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Coinfecção viral respiratória e gravidade da doença clínica

EDITORIAL

Coinfecção viral respiratória e gravidade da doença clínica1 1 Ver artigo de Scotta MC et al. nas páginas 444-9

Dat Tran* * E-mail: dat.tran@sickkids.ca

Médico, Mestre, Division of Infectious Diseases, Department of Pediatrics, The Hospital for Sick Children, University of Toronto, Toronto, Canadá

Embora a pandemia causada pela infecção por Influenza A(H1N1) tenha sido extensamente investigada, há estudos limitados que examinaram o impacto da coinfecção viral sobre a gravidade da doença e produziram resultados conflitantes. Nesta edição do Jornal de Pediatria, Scotta et al.1 publicaram um estudo retrospectivo de 120 crianças brasileiras hospitalizadas com a infecção por pH1N1 e verificaram que a coinfecção viral respiratória é fator de risco para insuficiência respiratória. Concordando com esse achado, Torres et al. observaram que a coinfecção viral pelo vírus sincicial respiratório (VSR) se associou a aumento da mortalidade em análise multivariável de 142 crianças internadas para cuidados intensivos durante a primeira onda pandêmica na Argentina.2 Diferentemente, a coinfecção viral foi infrequente e teve pouco impacto sobre a morbidade e a mortalidade em uma amostra principalmente de pacientes adultos (79,3%) internados em unidade de terapia intensiva (UTI) na Austrália.3 Em um grande estudo de crianças e adultos conduzido no noroeste da Inglaterra, a coinfecção pelo VSR ou pelo adenovírus se associou a aumento do risco de internação em ala geral, enquanto o Influenza B aumentou o risco de admissão em UTI. Entretanto, em modelos de regressão logística multivariável, esses aumentos de risco não foram estatisticamente significativos.4 No mesmo estudo, a coinfecção pelos vírus Influenza A e Influenza B sazonais se associou a aumento significativo do risco de admissão em UTI ou óbito. Rhedin et al. não observaram correlação entre a detecção de vírus adicionais e a gravidade da doença em crianças suecas hospitalizadas com infecção pelo pH1N1.5 Estudos com tamanhos limitados de amostras na Espanha6 e no Brasil,7 de modo semelhante, não encontraram associação entre a coinfecção viral respiratória e a gravidade da infecção pelo pH1N1. Enquanto isso, em uma amostra de estudo que incluiu 96 (42,0%) crianças, Esper et al. verificaram que a coinfecção pelo rinovírus teve pouco impacto sobre a gravidade da doença por influenza; de fato, tais pacientes tiveram uma mediana de escore de gravidade clínica mais baixa, enquanto se observou o oposto para a coinfecção por vírus diferentes de rinovírus.8

Semelhantes aos estudos da infecção por pH1N1, artigos enfocando a importância relativa das infecções respiratórias virais mistas, em geral, resultaram em achados igualmente divergentes. Alguns estudos documentaram aumento da gravidade9-11 da doença respiratória em crianças infectadas por dois ou mais vírus, em comparação com aquelas com infecções por um único vírus, enquanto alguns artigos observaram o oposto.12-14 Outros estudos não encontraram associação de coinfecções respiratórias com gravidade da doença.15-17 Esses achados discrepantes podem ser explicados por vários fatores. Eles incluem diferenças da população estudada (variação das faixas etárias, extensão da gravidade da doença e proporções de sujeitos com condições comórbidas), diferenças geográficas e sazonais com respeito a vírus respiratórios circulantes, método de detecção viral (métodos tradicionais, como cultura e imunofluorescência direta, versus ensaios moleculares) e composição e características de desempenho dos painéis respiratórios moleculares. Não foram inteiramente esclarecidos os mecanismos que determinam a virulência da doença nas coinfecções. Alguns autores propuseram três grandes grupos de interações vírus-vírus ao tentar compreender e interrogar modelos mecanísticos em potencial da doença: (1) interações diretas dos genes virais ou produtos dos genes; (2) interações indiretas decorrentes de alterações do ambiente do hospedeiro; e (3) interações imunológicas.18 Nesse contexto, não seria surpreendente que diferentes mecanismos patogênicos fossem desencadeados por diferentes vírus que potencializam ou atenuam mutuamente os efeitos um do outro; desse modo, certos pareamentos de vírus podem ser clinicamente mais relevantes do que outros. Além disso, a detecção simultânea de múltiplos vírus não implica, necessariamente, em efeito patogênico na ocasião da detecção, especialmente quando são usados métodos moleculares. Em alguns casos, a detecção de dois vírus pode representar uma infecção aguda na presença de persistência viral de uma infecção recente.19

