Acessibilidade / Reportar erro

O que causa anemia em crianças mais novas e por que ela é tão persistente? Como citar este artigo: Melse-Boonstra A, Mwangi MN. What is causing anemia in young children and why is it so persistent? J Pediatr (Rio J). 2016;92:325–7. ☆☆ ☆☆ Ver artigo de Zuffo et al. nas páginas 353–60.

Estima-se que a prevalência mundial de anemia em crianças com menos de cinco anos seja 42,6%.11 World Health Organization (WHO). The global prevalence of anemia in 2011. Geneva: WHO; 2015. Não surpreendentemente, a anemia é encontrada mais frequentemente em países de baixa e média renda. Os do Sudeste da Ásia e da África são os mais afetados. As consequências da anemia infantil variam de aumento na susceptibilidade a doenças infecciosas, fadiga e menor capacidade física a, caso persistente, menor função cognitiva e produtividade econômica na vida adulta.22 Haas JD, Brownlie T 4th. Iron deficiency and reduced work capacity: a critical review of the research to determine a causal relationship. J Nutr. 2001;131:676S-88S.55 Walker SP, Wachs TD, Gardner JM, Lozoff B, Wasserman GA, Pollitt E, et al. Child development: risk factors for adverse outcomes in developing countries. Lancet. 2007;369:145-57. Quando uma grande parte da população é afetada, isso pode ter consequências em grande escala para a produtividade econômica de um país.66 Horton S, Ross J. The economics of iron deficiency. Food Policy. 2003;28:51-75.

A anemia é rara em recém-nascidos, pois suas mães fornecem uma quantidade generosa de ferro no nascimento, principalmente quando há clampeamento tardio do cordão umbilical. Há evidências de que a suplementação de ferro pré-natal, conforme recomendado pela OMS, aumenta a quantidade de ferro no recém-nascido e posterga, assim, a idade em que uma anemia por deficiência de ferro pode se desenvolver durante a infância.77 Mwangi MN, Roth JM, Smit MR, Trijsburg L, Mwangi AM, Demir AY, et al. Effect of daily antenatal iron supplementation on plasmodium infection in Kenyan women: a randomized clinical trial. JAMA. 2015;314:1009-20. Embora o leite materno não seja uma fonte rica em ferro, sua absorção é melhorada pela presença de lactoferrina. A alimentação por fórmula normalmente contém uma quantidade maior de ferro para compensar a falta de lactoferrina. Portanto, a anemia normalmente surge após a idade de seis meses. Isso coincide aproximadamente com a introdução de suplementos alimentares, mas também com o período em que as crianças começam a explorar seu mundo e ficam expostas a contaminantes com mais frequência. Na idade escolar, o risco de anemia normalmente é muito menor, porém chega a seu pico novamente durante a puberdade, principalmente em meninas, após a menarca e durante a gravidez, devido ao aumento acentuado na necessidade de ferro no 2° e 3° trimestres.88 Zimmermann MB, Hurrell RF. Nutritional iron deficiency. Lancet. 2007;370:511-20.

As causas da anemia são multifatoriais, porém a deficiência de ferro é a mais comum delas e explica cerca de metade dos casos.11 World Health Organization (WHO). The global prevalence of anemia in 2011. Geneva: WHO; 2015. A carne é uma importante fonte de ferro, pois contém ferro heme, absorvido de forma mais eficiente em comparação com o ferro não heme, principal forma do ferro em alimentos vegetais. O ferro não heme é absorvido na forma ferrosa (Fe2 +) por meio do transportador de metal divalente 1 (DMT1). O único transportador de ferro heme revelado até agora é a proteína transportadora de heme 1 (HCP1),99 Shayeghi M, Latunde-Dada GO, Oakhill JS, Laftah AH, Takeuchi K, Halliday N, et al. Identification of an intestinal heme transporter. Cell. 2005;122:789-801. embora se especule que devem existir outras proteínas transportadoras. A biodisponibilidade do ferro heme varia de 15 a 35%, ao passo que a de ferro não heme geralmente é inferior a 10%. Embora vegetais de folhas verde-escuras sejam ricos em ferro, a absorção é menor, e, portanto, esses vegetais não são fontes muito boas de ferro.1010 Cercamondi CI, Icard-Vernière C, Egli IM, Vernay M, Hama F, Brouwer ID, et al. A higher proportion of iron-rich leafy vegetables in a typical Burkinabe maize meal does not increase the amount of iron absorbed in young women. J Nutr. 2014;144:1394-400.,1111 van der Hoeven M, Faber M, Osei J, Kruger A, Smuts CM. Effect of African leafy vegetables on the micronutrient status of mildly deficient farm-school children in South Africa: a randomized controlled study. Public Health Nutr. 2016;19:935-45. Da mesma forma, legumes são ricos em fitatos e polifenóis, que prejudicam a absorção de ferro.1212 Petry N, Egli I, Zeder C, Walczyk T, Hurrell R. Polyphenols and phytic acid contribute to the low iron bioavailability from common beans in young women. J Nutr. 2010;140:1977-82.

