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Uso de psicofármacos por profissionais da Atenção Primária à Saúde e fatores associados

Use of psychotropic drugs by professionals in Primary Health Care and associated factors

RESUMO

Objetivo:

Identificar a prevalência do uso de psicofármacos entre profissionais da Atenção Primária à Saúde e os fatores associados.

Métodos:

Este é um estudo epidemiológico, de base populacional, transversal e analítico, realizado com 290 profissionais que atuam na Atenção Primária da Região de Saúde de Diamantina, Minas Gerais, Brasil. A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário contendo informações sociodemográficas e econômicas, e sobre hábitos de vida, uso de medicamentos e condições de trabalho. Utilizou-se a regressão logística múltipla para obter estimativas do efeito das variáveis no uso de psicofármacos.

Resultados:

Observou-se prevalência de uso de psicofármacos em 10,7% (IC95%: 7-14) dos entrevistados. Entre os profissionais da Atenção Primária à Saúde, as variáveis associadas ao uso de psicofármacos foram ter idade > 31 anos ( odds ratio ajustado [ORA] = 2,33; IC95% = 1,06-5,09; p = 0,034) e ter realizado horas extras (ORA = 2,28; IC95% = 1,06-4,89; p = 0,034).

Conclusão:

As condições de trabalho, como carga horária excessiva, podem contribuir para o adoecimento e, consequentemente, a necessidade de uso de psicofármacos por profissionais de saúde. Assim, é importante abordar a questão, desde a assistência à saúde até o desenvolvimento de políticas de recursos humanos para o Sistema Único de Saúde (SUS) que atentem para as condições de trabalho.

PALAVRAS-CHAVE
Transtornos mentais; saúde do trabalhador; vigilância epidemiológica; psicofármacos; Atenção Primária à Saúde

ABSTRACT

Objective:

Identify the prevalence of psychotropic drug use among Primary Health Care professionals and associated factors.

Methods:

This is an epidemiological, population-based, cross-sectional and analytical study, carried out with 290 professionals working in Primary Care in the Health Region of Diamantina, Minas Gerais, Brazil. Data collection was carried out through a questionnaire containing sociodemographic and economic information, life habits, use of medication and working conditions. Multiple logistic regression was used to obtain estimates of the effect of variables on the use of psychotropic drugs.

Results:

A prevalence of psychotropic drug use was observed in 10.7% (CI95%: 7-14) of respondents. Among primary health care professionals, the variables associated with the use of psychotropic drugs were age > 31 years (adjusted odds ratio [ORA] = 2.33; 95%CI = 1.06-5.09; p = 0.034) and having performed overtime (ORA = 2.28; 95%CI = 1.06-4.89; p = 0.034).

Conclusion:

Working conditions, such as excessive workload, are conditions that can contribute to illness and, consequently, the need for the use of psychotropic drugs by health professionals. It is important to address the issue, from health care to the development of human resources policies in the Health System that meet the working conditions.

KEYWORDS
Mental disorders; worker’s health; epidemiological surveillance; psychopharmaceuticals; Primary Health Care

INTRODUÇÃO

Os transtornos mentais são importantes causas de incapacidade no Brasil e no mundo, gerando impactos consideráveis na saúde, nos aspectos sociais, culturais, políticos e ambientais, e nos direitos humanos e econômicos11 World Health Organization (WHO). Mental Disorders. Geneva: World Health Organization; 2019. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-disorders . Acesso em: 31 jan. 2022.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
, 22 Bonadiman CSC, Malta DC, Passos VMA, Naghavi M, Melo APS. Depressive disorders in Brazil: results from the Global Burden of Disease Study 2017. Popul Health Metr. 2020;18(Suppl 1):6. . Existem muitos transtornos mentais diferentes, que incluem depressão, ansiedade, transtorno bipolar, demências, entre outros transtornos do desenvolvimento, como o autismo, e em cada indivíduo há diferentes formas de apresentações desses transtornos. Eles são geralmente caracterizados por uma combinação de pensamentos, percepções, emoções, comportamentos e relacionamentos anormais com os outros11 World Health Organization (WHO). Mental Disorders. Geneva: World Health Organization; 2019. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-disorders . Acesso em: 31 jan. 2022.
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.

