Open-access Folie à deux (induced delusional disorder)

J Bras Psiquiatr jbpsiq Jornal Brasileiro de Psiquiatria JBPSIQ J. bras. psiquiatr. 0047-2085 1982-0208 Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro ABSTRACT Folie à deux, or induced delusional disorder, is a rare syndrome characterized by transfer of delusions from a primary subject to one or more secondary subjects. Though a diagnosis considered rare and even so forgotten in current psychiatric treated our article describes a case of folie à deux between mother (primary delusional subject) and daughter (previously healthy and secondary psychotic subject) had therapeutic success and evolution very favorable. Although our case had favorable development, there are reports in the literature tragic outcomes as infanticide. In addition, our article draws attention to some important aspects. First, folie à deux frames can occur in many situations and not only in feedlots, unlike the current classification systems tend to do. Also, they are not as rare as it is supposed. Finally, clinicians should be alert to possible psychiatric problems not recognized in the individual considered secondary. INTRODUÇÃO Folie à deux, ou transtorno psicótico induzido, é uma síndrome rara1 caracterizada por transferência de delírios de um sujeito considerado primariamente psicótico para um ou mais sujeitos considerados secundários em relação à origem do delírio2. Os sujeitos estão envolvidos em um contexto de relacionamento próximo, e classicamente em situações de confinamento3. Por ser rara, não se encontram facilmente taxas de prevalência descritas na literatura científica, no entanto uma revisão da literatura encontrou descrição de 64 casos entre 1993 e 20054. A primeira descrição desse quadro foi feita em 1641 por Harvey5, mas somente em 1877 o fenômeno foi mais bem detalhado por Laségue e Falret3,5. Esses autores destacaram que, para que o quadro acontecesse, o conteúdo do delírio deveria ser verossímil e que o fenômeno aconteceria mais em mulheres5. Na literatura científica, pode-se encontrar essa síndrome com várias denominações: insanidade compartilhada, insanidade contagiosa, loucura infecciosa, psicose de associação e dupla insanidade6. Além disso, quando a síndrome é compartilhada por mais de duas pessoas, recebe nomes diferentes: folie à trois2,6, à quatre, à famille or à plusieurs2. Grande parte dos sujeitos indutores primários são mulheres e o compartilhamento acontece mais entre parceiros ou entre mães e filhos. Cerca de 60% dos receptores secundários têm apenas o transtorno psicótico induzido como diagnóstico7. Apesar de ser um diagnóstico considerado raro, e até por isso esquecido nos tratados psiquiátricos atuais, nosso artigo descreve um caso de folie à deux que teve sucesso terapêutico e evolução muito favorável. Assim, acreditamos que os clínicos devem ficar atentos a essa possibilidade diagnóstica. RELATO DE CASO M., 51 anos, sexo feminino, ensino médio completo e do lar, foi levada ao psiquiatra pelo marido porque, há dois meses da consulta inicial, passou a ter ideias de que estavam desejando matá-la, inclusive os familiares. Ao sair de casa, tinha nítida percepção de que carros, motos e até guardas a estavam vigiando. Por isso, em algumas ocasiões, saiu correndo pelas ruas como se estivesse sendo perseguida. Paralelamente, passou a se isolar dos familiares e a apresentar insônia inicial, anorexia e perda de peso. A paciente só aceitou ir a uma consulta com um psiquiatra depois que o marido a impediu de se matar com uma faca. O episódio a deixou muito abalada por não ter conseguido entender ao certo o motivo dessa atitude. No momento da primeira consulta, M. estava com aparência e higiene adequadas, vígil e orientada; mostrava-se muito suspicaz, chegando a insinuar que o médico sabia de tudo e que havia feito alguma combinação com o esposo; não apresentava alterações da sensopercepção; tinha humor eutímico; não apresentava alterações na psicomotricidade; o pensamento não tinha alterações na forma ou no curso, e a paciente negava as queixas do marido; não apresentava crítica de sua morbidade e respondia a muitos questionamentos de forma tangencial. Questionada diretamente sobre a tentativa de suicídio com uma