O metabolismo do ferro e a resposta imune inata a infecções podem explicar as inter-relações entre a nutrição e anemia em crianças mais novas. Devido à sua capacidade de existir em um de dois estados de oxidação, ferroso (Fe2 +) ou férrico (Fe3 +), o ferro é um nutriente fundamental, mas também tóxico, para o corpo humano. O ferro funciona como um doador de elétrons no estado ferroso e como receptor de elétrons no estado férrico.1313 Andrews NC, Schmidt PJ. Iron homeostasis. Annu Rev Physiol. 2007;69:69-85. O potencial de redução do ferro pode resultar em espécies reativas de oxigênio que, em última instância, levam à geração de radicais livres que danificam lipídios, o DNA e proteínas, principalmente em condições de excesso de ferro.1414 Cassat JE, Skaar EP. Iron in infection and immunity. Cell Host Microbe. 2013;13:509-19. Dessa forma, a concentração e distribuição de ferro no corpo humano são altamente controladas.

A hepcidina, hormônio peptídeo circulante, é atualmente conhecida como principal reguladora da homeostase sistêmica do ferro em seres humanos.1313 Andrews NC, Schmidt PJ. Iron homeostasis. Annu Rev Physiol. 2007;69:69-85. A hepcidina reduz a absorção alimentar do ferro e, consequentemente, o transporte do ferro pela mucosa intestinal; reduz a saída de ferro dos macrófagos, principal local de armazenamento do ferro; e reduz a saída de ferro do fígado. Em todos os três casos, isso é feito por meio da redução da proteína transportadora de ferro transmembrana ferroportina.1313 Andrews NC, Schmidt PJ. Iron homeostasis. Annu Rev Physiol. 2007;69:69-85. A síntese e a secreção de hepcidina pelo fígado são controladas pelos estoques de ferro nos macrófagos, por inflamação, hipóxia e eritropoiese. Medir a hepcidina seria benéfico para estabelecer o tratamento ideal da anemia por deficiência de ferro, porém, como não está amplamente disponível, a proteína C reativa (PCR) é usada como marcador substituto. Em vista do conhecimento cada vez maior sobre o transporte e a regulação do ferro, é necessário estudar o metabolismo do ferro em relação a outros processos fisiológicos em condições saudáveis e de doença.

Os mecanismos da homeostase do ferro na saúde e nas doenças humanas são em grande parte dependentes do fato de que o ferro é um nutriente essencial tanto para os seres humanos quanto para os micróbios patogênicos.1414 Cassat JE, Skaar EP. Iron in infection and immunity. Cell Host Microbe. 2013;13:509-19. A imunidade nutricional (também conhecida como “retenção de ferro”), processo por meio do qual o sistema imunológico humano limita a disponibilidade do ferro para micróbios invasores como um sistema de defesa imune inato, pode explicar por que a anemia em crianças mais novas é tão persistente. Além disso, existem vínculos diretos e indiretos entre infecções parasitárias e a homeostase do ferro em seres humanos. Por exemplo, os ancilostomídeos infectam mais de 700 milhões de pessoas em todo o mundo e são a principal causa da anemia por deficiência de ferro em países de baixa e média renda.1515 Long SS, Pickering LK, Prober CG, editors. Principles and practice of pediatric infectious diseases, vol. 100. New York: Churchill Livingstone; 2003.

