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Estudo clínico e epidemiológico de fissuras orofaciais

Resumos

OBJETIVO: Fissura labial com ou sem fissura palatina (FL ± P) ou fissura palatina (FP) são grupos de malformações chamados fissuras orofaciais (FO) e são a segunda causa de defeitos congênitos. O objetivo do estudo foi analisar características clínicas e epidemiológicas de pacientes brasileiros com FO, estudando casos tratados no centro de referência do estado do Paraná (PR). MÉTODOS: Foram analisados 2.356 gráficos. Destes, 1.838 foram avaliados pelo mesmo geneticista clínico. Os dados foram coletados no centro de referência e analisados na Secretaria de Estado da Saúde do Paraná. Foram avaliadas as características clínicas, a presença de outras anomalias e a prevalência de nascimentos. RESULTADOS: No total, 389 (21,2%) pacientes apresentaram fissura palatina (FP), 437 (23,8%) apresentaram fissura labial (FL) e 1.012 (55%) apresentaram fissura labiopalatina (FLP). As FO sindrômicas foram identificadas em 15,3% dos pacientes, 10,4% dos pacientes com FL ± P, e 33,9% dos pacientes com FP. Anomalias comuns adicionais foram: sistema nervoso central, membros, sistema cardiovascular e sistema musculoesquelético. O número de casos sindrômicos foi menor nos centros em que a avaliação clínica foi realizada por outros especialistas, em comparação aos locais em que ela foi realizada por um geneticista clínico. A prevalência de nascimentos foi de 1/1.010 nascidos vivos. A ausência de notificação junto ao cartório de registro civil foi observada em 49,9% dos casos de FL ± P. No Brasil, nossos dados sugerem uma redução de 18,52% na prevalência de FO não sindrômicas após a fortificação com ácido fólico. CONCLUSÃO: Um melhor entendimento dos aspectos clínicos e epidemiológicos das FO é fundamental para melhorar a compreensão de sua patogênese, promover estratégias de prevenção e promover orientações com relação a cuidados clínicos, com a presença de geneticistas clínicos na equipe multidisciplinar para tratamento de FO, por exemplo.

Fissura orofacial; Fissura labiopalatina; Epidemiologia; Geneticista clínico; Brasil


OBJECTIVE: Cleft lip with or without cleft palate (CL±P) or cleft palate (CP) are groups of malformations named orofacial clefts (OC), which are the second leading cause of birth defects. This study aimed to analyze clinical and epidemiological features of Brazilian patients with OC, studying cases treated in the reference center of the state of Paraná (PR). METHODS: 2,356 charts were reviewed and 1,838 were evaluated by the same clinical geneticist. Data were collected in the reference center, and compared with those of the Health Department of the state of Paraná. Clinical characteristics, presence of other anomalies, and birth prevalence were evaluated. RESULTS: 389 (21.2%) patients had CP, 437 (23.8%) had cleft lip (CL), and 1,012 (55%) had cleft lip and palate (CLP). Syndromic OC were identified in 15.3% of patients, 10.4% of patients with CL±P, and 33.9% of patients with CP. Common additional anomalies were: central nervous system, limbs, cardiovascular, and musculoskeletal defects. The number of syndromic cases was lower when clinical evaluation was performed by other medical specialists when compared to that of the clinical geneticist. Birth prevalence was 1/1,010 live births. Lack of notification with the national birth registry was observed in 49.9% of CL±P. The present data suggests a decrease of 18.52% in the prevalence of non-syndromic OC after folic acid fortification in Brazil. CONCLUSIONS: Better understanding of clinical and epidemiological aspects of OC is crucial to improve the understanding of pathogenesis, promote preventive strategies, and guide clinical care, including the presence of clinical geneticists in the multidisciplinary team for OC treatment.