faca, M. negou querer se matar, referindo que o episódio foi motivado por um impulso de origem incerta para ela. Antes do início dos sintomas, M. estava planejando fazer uma viagem para a Europa com o marido. Contudo, próximo da viagem, a mãe dela revelou que M. seria morta se viajasse e que tinha obtido essa informação por meio de uma revelação espiritual. A viagem foi cancelada e, a partir daí, a paciente passou a apresentar o quadro psicótico descrito. A mãe de M. era uma senhora de 81 anos e dizia ser médium, embora não frequentasse regularmente nenhuma instituição religiosa. Igualmente, não fazia nenhum tratamento psiquiátrico ou neurológico. No entanto, naquela ocasião, apresentava alguns esquecimentos percebidos pelos familiares. Embora não vivessem em nenhuma situação de confinamento, mãe e filha tinham convivência bem próxima, eram simpatizantes do espiritismo e a mãe tinha grande influência nas atitudes de M. Infelizmente, a mãe da paciente não aceitou ir a nenhuma consulta. Na realidade, dizia que a filha também era médium e que nenhuma das duas precisava de assistência psiquiátrica. Além disso, a paciente negou qualquer histórico de transtorno mental na família, e essa informação foi confirmada pelo marido. Do mesmo modo, a paciente não aceitou realizar exames complementares. M. não estava usando nenhuma medicação, não fazia uso de substâncias psicoativas e tinha um funcionamento pré-mórbido recente adequado. Apesar disso, durante a gravidez do último filho, há 26 anos, apresentou psicose puerperal. Naquela ocasião, a mãe dela teve supostas revelações espirituais de maus presságios em relação ao bebê. Em seguida, M. passou a apresentar ideias delirantes em relação ao filho, pensando que ele seria algum espírito ruim e chegando a tentar matá-lo. A paciente permaneceu hospitalizada no pós-parto por um período maior do que em geral acontece com outras puérperas submetidas à cesariana, foi separada do bebê e usou psicofármaco como tratamento (nem o marido, nem ela souberam especificar qual). Ficou assintomática entre a alta hospitalar e essa consulta relatada. Embora não se tenha tido oportunidade de consultar a genitora de M., levantou-se a hipótese diagnóstica de transtorno delirante induzido, sendo prescrita risperidona 2 mg à noite e orientado que a paciente se afastasse do convívio com a mãe durante o período de tratamento. Houve redução significativa dos sintomas depois de 10 dias de medicação. Depois de 14 dias, a paciente estava sem sintomas psicóticos. Após dois meses do início do antipsicótico, M. apresentou crítica sobre o adoecimento. O tratamento foi continuado por seis meses, quando se iniciou a retirada gradual da risperidona. A paciente permaneceu assintomática e recebeu alta. Salienta-se que esse tratamento foi conduzido ambulatorialmente e que durante esse período a filha não teve contato com a mãe. Após dois anos, por meio de contato telefônico com o médico psiquiatra assistente, o marido da paciente informou que a esposa permaneceu assintomática e voltou a falar com a mãe, no entanto de modo menos frequente. DISCUSSÃO Gralnick propôs uma classificação de folie à deux que ainda continua sendo referenciada na literatura científica (Tabela 1)7,8. Contudo, na classificação atual do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), esses casos são classificados como outro transtorno do espectro da esquizofrenia e outro transtorno psicótico especificado, com o especificador sintomas delirantes em parceiro de pessoas com transtorno delirante9. Além disso, na classificação de transtornos mentais e de comportamento da Classificação Internacional de Doenças, 10aedição (CID-10), esse quadro é classificado como transtorno delirante induzido10. Tabela 1 Subtipos de folie à deux segundo Gralnick 1) Folie imposée: Os delírios de uma pessoa psicótica são transferidos para uma outra pessoa mentalmente saudável. Os delírios do indivíduo que ficou secundariamente psicótico desaparecem após a separação. 2) Folie simultanée: Ocorre um aparecimento simultâneo de uma psicose idêntica em indivíduos predispostos que estão intimamente associados. 3) Folie communiquée: O indivíduo secundariamente psicótico desenvolve os sintomas após um longo período de resistência e mantém esses sintomas mesmo depois da separação do indivíduo primariamente psicótico. 