Acessibilidade / Reportar erro

Aleitamento materno e cárie do lactente e do pré-escolar: o mito que sobrevive

CARTAS AO EDITOR

Aleitamento materno e cárie do lactente e do pré-escolar: o mito que sobrevive

Nilza M. E. RibeiroI; Manoel A. S. RibeiroII

ICirurgiã-dentista, odontopediatra. Mestranda, Saúde da Criança, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. E-mail: anraquel@terra.com.br

IIPediatra, neonatologista. Mestre em Pediatria, PUCRS, Porto Alegre, RS

Prezado Editor,

O artigo de revisão de Losso et al., recentemente publicado neste respeitado periódico, propôs-se a informar os fatores de risco para a cárie em pacientes menores de 6 anos1. Lemos com muito interesse o manuscrito, uma vez que fomos citados em suas referências2, e comentaremos alguns aspectos que achamos pertinentes.

O primeiro é sobre a denominação de cárie para essa faixa etária. A expressão early childhood caries, adotada pela Academia Americana de Odontopediatria (American Academy of Pediatric Dentistry, AAPD), busca enfatizar a presença da doença cárie na dentadura decídua nos 6 primeiros anos de vida. A tradução de Losso et al.1, assim como de outros autores brasileiros, para esta expressão como "cárie precoce na infância" é inadequada, traz confusão quanto ao seu correto entendimento e não tem nenhuma relação com a conceituação proposta pela AAPD. Como o adjetivo "precoce" significa algo que é prematuro, que se produz antes do tempo normal ou que é formado antes da idade esperada, a adoção da nomenclatura "cárie precoce na infância" permite interpretar erroneamente que a cárie na dentição decídua é uma doença que se desenvolve em idade inferior à habitual. A confusão está no real significado da expressão early childhood, a qual designa o estágio de desenvolvimento humano que compreende os primeiros anos de vida, ou seja, o lactente e o pré-escolar. Por isso, a denominação "cárie do lactente e do pré-escolar (CLPE)", adotada pela primeira vez em literatura de língua portuguesa em nosso artigo2, é a versão mais exata e adequada, pois define, de forma inequívoca, a presença dessa patologia em crianças de até 6 anos de idade.

O segundo aspecto importante é que Losso et al. afirmam que nosso estudo teria relatado informações conflitantes sobre a cariogenicidade do leite materno1. Essa colocação não está correta, e a principal conclusão foi omitida por esses autores. Em nossa revisão sobre a relação entre o aleitamento materno e a CLPE, concluímos que não há evidências científicas que comprovem que o leite materno está associado com o surgimento de cárie. Complementamos afirmando que essa relação é complexa e confundida por muitas variáveis, principalmente infecção por Streptococcus mutans, hipoplasia do esmalte, ingestão de açúcares, em suas mais variadas formas, e condições sociais, representadas pela educação e nível socioeconômico dos pais2. Com muito orgulho, nosso artigo foi considerado recentemente por White3 um dos cinco estudos com evidências científicas relevantes sobre a associação entre aleitamento materno e CLPE. Nesse estudo, White3 mostrou claramente nossa conclusão e listou as possíveis limitações da nossa revisão crítica. A autora concluiu que, em razão dos provados benefícios do aleitamento materno e da falta de evidências consistentes de sua relação com o surgimento da CLPE, os odontologistas devem apoiar as atuais recomendações para o aleitamento materno. A autora também recomenda que se dê ênfase à promoção de boas práticas de higiene dental a partir da erupção do primeiro dente e que os pais sejam aconselhados a reduzir a frequência do consumo de alimentos e bebidas que contenham açúcar pelos lactentes e pré-escolares3.

