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Que padrões usar para medir obesidade em crianças?

EDITORIAIS

Que padrões usar para medir obesidade em crianças?

Andrew Tomkins

Professor of International Child Health, Centre for International Child Health, Institute of Child Health, University College London, London, UK

A obesidade infantil é um problema de saúde pública que preocupa cada vez mais devido ao crescimento rápido de sua prevalência em muitos países em todo o mundo1. A obesidade contribui para a doença cardíaca precoce, síndrome metabólica, inclusive hiperlipidemia e diabetes, hipertensão e derrame2. O desenvolvimento de políticas e programas para melhorar a qualidade da nutrição infantil só será possível com base em evidências se for obtido algum tipo de informação sobre quantas crianças apresentam sobrepeso e sobre o quanto o risco para sua saúde aumenta por estarem em um nível específico de sobrepeso ou franca obesidade. Em adultos, essa é uma questão relativamente simples, em função do risco estatístico bem estabelecido de morbidade precoce e mortalidade associado a um índice de massa corporal (IMC) (kg/m2) > 25 (sobrepeso) ou >30 (obesidade)3,4. Há claras evidências de estudos longitudinais de que a obesidade infantil é associada com maior risco de problemas vasculares e metabólicos na idade adulta5. Contudo, diversos métodos são atualmente usados para medir a obesidade em crianças; o desafio é selecionar o melhor e segui-lo coerentemente para avaliar e monitorar a obesidade infantil na prática clínica e na saúde pública.

Há diversas questões a serem consideradas na decisão de quais pontos de corte traduzem um nível "seguro" de estatura corporal na infância. A primeira é a idade. Em uma comparação de seis conjuntos de dados internacionais, a mediana de IMC está em torno de 13 ao nascimento, aumenta para 17 no primeiro ano de vida, diminui para 15,5 aos 6 anos e aumenta novamente para 21 aos 20 anos6. O segundo é a diversidade étnica. Há diferenças na distribuição da gordura corporal em indivíduos de ascendências diferentes, embora ainda não esteja claro até que ponto isso se deve a diferenças alimentares. O terceiro fator é a puberdade. Existem diferenças claras na forma do corpo de meninos e meninas, e a idade de início da puberdade muda o formato de toda e qualquer curva de IMC específica da idade.

Uma pergunta fundamental ainda precisa ser feita em nível nacional e internacional - que padrões devem ser usados para diagnosticar sobrepeso em crianças? Em maio de 2000, um importante artigo foi publicado por Cole et al. descrevendo o peso e a altura em diferentes idades, tanto em meninos quanto em meninas, usando dados populacionais dos Estados Unidos, Cingapura, Holanda, Hong Kong, Reino Unido e Brasil6,7. Foram utilizados conjuntos de dados de grande porte e rigorosamente montados, com cada levantamento englobando mais de 10.000 sujeitos com idade variando de 6 a 18 anos. As curvas dos percentis de IMC nessas crianças foram construídas pelo método LSM7. Nesse método, os dados são resumidos em termos de três curvas suavizadas específicas para a idade, chamadas de "L" (lambda), "M" (mu) e "S" (sigma). As curvas M e S correspondem à mediana e aos coeficientes de variação do IMC em cada faixa de 2 anos. A curva L dá conta da substancial distorção dependente da idade na distribuição do IMC. Os valores médios para o cálculo LMS podem então ser apresentados em uma tabela ou figura. A lógica para utilizar esse enfoque estatístico específico é explicada no artigo de Cole et al. Não surpreende terem sido verificadas diferenças entre os seis conjuntos de dados em termos das curvas construídas a partir da mediana de IMC por idade para meninos e meninas. Contudo, o formato básico das curvas foi bastante semelhante.

Os dados também foram expressos como percentis de sobrepeso (usando o IMC adulto de 25) e obesidade (usando o IMC adulto de 30). Essas curvas de percentis ficaram muito mais próximas entre si do que as curvas de medianas. Tomando como ponto de corte aos 18 anos um IMC de 25, a porcentagem acima do ponto de corte (sobrepeso) variou de 4,7% nos meninos brasileiros até 18,1% em meninos estadunidenses. Os números equivalentes para as meninas foram 15,2% e 16,5% respectivamente. Utilizando o percentil para um IMC de 30 (obesidade) aos 18 anos, a porcentagem acima do ponto de corte foi de 0,1% em meninos brasileiros, chegando a 3,3% em meninos estadunidenses. Os números equivalentes em meninas foram 2,0% e 4,0%, respectivamente.

Os resultados dessa análise foram reforçados pelo Força-Tarefa Internacional em Obesidade (International Obesity Task Force), que produziu uma tabela de pontos de corte internacionais de IMC para sobrepeso e obesidade, por sexo, entre 2 e 18 anos. Embora esse enfoque forneça um ponto de corte baseado na idade e no sexo para sobrepeso e obesidade, ligado ao risco no adulto, os autores apontam que o grau de risco associado a esses pontos de corte em crianças, em termos do risco adverso à saúde na idade adulta, não foi validado em muitos países, e que estudos longitudinais são uma necessidade urgente8.

