Uso do laboratório de função pulmonar para auxiliar no manejo de doenças: DPOC

CONTEXTO

Este é o primeiro de uma série de manuscritos concisos voltados para a melhor forma de utilizar o laboratório de função pulmonar para o diagnóstico, avaliação da gravidade de doenças/estimativa de risco e seleção de estratégias de tratamento em doenças respiratórias e não respiratórias prevalentes. Começamos com uma doença pulmonar heterogênea na qual os testes de função pulmonar (TFP) assumem um papel fundamental em cada um desses domínios: a DPOC.¹

VISÃO GERAL

Um homem de 61 anos, com histórico de tabagismo de 21 anos-maço, foi encaminhado à Respirologia por apresentar dispneia “desproporcional” (pontuação na escala modificada de dispneia do Medical Research Council [mMRC] = 2-3) em relação a VEF₁ e VEF₁/CVF preservados e resposta de volume (CVF) ao broncodilatador de curta duração não significativa. Em virtude dos achados não obstrutivos na espirometria e da falta de melhora após o tratamento com dois long-acting muscarinic antagonists (LAMAs, antagonistas muscarínicos de longa duração) diferentes, o médico que fez o encaminhamento não tinha certeza do diagnóstico de DPOC. A repetição dos TFP mostrou baixo FEF_25-75%, “concavidade” da curva expiratória de fluxo-volume em baixos volumes pulmonares, baixa capacidade inspiratória (CI), aumento leve mas consistente do volume residual e da capacidade residual funcional (absoluto ou relativo à CPT), elevada resistência específica das vias aéreas, baixa DL_co e baixa relação volume alveolar/CPT. O teste de exercício cardiopulmonar mostrou ventilação excessiva e hiperinsuflação dinâmica levando a restrições inspiratórias e dispneia limitante. A DPOC foi confirmada, e o tratamento prescrito foi terapia dupla com long-acting β2 agonist (LABA, β₂-agonista de longa duração) e LAMA. A terapia dupla por dois meses resultou em melhora da dispneia (pontuação na mMRC = 1), permitindo que o paciente se inscrevesse em um programa estruturado de exercícios de recondicionamento.

Lamentavelmente, o papel dos TFP no manejo da DPOC tem sido progressivamente desvalorizado em diretrizes influentes. O documento da GOLD de 2023, por exemplo, confirma as versões anteriores ao recomendar a espirometria forçada apenas para o diagnóstico.² Apesar de sugerir a graduação do comprometimento do VEF₁, pouca ênfase é dada ao seu uso (ou ao de qualquer outro marcador funcional) nas escolhas terapêuticas. A mera adesão a um ponto de corte de VEF₁/CVF rígido para o diagnóstico pode levar a interpretações errôneas, exigindo individualização cuidadosa.³ Achados de redução do espaço disponível para expansão do volume corrente (ou seja, baixa CI) e/ou aumento dos volumes pulmonares “estáticos” fornecem percepções únicas sobre a gênese e a gravidade da dispneia causada pela DPOC. Há grande variabilidade nos determinantes-chave da falta de ar em um determinado VEF₁: a gravidade do comprometimento da mecânica pulmonar (determinada pela medição dos volumes pulmonares) e da ineficiência das trocas gasosas (avaliada por meio da DL_co e do coeficiente de transferência de monóxido de carbono) é muito mais informativa.⁴ Como se pode observar no Quadro 1, esse conhecimento pode ter importantes implicações no tratamento farmacológico e não farmacológico. Testes simples de capacidade funcional de exercício, como o teste de caminhada de seis minutos, podem ser úteis na quantificação do comprometimento do paciente, na determinação da potencial necessidade de suplementação de oxigênio durante o esforço e na estimativa prognóstica em índices multiparamétricos. Como aqui mostrado, o teste de exercício cardiopulmonar incremental pode indicar que “os pulmões” de fato contribuem para a dispneia aos esforços, levando, assim, à otimização do tratamento em casos duvidosos.⁵

MENSAGEM CLÍNICA

É provável que o manejo clínico e cirúrgico da DPOC jamais prescinda de dados funcionais. O pneumologista deve combinar as informações fornecidas pelos TFP com dados clínicos (gravidade da dispneia, carga de exacerbação), dados de exame de sangue (contagem de eosinófilos, níveis de IgE e de alfa-1 antitripsina) e achados estruturais (carga e distribuição do enfisema, doença das vias aéreas) para decidir quais as melhores abordagens de tratamento clínico ou cirúrgico (Quadro 1).