Hoje, com o avanço nos estudos na área de psicofarmacologia, os tratamentos para os transtornos mentais são cada vez mais eficazes, graças ao uso dos psicofármacos, reduzindo, assim, o sofrimento causado por eles11 World Health Organization (WHO). Mental Disorders. Geneva: World Health Organization; 2019. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-disorders . Acesso em: 31 jan. 2022.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
, 33 Rocha BS, Werlang MC. Psicofármacos na Estratégia Saúde da Família: perfil de utilização, acesso e estratégias para a promoção do uso racional. Ciênc Saúde Coletiva. 2013;18(11):3291-300. . Entretanto, estudos apontam para um elevado crescimento do uso dessas drogas no Brasil e no mundo, e esse consumo está associado à maior prevalência dos transtornos mentais e seu diagnóstico, à produção e ao desenvolvimento de novos psicofármacos, que logo são disponibilizados e comercializados no mercado farmacêutico, bem como às indicações farmacoterapêuticas com as drogas já existentes11 World Health Organization (WHO). Mental Disorders. Geneva: World Health Organization; 2019. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/mental-disorders . Acesso em: 31 jan. 2022.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
, 44 Rodrigues MAP, Facchini LA, Lima MS. Modifications in psychotropic drug use patterns in a Southern Brazilian city. Rev Saude Publica. 2006;40(1):107-14.66 Damasceno MR, Bezerra IMP, Nazaré LM, Mendes AA, Abreu LC. Dynamics of psychopharmaceutical use and relationship with psychoanalytic psychotherapy in the mental health interface: an integrative review. J Hum Growth Dev. 2019; 29(2):274-83. .

Os psicofármacos são substâncias quimicamente ativas, naturais ou sintéticas, e seu uso leva a alterações na estrutura e funções do organismo, podendo modificar o comportamento mental, levando o indivíduo a um estado de excitação, depressão ou, ainda, provocando alterações de comportamento e personalidade77 Fontana AM. Manual de clínica em psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Atheneu; 2005.. A Política Nacional de Medicamentos (PNM) tem como um dos objetivos promover o uso racional de medicamentos, considerando que o uso de psicofármacos, bem como de outras classes farmacológicas, pode produzir eventos adversos e até mesmo causar dependência física e/ou psíquica, caso seu uso seja prolongado e contínuo, gerando, assim, graves problemas de saúde pública88 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Medicamentos 2001. Brasília: Ministério da Saúde; 2001. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_medicamentos.pdf . Acesso em: 31 jan. 2022.
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1010 González ML, Borras Roca L, García de Léon Alvarez M. Análisis de los tratamientos realizados en una muestra de sujetos em situación de incapacidad laboral por causa psiquiátrica en una población española. Psicofarmacologia (B. Aires). 2011;11(67):19-25. .

No grupo populacional com elevada prevalência de uso de psicofármacos, estão os profissionais da saúde1111 Gasse C, Petersen L, Chollet J, Saragoussi D. Pattern and predictors of sick leave among users of antidepressants: a Danish retrospective register-based cohort study. J Affect Disord. 2013;151(3):959-66.1313 Maciel MPGS, Santana FL, Martins CMA, Costa WT, Fernandes LS, Lima JS. Use of psychoactive medication between health professional. Rev Enferm UFPE On Line. 2017;11(7):2881-7. , os quais são submetidos a acontecimentos constantes que os desafiam a se adaptarem às necessidades do mundo contemporâneo, que exige dos profissionais maior habilidade e qualificação profissional para o exercício das atividades laborais, e isso faz com eles assumam grandes responsabilidades, o que os leva ao desenvolvimento de transtornos mentais e, consequentemente, ao uso dos psicofármacos; a literatura aponta que o absenteísmo por esses transtornos está associado à maior utilização de psicofármacos1313 Maciel MPGS, Santana FL, Martins CMA, Costa WT, Fernandes LS, Lima JS. Use of psychoactive medication between health professional. Rev Enferm UFPE On Line. 2017;11(7):2881-7.1515 Leão FVG, Mesquita AR, Gotelipe LGO, Pádua CM. Use of psychotropic drugs among workers on leave due to mental disorders. Einstein (São Paulo). 2021;19:1-8. .

Entretanto, cabe destacar que a maioria dos estudos que analisaram o uso de psicofármacos entre profissionais da saúde investigou trabalhadores no contexto hospitalar1313 Maciel MPGS, Santana FL, Martins CMA, Costa WT, Fernandes LS, Lima JS. Use of psychoactive medication between health professional. Rev Enferm UFPE On Line. 2017;11(7):2881-7. , 1616 Schneider APH, Azambuja PG. Uso de fármacos psicotrópicos por profissionais da saúde atuantes da área hospitalar. Infarma. 2015;27(1):14-21. , 1717 Carvalho DB, Araújo TM, Bernardes KO. Transtornos mentais comuns em trabalhadores da Atenção Básica à Saúde. Rev Bras Saude Ocup. 2016;41:e17. , o que faz com que estudos envolvendo trabalhadores da Atenção Primária à Saúde (APS) se tornem relevantes, pois eles possibilitarão que se conheça a extensão dos problemas relacionados aos transtornos mentais1717 Carvalho DB, Araújo TM, Bernardes KO. Transtornos mentais comuns em trabalhadores da Atenção Básica à Saúde. Rev Bras Saude Ocup. 2016;41:e17. e, sobretudo, a prevalência do uso de psicofármacos e os fatores associados, possibilitando que políticas públicas voltadas à saúde do trabalhador da APS sejam efetivadas.

