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Uma comparação crítica entre a Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças da Organização Mundial de Saúde e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename)

Resumos

OBJETIVO: Realizar uma comparação crítica entre a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename, 2012) e a Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças (LMEC, 2011) da Organização Mundial de Saúde (OMS), com relação às diferenças entre os medicamentos e as formulações listadas para crianças. MÉTODOS: Os medicamentos da LMEC foram classificados em quatro grupos: 1) não constam na Rename; 2) constam na Rename, porém sem qualquer formulação adequada para crianças; 3) listados na Rename apenas com algumas formulações; 4) constam na Rename em todas as formulações. As formulações que faltam foram analisadas por grupos terapêuticos. As alternativas presentes na Rename foram pesquisadas. RESULTADOS: Dos 261 medicamentos de interesse listados na LMEC, 30,3% não estão presentes na Rename, 11,1% estão na Rename, mas sem qualquer formulação pediátrica, e 32,3% estão presentes em algumas, mas não todas as formulações listadas na LMEC. Considerando todos os itens de formulações listados na LMEC (n = 577), 349 não constam na Rename, desses, 19,6% devido à intensidade de dosagem, e 18,5% devido à forma farmacêutica. Faltam formulações úteis específicas para cuidado neonatal, trato respiratório e sistema nervoso central, anti-infecciosos, entre outros grupos. CONCLUSÃO: A ausência de formulações adequadas à idade de medicamentos essenciais para crianças no Brasil inclui importantes grupos terapêuticos e medicamentos indispensáveis para quadros clínicos graves. Alguns desses produtos são encontrados no mercado farmacêutico brasileiro, porém não existem em unidades públicas; outros poderiam ser produzidos por laboratórios nacionais com interesse comercial ou estimulados por uma política governamental específica, como é feito em outros países.

Recém-nascido; Neonato; Criança; Preparações farmacêuticas; Política de saúde pública; Medicamentos essenciais


OBJECTIVE: To perform a critical comparison between the Brazilian national essential medicines list (Rename, 2012) with the list of essential medicines for children (LEMC, 2011) of the World Health Organization (WHO), regarding the differences among drugs and formulations listed for children. METHODS: The LEMC drugs were classified into four categories: 1) absent in Rename; 2) included in Rename but without any formulation suitable for children; 3) listed in Rename only in some formulations; 4) present in Rename in all formulations. The missing formulations were analyzed by therapeutic group. Alternatives present in Rename were searched. RESULTS: From the 261 drugs of interest on the LEMC, 30.3% are absent from Rename, 11.1% are in Rename but without any pediatric formulation, and 32.2% are present in some but not all formulations listed in LEMC. Considering all formulations items listed in the LEMC (n = 577), 349 are missing from Rename, of these 19.6% due to their strength, and 18.5% due to the the dosage form. Useful formulations specific for neonatal care, respiratory tract, central nervous system, and anti-infectives, among other groups, are missing. CONCLUSIONS: The lack of age-appropriate formulations of essential medicines for children in Brazil includes important therapeutic groups and indispensable drugs for severe clinical conditions. Some of these products exist in the Brazilian pharmaceutical market, but not in public facilities; others could be produced by national laboratories with commercial interest or stimulated by a specific governmental policy, as in other countries.

Newborn; Infant; Child; Pharmaceutical preparations; Health public policy; Drugs, essential


ARTIGO ORIGINAL

Uma comparação crítica entre a Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças da Organização Mundial de Saúde e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename)

Helena Lutéscia L. CoelhoI,* * Autor para correspondência. E-mail: helenalutescia@yahoo.com.br (H.L.L. Coelho). ; Luís Carlos ReyII; Marina S.G. de MedeirosIII; Ronaldo A. BarbosaIV; Said G. da Cruz FonsecaV; Patricia Q. da CostaVI

IDoutora em Farmacologia, Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas, Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, CE, Brasil

IIDoutor em Pediatria, Departamento de Saúde Materno-Infantil, UFC, Fortaleza, CE, Brasil

IIIFarmacêutica. Aluna do Curso de Mestrado em Ciências Farmacêuticas, UFC, Fortaleza, CE, Brasil

IVFarmacêutico, UFC, Fortaleza, CE, Brasil

VMestre em Ciências Farmacêuticas, Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Inovação Tecnológica em Medicamentos, UFC, Fortaleza, CE, Brasil

VIDoutora em Saúde Pública. Professora, Centro Universitário Estácio - Faculdades Integradas do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: Realizar uma comparação crítica entre a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename, 2012) e a Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças (LMEC, 2011) da Organização Mundial de Saúde (OMS), com relação às diferenças entre os medicamentos e as formulações listadas para crianças.