Quadro 1
Dados-chave dos testes de função pulmonar com maior probabilidade de influência no manejo da DPOC em pacientes individuais.*

Cenário clínico	Recomendações
Diagnóstico	• VEF1/CVF pós-BD¯ é praticamente diagnóstica de DPOC no contexto clínico correto • VEF1/CVF pós-BD ≥ LIN, mas < 0,7 exige uma abordagem caso a caso para identificar outros marcadores de obstrução/doença das vias aéreas: VEF1¯, FEF25-75%¯ (corrigido ou não para CVF), VEF3/VEF6¯, “concavidade” da curva expiratória de fluxo-volume em baixos volumes pulmonares, sRaw­, VR e/ou CRF­, DLco e/ou Kco¯ ou Va/CPT < 0,80. Quanto maior o número de alterações, maior a probabilidade de doença. Correlação com exame de imagem do tórax também pode ser útil • VEF1/CV lenta pós-BD¯, isoladamente, deve ser utilizada com cautela, pois aumenta o número de falsos positivos para obstrução em idosos • Normalização da espirometria após BD inalatório fala contra a presença de DPOC, mas pode ocorrer nos estágios iniciais da doença em paciente com bronquite crônica dominante • Decréscimos proporcionais leves a moderados no VEF1 e na CVF com VEF1/CVF « e CPT « (“padrão inespecífico”) podem ocorrer na DPOC: resposta de volume ao BD inalatório e/ou outros marcadores de obstrução podem ser úteis para confirmar a presença de DPOC no contexto clínico correto • DLco « não exclui a presença de DPOC: embora fale contra a presença de enfisema substancial, pode ocorrer em pacientes com doença das vias aéreas/bronquite crônica dominante • Quando Va/CPT < 0,80, Kco pode estar pseudonormal apesar de DLco¯. Se Kco estiver reduzido apesar de Va/CPT baixa, deve-se suspeitar de enfisema extenso • O TECP pode fornecer mais evidências confirmatórias da presença de DPOC em casos duvidosos: ventilação excessiva (nadir da V̇e/V̇co2 ≥ 34 L/L), hiperinsuflação dinâmica, restrições inspiratórias ou dispneia-taxa de trabalho­ e dispneia-inclinação da V̇e­
Gravidade da doença/estimativa de risco	• VEF1 pós-BD fornece apenas uma estimativa aproximada da capacidade ventilatória do paciente • CVF e/ou CV¯ geralmente indicam doença mais grave (VR/CPT­, frequentemente CI¯) • CI e/ou CI/CPT¯ são fortes preditores de dispneia aos esforços. Naqueles com CI «, CRF­ (e, consequentemente, CPT­) também prediz maior carga de dispneia • Aumento dos volumes pulmonares “estáticos” em um determinado VEF1 fornece melhores informações sobre as alterações mecânicas relevantes para a gênese da dispneia, a reserva funcional necessária para enfrentar as consequências de uma exacerbação e a gravidade das interações cardiopulmonares negativas, todas as quais têm implicações prognósticas • Independentemente dos mecanismos subjacentes, a gravidade do comprometimento da DLco prediz morbidade e mortalidade • DTC6 prediz de forma independente piores desfechos, sendo utilizada em índices multiparamétricos de gravidade/prognóstico da doença • Hipoxemia e, em particular, hipercapnia indicam doença mais extensa e pior prognóstico • Em pacientes com dispneia desproporcional (de acordo com a pontuação na mMRC) à gravidade do comprometimento do VEF1, o aumento do espaço morto fisiológico em repouso e durante o exercício pode revelar um determinante-chave da falta de ar • Excesso de ventilação e restrições inspiratórias críticas precoces durante o TECP fornecem pistas importantes sobre a gravidade da doença e a dispneia na vida diária, associando-se a pior sobrevida • Reduções de curto prazo no VEF1 ou na CVF ≥ 20% são consideradas “significativas”, embora decréscimos menos pronunciados possam ser relevantes em pacientes com maior comprometimento. Os limiares para redução ano a ano não estão bem estabelecidos e devem ser considerados caso a caso • Reduções da DLco > 4 unidades ou > 15% (o que for maior) indicam declínio rápido, geralmente associado a enfisema progressivo
Manejo clínico	• Resposta “negativa” ao BD inalatório durante a espirometria não deve ser utilizada como evidência contra seu uso em longo prazo • Resposta de volume ao BD inalatório (ou seja, aumento da CVF e/ou da CV ≥ 10%, ou aumento da CI ≥ 0,2 L) é mais relevante para a melhora da dispneia do que alterações no VEF1 • Grande resposta de volume ao BD inalatório (ou seja, grande aumento da CVF) pode estar associada a melhora semelhante no VEF1: este último achado não deve ser utilizado irrestritamente como evidência de asma associada • Aumento da variabilidade longitudinal do VEF1 - particularmente quando a CVF apresenta pouca variação - pode sugerir asma associada no contexto clínico correto, levando assim a um uso mais liberal de corticosteroides inalatórios • Hiperinsuflação pulmonar grave e/ou aprisionamento aéreo indicam piores alterações no compartimento “lento” (pequenas vias aéreas): BDs/inaladores com maior deposição distal podem ser particularmente efetivos • Fraqueza muscular inspiratória (PImáx < 70% do previsto) pode indicar treinamento muscular inspiratório em pacientes dispneicos em tratamento máximo - particularmente se a dispneia for desproporcional (de acordo com a pontuação na mMRC) a aprisionamento aéreo apenas leve a moderado • BiPAP pode ser considerada para aqueles com hipercapnia diurna pronunciada (Paco2 > 50-55 mmHg) e/ou internação recente/frequente por insuficiência respiratória crônica agudizada; por outro lado, CPAP deve ser oferecida àqueles com AOS associada • Suplementação de oxigênio em repouso visando Sao2 > 90% (88-92% em pacientes hipercápnicos) deve ser oferecida àqueles com Pao2 ≤ 55 mmHg ou Sao2 < 88% ou Pao2 de 56-59 mmHg e insuficiência cardíaca direita ou eritrocitose em ar ambiente • Alguns pacientes dispneicos de fato obtêm benefício sintomático com a suplementação de oxigênio durante o esforço quando Sao2/Spo2 < 88% em ar ambiente • Pacientes com VEF1 de 15-45% do previsto, CPT ≥ 100% do previsto, aprisionamento aéreo grave (VR ≥ 175%) e DLCO > 20% do previsto apresentam maior probabilidade de benefício após redução broncoscópica do volume pulmonar • Ventilação mecânica não invasiva durante exacerbações agudas é indicada na presença de acidose respiratória (Paco2 ≥ 45 mmHg, pH ≤ 7,35) • Persistência ou piora da hipoxemia (Pao2 < 40 mmHg) e/ou piora da acidose respiratória/grave acidose respiratória (Paco2 ≥ 60 mmHg e aumentando, pH ≤ 7,25 e diminuindo) apesar de oxigênio suplementar (por meio de máscara de Venturi ou com Fio2 > 0,4) e de ventilação não invasiva durante as exacerbações deve levar à internação imediata em terapia intensiva por insuficiência respiratória aguda potencialmente fatal
Manejo cirúrgico	• CPT > 100% do previsto, aprisionamento aéreo grave (VR > 150% do previsto), decréscimo pronunciado da relação Va/CPT, DLco « ou quase normal e gasometria arterial « são úteis para prever quais pacientes são propensos a obter maior benefício sintomático com a ressecção de bolhas gigantes • VEF1 pós-BD < 45% do previsto, VR pós-BD > 150% do previsto e CPT pós-BD > 100% do previsto ajudam a identificar candidatos adequados para cirurgia de redução de volume pulmonar entre aqueles com redução da capacidade de exercício e enfisema predominante em lobos superiores; por outro lado, o risco de morte perioperatória aumenta naqueles com VEF1 e/ou DLco < 20% do previsto • Pacientes não candidatos a redução de volume pulmonar e com distribuição homogênea de enfisema, VEF1 e/ou DLco pós-BD < 20% do previsto e histórico de exacerbações associado com hipercapnia moderada a grave (Paco2 > 50 mmHg), hipertensão pulmonar e/ou cor pulmonale apesar da oxigenoterapia são potenciais candidatos a transplante pulmonar