Orofacial cleft; Cleft lip and palate; Epidemiology; Clinical geneticist; Brazil


ARTIGO ORIGINAL

Estudo clínico e epidemiológico de fissuras orofaciais

Josiane SouzaI,* * Autor para correspondência. E-mail: drajosianesouza@yahoo.com.br (J. Souza). ; Salmo RaskinII

IMédica, Mestre, Professora, Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde (PPGCS), Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS), Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Labiopalatal (CAIF), Curitiba, Paraná, Brasil

IIMédico, Doutor, Professor Titular, PPGCS, CCBS, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Genetika, Centro de Aconselhamento e Laboratório de Genética, Curitiba, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: Fissura labial com ou sem fissura palatina (FL ± P) ou fissura palatina (FP) são grupos de malformações chamados fissuras orofaciais (FO) e são a segunda causa de defeitos congênitos. O objetivo do estudo foi analisar características clínicas e epidemiológicas de pacientes brasileiros com FO, estudando casos tratados no centro de referência do estado do Paraná (PR).

MÉTODOS: Foram analisados 2.356 gráficos. Destes, 1.838 foram avaliados pelo mesmo geneticista clínico. Os dados foram coletados no centro de referência e analisados na Secretaria de Estado da Saúde do Paraná. Foram avaliadas as características clínicas, a presença de outras anomalias e a prevalência de nascimentos.

RESULTADOS: No total, 389 (21,2%) pacientes apresentaram fissura palatina (FP), 437 (23,8%) apresentaram fissura labial (FL) e 1.012 (55%) apresentaram fissura labiopalatina (FLP). As FO sindrômicas foram identificadas em 15,3% dos pacientes, 10,4% dos pacientes com FL ± P, e 33,9% dos pacientes com FP. Anomalias comuns adicionais foram: sistema nervoso central, membros, sistema cardiovascular e sistema musculoesquelético. O número de casos sindrômicos foi menor nos centros em que a avaliação clínica foi realizada por outros especialistas, em comparação aos locais em que ela foi realizada por um geneticista clínico. A prevalência de nascimentos foi de 1/1.010 nascidos vivos. A ausência de notificação junto ao cartório de registro civil foi observada em 49,9% dos casos de FL ± P. No Brasil, nossos dados sugerem uma redução de 18,52% na prevalência de FO não sindrômicas após a fortificação com ácido fólico.

CONCLUSÃO: Um melhor entendimento dos aspectos clínicos e epidemiológicos das FO é fundamental para melhorar a compreensão de sua patogênese, promover estratégias de prevenção e promover orientações com relação a cuidados clínicos, com a presença de geneticistas clínicos na equipe multidisciplinar para tratamento de FO, por exemplo.

Palavras-chave: Fissura orofacial;Fissura labiopalatina; Epidemiologia; Geneticista clínico; Brasil

Introdução

A fissura labial com ou sem fissura palatina (FL ± P) e a fissura palatina (FP) fazem parte do grupo de malformações denominadas fissuras orofaciais (FO), a segunda maior causa de anomalias congênitas em nascidos vivos.1 Estima-se que de 1 a 2/1.000 neonatos/nascidos vivos apresentem FO.2-4 A maioria dos pacientes com FO não apresenta nenhuma outra anormalidade (FO não sindrômicas), porém uma parcela significativa - 30 a 50% - apresenta outras malformações e pode ser portadora de uma síndrome (FO sindrômicas).2,3

FO não sindrômicas constituem um grupo de malformações de origem multifatorial, em que fatores genéticos e ambientais contribuem com a etiologia. Diversos estudos foram conduzidos a fim de ampliar o conhecimento da etiologia da FO isolada.5 O conhecimento de fatores etiológicos, prevalência e expressão variável desse fenótipo e as malformações relacionadas a ele, em nosso país e em outros lugares, pode ajudar no tratamento clínico e na abordagem do paciente, bem como contribuir para um melhor entendimento de sua etiologia e patogênese.