Além disso, a realização deste trabalho se justifica, na perspectiva do Protocolo nº 008/2011, de 01/12/2011, do Ministério da Saúde, que criou as diretrizes da Política Nacional de Promoção da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora do Sistema Único de Saúde,1818 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS. Protocolo nº 008/2011, de 1 de dezembro de 2011. Institui as diretrizes da Política Nacional de Promoção da Saúde do Trabalhador do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/web_4cnst/docs/Protocolo_008_Diretrizes_PNPST.pdf . Acesso em: 30 jan. 2022.
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e da Portaria nº 1.823, de 23/08/2012, que instituiu a Política Nacional do Trabalhador e da Trabalhadora1919 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt1823_23_08_2012.html . Acesso em: 30 jan. 2022.
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, endossando a importância da criação de políticas públicas que visem à proteção e à promoção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras da APS, estimulando, assim, a proposição de ações e estudos que contribuirão com as ações da vigilância em saúde do trabalhador.

Diante desse contexto e levando em consideração a escassez de estudos nessa área, o presente trabalho teve como objetivo identificar a prevalência do uso de psicofármacos entre profissionais da APS e os fatores associados.

MÉTODOS

Desenho do estudo

Trata-se de um inquérito epidemiológico, de base populacional, transversal e analítico.

Contexto

O estudo foi realizado com os profissionais da APS da Região de Saúde de Diamantina, MG. O Índice de Desenvolvimento dos municípios da região, composta por 15 municípios em 2014, varia de 0,54 a 0,712020 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IBGE/Cidades@. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1 . Acesso em: 09 abr. 2013.
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( Figura 1 ).

Figura 1
Mapa da Região de Saúde de Diamantina, Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil. Fonte: Plano Diretor Regional/MG, 2010.

Pertencente à Região Ampliada de Saúde do Jequitinhonha, a Região de Saúde de Diamantina conta com 52 equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF). De acordo com as estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)2020 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). IBGE/Cidades@. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1 . Acesso em: 09 abr. 2013.
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, no ano de 2010, a região possuía 166.513 habitantes, envolvendo uma área total de aproximadamente 14.203,952 km².

Participantes

Nesta pesquisa foram estudados os profissionais das ESFs que tinham sede na área urbana dos municípios, compreendendo 42 ESFs. Aqueles profissionais da área saúde que atingiram os critérios de inclusão do estudo foram convidados a participar dele, sendo eles médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, agentes comunitários de saúde (ACSs), dentistas, auxiliares e técnicos em saúde bucal. A Região de Saúde de Diamantina contava com 416 profissionais, no momento da pesquisa, número informado pelas secretarias de saúde dos municípios participantes. De uma população-alvo estimada em 416 profissionais, obteve-se a participação de 290 (69,8%); 43 (10,3%) recusaram-se a responder ao questionário e 83 (19,9%) não se apresentaram na Unidade de Saúde do município no dia programado para a coleta das informações, que ocorreu entre os meses de abril e agosto de 2014.

Fonte de dados

Os dados foram coletados a partir da aplicação de um questionário semiestruturado que abordava aspectos sociais, demográficos e econômicos, e sobre hábitos de vida, uso de medicamentos e condições de trabalho dos profissionais da APS. Um estudo-piloto foi conduzido antes do início da coleta de dados. Ele foi realizado com um grupo de profissionais que atuam na ESF de outras Regiões de Saúde, portanto que não pertenciam à Região de Saúde de Diamantina e que não compuseram a amostra do estudo. O estudo-piloto permitiu avaliar a adequação do questionário, garantindo clareza de compreensão e pertinência das perguntas quanto aos objetivos do estudo. Não foram necessárias alterações de conteúdo no instrumento e a pesquisa de campo foi iniciada.

Variáveis do estudo

A variável desfecho deste estudo foi o uso autorreferido de psicofármacos nos últimos 30 dias que antecederam a coleta de dados. Para obter essa variável, utilizou-se a seguinte pergunta: “Nos últimos 30 dias, você consumiu algum medicamento?”. Em caso de resposta afirmativa, foi solicitado que os entrevistados listassem todos os medicamentos utilizados. Os dados relativos aos fármacos utilizados pelos profissionais foram digitados e classificados de acordo com os padrões da Anatomical Therapeutic Chemical (ATC)2121 Norwegian Institute of Public Health (NIPH). World Health Organization collaborating center for drug statistics methodology. Guidelines for Anatomical Therapeutic Chemical (ATC) classification and Defined Daily Dose (DDD) assignment 2014. Oslo, 2013..

Foram considerados psicofármacos os medicamentos que atuam no sistema nervoso, classificados com os códigos ATC:

  1. N05 (psicolépticos) – classe terapêutica que inclui os fármacos antipsicóticos (N05A), ansiolíticos (N05B) e também os sedativos/hipnóticos (N05C);

  2. N06 (psicoanalépticos) – engloba os fármacos antidepressivos (N06A) e as associações de psicolépticos e psicoanalépticos (N06C), além dos antiepilético (N03A);

  3. clonazepam – considerado pela ATC como anticonvulsivante (N03A), também foi classificado como psicofármaco, pois se trata de um fármaco com ação no sistema nervoso e que frequentemente é prescrito como ansiolítico para tratar alterações no sono associadas a crises de ansiedade.