MÉTODOS: Os medicamentos da LMEC foram classificados em quatro grupos: 1) não constam na Rename; 2) constam na Rename, porém sem qualquer formulação adequada para crianças; 3) listados na Rename apenas com algumas formulações; 4) constam na Rename em todas as formulações. As formulações que faltam foram analisadas por grupos terapêuticos. As alternativas presentes na Rename foram pesquisadas.

RESULTADOS: Dos 261 medicamentos de interesse listados na LMEC, 30,3% não estão presentes na Rename, 11,1% estão na Rename, mas sem qualquer formulação pediátrica, e 32,3% estão presentes em algumas, mas não todas as formulações listadas na LMEC. Considerando todos os itens de formulações listados na LMEC (n = 577), 349 não constam na Rename, desses, 19,6% devido à intensidade de dosagem, e 18,5% devido à forma farmacêutica. Faltam formulações úteis específicas para cuidado neonatal, trato respiratório e sistema nervoso central, anti-infecciosos, entre outros grupos.

CONCLUSÃO: A ausência de formulações adequadas à idade de medicamentos essenciais para crianças no Brasil inclui importantes grupos terapêuticos e medicamentos indispensáveis para quadros clínicos graves. Alguns desses produtos são encontrados no mercado farmacêutico brasileiro, porém não existem em unidades públicas; outros poderiam ser produzidos por laboratórios nacionais com interesse comercial ou estimulados por uma política governamental específica, como é feito em outros países.

Palavras-chave: Recém-nascido; Neonato; Criança; Preparações farmacêuticas; Política de saúde pública; Medicamentos essenciais

Introdução

O conceito de medicamentos essenciais é globalmente aceito como um meio poderoso de promover a igualdade na saúde, e é instrumentalizado por uma lista de referência. Por definição, medicamentos essenciais são aqueles que atendem às necessidades prioritárias de assistência médica da população.1 A elaboração de uma lista de medicamentos essenciais para crianças (LMEC) foi conduzida para corrigir uma injustiça que prevaleceu por 40 anos, já que a lista geral de medicamentos essenciais da Organização Mundial de Saúde (OMS) não contemplava suficientemente as necessidades de tratamento de crianças. Essas necessidades referem-se às especificidades das crianças como um grupo heterogêneo em termos de processos físicos, metabólicos e psicológicos peculiares ao crescimento, desde o nascimento até a idade adulta, e aos aspectos farmacêuticos das formulações, fundamentais para administração em crianças. O tamanho dos comprimidos, o volume da solução parenteral e a palatabilidade do medicamento oral pediátrico são exemplos desses aspectos.2-4

A Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças da OMS possui uma lista modelo a ser adaptada pelas nações de acordo com suas necessidades e circunstâncias. Ela constitui uma ferramenta dinâmica, revisada e atualizada periodicamente por comitês ad hoc, como ocorreu com a Lista de Medicamentos Essenciais principal por 40 anos. Essa lista específica, mesmo na terceira versão (2011), continua incompleta e certamente insatisfatória, devido à falta de medicamentos adequados para crianças no mundo. O processo de seleção de medicamentos essenciais tem como base os procedimentos validados mundialmente e estabelecidos na avaliação de evidências existentes sobre a eficácia e segurança da utilização, conveniência para os pacientes e compatibilidade dos custos com os recursos dos pacientes ou da comunidade.5 Para medicamentos pediátricos, essa avaliação é limitada pela escassez de evidências disponíveis e ensaios clínicos bem feitos e controlados em crianças, pelas limitações do conhecimento em farmacocinética nas diferentes faixas etárias, bem como pela escassez de formulações adequadas para subgrupos em diferentes estágios de desenvolvimento fisiológico, como por exemplo, neonatos prematuros, neonatos a termo, lactentes e crianças de um a três anos ou crianças mais velhas e adolescentes.6-9