O terceiro comentário diz respeito à grande preocupação de Losso et al. ao tentar enfatizar a posição da AAPD em desestimular o aleitamento materno sob livre demanda após o surgimento do primeiro dente decíduo1. Os autores, apesar de realizarem uma revisão bibliográfica dos últimos 25 anos, desconsideram as atuais evidências científicas que discordam dessa posição, incluindo grande parte das referências de nosso estudo2 e o estudo de White3. Além disso, verificamos equívocos importantes e primários feitos por Losso et al. em relação ao estudo de Plutzer & Spencer4, o que prejudica as recomendações sugeridas por estes sobre o aleitamento materno. Segundo Losso et al., os achados de Plutzer & Spencer embasam as recomendações da AAPD4. Entretanto, ao analisarmos esse estudo4, observamos um erro importante de interpretação. Plutzer & Spencer testaram a eficácia de um programa de promoção de saúde oral em gestantes nulíparas com o objetivo de reduzir a prevalência de CLPE em seus filhos aos 18 meses de idade. Os autores observaram que as crianças cujas mães receberam orientações sobre saúde dental durante a gestação e aos 6 e 12 meses de idade da criança tiveram a prevalência de CLPE reduzida em quatro vezes. Em nenhuma parte do estudo de Plutzer & Spencer foram referidas as recomendações da AAPD4. Pelo contrário, as orientações nutricionais adotadas pelos autores foram baseadas em recomendações oficiais do governo australiano, as quais estimulam manter o aleitamento materno pelo menos até 1 ano de idade e não sugerem limitá-lo sob qualquer pretexto, devido a sua baixa prevalência aos 6 meses (aproximadamente 20%)5.

Além disso, recentemente outro estudo confirmou que o leite materno, além de não ser cariogênico, é um elemento protetor no surgimento de cáries6. Niemi et al. demonstraram que compostos do leite humano têm a capacidade de inibir in vitro a adesão do S. mutans em cristais de hidroxiapatita6.

Diante das evidências científicas atuais, que sustentam que o leite materno não é cariogênico, discordamos das conclusões dos autores quanto a qualquer limitação ao aleitamento materno em função da saúde oral pediátrica. A posição de Losso et al.1 confirma outra informação relatada em nossa revisão crítica: apesar de não haver embasamento científico comprovando a associação entre aleitamento materno e cárie, muitos profissionais, tal como esses autores, ainda duvidam da ausência de cariogenicidade do leite humano, perpetuando o mito que se originou dessa associação.

Ressaltamos que nossos apontamentos não tiram o mérito do restante do artigo e esperamos ter contribuído com nossas observações.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Resposta dos autores

Estela M. LossoI; Maria Cristina R. TavaresII; Juliana Y. B. da SilvaIII; Cícero de A. UrbanIV

IDoutora. Odontopediatria, cirurgiã-dentista. Professora, Mestrado em Odontologia Clínica, Universidade Positivo, Curitiba, PR. E-mail: emlosso@up.edu.br

IIMestre, Saúde Coletiva. Cirurgiã-dentista. Professora, Saúde Coletiva e Odontologia da Infância, Universidade Positivo, Curitiba, PR

IIIMestre. Odontopediatria, cirurgiã-dentista. Estágio Avançado, Disciplina de Odontologia da Infância, Universidade Positivo, Curitiba, PR

IVMédico. Professor, Graduação e Pós-Graduação em Medicina, Universidade Positivo, Curitiba, PR

Prezado Editor,

Inicialmente, agradecemos a leitura bastante atenta e os comentários enviados por Ribeiro & Ribeiro a respeito do nosso artigo intitulado "Cárie precoce e severa na infância: uma abordagem integral"1. Nosso trabalho fez uma abordagem ampla sobre a cárie na infância, incluindo informações sobre sua prevalência, fatores de risco para seu desenvolvimento e aspectos clínicos, bem como repercussões locais e sistêmicas e prevenção. Desse modo, não foi nosso objetivo esgotar cada tópico abordado no artigo.

Em relação à terminologia empregada, observa-se que na literatura internacional podem ser encontradas diversas denominações, no decorrer dos anos, para o assunto em questão2. Embora a proposta do termo "cárie do lactente e do pré-escolar" seja válida e interessante, os termos "cárie precoce na infância" e "cárie de acometimento precoce" são consagrados na língua portuguesa e utilizados em artigos de odontologia no Brasil, sendo os mais empregados na prática entre os odontólogos2.