Depois disso, um grande número de artigos sobre obesidade infantil foram publicados, alguns dos quais utilizando diferentes padrões e optando pelos pontos de corte mais liberais representados pelos percentis 85° ou 95° dos padrões nacionais para sobrepeso e obesidade, respectivamente. Esses pontos de corte foram criticamente comparados aos pontos de corte de IMC9. Jebb & Prentice10 também questionaram o uso de percentis em vez de dados de IMC ajustados. Em primeiro lugar, eles observaram que valores diferentes são obtidos conforme o padrão de percentis utilizado, o que impossibilita comparações internacionais. Em segundo lugar, eles apontam a obviedade da previsão de que, se os pontos de corte percentis são usados para medir sobrepeso e obesidade, sempre haverá 15% de sobrepeso e 5% de obesidade. Em terceiro lugar, eles observaram que a escolha dos percentis 85° e 95°, usada por diversos pesquisadores, efetivamente aumenta o número aparente de crianças com sobrepeso e obesas. Eles argumentam fortemente em favor do uso do padrão de referência da Força de Trabalho Internacional em Obesidade, como na Tabela 4 do artigo de Cole e colegas6.

O artigo de Conde & Monteiro11, da Universidade de São Paulo, publicado neste número, tem, portanto, valor considerável. Eles utilizaram dados de mais de 25.000 crianças entre 2 e 19 anos extraídos do conjunto da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição de 1989. Eles também utilizaram o método LMS para calcular os parâmetros para as curvas de IMC e acrescentaram uma análise adicional para comparar esses parâmetros em diferentes idades. Usaram os pontos de corte de IMC de 17,5, 25 e 30 aos 20 anos. O resultado é um conjunto de dados detalhado, com os dados tabulados em intervalos de 3 meses para cada sexo. Dessa forma, os dados brasileiros foram comparados com IMCs de adultos associados a risco conhecido em diversos países. O conjunto de dados analisado pelos autores foi especialmente sólido, com baixas taxas de exclusão ou rejeição; a subdivisão da análise em agrupamentos de 3 meses significa que as diferenças sutis no estado nutricional das populações podem ser comparadas com muito cuidado. For exemplo, futuras análises relativas ao impacto da mudança na idade da menarca ou da prevenção da obesidade são agora possíveis.

Há diversas vantagens claras de usar o método LMS para analisar conjuntos de dados detalhados como no artigo de Conde & Monteiro, e os autores apontam a capacidade de modelar de forma independente o coeficiente de variação melhor do que o desvio padrão. Ainda existem os que argumentam em favor do uso de conjuntos de dados nacionais analisados de acordo com percentis somente em vez de percentis relacionados a pontos de corte de IMC em adultos. Contudo, em qualquer país onde esteja ocorrendo uma transição nutricional, os métodos que se limitam à análise somente com percentis terão pouca probabilidade de detectar mudanças verdadeiras na prevalência de obesidade, e cabe esperar que o artigo de Conde & Monteiro venha a ser usado para planejamento e monitoramento nacional.

Um aspecto especialmente interessante do artigo de Conde & Monteiro é o uso de percentis com um IMC de 17,5 como ponto de corte para déficit nutricional. Este é um acréscimo especialmente útil em comunidades onde algumas crianças podem apresentar baixo peso enquanto outras apresentam sobrepeso. A dupla carga da desnutrição é cada vez mais reconhecida internacionalmente.

O conjunto de dados no artigo de Conde & Monteiro permite agora uma série de estudos, inclusive uma avaliação longitudinal de risco de acordo com IMC infantil. Espera-se que esses dados permitam a realização de estudos de seguimento12,13. Esses dados também possibilitarão uma avaliação do impacto da mudança secular no desenvolvimento infantil, inclusive da menarca no crescimento. Mais importante, esse artigo permite agora uma análise cuidadosa de estudos sobre aspectos socioeconômicos, nutricionais e de atividade física a serem desenvolvidos no Brasil e em outros lugares, comparando o progresso e o impacto das intervenções de saúde pública em crianças cada vez mais vulneráveis porque são muito gordas.

Referências

1. Stettler N. Comment: the global epidemic of childhood obesity: is there a role for the paediatrician? Obes Rev. 2004;5 Suppl 1:1-3.

2. Berenson GS, Srinivasan SR, Wattigney WA, Harsha DW. Obesity and cardiovascular risk in children. Ann N Y Acad Sci. 1993;699:93-103.

3. Garrow, JS. Energy balance and obesity in man. Amsterdam: Elsevier; 1978.

4. Garrow, JS. Obesity and related diseases. London: Churchill Livingstone; 1988.

5.Power C, Lake JK, Cole TJ. Measurement and long-term health risks of child and adolescent fatness. Int J Obes Relat Metab Disord. 1997;21:507-26.

6. Cole TJ, Bellizzi MC, Flegal KM, Dietz WH. Establishing a standard definition for child overweight and obesity worldwide: international survey. BMJ. 2000;320:1240-3.

7. Cole TJ, Freeman JV, Preece MA. British 1990 growth reference centiles for weight, height, body mass index and head circumference fitted by maximum penalized likelihood. Stat Med. 1998;17:407-29.

8. Must A, Jacques PF, Dallal GE, Bajema CJ, Dietz WH. Long-term morbidity and mortality of overweight adolescents. A follow-up of the Harvard Growth Study of 1922 to 1935. N Engl J Med. 1992;327:1350-5.

9. Wang Y, Wang JQ. A comparison of international references for the assessment of child and adolescent overweight and obesity in different populations. Eur J Clin Nutr. 2002;56:973-82.

10. Jebb SA, Prentice AM. Single definition of overweight and obesity should be used. BMJ. 2001;323:999.

11. Conde WL, Monteiro CA. Body mass index cutoff points for evaluation of nutritional status in Brazilian children and adolescents. J Pediatr (Rio J). 2006;82:266-72.

12. Bellizzi MC, Dietz WH. Workshop on childhood obesity: summary of the discussion. Am J Clin Nutr. 1999;70:173S-5S.

13. Reilly JJ. Assessment of childhood obesity: national reference data or international approach? Obes Res. 2002;10:838-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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