • S acin e S cond ⇧ Sacin indica falta de homogeneidade da ventilação distal aos bronquíolos terminais, ou seja, nas pequenas vias aéreas. Como tal, é frequentemente observado em fumantes com VEF1 preservado. Por outro lado, a Scond está mais intimamente relacionada com a sGaw e os fluxos expiratórios forçados, ou seja, a função das vias aéreas maiores.	Há dados conflitantes sobre se a Scond é de fato uma melhor métrica de SAD em comparação com a Sacin em diferentes doenças obstrutivas das vias aéreas, controvérsias técnicas sobre a melhor abordagem para medir o slope da fase III em respirações múltiplas e o efeito variável de diferentes volumes correntes. Existe dependência crítica de uma correspondência temporal precisa entre o sensor de fluxo e o analisador de gases.
Oscilometria de impulso Oscilações do fluxo aéreo são geradas artificialmente por um alto-falante em frequências de 2 Hz a 30 Hz e sobrepostas aos fluxos naturais em volume corrente. A resistência representa a impedância às alterações do fluxo aéreo. Em frequências altas, as oscilações podem ser “bloqueadas” no nível das vias aéreas maiores estreitadas. Em frequências mais baixas, as oscilações podem passar pelas vias aéreas maiores, refletindo a resistência de todo o pulmão. A reatância representa a impedância às alterações de volume.	• ⇧ R 5 − R 20 Como a R5 reflete a resistência de toda a árvore traqueobrônquica, onde a R20 é influenciada principalmente pelo calibre das grandes vias aéreas, a diferença entre elas tem viés para refletir as propriedades funcionais das pequenas vias aéreas. • ⇩ X 5 Como a capacidade dos pulmões de armazenar energia capacitiva é conspícua principalmente nas pequenas vias aéreas, baixa reatância a baixas frequências sinaliza SAD. • ⇧ AX AX é a integração da magnitude da reatância respiratória a baixas frequências entre 5 Hz e a frequência ressonante, ou seja, quando a pressão de insuflação e o recuo elástico se cancelam na transição da distensão passiva para o alongamento ativo. AX está mais relacionada à complacência respiratória e, portanto, à permeabilidade das pequenas vias aéreas. AX está intimamente correlacionada com R5 − R20.	Os resultados variam de acordo com o fabricante. As medidas de oscilometria de impulso são influenciadas por artefatos extratorácicos das vias aéreas superiores (deglutição, fechamento da glote). Elastância ou capacitância referem-se às propriedades de retorno de energia do pulmão, como circuitos elétricos, e não rigidez durante a insuflação (mais intuitivo para os médicos). Portanto, a reatância em frequências mais baixas se alteraria na mesma direção na fibrose, no enfisema ou na SAD, ou seja, se tornaria ainda mais negativa. Consequentemente, a direção da alteração da reatância não diferencia entre doenças obstrutivas e restritivas.

• ⇩: diminuição do(a); VEF₃: volume expiratório forçado no terceiro segundo; ⇧: aumento do(a); VEF₆: volume expiratório forçado no sexto segundo; SAD: small airway disease (doença das pequenas vias aéreas); CRF: capacidade residual funcional; VRE: volume de reserva expiratório; sR_aw: resistência específica das vias aéreas; sG_aw: condutância específica das vias aéreas; CI: capacidade inspiratória; Vd_ana: espaço morto anatômico; S_acin: heterogeneidade da ventilação nas vias aéreas acinares; S_cond: heterogeneidade da ventilação nas vias aéreas condutoras; R₅: resistência a 5 Hz; R₂₀: resistência a 20 Hz; X₅: reatância a 5Hz; e AX: área de reatância.

O diagnóstico de SAD pode ser clinicamente relevante nos estágios iniciais de várias doenças pulmonares obstrutivas, incluindo asma,³ fibrose cística e DPOC. Testes de SAD também podem revelar anormalidades insuspeitas das vias aéreas na sarcoidose e em algumas doenças pulmonares intersticiais, como pneumonite de hipersensibilidade e pneumonia intersticial não específica. A detecção de SAD pode alterar o manejo em doenças do tecido conjuntivo (artrite reumatóide, doença mista, por exemplo), doenças inflamatórias intestinais, transplante de medula óssea e pulmão, transtornos de imunodeficiência comum variável, panbronquiolite difusa e doenças relacionadas a exposições ambientais a poluentes, alérgenos e drogas.⁴ Conforme aqui descrito, a SAD insidiosa pode ser uma complicação tardia do transplante de células-tronco hematopoiéticas, mesmo na ausência de doença do enxerto contra o hospedeiro. O tratamento imediato e agressivo é fundamental para melhorar a sobrevida.⁵

MENSAGEM CLÍNICA

Embora os testes fisiológicos que interrogam a “zona silenciosa” não estejam amplamente disponíveis, eles podem fornecer informações valiosas nos casos em que o diagnóstico e a quantificação da SAD podem ter impacto na decisão clínica. A falta de valores de referência confiáveis e de pontos de corte para anormalidade continua sendo um problema: em muitas circunstâncias, a piora longitudinal - ou a melhora na resposta ao tratamento - é mais útil. Se for possível, a combinação de técnicas (Quadro 1) melhora ainda mais a acurácia diagnóstica.

REFERENCES

• ¹
  Woolcock AJ, Vincent NJ, Macklem PT. Frequency dependence of compliance as a test for obstruction in the small airways. J Clin Invest. 1969;48(6):1097-1106. https://doi.org/10.1172/JCI106066
  » https://doi.org/10.1172/JCI106066
• ²
  Neder JA, Berton DC, O'Donnell DE. Obesity: how pulmonary function tests may let us down. J Bras Pneumol. 2020;46(3):e20200116. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200116
  » https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200116
• ³
  Jackson N, Rafique J, Singh D. Identifying small airway dysfunction in asthma in clinical practice. J Bras Pneumol. 2020;46(2):e20200046. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200046
  » https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20200046
• ⁴
  Burgel PR, Bergeron A, de Blic J, Bonniaud P, Bourdin A, Chanez P, et al. Small airways diseases, excluding asthma and COPD: an overview. Eur Respir Rev. 2013;22(128):131-147. https://doi.org/10.1183/09059180.00001313
  » https://doi.org/10.1183/09059180.00001313
• ⁵
  Busmail A, Penumetcha SS, Ahluwalia S, Irfan R, Khan SA, Rohit Reddy S, et al. A Systematic Review on Pulmonary Complications Secondary to Hematopoietic Stem Cell Transplantation. Cureus. 2022;14(5):e24807. https://doi.org/10.7759/cureus.24807
  » https://doi.org/10.7759/cureus.24807

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  13 Jan 2023
• Data do Fascículo
  2022