Em nenhum momento propusemos desestimular o aleitamento materno. Muito pelo contrário, entendemos que o papel do cirurgião-dentista é o de estimulá-lo, uma vez que, além dos inegáveis benefícios para a saúde física e psicológica da criança, a amamentação natural favorece um crescimento facial harmônico e previne o desenvolvimento de deglutição atípica e de maloclusões3.

Revendo o parágrafo onde citamos sua excelente revisão4 e no qual usamos a frase "informações conflitantes sobre a cariogenicidade do aleitamento materno"1, tratou-se de uma referência ao comentário "os resultados encontrados frequentemente contradizem-se uns aos outros, e os achados nem sempre foram reproduzidos"4, o que pode ser observado pelos artigos originais citados na revisão. Concordamos que suas conclusões foram de que "não há evidências científicas que comprovem que o aleitamento materno possa estar associado com o surgimento de cárie, sendo essa relação complexa e confundida por muitas variáveis"4. Nessa linha, Valaitis et al.5, em uma revisão sistemática sobre a associação entre aleitamento materno e cárie precoce na infância, concluem que "as evidências não sugerem uma associação consistente e forte entre aleitamento materno e o desenvolvimento de cárie precoce da infância"5 e que "as mulheres devem ser encorajadas a manterem o aleitamento materno enquanto desejarem"5. Entretanto, os autores também afirmam que as deficiências metodológicas dos 28 estudos revisados e incluídos na análise tornam difícil chegar a uma conclusão; além disso, os três estudos experimentais com melhor metodologia indicariam associação entre aleitamento materno noturno e cárie precoce da infância.

Uma das recomendações da Academia Americana de Odontopediatria (American Academy of Pediatric Dentistry, AAPD) para prevenção da cárie precoce na infância é que se evite a amamentação noturna com livre demanda após a erupção dos dentes. Em nosso parágrafo houve um erro de digitação, que fez com que realmente faltasse a palavra "noturna", o que, de fato, mudou o sentido da frase. Os odontólogos estimulam o aleitamento materno exclusivo até os 6 meses, idade na qual coincidem o início da alimentação mista e a erupção dos dentes decíduos. Nesse período, a criança já não está mais sob o regime de aleitamento natural exclusivo, e outros alimentos são introduzidos na sua dieta até seu completo desmame, aos 2 ou mais anos de idade. A continuidade da frase reforça a importância da higiene dental depois que a criança mamar e antes de ir para a cama. Mais uma vez agradecemos a leitura atenta, o que oportunizou o debate e a correção desta recomendação.

Os leites humano e bovino realmente possuem componentes protetores para o esmalte dental. Porém, as bactérias do biofilme dental podem metabolizar a lactose e apresentar propriedades cariogênicas quando o tempo de contato é prolongado e a frequência é alta (mais de seis vezes ao dia)3. Durante o sono, há redução do fluxo salivar e da frequência de deglutição, favorecendo a permanência do leite na cavidade bucal. Com a diminuição do fluxo salivar, ocorre a redução da capacidade tampão da saliva, que é o protetor natural das estruturas dentais. Além disso, devemos considerar que, após a amamentação durante o sono, os pais têm maior dificuldade para realizar a higiene dental da criança. A associação desses fatores pode tornar o ambiente bucal mais propício ao desenvolvimento da cárie dentária. A recomendação é que, após a amamentação, a higiene bucal seja realizada3. Nesse ponto, é interessante notar que, dependendo das condições experimentais, podemos encontrar estudos que indicam a presença de fatores protetores no leite materno6 e estudos que sugerem que o leite materno apresenta potencial cariogênico7.

Sendo a doença cárie de etiologia multifatorial, existe sempre associação de fatores de risco, e a relação será de associação, e não de causa-efeito. Ações de promoção de saúde que contemplam fatores distais de associação são, sem dúvida, as ações de maior impacto populacional. Porém, é inegável a participação de fatores comportamentais na experiência de cárie. A orientação nutricional sempre fará parte do rol de medidas de prevenção.