A vigilância de anomalias congênitas no Brasil é feita, basicamente, por meio de uma Declaração de Nascidos Vivos (DNV). Desde 1990, o Ministério da Saúde estabeleceu um Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) com base na DNV.6 Um campo livre na DNV pergunta se há qualquer malformação congênita e, em caso positivo, há um campo descritivo que deve ser preenchido, o que deve ser feito por um pediatra, porém, na prática, isso raramente ocorre.7 Além disso, até 2011, este apenas podia ser identificado por um código único da Classificação Internacional de Doenças - CID-10. Após 2011, a DNV permitiu a utilização de vários códigos da CID-10, mas esse processo ainda se encontra em fase de implementação. As informações com base na DNV ou no SINASC não são completamente confiáveis, devido à falta de diagnóstico, omissões e classificações errôneas que ocorrem no preenchimento da DNV e na digitação e codificação dos dados.7

Uma segunda fonte de informações com relação ao monitoramento de defeitos congênitos no Brasil é a rede de hospitais que trabalham em colaboração com o Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas - ECLAMC. Contudo, as maternidades brasileiras que fazem parte do ECLAMC abrangem menos de 2% dos nascimentos no país.8 Segundo o ECLAMC, entre os anos 1982 e 2002, a prevalência de nascimentos com FO isoladas foi de 1,5 por 1.000 nascidos vivos.9 Uma terceira fonte de informações provém de centros de tratamento orofacial, porém os dados coletados em hospitais e clínicas onde os pacientes são tratados são fortemente influenciados pela situação socioeconômica da população que frequenta esses centros, bem como a gravidade dos defeitos.

A finalidade deste estudo é descrever os principais aspectos clínicos e epidemiológicos das FO na população do estado do Paraná, na região Sul do Brasil. As informações fornecidas poderão ser úteis para outros médicos envolvidos no tratamento de crianças com FO e para melhorar os esforços da saúde pública nessa área.

Materiais e métodos

Este estudo foi aprovado pelo Conselho de Revisão Institucional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná-PUCPR (Protocolo nº 1.015 de dezembro de 2007).

Os pacientes com FO típica e nascidos no estado do Paraná foram incluídos. Os pacientes com FO atípica, fissuras submucosas e insuficiência velofaríngea não foram incluídos. Os pacientes foram selecionados no Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Labiopalatal (CAIF), centro de referência para tratamento de pacientes com deformidades craniofaciais no estado. O CAIF é uma unidade da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (SESA) e é um membro da Rede de Referência no Tratamento de Deformidades Craniofaciais, entidade criada pelo Governo Federal do Brasil em 1998 para credenciamento de serviços especializados para o tratamento de deformidades craniofaciais.10 Todo o tratamento é fornecido pelo sistema nacional de saúde pública chamado Sistema Único de Saúde (SUS) e por contribuições sociais e de organizações.

Os gráficos médicos foram analisados e os indivíduos foram divididos em dois grupos: grupo 1 - todos os pacientes atendidos pelo mesmo geneticista clínico de janeiro de 2006 a janeiro de 2009, independentemente do ano de nascimento; e grupo 2 - todos os pacientes nascidos entre 2002 e 2008 e tratados no CAIF.

O grupo 1 foi utilizado para identificar a presença ou ausência de outras anomalias associadas a FO, uma vez que todos os pacientes foram avaliados pelo mesmo médico especializado em Genética Clínica. Os dados foram coletados incluindo idade, sexo, local de nascimento, tipo de FO, presença de outras anomalias e histórico familiar. A classificação da FO sindrômica foi atribuída a pacientes que apresentaram, no mínimo, uma anomalia gravea mais ou três menores, além da FO, com base em Saal.1 A exceção a essa regra foi a presença de uma síndrome claramente conhecida, mesmo sem anomalias graves ou pequenas, a Síndrome Van der Woude. As anomalias associadas foram subdivididas pelos sistemas nervoso central, urogenital, digestivo, respiratório, musculoesquelético, membros, cardiovascular, ocular e tegumentar. Além disso, a presença de deficiência intelectual foi avaliada utilizando uma definição criada pela Associação Americana sobre Deficiência Intelectual e do Desenvolvimento (AAIDD).11

O grupo 2 foi estabelecido para estimar a prevalência de nascimentos com FO no estado do Paraná. Analisamos os gráficos de todos os 1.198 pacientes tratados no CAIF e nascidos entre os anos 2002 e 2008, avaliados ou não pelo geneticista clínico. Todos eles foram avaliados por um cirurgião plástico e/ou um pediatra. Os dados foram registrados incluindo idade, sexo, local de nascimento, tipo de FO e presença de outras anomalias. As informações também foram coletadas por meio do SINASC na SESA e comparadas aos dados do CAIF. A prevalência de nascimentos foi estimada pela divisão da maior quantidade de nascidos vivos com FO não sindrômica pelo total de nascidos vivos registrados durante o período. Os dados da SESA foram coletados em janeiro de 2010. Os dados de nascidos vivos após essa data poderão ter mudado devido ao registro tardio de nascimento ou ao tratamento tardio no CAIF.