Nesta edição do jornal, Zuffo et al.1616 Zuffo CR, Osório MM, Taconeli CA, Schmidt ST, da Silva BH, Almeida CC. Prevalence and risk factors of anemia in children. J Pediatr (Rio J). 2016;92:353-60. descrevem os fatores relacionados à anemia entre 334 crianças de 6-36 meses selecionadas aleatoriamente que participam de Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) em Colombo − PR, Brasil. Eles acreditam que a prevalência de anemia é de 34,7% e a prevalência é significativamente maior entre mães mais jovens (< 28 anos), crianças do sexo masculino, crianças mais novas (< 24 meses) e crianças que não consumiam alimentos fontes de ferro, como carne, leguminosas e vegetais de folhas verde-escuras. No Brasil como um todo, estima-se que a prevalência de anemia em crianças com menos de cinco anos é de 24%.11 World Health Organization (WHO). The global prevalence of anemia in 2011. Geneva: WHO; 2015. Embora a prevalência nesse pequeno estudo pareça ser muito maior do que a estatística nacional, isso pode ser explicado, em parte, pela faixa etária menor (6-36 meses em comparação com 6-59 meses).

A ingestão de ferro pelas crianças pareceu baixa, com ingestão média de 3 mg por dia. Isso é muito abaixo da ingestão de ferro recomendada, de 7,7 mg para crianças de 6-12 meses e 4,8 mg para crianças de 13-36 meses. A composição alimentar deficiente das refeições fornecidas nas creches pode ser a causa, porém a baixa ingestão de ferro também pode ser devida à falta de apetite das crianças por alimentos ricos em ferro. Seja qual for o motivo, está claro que a baixa ingestão de ferro é uma explicação provável para a alta prevalência de anemia revelada por esse estudo. Contudo, não deve ser ignorado que há muitos outros possíveis fatores causais que podem desempenhar um papel. Além do ferro, deficiências de vitamina A e de vitaminas do complexo B podem ser importantes, mas também fatores não nutricionais podem ser a causa da anemia, como infestação parasitária, doenças infecciosas, diarreia, destruição de eritrócitos (por exemplo, por malária), perda grave de sangue e fatores genéticos. No estudo feito no Brasil, quase metade das crianças teve febre e 22% das crianças tiveram diarreia nos 15 dias anteriores à medição da hemoglobina. As crianças com febre ou diarreia mostraram uma prevalência mais alta de anemia do que as que não tiveram.

A estratégia global mais comum para tratar a anemia por deficiência de ferro é a fortificação de alimentos básicos com ferro. A fortificação da farinha se mostrou eficaz no aumento do nível de ferro, porém em menor grau na redução da anemia.1717 Pachón H, Spohrer R, Mei Z, Serdula MK. Evidence of the effectiveness of flour fortification programs on iron status and anemia: a systematic review. Nutr Rev. 2015;73:780-95. No Brasil, a fortificação da farinha de trigo e de milho com 4,2 mg de ferro e 150 µg de ácido fólico a cada 100 g tornou-se obrigatória em 2004. Contudo, a avaliação do programa de fortificação 10 anos depois de seu início por um levantamento nacional demonstrou que a fortificação da farinha não aumentou muito a ingestão de ferro pela população brasileira, principalmente ao considerar a baixa biodisponibilidade de ferro eletrolítico.1818 dos Santos Q, Nilson EA, Verly Junior E, Sichieri R. An evaluation of the effectiveness of the flour iron fortification programme in Brazil. Public Health Nutr. 2015;18:1670-4. Em um estudo de comparação entre a farinha de milho integral fortificada com ferro eletrolítico ou ferro NaEDTA, esse mostrou-se superior no aumento do nível de ferro e na redução de anemia por deficiência de ferro em crianças quenianas.1919 Andang’o PE, Osendarp SJ, Ayah R, West CE, Mwaniki DL, De Wolf CA, et al. Efficacy of iron-fortified whole maize flour on iron status of schoolchildren in Kenya: a randomised controlled trial. Lancet. 2007;369:1799-806.

Apesar dos programas globais para controlar anemia, a anemia infantil ainda existe até mesmo em países com excelentes sistemas de saúde e ingestão de ferro suficiente, com prevalência de 7% na América do Norte e de 19% na Europa.11 World Health Organization (WHO). The global prevalence of anemia in 2011. Geneva: WHO; 2015. É provável que a anemia persistente após a correção da ingestão de ferro esteja em grande parte relacionada a infecções comuns na infância. É uma ironia o fato de que essas infecções são inevitáveis para formar um sistema imunológico saudável. Portanto, é questionável se a anemia infantil pode ser totalmente erradicada, a menos que vivêssemos em um ambiente completamente estéril.