4) Folie induite: Novos delírios são adotados por um indivíduo psicótico sob influência de outro indivíduo psicótico. Na CID-10, os critérios envolvem duas ou mais pessoas que partilham o mesmo delírio e que têm um relacionamento inusualmente íntimo; e geralmente estão isoladas das demais por língua, cultura ou geografia. A CID-10 descreve que somente uma das pessoas envolvidas no compartilhamento do delírio sofre de um transtorno psicótico genuíno e que os delírios usualmente desaparecem quando as pessoas são separadas. Além disso, na CID-10 é preciso que haja evidência temporal ou outra contextual de que o delírio foi induzido no(s) membro(s) passivo(s) do par ou grupo por contato com o membro ativo. A CID-10 também especifica que alucinações induzidas, embora sejam inusuais, não negativam o diagnóstico. Contudo, exclui dessa categoria pacientes que vivem juntos e que compartilham alguns delírios, mas que têm transtornos psicóticos independentes10. Já o DSM-5 se limita a dizer que, no contexto de um relacionamento, os conteúdos dos delírios do parceiro dominador oferecem base para uma crença delirante pelo indivíduo que, de outra forma, não poderia satisfazer totalmente os critérios para transtorno delirante9. Por outro lado, diferentemente da CID-10, que enfatiza um relacionamento inusualmente íntimo, o DSM-5 exige apenas um relacionamento9,10. Nosso caso seguiu o que é mais comumente reportado na literatura científica e, dentro da classificação de Gralnick, podemos enquadrá-lo como folie imposée. Dessa forma, pode ser bem classificado tanto na CID-10 quanto no DSM-5. No entanto, casos classificados de acordo com Gralnick como folie simultanée, folie communiquée ou folie induite não conseguem ser enquadrados nos referidos códigos diagnósticos oficiais. Apesar de a mãe da paciente alegar revelações espirituais para outros familiares, somente a paciente desenvolveu quadro psicótico. Esse fato, associado à psicose puerperal anterior que ela apresentou, evidencia a suscetibilidade biológica que ela tinha, o que é descrito nos indivíduos psicóticos secundários3,5,7. Delírio persecutório é o tipo de delírio mais comumente encontrado nessa síndrome3, embora conteúdos religiosos possam estar presentes e dificultar a diferenciação de onde termina a fé e onde a psicose começa2. No entanto, o fenômeno descrito no caso gerou sofrimento, não foi compartilhado por outros, aconteceu fora de um contexto religioso, demonstrou-se fora de controle pelos envolvidos e não proporcionou crescimento pessoal. Assim, pode ser classificado como patológico11. A visão etiopatogênica atual do transtorno delirante induzido envolve componentes ambientais e biológicos. Assim, o indivíduo secundariamente psicótico apresenta um caráter individual de suscetibilidade para o desenvolvimento de sintomas psicóticos. O isolamento social, associado ao contato prolongado, é o principal fator de risco ambiental12. Nesse sentido, o tratamento da nossa paciente ocorreu como é esperado para muitos casos do subtipo folie imposée: resposta farmacológica rápida e melhora com a separação entre o paciente secundariamente psicótico e o sujeito psicótico primário3,7. No entanto, é importante salientar que algumas situações podem ter evolução desfavorável, como um caso descrito na literatura que envolveu infanticídio13. Ressalta-se, ainda, que a CID-10 e a maior parte dos artigos científicos enfatizam que quadros de folie à deux ocorrem frequentemente em situações de confinamento, no entanto não apenas nessas situações, como exemplificado pelo nosso caso e possibilitado pelo DSM-54,9,10. Salienta-se, porém, que duas limitações do nosso caso foram a impossibilidade de examinar a mãe da paciente e a recusa da paciente em realizar exames complementares. CONCLUSÃO Apesar de ser uma condição considerada rara, os clínicos devem estar atentos para a sua existência. Além disso, as possíveis condições de aparecimento podem ser mais amplas do que aquelas previstas pelos códigos diagnósticos atuais. REFERÊNCIAS 1 1. Magar B, Fahy S. Is every shared psychosis a folie à deux? Int J Geriatr Psychiatry. 2010;25(11):1197-8. 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