As análises descritivas foram conduzidas pelo tipo de FO, idade, sexo, presença de anomalias associadas, classificação de FO sindrômicas e sistema acometido pela mesma. Para avaliar a relação entre os vários parâmetros FL, FLP e FP, utilizamos o teste Qui-quadrado (c2). A razão de chances (intervalo de confiança de 95%) foi utilizada para comparar o tipo de FO com o sexo, e a prevalência de nascimentos com FO antes e depois da fortificação das farinhas com ácido fólico no Brasil. Os valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.

Resultados

O estudo incluiu 2.356 pacientes: 1.838 do grupo 1 e 1.198 do grupo 2. Esse grupo incluiu 680 pacientes avaliados e 518 pacientes não avaliados pelo geneticista clínico. A média de idade dos pacientes no momento da avaliação no grupo 1 era de 12,9 anos, e a mediana era de 9,9 anos, com variação de dois dias a 87 anos de idade. Em 1.838 pacientes com FO, encontramos: 389 (21,2%) com FP, 437 (23,8%) com FL, e 1.012 (55%) com FLP. Em pacientes com FL ± P, 24,9% eram bilaterais: 30,1% com FLP e apenas 12,8% dos pacientes com FL (p < 0,001). Quando unilateral, a FL ± P era preferencialmente no lado esquerdo em 65,9% dos pacientes (p < 0,001). Em pacientes com FP, a proporção de fissura incompleta era maior, afetando 61,7% dos casos (p < 0,001). O sexo masculino foi mais prevalente na amostra total (55%, p < 0,001): 60,4% dos pacientes com FL ± P e 35% dos pacientes com FP (p < 0,001). Ao avaliar a FL ± P, a proporção entre o sexo masculino e feminino foi de 1,52 (intervalo de confiança (IC) de 95%: 1,37 para 1,69), ao passo que para a FL a proporção foi de 0,54 (IC 95%: 0,44 a 0,66) (Tabela 1).

Identificamos 282 pacientes com FO sindrômica (15,3% da amostra): 10,4% e 10,3% dos pacientes com FL e FLP, respectivamente, e 33,9% dos pacientes com FP (p < 0,001 ao comparar FL ± P e FP e nenhuma diferença estatística quanto a FL e FLP, Tabela 1). Não houve diferença significativa entre o diagnóstico sindrômico em casos de FO unilateral ou bilateral (Tabela 2). No que diz respeito ao sexo e à FO sindrômica, observamos que o sexo feminino estava mais associado a outras anomalias que o sexo masculino, na amostra total (p = 0,021). Ao analisar os tipos de FO (FL ± P e FP), observamos que 12,2% das pessoas do sexo feminino com FL ± P apresentaram diagnóstico de FO sindrômica, em comparação a apenas 9,1% das pessoas do sexo masculino (p = 0,038). Isso foi invertido na FP, em que os casos sindrômicos foram observados principalmente entre pessoas do sexo masculino (43,4% em comparação a 28,9%, p = 0,005, Tabela 2).

Entre todos os casos com FO sindrômica, os sistemas mais afetados foram: o nervoso central (33,3% da FO sindrômica e 5,1% da amostra total), os membros (29,8% e 4,6%), o cardiovascular (20,6% e 3,2%) e o musculoesquelético (17,7% e 2,7%). Foram observadas alterações faciais em 59,6% dos casos. A maioria dos pacientes (87,2%) teve mais de um sistema afetado. Algum grau de incapacidade intelectual foi observado em 49,32% dos casos sindrômicos (7,99% da amostra total).