  • Como citar este artigo: Melse-Boonstra A, Mwangi MN. What is causing anemia in young children and why is it so persistent? J Pediatr (Rio J). 2016;92:325–7.
  • ☆☆
    Ver artigo de Zuffo et al. nas páginas 353–60.

References

  • 1
    World Health Organization (WHO). The global prevalence of anemia in 2011. Geneva: WHO; 2015.
  • 2
    Haas JD, Brownlie T 4th. Iron deficiency and reduced work capacity: a critical review of the research to determine a causal relationship. J Nutr. 2001;131:676S-88S.
  • 3
    Brownlie T 4th, Utermohlen V, Hinton PS, Giordano C, Haas JD. Marginal iron deficiency without anemia impairs aerobic adaptation among previously untrained women. Am J Clin Nutr. 2002;75:734-42.
  • 4
    de Silva A, Atukorala S, Weerasinghe I, Ahluwalia N. Iron supplementation improves iron status and reduces morbidity in children with or without upper respiratory tract infections: a randomized controlled study in Colombo, Sri Lanka. Am J Clin Nutr. 2003;77:234-41.
  • 5
    Walker SP, Wachs TD, Gardner JM, Lozoff B, Wasserman GA, Pollitt E, et al. Child development: risk factors for adverse outcomes in developing countries. Lancet. 2007;369:145-57.
  • 6
    Horton S, Ross J. The economics of iron deficiency. Food Policy. 2003;28:51-75.
  • 7
    Mwangi MN, Roth JM, Smit MR, Trijsburg L, Mwangi AM, Demir AY, et al. Effect of daily antenatal iron supplementation on plasmodium infection in Kenyan women: a randomized clinical trial. JAMA. 2015;314:1009-20.
  • 8
    Zimmermann MB, Hurrell RF. Nutritional iron deficiency. Lancet. 2007;370:511-20.
  • 9
    Shayeghi M, Latunde-Dada GO, Oakhill JS, Laftah AH, Takeuchi K, Halliday N, et al. Identification of an intestinal heme transporter. Cell. 2005;122:789-801.
  • 10
    Cercamondi CI, Icard-Vernière C, Egli IM, Vernay M, Hama F, Brouwer ID, et al. A higher proportion of iron-rich leafy vegetables in a typical Burkinabe maize meal does not increase the amount of iron absorbed in young women. J Nutr. 2014;144:1394-400.
  • 11
    van der Hoeven M, Faber M, Osei J, Kruger A, Smuts CM. Effect of African leafy vegetables on the micronutrient status of mildly deficient farm-school children in South Africa: a randomized controlled study. Public Health Nutr. 2016;19:935-45.
  • 12
    Petry N, Egli I, Zeder C, Walczyk T, Hurrell R. Polyphenols and phytic acid contribute to the low iron bioavailability from common beans in young women. J Nutr. 2010;140:1977-82.
  • 13
    Andrews NC, Schmidt PJ. Iron homeostasis. Annu Rev Physiol. 2007;69:69-85.
  • 14
    Cassat JE, Skaar EP. Iron in infection and immunity. Cell Host Microbe. 2013;13:509-19.
  • 15
    Long SS, Pickering LK, Prober CG, editors. Principles and practice of pediatric infectious diseases, vol. 100. New York: Churchill Livingstone; 2003.
  • 16
    Zuffo CR, Osório MM, Taconeli CA, Schmidt ST, da Silva BH, Almeida CC. Prevalence and risk factors of anemia in children. J Pediatr (Rio J). 2016;92:353-60.
  • 17
    Pachón H, Spohrer R, Mei Z, Serdula MK. Evidence of the effectiveness of flour fortification programs on iron status and anemia: a systematic review. Nutr Rev. 2015;73:780-95.
  • 18
    dos Santos Q, Nilson EA, Verly Junior E, Sichieri R. An evaluation of the effectiveness of the flour iron fortification programme in Brazil. Public Health Nutr. 2015;18:1670-4.
  • 19
    Andang’o PE, Osendarp SJ, Ayah R, West CE, Mwaniki DL, De Wolf CA, et al. Efficacy of iron-fortified whole maize flour on iron status of schoolchildren in Kenya: a randomised controlled trial. Lancet. 2007;369:1799-806.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2016
Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: jped@jped.com.br