Conforme resumimos no artigo, Plutzer & Spencer8 realizaram um programa motivacional iniciado no período gestacional e reforçado aos 6 e 12 meses de vida do bebê, que apresentou redução de cárie quando comparado ao grupo controle, que participou do programa somente no início da pesquisa. Não observamos contradição com a descrição, um pouco mais detalhada, de Ribeiro & Ribeiro. Acreditamos que os resultados Plutzer & Spencer8 podem dar suporte à recomendação da AAPD no que se refere à consulta precoce, pois esta favorece a prevenção da cárie dentária.

Agradecemos pelo espaço disponibilizado nesta excelente revista. Assuntos de grande importância, como a cárie, doença crônica mais comum na infância, mostram-nos a necessidade de uma integração dos profissionais da área da saúde que trabalham com crianças, objetivo principal de nosso artigo.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Referências (Resposta dos Autores) / References (Authors' Reply)

  • 1. Losso EM, Tavares MC, da Silva JY, Urban CA. Severe early childhood caries: an integral approach. J Pediatr (Rio J). 2009;85:295-300.
  • 2. Ribeiro NM, Ribeiro MA. Breastfeeding and early childhood caries: a critical review. J Pediatr (Rio J). 2004;80:S199-210.
  • 3. White V. Breastfeeding and the risk of early childhood caries. Evid Based Dent. 2008;9:86-8.
  • 4. Plutzer K, Spencer AJ. Efficacy of an oral health promotion intervention in the prevention of early childhood caries. Community Dent Oral Epidemiol. 2008;36:335-46.
  • 5. Jackson M. Food for toddlers. The information leaflet based on Child and Youth Health's Feeding Babies and Young Children' and the National Health and Medical Research Council's Dietary Guidance for Children and Adolescents'. Adelaide, SA: Anti-Cancer Foundation South Australia, 1999.
  • 6. Niemi LD, Hernell O, Johansson I. Human milk compounds inhibiting adhesion of mutans streptococci to host ligand-coated hydroxyapatite in vitro. Caries Res. 2009;43:171-8.
  • 1. Losso EM, Tavares MC, da Silva JY, Urban CA. Severe early childhood caries: an integral approach. J Pediatr (Rio J). 2009;85:295-300.
  • 2. Azevedo TD, Toledo OA. Cárie severa da infância: discussăo sobre a nomenclatura. J Bras Odontopediatr Odontol Bebe. 2002;5:336-40.
  • 3. Nelson-Filho P, Queiroz AM, Mussolino ZM, Assed S. Avaliaçăo dos hábitos alimentares em crianças portadoras de Cárie de mamadeira. J Bras Odontopediatr Odontol Bebe. 2001;4:30-4.
  • 4. Ribeiro N, Ribeiro M. Aleitamento materno e cárie do lactente e do pré-escolar: uma revisăo crítica. J Pediatr (Rio J). 2004;80:S199-210.
  • 5. Valaitis R, Hesch R, Passarelli C, Sheehan D, Sinton J. A systematic review of the relationship between breastfeeding and early childhood caries. Can J Public Health. 2000;91:411-7.
  • 6. Niemi LD, Hernell, O, Johansson I. Human milk compounds inhibiting adhesions of mutans streptococci to host ligand-coated hydroxyapatite in vitro. Caries Res. 2009;43:171-8.
  • 7. Peres RC, Coppi LC, Volpato MC, Groppo FC, Cury JA, Rosalen PL. Cariogenic potential of cows', human and infant formula milks and effect of fluoride supplementation. Br J Nutr. 2009;101:376-82.
  • 8. Plutzer K, Spencer AJ. Efficacy of an oral health promotion intervention in the prevention of early childhood caries. Community Dent Oral Epidemiol. 2008;36:335-46.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009
Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: jped@jped.com.br