O Brasil possui uma política nacional de medicamentos definida por lei10 que inclui a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) como uma ferramenta para sua implementação. Este instrumento é uma relação geral que orienta todo o país sobre a disponibilidade de medicamentos no sistema de saúde. Nas últimas versões, a Rename está progressivamente incluindo medicamentos e formulações de medicamentos para uso pediátrico.11-13 Contudo, trabalhos recentes mostram uma falta de acesso a formulações adaptadas à idade em unidades públicas, bem como a inexistência de algumas formulações necessárias no mercado farmacêutico brasileiro.14-20

O objetivo deste trabalho é comparar criticamente a Rename de 2012 com a LMEC de 2011, destacando a falta de medicamentos e formulações pediátricas na lista de referência brasileira e discutindo a necessidade de uma política governamental específica para induzir essa área.

Métodos

A composição da Rename de 201213 foi comparada à composição da LMEC de 201121 quanto à presença de medicamentos e formulações adequadas a crianças por meio da criação de uma planilha utilizando o software Microsoft Excel 2007®. Dois analistas treinados foram designados para comparar as listas e criar a planilha com a supervisão de um farmacêutico clínico com experiência em farmácia pediátrica.

Uma apresentação ou formulação farmacêutica foi considerada por definição como um medicamento em uma determinada forma e intensidade de dosagem. Assim, um medicamento poderá ser apresentado em mais de uma formulação diferente. Isso significa que, por exemplo, comprimidos, comprimidos dispersíveis, comprimidos sulcados, cápsulas, creme, pomada, injetável, pó para injetável, bem como intensidades e concentrações diferentes são considerados formulações diferentes. Essa análise é justificada por algumas características específicas de formulações fundamentais para facilitar a administração e promover o uso seguro e efetivo em crianças.2,3

Os produtos foram classificados em quatro categorias, dependendo da presença ou ausência do medicamento ou sua formulação pediátrica na Rename. As categorias são descritas em "Resultados". Além disso, para cada formulação ausente na Rename, foi verificado se essa ausência era relacionada à concentração do princípio ativo ou à forma farmacêutica. As combinações de princípios ativos como "Lamivudina + Zidovudina" foram consideradas distintas das formulações dos componentes separadamente. A classificação adotada dos medicamentos em classes terapêuticas foi a mesma que a da lista da OMS. Foi realizada uma análise para identificar quais classes terapêuticas são mais afetadas pela ausência de formulações pediátricas na Rename.

Adicionalmente, foram pesquisadas as indicações pediátricas das formulações presentes na Rename no compêndio de bulas de medicamentos da ANVISA, disponível on-line (http://www.anvisa.gov.br) e inversamente identificadas na LMEC de 2011.

O protocolo do estudo foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital São José, em Fortaleza, Brasil.

Resultados

Na lista de medicamentos essenciais para crianças da OMS de 2011 (LMEC de 2011) existem 272 medicamentos diferentes ou combinações em doses fixas. Para fins de análise, foram excluídos das comparações 11 medicamentos que não correspondem às necessidades epidemiológicas no Brasil, dentre eles a vacina contra encefalite japonesa e a pentamidina, medicamento utilizado no tratamento da tripanossomíase do Oeste Africano (T. brucei gambiensis) e em casos raros de pneumonia Pneumocystis jirovecii (PCP) nos pacientes com AIDS e alérgicos a cotrimoxazol/trimetoprima. A análise compreendeu o restante que foi de 261 medicamentos, considerados essenciais para as para crianças no Brasil.

Desses 261 medicamentos encontrados na LMEC de 2011, 81 (31,0%) não estavam presentes de forma alguma na lista brasileira publicada em 2012 e foram classificados como categoria 1; na categoria 2, os medicamentos presentes na Rename, porém sem qualquer formulação adequada para a utilização em crianças, somaram 28 (10,7%); na categoria 3, os medicamentos presentes na Rename com no mínimo uma formulação incluída na LMEC totalizaram 84 (32,2%); e na categoria 4, o número de medicamentos presentes na Rename com todas as formulações pediátricas existentes na LMEC foi 68 (26,1%).