As variáveis independentes reuniram características sociais, demográficas e econômicas, e de hábitos de vida e condições de trabalho. Com relação às variáveis sociodemográficas e econômicas, foram coletadas informações sobre: idade (em anos, e posteriormente categorizada a partir da mediana em ≤ 31 anos e > 31 anos), sexo (feminino; masculino), estado civil (com companheiro; sem companheiro), escolaridade (nível superior; nível fundamental/médio), filhos (não; sim) e renda mensal (>1 salário mínimo; ≤ 1 salário mínimo). As variáveis relativas aos hábitos de vida investigadas foram: realização de atividade física (não; sim) e ingestão de bebida alcoólica (não; sim).

Sobre as condições de trabalho, foram questionados sobre: atuação/nível profissional (superior; médio/técnico), satisfação com o trabalho (sim; em parte; não), férias regulares (sim; não), realiza horas extras (não; sim) e sofreu violência no trabalho (não; sim).

Métodos estatísticos

Para as análises estatísticas e construção do banco de dados, utilizou-se o software Epi Info 6.02 do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS)®, versão 25.0. Inicialmente, foram realizadas análises descritivas exploratórias, apresentando as frequências absolutas e relativas.

Utilizou-se a regressão logística múltipla para estimar as medidas de efeito das variáveis independentes no uso de psicofármacos. Inicialmente, realizou-se a regressão logística univariada, e as variáveis estatisticamente significativas ao nível de 20% (p < 0,20) foram, então, selecionadas para a análise multivariada. O modelo multivariado foi posteriormente calculado utilizando o método de stepwise backward . O nível de significância para manutenção da variável no modelo foi de p < 0,05, obtendo-se, assim, a razão de chances e seu respectivo intervalo de confiança ao nível de 95%.

Aspectos éticos

O estudo seguiu as recomendações éticas para pesquisas envolvendo seres humanos, de acordo com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde2222 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf . Acesso em: 31 jan. 2022.
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, sendo submetido para apreciação e obtendo a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), com o parecer nº 629.279. Todos os indivíduos que participaram da pesquisa concordaram com a participação voluntariamente e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual constavam o objetivo do estudo, os procedimentos de avaliação e o caráter voluntário da participação.

RESULTADOS

Foram investigados 290 profissionais da saúde atuantes na Região de Saúde de Diamantina, o que compreende aproximadamente 70% da população-alvo. A prevalência de uso de psicofármacos foi de 10,7% (IC95%: 7-14). Com relação às características sociais, demográficas e econômicas e de hábitos de vida, observou-se que a maioria possuía idade ≤ 31 anos (54,6%), era do sexo feminino (87,6%) e tinha companheiro fixo (54,1%), nível fundamental/médio (71,0%) e filhos (58,3%). Houve predominância de profissionais que recebem > 1 salário mínimo mensal (84,8%), não realizam atividade física (54,5%) e não ingerem bebida alcoólica (62,8%). Houve prevalência de uso de psicofármacos em 10,7% dos entrevistados ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Características sociais, demográficas, econômicas, hábitos de vida e uso de medicamentos dos profissionais da Atenção Primária à Saúde, Região de saúde de Diamantina, Alto Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil

Quanto às condições de trabalho dos profissionais participantes do estudo, houve prevalência de profissionais de nível médio/técnico (77,6%), e a população investigada foi composta por 17 médicos, 38 enfermeiros, 47 técnicos de enfermagem, 6 auxiliares de enfermagem, 156 ACSs, 10 cirurgiões dentistas, 4 técnicos em saúde bucal e 12 auxiliares em saúde bucal. Quando avaliados sobre a satisfação com o trabalho, uma parcela considerável da população relatou estar satisfeita em parte (46,6%), 70,0% informaram o gozo das férias regulares, 69,0% realizavam horas extras e 59,7% relataram já ter sofrido violência no trabalho ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Condições de trabalho dos profissionais da Atenção Primária à Saúde, Região de saúde de Diamantina, Alto Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil

As variáveis investigadas, que, após a análise ajustada, se mantiveram associadas ao uso de psicofármacos, foram: ter idade > 31 anos ( odds ratio [OR] = 2,33; IC95% = 1,06-5,09; p = 0,034) e realizar horas extras (OR = 2,28; IC95% = 1,06-4,89; p = 0,034) ( Tabela 3 ).