Quando selecionamos apenas os casos não avaliados pelo geneticista clínico (n = 518), observamos que a proporção de FO sindrômica foi de 10,6% (24,4% para FP e 4% para FL ± P, Tabela 1). Comparando esse grupo com o avaliado pelo geneticista clínico, observamos uma diferença (p < 0,001, Tabela 1) no diagnóstico de FO sindrômica, demonstrando uma maior proporção no grupo avaliado pelo geneticista clínico.

Prevalência de nascimentos

A prevalência de nascimentos entre os anos de 2002 e 2008 foi de 1/1.010 nascidos vivos (1/1.334 para FL ± P e 1/3.953 para FP). Os dados fornecidos pela SESA estão incluídos na tabela e, quando comparamos esses dados com os do CAIF, observamos uma falta de notificação de 49,94% dos casos de FL ± P (Tabela 3). Não houve subnotificação de FP.

Quando observamos a prevalência de FO não sindrômica e comparamos com o período de início da fortificação das farinhas com ácido fólico no Brasil (julho de 2004), percebemos uma redução de 18,52% dos casos de FO (RC-0,81 - IC 0,72 para 0,93, p = 0,002). Essa redução deu-se principalmente em pessoas do sexo masculino com FL e FP, ao passo que houve uma redução de 33,59% e 39,66% dos casos, respectivamente (Tabela 4).

Discussão

Caracterização clínica

A proporção do tipo de FO é semelhante e relativamente constante na maioria dos estudos publicados.2,12-14 A FL ± P foi unilateral na maior parte dos casos. O lado esquerdo foi mais afetado, conforme relatado na literatura.7,12-14 O motivo dessa predileção não é compreendido. Os padrões de defeitos de lateralidade são conhecidos por serem observados em vários tipos de anomalias, como microtia, pé torto e displasia congênita do quadril.15 Os grupos de genes expressos de forma assimétrica durante os estágios iniciais do desenvolvimento embrionário poderão contribuir para essa preferência, contudo essa hipótese ainda não foi demonstrada por nenhum estudo.

Os pacientes com FLP apresentavam acometimento bilateral duas vezes mais frequente que aqueles com FL. Também foi relatado por outros autores13,16 um fato que sustenta a hipótese discutida em alguns estudos de que a FL e a FLP seriam patogeneticamente distintas e devem ser analisadas separadamente.17

Neste estudo, a maioria dos pacientes com FL ± P era do sexo masculino, e essa constatação é compatível com outros relatórios.2,12-14 De acordo com Croen et al.,3 a FP é mais frequente no sexo feminino. Essa constatação também foi observada nesse estudo. A susceptibilidade sexo-dependente das FO não é bem compreendida. De acordo com Blanco et al.,18 a susceptibilidade do sexo masculino à FL ± P parece ser, no mínimo em parte, uma consequência da variação do gene MSX1, localizado no cromossomo 4. A hipótese de que os genes relacionados ao cromossomo X tenham papel importante na etiologia das FO também surgiu, porém não foi confirmada.19 No que diz respeito à FP, propõe-se que o tempo de fechamento do palato secundário do embrião seja o motivo das diferenças entre os sexos.20 Nos homens, a fusão e o fechamento do palato secundário ocorrem antes que nas mulheres. Esse fato poderá ter alguma relação com a maior incidência de FL em mulheres.

Fissura orofacial sindrômica

Os dados de outros estudos mostram grande variabilidade na classificação de casos sindrômicos, de 4,3% relatados por Jensen et al.21 a 63,4% relatados por Shprintzen et al.22 Essa discrepância deve-se principalmente a diferenças entre as metodologias empregadas na classificação e à falta de consenso sobre o que deve ser considerado um defeito congênito associado à FO. Outros fatores são: o treinamento e a experiência do profissional responsável pelo exame físico e o fato de que muitos autores não incluem todos os indivíduos nascidos em um local específico, mas apenas pacientes encaminhados para tratamento em uma determinada unidade.2,4

Uma importante constatação apontada foi a diferença observada na presença de FO sindrômica em relação ao sexo. Pessoas do sexo feminino com FL ± P apresentam mais anomalias associadas que pessoas do sexo masculino. Essa constatação é o oposto para a FP, em que a proporção de pessoas do sexo masculino estava mais associada a outras anomalias. Isso pode ser explicado pela teoria do limiar de uma doença multifatorial, que observa que, quando o defeito é menos prevalente em um sexo específico, as anormalidades em pacientes desse sexo são mais graves e complexas.