Analisando em termos de preparações farmacêuticas, esses 261 medicamentos essenciais selecionados são apresentados em 577 formulações distintas na LMEC, e 350 deles (60,7%) não constam na Rename: 113 em termos de concentração da preparação (19,6%), 106 devido à forma farmacêutica (18,4%) e 131 pela ausência do princípio ativo (22,7%).

As formulações correspondentes aos grupos "agentes de diagnóstico" e de "problemas de ouvido, nariz e garganta em crianças" não constam de forma alguma na lista brasileira. Além dessas, 88,9%, 87,5%, 80,0%, 76,9% e 75,0% das formulações das categorias "Vitaminas e Minerais", "Relaxantes musculares e inibidores da colinesterase", "Medicamentos específicos para cuidado neonatal", "Anticonvulsivantes /Antiepilépticos" e "Diuréticos", respectivamente, não constam na Rename.

Entre os medicamentos anti-infecciosos, no mínimo 52,4% das formulações de cada subgrupo terapêutico estão faltando, principalmente nos subgrupos "Anti-helmíntico" (78,6%), "Antifúngico" (73,3%) e "Medicamentos antibacterianos" (57,6%). No subgrupo "Antibacterianos", 64,0% da seção "Medicamentos antituberculose" não constam na Rename. No subgrupo "Antiprotozoário", nos itens "Antitripanossômico" e "Antileishmanioses", 75,0% das formulações não constam na Rename e, no item "Antimalárico", 62,5% das formulações não constam na Rename de 2012.

As Tabelas 1, 2 e 3 discriminam as formulações que não constam em algumas classes terapêuticas. Nessas tabelas, as alternativas terapêuticas existentes na Rename de 2012, nos mesmos subgrupos, são descritas em termos de medicamentos ou formulações que não constam na LMEC de 2011. Conforme explicado na seção Métodos, a Rename não mostra a indicação terapêutica dos medicamentos, e essas informações foram pesquisadas no compêndio de bulas de medicamentos disponível on-line. No grupo terapêutico "Medicamentos específicos para cuidado neonatal", a retirada de formulações de citrato de cafeína, prostaglandina E e ibuprofeno deixou essa população sem alternativas adequadas para situações críticas. Entre os medicamentos que atuam no trato respiratório, falta apenas uma formulação, o sulfato de salbutamol 50 ug/mL em ampola de 5 mL, e a Rename apresenta mais alternativas para o tratamento da asma em comparação à LMEC. No grupo "Anticonvulsivantes/Antiepilépticos" a falta de formas farmacêuticas adequadas e a variedade de concentrações de medicamentos comuns (p. ex. Carbamazepina, Diazepam, Lorazepam, Fenitoína) é mostrada, porém a Rename apresenta algumas apresentações úteis de fenobarbital e ácido valproico.

Discussão

A falta de formulações de medicamentos adequadas para crianças é uma preocupação mundial considerada apenas em alguns países e regiões desenvolvidos, bem como multilateralmente por organizações, como as iniciativas da OMS.22-34