Tabela 3
Associação entre características sociais, demográficas, econômicas, hábitos de vida, condições de trabalho e uso de psicofármacos em profissionais da Atenção Primária à Saúde (análise múltipla), Região de saúde de Diamantina, Alto Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Brasil

DISCUSSÃO

Estudos têm relatado um aumento considerável do uso de psicofármacos entre profissionais da saúde, entretanto a maioria dos estudos realizados investiga essa prevalência em profissionais que atuam na área hospitalar1313 Maciel MPGS, Santana FL, Martins CMA, Costa WT, Fernandes LS, Lima JS. Use of psychoactive medication between health professional. Rev Enferm UFPE On Line. 2017;11(7):2881-7. , 1616 Schneider APH, Azambuja PG. Uso de fármacos psicotrópicos por profissionais da saúde atuantes da área hospitalar. Infarma. 2015;27(1):14-21. , 1717 Carvalho DB, Araújo TM, Bernardes KO. Transtornos mentais comuns em trabalhadores da Atenção Básica à Saúde. Rev Bras Saude Ocup. 2016;41:e17. . Nesse contexto, o presente estudo buscou identificar a prevalência do uso de psicofármacos entre profissionais que atuam na APS e observou que 10,7% dos profissionais da saúde entrevistados que trabalham na Região Ampliada de Saúde do Jequitinhonha, a Região de Saúde de Diamantina, Minas Gerais, utilizam psicofármacos.

Resultados semelhantes foram encontrados na literatura2323 Martins LF, Laport TJ, Menezes VP, Medeiros PB, Ronzani TM. Esgotamento entre profissionais da Atenção Primária à Saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(12):4939-750.2525 Caixeta AC, Silva RC, Abreu CRC. Uso de psicotrópicos por profissionais da saúde. Rev JRG Estudos Acadêmicos. 2021;4(8):188-200. . Estudo realizado por Caixeta et al. 2525 Caixeta AC, Silva RC, Abreu CRC. Uso de psicotrópicos por profissionais da saúde. Rev JRG Estudos Acadêmicos. 2021;4(8):188-200. afirma que a prevalência do consumo de fármacos psicoativos entre profissionais que atuam na área da saúde varia entre 10% e 15% em algum momento do exercício profissional. No estudo desenvolvido por Silva et al. 2424 Silva AD, Melo EC, Martins JT, Dálcol C, Cremer E, Scholze AR. Use of psychoactive substances among primary care nursing professionals and hospital institution. Rev Enferm Centro Oeste Mineiro. 2020;10:e3737., as evidências mostraram que a prevalência do uso de hipnóticos e sedativos entre profissionais que atuam na Atenção Básica à saúde foi de 12,9%. Ainda nessa perspectiva de avaliar o consumo de fármacos psicoativos entre os colaboradores da APS, o estudo conduzido por Martins et al. 2323 Martins LF, Laport TJ, Menezes VP, Medeiros PB, Ronzani TM. Esgotamento entre profissionais da Atenção Primária à Saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(12):4939-750., na região da Zona da Mata Mineira, apontou prevalência do uso de psicofármacos (ansiolíticos, hipnóticos, antidepressivos) em 12,0% dos entrevistados2323 Martins LF, Laport TJ, Menezes VP, Medeiros PB, Ronzani TM. Esgotamento entre profissionais da Atenção Primária à Saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(12):4939-750., confirmando com os resultados observados na presente investigação.

O uso prevalente de psicofármacos entre profissionais da APS é multifatorial e está relacionado ao esgotamento profissional, além disso, a literatura sugere que o uso dos psicofármacos está fortemente associado com indicadores de estresse relacionadas às atividades laborais e às experiências vivenciadas pelos profissionais2424 Silva AD, Melo EC, Martins JT, Dálcol C, Cremer E, Scholze AR. Use of psychoactive substances among primary care nursing professionals and hospital institution. Rev Enferm Centro Oeste Mineiro. 2020;10:e3737. , 2626 Virtanen M, Honkonen T, Kivimaki M, Ahola K, Vahtera J, Aromaa A, et al. Work stress, mental health and antidepressant medication findings from the Health 2000 Study. J Affect Disord. 2007;98(3):189-97. . Salienta-se que os profissionais de saúde que atuam na APS possuem carga horária extensa, alta demanda de trabalho, pressão advinda da gestão, níveis rebaixados de controle sobre as atividades desempenhadas, sobrecarga de demandas psicológicas, baixo ou quase nenhum apoio social2727 Pires DEP, Machado RR, Soratto J, Scherer MA, Gonçalves ASR, Trindade LL. Cargas de trabalho da enfermagem na saúde da família: Implicações no acesso universal. Rev Latino-Am Enferm. 2016;24:1-9. , 2828 Scholze AR, Martins JT, Galdino MJQ, Ribeiro RP. Ambiente ocupacional e o consumo de substâncias psicoativas entre enfermeiros. Acta Paul Enferm. 2017;30(4):404-11. e, além disso, muitas vezes o ambiente de trabalho não possui condições satisfatórias, com nenhum ou poucos recursos humanos e materiais2929 Araújo TM, Aquino E, Menezes G, Santos CO, Aguiar L. Aspectos psicossociais do trabalho e distúrbios psíquicos entre trabalhadoras de enfermagem. Rev Saúde Pública. 2003;4(37):424-33. , 3030 Carreiro GSP, Ferreira Filha MO, Lazarte R, Silva AO, Dias MD. O processo de adoecimento mental do trabalhador da Estratégia Saúde da Família. Rev Eletr Enf. 2013;15(1):146-55. , e tudo isso contribui para o adoecimento psíquico. Outros fatores que também influenciam na saúde mental dos profissionais que integram as equipes de saúde no contexto da APS, mas que são pouco referidos na literatura, são os problemas familiares. Muitas vezes, pessoas importantes na vida desses profissionais adoecem e, pela falta de apoio da família nuclear, a responsabilidade acaba sendo atribuída a esses profissionais, por já atuarem na área da saúde, o que impacta negativamente a saúde mental, elevando, assim, o consumo de fármacos psicoativos3030 Carreiro GSP, Ferreira Filha MO, Lazarte R, Silva AO, Dias MD. O processo de adoecimento mental do trabalhador da Estratégia Saúde da Família. Rev Eletr Enf. 2013;15(1):146-55..