A potencial influência contraditória das infecções bacterianas concomitantes é outro fator importante que pode ter contribuído para os resultados conflitantes nos estudos que examinaram o papel da coinfecção por vírus respiratórios, no sentido de determinar a gravidade da doença nas infecções respiratórias, inclusive a influenza. Sabe-se que a influenza e outras infecções virais respiratórias predispõem à infecção pulmonar bacteriana secundária.20 A coinfecção bacteriana complica, pelo menos, 2,5% dos casos de influenza em indivíduos de mais idade e naqueles com condições predisponentes.20 Em uma série de 838 crianças em estado grave com infecção por pH1N1, 22% tinham evidências clínicas de coinfecção bacteriana, juntamente com culturas bacterianas positivas.21 Desse modo, não considerar a influência de coinfecção bacteriana pode trazer viés aos resultados.Por exemplo, um recente estudo de Chorazy et al.13 com 346 espécimes respiratórios arquivados de crianças tratadas para doença respiratória aguda nos hospitais e clínicas da Universidade de Iowa, verificou que as crianças com coinfecções virais tiveram menos probabilidade de precisar de terapia intensiva em análise não ajustada do que aquelas com infecções por vírus único.13 No entanto, os autores observaram que as crianças com coinfecções por vírus-bactérias, em comparação com aquelas com infecções por vírus único, tiveram mais probabilidade de necessitar de admissão em uma UTI, mesmo depois do controle para fatores de confusão em potencial, e que as coinfecções vírus-bactérias representaram uma proporção maior de espécimes positivos para vírus do que as coinfecções vírus-vírus-bactéria. Uma vez excluídas da análise as crianças com coinfecção por vírus-bactérias, a odds ratio observada tendeu para nula, sugerindo que a associação observada de coinfecção por vírus-vírus com desfecho melhor pode ser explicada, em parte, pela coinfecção vírus-bactérias. Além desse estudo de Chorazy et al.,13 uma minoria dos estudos citados neste comentário considerou ou fez ajustes para coinfecção bacteriana ou um representante dela como fator de confusão em potencial na análise.5,11,12,17 Mesmo quando são realizados tais ajustes, podem permanecer contradições residuais por coinfecções bacterianas não detectadas, como exemplificado por Scotta et al.1 nesta edição do Jornal de Pediatria. Os autores tinham estipulado codetecção bacteriana (definida como cultura positiva para um possível patógeno em secreções respiratórias, sangue ou outros espécimes estéreis) como uma das variáveis independentes a serem examinadas, mas não apresentaram dados de codetecção bacteriana, presumivelmente em razão da falta de infecção bacteriana confirmada microbiologicamente na coorte estudada.

O uso crescente de painéis virais respiratórios moleculares no contexto clínico salienta a importância de se obter conhecimentos mais completos sobre o impacto da coinfecção viral na gravidade da doença. Futuros estudos longitudinais prospectivos que incluam amostragem sequencial do trato respiratório, não apenas para detecção de vírus, mas também para experimentos mecanísticos, serão essenciais para nossos conhecimentos sobre a significância clínica das infecções respiratórias agudas polimicrobianas, bem como sobre a patogênese viral. A implementação de ensaios quantitativos múltiplos de PCR no desenho do estudo também pode ser meta válida, assim como a identificação precisa e abrangente de coinfecção bacteriana.

Conflitos de interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

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    Ver artigo de Scotta MC et al. nas páginas 444-9
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013
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