Este trabalho realiza um inventário da falta de Medicamentos Essenciais em formulações adequadas para crianças na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename de 2012), utilizando como referência a Lista de Medicamentos Essenciais para Crianças elaborada pela OMS (LMEC de 2011). Alguns dos medicamentos completamente ausentes na Rename, mas presentes na LMEC, têm importância mínima ou nenhuma para crianças brasileiras (como a miltefosina no tratamento da Leishmaniose Visceral Americana), mas outros são antibióticos sistêmicos úteis, como a vancomicina, a ampicilina e a cloxacilina (ou seu equivalente oxacilina, muito utilizado no Brasil). Contudo, esta não é uma análise quantitativa ou qualitativa exaustiva sobre quais medicamentos e formulações devem ser considerados essenciais para crianças brasileiras, mas uma tentativa de descrever a falta de medicamentos e formulações adequados para crianças como um problema relevante, que merece atenção dos órgãos reguladores da saúde. Sabe-se bem que a ausência de medicamentos e formulações apropriados para crianças (medicamentos devidamente estudados em crianças, com forma farmacêutica e concentrações adequadas) leva à utilização não licenciada e off-label de medicamentos e/ou à utilização de medicamentos menos seguros ou eficientes.7,35 A falta de medicamento específico para o tratamento de neonatos, como na Rename em comparação à LMEC, força o uso de preparações magistrais ou extemporâneas e, às vezes, a substituição de um medicamento por outros mais tóxicos. O primeiro é exemplificado pelo uso de preparados de citrato de cafeína como estimulante respiratório, e o segundo pelo uso de indometacina em vez de ibuprofeno no tratamento da persistência do canal arterial.36 Outro exemplo relativo a neonatos é a ausência dos antimicrobianos ampicilina e gentamicina na Rename, o que prejudica o tratamento adequado de Enterococcus sp. e infeções sistêmicas por Listeria monocytogenes nessa idade precoce.37 Esses tipos de estratégias estão associados a erros na medicação e eventos adversos, conforme sugerido em vários estudos realizados em todo o mundo.16-18,38-40 Em alguns subgrupos terapêuticos, como no caso de "Medicamentos para o tratamento da asma", alternativas adicionais estão presentes na Rename em comparação à LMEC, porém existem pontos críticos. Por exemplo, a solução de salbutamol para nebulização presente na Rename é 10 vezes mais concentrada (500 mcg/mL) em comparação à LMEC (50 mcg/mL), aumentando a possibilidade de erros. Adicionalmente, a inclusão de formoterol como terapia isolada é imprópria, considerando o risco reconhecido do uso isolado de beta2-agonistas de ação prolongada na asma.41,42

No caso dos medicamentos antiepilépticos, a formulação líquida adequada de etossuximida para crianças foi incluída na Rename de 2012, e a fenitoína está presente como solução oral e xarope de 50 mg/mL, porém não em comprimido mastigável ou em compridos de 25 mg e 50 mg como na LMEC. No grupo de "antifúngicos, anti-helmínticos e antitripanossomas", a quantidade reduzida de medicamentos anti-helmínticos na Rename é notável e não compatível com a realidade do país. Distintamente da LMEC, pirantel, niclosamida e mebendazol são medicamentos não disponíveis. O praziquantel também está presente em comprimidos de 150 mg e a niclosamida em comprimidos mastigáveis, na LMEC. Na Rename, ainda há uma necessidade de medicamentos não absorvíveis para helmintos intestinais. No caso dos antitripanossomas, há uma vantagem para a Rename, que inclui comprimidos de benzonidazol 12,5 mg, dosagem não encontrada na LMEC.

Em termos de antivirais e antirretrovirais, a Rename inclui a maior parte das alternativas disponíveis para terapia antirretroviral compatível com a necessidade do país, principalmente Terapia Antirretroviral Altamente Ativa, algumas em formulações adequadas para crianças. Contudo, há uma necessidade de mais soluções orais e concentrações mais variadas, como mostrado na LMEC.

Alguns medicamentos ausentes na lista Rename, em comparação à LMEC, são importantes para as crianças brasileiras, como a cloxacilina, um antibiótico muito específico contra infecções por Staphylococcus aureus leves a moderadas. Esse medicamento é normalmente substituído no Brasil por cefalexina, uma cefalosporina de primeira geração com espectro mais amplo, efetivo em casos de Escherichia coli adquirida na comunidade, causando infecções do trato urinário. Como a cefalexina é frequentemente prescrita no tratamento de infecções de pele causadas por Staphylococcus aureus, ela induz a uma pressão seletiva indesejável sobre a Escherichia coli, estimulando um aumento na resistência aos antimicrobianos. Um exemplo das formulações inadequadas é a falta de isoniazida (INH) na apresentação líquida de 50 mg/5 mL na relação brasileira. A Rename apenas fornece comprimidos de 100 mg de INH ou INH/rifampicina combinados em comprimidos de 75/150, 100/150 e 200/300 mg para crianças com tuberculose. Uma diferença na concentração da solução também é vista na Rename com relação à concentração do xarope de prednisona, que na LMEC é de 5 mg/mL, e para a relação brasileira é 3 mg/mL. Essa menor concentração aumenta os custos e reduz a adesão ao tratamento, pois exige um maior volume a ser ingerido.