Além dos fatores supracitados, a remuneração precária faz com que os profissionais da saúde tenham que atuar em mais de um emprego ou realizar horas extras, para complementar a renda2424 Silva AD, Melo EC, Martins JT, Dálcol C, Cremer E, Scholze AR. Use of psychoactive substances among primary care nursing professionals and hospital institution. Rev Enferm Centro Oeste Mineiro. 2020;10:e3737. , 3131 Sousa KHJF, Zeitoune RCG, Portela LF, Tracera GMP, Moraes KG, Figueiró RCS. Factors related to the risk of illness of nursing staff at work in a psychiatric institution. Rev. Latino Am Enfermagem. 2020;28:e3235. , 3232 Bernardes ARB, Menezes LS. Work organization and mental health of workers dealing with organ and tissue donation for transplants. Ciênc Saúde Coletiva. 2021;26(12):5967-76. , entre outros fatores, como a busca constante por atualização, capacitação e formação profissional especializada. Há também a precária assistência à saúde desses profissionais, visto que, no Brasil, estudos que buscaram compreender a relação entre saúde e trabalho em profissionais que atuam na área da saúde, como no caso da APS, foram realizados de forma demasiadamente tardia, quando comparados a outros grupos de profissionais que atuam em outras áreas de conhecimento, o que aumenta as chances de desenvolvimento de agravos à saúde nesse grupo populacional1717 Carvalho DB, Araújo TM, Bernardes KO. Transtornos mentais comuns em trabalhadores da Atenção Básica à Saúde. Rev Bras Saude Ocup. 2016;41:e17. , 3232 Bernardes ARB, Menezes LS. Work organization and mental health of workers dealing with organ and tissue donation for transplants. Ciênc Saúde Coletiva. 2021;26(12):5967-76. , elevando, assim, o aumento na prevalência do uso de psicofármacos.

Entre os fatores que se associam ao consumo de psicofármacos entre profissionais da saúde da APS, os resultados deste estudo indicam a idade > 31 anos, confirmando as evidências apresentadas em outros estudos, que sugeriram que as doenças mentais e, consequentemente, o uso de psicofármacos aumentam com o avançar da idade, ocorrendo de modo delongado e em concomitância ao uso de outros fármacos3333 Wanderley TC, Cavalcanti AL, Santos S. Práticas de Saúde na atenção primária e uso de psicotrópicos: uma revisão sistemática da literatura. Rev Ciênc Méd Biol. 2013;12(1):121-6.3535 Freitas RF, Barros IM, Miranda MAF, Freitas TF, Rocha JSB, Lessa AC. Preditores da síndrome de Burnout em técnicos de enfermagem de unidade de terapia intensiva durante a pandemia da COVID-19. J Bras Psiquiatr. 2021;70(1):12-20. . No caso dos profissionais da saúde, a literatura sugere, ainda, que, com o aumento da idade, há uma ampliação excessiva na responsabilidade com as atividades laborais, levando esses profissionais ao adoecimento psíquico, pelo fato de muitas vezes não conseguirem se adaptar às condições trabalhistas às quais são submetidos, aumentando, assim, o uso de psicofármacos3030 Carreiro GSP, Ferreira Filha MO, Lazarte R, Silva AO, Dias MD. O processo de adoecimento mental do trabalhador da Estratégia Saúde da Família. Rev Eletr Enf. 2013;15(1):146-55. , 3333 Wanderley TC, Cavalcanti AL, Santos S. Práticas de Saúde na atenção primária e uso de psicotrópicos: uma revisão sistemática da literatura. Rev Ciênc Méd Biol. 2013;12(1):121-6. , 3535 Freitas RF, Barros IM, Miranda MAF, Freitas TF, Rocha JSB, Lessa AC. Preditores da síndrome de Burnout em técnicos de enfermagem de unidade de terapia intensiva durante a pandemia da COVID-19. J Bras Psiquiatr. 2021;70(1):12-20.3737 Moura DCN, Pinto JR, Martins P, Pedrosa KA, Carneiro MGD. Uso abusivo de psicotrópicos pela demanda da Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa da literatura. Sanare. 2016;15(2):136-44. .