• BD: broncodilatador; LIN: limite inferior de normalidade; VEF₃: volume expiratório forçado no terceiro segundo; VEF₆: volume expiratório forçado no sexto segundo; sRaw: specific airway resistance (resistência específica das vias aéreas); CRF: capacidade residual funcional; K_co: coeficiente de transferência de monóxido de carbono; Va: volume alveolar; TECP: teste de exercício cardiopulmonar; V̇e: ventilação minuto; V̇co₂: produção de dióxido de carbono; CI: capacidade inspiratória; DTC6: distância percorrida no teste de caminhada de seis minutos; mMRC: escala modificada de dispneia do Medical Research Council; e AOS: apneia obstrutiva do sono. *A não ser quando indicado, os valores ­, « e ¯ são relativos aos limites estatísticos de normalidade.

REFERENCES

• ¹
  Neder JA, de-Torres JP, Milne KM, O'Donnell DE. Lung Function Testing in Chronic Obstructive Pulmonary Disease. Clin Chest Med. 2020;41(3):347-366. https://doi.org/10.1016/j.ccm.2020.06.004
  » https://doi.org/10.1016/j.ccm.2020.06.004
• ²
  Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease (GOLD). Bethesda: GOLD; c2023 [cited 2023 May 1]. Global strategy for the diagnosis, management and prevention of Chronic Obstructive Pulmonary Disease: 2023 report. Available from: https://goldcopd.org/2023-gold-report-2
  » https://goldcopd.org/2023-gold-report-2
• ³
  Neder JA. Functional respiratory assessment: some key misconceptions and their clinical implications. Thorax. 2021;76(7):644-646. https://doi.org/10.1136/thoraxjnl-2020-215287
  » https://doi.org/10.1136/thoraxjnl-2020-215287
• ⁴
  Neder JA, Berton DC, O'Donnell DE. The Lung Function Laboratory to Assist Clinical Decision-making in Pulmonology: Evolving Challenges to an Old Issue. Chest. 2020;158(4):1629-1643. https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.04.064
  » https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.04.064
• ⁵
  O'Donnell DE, Milne KM, Vincent SG, Neder JA. Unraveling the Causes of Unexplained Dyspnea: The Value of Exercise Testing. Clin Chest Med. 2019;40(2):471-499. https://doi.org/10.1016/j.ccm.2019.02.014
  » https://doi.org/10.1016/j.ccm.2019.02.014

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Jul 2023
• Data do Fascículo
  2023