As diferenças entre a Rename e a LMEC demonstradas neste estudo já eram esperadas, pois a primeira é dirigida para utilização em medicina geral e, portanto, a oportunidade de incluir necessidades pediátricas abrangentes é remota. O fato de que muitas formulações presentes na LMEC não podem ser encontradas no mercado farmacêutico brasileiro deve restringir a possibilidade de sua inclusão em uma lista nacional. Contudo, poderia ser desejável que a Rename expressasse claramente a necessidade de medicamentos pediátricos no Brasil a empresas farmacêuticas e autoridades de saúde. Além disso, algumas formulações que não constam na Rename, descritas nas Tabelas 1, 2 e 3, já estão disponíveis nas farmácias particulares brasileiras, como comprimidos entéricos revestidos de valproato de sódio, pamoato de pirantel e suspensões de mebendazol. Seria viável, nesses casos, a disponibilização total dessas formulações nas unidades públicas de saúde caso fossem incluídas na relação da Rename.

Outro aspecto a ser destacado é que quase 70% das formulações que não constam estão relacionadas à concentração e forma farmacêutica, sugerindo que nenhuma questão técnica precisa ser resolvida, apenas a falta de interesse comercial e preocupações de comercialização. Atualmente, as formas farmacêuticas adequadas para aplicação em crianças incluem uma grande variedade de possibilidades, como suspensões, xaropes, soluções, concentrados, grânulos, granulados, pós, comprimidos revestidos e trituráveis e as novas formas de dosagem de rápida desintegração (filmes, pastilhas, comprimidos orodispersíveis (ODT), minicomprimidos, comprimidos mastigáveis), dentre outros.43 A palatabilidade dos medicamentos também é uma área de grande investimento de pesquisa e é reconhecida como um dos fatores mais fundamentais que influenciam na adesão a regimes terapêuticos, principalmente em crianças pequenas.3 Esses avanços tecnológicos precisam ser incorporados a esses produtos em benefício das crianças brasileiras. É notório que a pesquisa, o desenvolvimento e a produção de medicamentos pediátricos - exceto medicamentos para doenças comuns, como infecções leves e medicamentos para asma -, não são objeto de grande interesse para a indústria farmacêutica atualmente. Portanto, iniciativas de órgãos reguladores são fundamentais, por meio de suporte técnico ou financeiro, para pesquisa e desenvolvimento1 e produção de novas formulações em escala industrial.7,22,26,27,33,34 Costa et al., em uma análise de literatura e relatos médicos de pediatras brasileiros, identificaram 126 formulações necessárias no país, e uma grande proporção delas já presentes em outros mercados no exterior.14 Como no presente estudo, as formulações mencionadas incluíam antimicrobianos, antiasmáticos e analgésicos, medicamentos indispensáveis para quadros clínicos graves como transtornos convulsivos (anticonvulsivantes), doenças cardiovasculares e tuberculose, e também medicamentos para faixas etárias vulneráveis, como os neonatos.

Para abordar o grande número de formulações pediátricas que precisam ser incluídas na Rename, a elaboração de uma lista específica de medicamentos essenciais para crianças no Brasil parece ser uma solução recomendável. Esse instrumento poderia fazer parte de uma política abrangente para estimular o desenvolvimento e a produção de medicamentos para crianças no país. Como proposto por Beggs et al.,44 o desenvolvimento de uma lista de medicamentos pediátricos essenciais possivelmente aumenta a consciência da necessidade de medicamentos e formulações pediátricas específicas e destaca áreas de prioridade em que faltam medicamentos. Proporcionar o acesso a essas formulações segundo a necessidade e promover seu uso racional em crianças são desafios concomitantes a serem abordados pelas políticas de saúde brasileiras.

Financiamento

Universidade Federal do Ceará (UFC, Bolsa de Iniciação Científica).

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Recebido em 8 de maio de 2012; aceito em 29 de agosto de 2012

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    Autor para correspondência.
    E-mail:
    helenalutescia@yahoo.com.br (H.L.L. Coelho).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      08 Maio 2012
    • Aceito
      29 Ago 2012
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