O fato de o uso de psicofármacos aumentar de forma proporcional à idade também pode estar associado ao contexto familiar e à saúde mental3737 Moura DCN, Pinto JR, Martins P, Pedrosa KA, Carneiro MGD. Uso abusivo de psicotrópicos pela demanda da Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa da literatura. Sanare. 2016;15(2):136-44. , 3838 Horta RL, Horta BL, Costa AWN, Prado RR, Oliveira CM, Malta DC. Lifetime use of illicit drugs and associated factors among Brazilian schoolchildren, National Adolescent School-based Health Survey (PeNSE 2012). Rev Bras Epidemiol. 2014;17(Suppl 1):31- 45. , considerando que os fármacos psicoativos mais utilizados são os da classe dos antidepressivos, acompanhados dos ansiolíticos e benzodiazepínicos3939 Borges TL, Hegadoren KM, Miasso AI. Transtornos mentais comuns e uso de psicofármacos em mulheres atendidas em unidades básicas de saúde em um centro urbano brasileiro. Rev Panam Salud Publica. 2015;38(3):195-201.. A literatura aponta que, muitas vezes, uma parcela considerável da população que faz uso desses medicamentos não precisa utilizá-los, pois não é diagnosticada com nenhum transtorno mental3737 Moura DCN, Pinto JR, Martins P, Pedrosa KA, Carneiro MGD. Uso abusivo de psicotrópicos pela demanda da Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa da literatura. Sanare. 2016;15(2):136-44., mas deseja apenas mudar o seu humor, sua personalidade, seu jeito de ser4040 Pelegrini MRF. O abuso de medicamentos psicotrópicos na contemporaneidade. Psicol Cienc Prof. 2003;21(3):38-43..

Sendo assim, cabe que o consumo de fármacos psicoativos tem sido considerado exacerbado, sobretudo em idades mais avançadas, e, quando esses fármacos são utilizados de forma indiscriminada, sem uma real necessidade ou sem prescrição e orientação médica, isso aumenta o risco de déficit cognitivo, síncopes, quedas e fraturas, bem como de intoxicações e interações medicamentosas, principalmente quando o uso é feito de forma concomitante com outros fármacos3737 Moura DCN, Pinto JR, Martins P, Pedrosa KA, Carneiro MGD. Uso abusivo de psicotrópicos pela demanda da Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa da literatura. Sanare. 2016;15(2):136-44. , 4141 Abreu MHNG, Acúrcio FA, Resende VLS. Utilização de psicofármacos por pacientes odontológicos em Minas Gerais, Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2000;7(1):17-23. , 4242 Quemel GKC, Silva EP, Conceição WR, Gomes MF, Rivera JGB, Quemel GK. Revisão integrativa da literatura sobre o aumento no consumo de psicotrópicos em transtornos mentais como a depressão. Braz Appl Sci Rev. 2021;5(3):1384-403. . Ademais, no Brasil, o consumo dos fármacos com ação no sistema nervoso tem sido tratado como um grave problema de saúde pública, dado o potencial risco de causar dependência, além da ocorrência considerável de eventos adversos4242 Quemel GKC, Silva EP, Conceição WR, Gomes MF, Rivera JGB, Quemel GK. Revisão integrativa da literatura sobre o aumento no consumo de psicotrópicos em transtornos mentais como a depressão. Braz Appl Sci Rev. 2021;5(3):1384-403. , 4343 Oliveira JRF, Varallo FR, Jiron M, Ferreira IML, Siani-Morello MR, Lopes VD, et al. Descrição do consumo de psicofármacos na atenção primária à saúde de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública. 2021;37(1):e00060520. .

Outro fator que se manteve associado ao uso de psicofármacos em profissionais que atuam na APS foi a realização de horas extras no trabalho. Os profissionais da saúde em geral, na busca por melhor remuneração ou complementação salarial ou devido à quantidade de atendimentos que precisam ser realizados nos serviços de saúde ou ao quadro de pessoal reduzido ou pelo fato de colegas deixarem de fazer o seu serviço, acabam tendo que realizar jornadas trabalhistas estendidas ou duplas, e isso influencia de forma considerável no desenvolvimento de transtornos mentais, levando ao uso de psicofármacos3535 Freitas RF, Barros IM, Miranda MAF, Freitas TF, Rocha JSB, Lessa AC. Preditores da síndrome de Burnout em técnicos de enfermagem de unidade de terapia intensiva durante a pandemia da COVID-19. J Bras Psiquiatr. 2021;70(1):12-20. , 4444 Glina DMR, Rocha LE, Batista ML, Medonça MGV. Saúde mental e trabalho: uma reflexão sobre o nexo com o trabalho e o diagnóstico, com base na prática. Cad Saúde Pública. 2001;17(3):607-616.4646 Álvares JC, Sousa MF, Lima MG. O discurso dos agentes comunitários de saúde sobre as práticas de saúde mental na atenção básica. Tempus: Actas de Saúde Coletiva. 2013;7:1-13. .

A literatura aponta, ainda, que quanto mais precário o ambiente de trabalho no que se refere aos aspectos psicossociais, maior e mais intensa é a carga horária e mais maléfica tende a ser a jornada de trabalho, oferecendo maior o risco de desenvolvimento de transtornos mentais e de uso de psicofármacos, visto que esses profissionais que têm jornada de trabalho intensa possuem baixa qualidade de vida e não praticam atividade física e de lazer, o que os torna suscetíveis ao adoecimento e, consequentemente, à medicalização. Além disso, os profissionais que realizam horas extras ou que dobram turno permanecem por mais tempo longe de casa e da família, o que aumenta o sofrimento psíquico, diminui o rendimento profissional, desencadeia sintomas de medo, ansiedade e frustração, e leva a quadros de adoecimento psíquico e ao uso de psicofármacos1313 Maciel MPGS, Santana FL, Martins CMA, Costa WT, Fernandes LS, Lima JS. Use of psychoactive medication between health professional. Rev Enferm UFPE On Line. 2017;11(7):2881-7. , 3131 Sousa KHJF, Zeitoune RCG, Portela LF, Tracera GMP, Moraes KG, Figueiró RCS. Factors related to the risk of illness of nursing staff at work in a psychiatric institution. Rev. Latino Am Enfermagem. 2020;28:e3235. .

Os achados deste estudo apontam para a complexidade da relação entre o exercício laboral dos colaboradores da saúde que atuam na APS e o risco de uso de psicofármacos. Esses resultados são importantes na perspectiva de levar os gestores a refletirem sobre os modelos de gestão das atividades profissionais no contexto da APS e a assistência à saúde desse grupo de profissionais tão importantes e que atuam na Atenção Básica, porta de entrada do serviço de saúde no Brasil.

Embora este estudo tenha apresentado importantes evidências sobre o uso de psicofármacos e os fatores preditores em profissionais da saúde que atuam na APS, algumas limitações precisam ser consideradas. Uma das limitações do estudo é o perfil da amostra, que se trata de profissionais da saúde saudáveis, visto que a coleta de dados ocorreu dentro do ambiente de trabalho e que o grupo de trabalhadores que compuseram a população deste estudo estava em efetivo exercício das atividades profissionais no período da coleta dos dados, sendo possível que os profissionais doentes estivessem afastados de suas atividades laborais, não tendo sido investigados, o que pode ter levado a um viés de seleção e, consequentemente, à subestimação da prevalência do uso de psicofármacos nesse grupo populacional. Outra limitação refere-se ao fato de este estudo não ter avaliado se o participantes tinham história pregressa de transtornos mentais e se tinham possível indicação para o uso dos psicofármacos.

Mesmo com essas limitações descritas, trata-se de um estudo de base populacional, do qual todos os colaboradores da saúde que contemplaram os critérios de inclusão do estudo foram convidados a participar, e mais da metade (69%) dos convidados aceitaram participar e responderam ao questionário proposto, tendo-se, assim, representatividade da população-alvo, o que garantiu a possibilidade de que qualquer indivíduo, em efetivo exercício profissional, participasse desta investigação. Assim, o estudo tem uma boa validade externa1717 Carvalho DB, Araújo TM, Bernardes KO. Transtornos mentais comuns em trabalhadores da Atenção Básica à Saúde. Rev Bras Saude Ocup. 2016;41:e17..

Embora os dados tenham sido coletados em 2014, mas considerando a Política Nacional do Trabalhador e Trabalhadora da APS, que estimula a avaliação das condições de saúde dessa população, visando à criação de políticas públicas de proteção e promoção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras da APS, e a escassez de estudos sobre o consumo de psicofármacos entre esses profissionais, espera-se que os resultados desta investigação possam auxiliar os gestores na tomada de decisão, possibilitando a criação de políticas públicas de assistência à saúde do trabalhador, e que contribuam para a valorização das condições de trabalho e de saúde no âmbito da gestão da saúde, levando ao reconhecimento das necessidades desse grupo de profissionais e que isso não se dê somente no âmbito do discurso eloquente, mas que se traduza em políticas assistenciais profícuas e efetivas e que radicalizem no sentido de garantir condições dignas de trabalhado e de saúde dos trabalhadores da APS.

CONCLUSÃO

Levando em consideração os problemas relacionados aos transtornos mentais e o risco à saúde causados pelo uso de psicofármacos, a prevalência desse desfecho nos profissionais da Atenção Primária à Saúde investigados foi considerável, e fatores sociodemográficos (idade ≥ 31 anos) e condições de trabalho (realizar horas extras) estiveram associados ao desfecho investigado.

Esses achados apontam para a necessidade de um olhar atento para esse grupo de profissionais, sobretudo no que se refere aos cuidados com a melhoria das condições laborais, diminuindo, assim, o risco do desenvolvimento de transtornos mentais e, por consequência, o uso de psicofármacos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
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