No que diz respeito ao envolvimento de outros sistemas e considerando todos os casos de FO sindrômica, os mais afetados foram: sistema nervoso central, membros, sistema cardiovascular e sistema musculoesquelético. Resultados semelhantes foram observados por Genisca et al.13 e Stoll et al.2 A maioria dos pacientes teve mais de um sistema afetado, como observado, também, por Shprintzen et al.22

Algum grau de deficiência intelectual foi observado em metade dos portadores da FO sindrômica. Strauss e Broder23 também observaram uma alta prevalência de deficiência intelectual entre indivíduos com FO (10,1%), principalmente incapacidade leve e moderada (respectivamente, 42,8% e 44,6% dessa população).

Com relação à classificação de casos sindrômicos, uma limitação do estudo foi a ausência de cariótipo na maioria dos casos. Esses dados são resultado da indisponibilidade dessas análises por meio do sistema público de saúde em nossa instituição e na maioria dos centros de saúde pública no Brasil. Esse é um fator que fez o percentual de pacientes com anomalias cromossômicas em nosso estudo ser significativamente inferior ao divulgado por Tolarova e Cervenka14 e Stoll et al.2 (4% em comparação a 22,9% e 21,3%, respectivamente).

Ao comparar o percentual de diagnósticos de FO sindrômica feitos por um geneticista clínico e por outro médico especialista, foi observado que os diagnósticos aumentaram de 10,6 para 15,3%. A presença de um geneticista clínico é uma das normas internacionais no cuidado de pacientes com FO.24 De acordo com Lin et al.,25 um geneticista clínico treinado em dismorfologia consegue diferenciar a importância de características faciais, hábitos corporais e desenvolvimento do paciente, o que é essencial para o diagnóstico de casos com múltiplas anomalias congênitas. Apesar da importância da presença de um médico geneticista na equipe, Monlleó et al.10 observaram que o geneticista clínico estava presente em apenas 50% dos centros de referência para o tratamento de deformidades craniofaciais no Brasil. Sua presença era menos comum entre outras especialidades de reabilitação, cirurgia e cuidado especial.

Prevalência de nascimentos

Este estudo representa o primeiro esforço para estimar a prevalência de nascimentos de indivíduos com FO no estado. Segundo os registros do CAIF, a prevalência de nascimentos em nosso estado foi estimada em 1 por 1.010 nascidos vivos (0,99/1.000 nascimentos). Dados semelhantes foram observados por Genisca et al.13 A prevalência de FL ± P foi de 0,8/1.000 nascimentos e a de FP foi de 0,4/1.000 nascimentos. Tolarova e Cervenka14 observaram uma prevalência de 0,77/1.000 para FL ± P e 0,31/1000 para FP. No Brasil, foram conduzidos poucos estudos com esse objetivo. Rezende e Zollner26 observaram uma prevalência de nascimentos de 1/672 nascidos vivos na cidade de Taubaté/São Paulo, e Nunes7 constatou 1,35/1.000 nascidos vivos em Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro.

Foi observada uma subnotificação significativa na SESA/SINASC. O fato de que um em dois nascidos vivos com FO não foi notificado é preocupante, e, surpreendentemente, isso foi observado apenas para FL ± P, uma anomalia externa facilmente observada no nascimento e às vezes ainda no pré-natal.27 Adicionalmente, esse valor poderá ser subestimado, pois alguns casos poderão não ser tratados no CAIF. Essa falta de notificação não foi observada para FP, o que também é um dado inesperado, porque a FP é mais difícil de diagnosticar no nascimento. Kubon et al.28 divulgaram uma falta de registro na Noruega e observaram que ela estava diretamente relacionada à gravidade da FO. Acreditamos que esses casos de FP notificados podem estar classificados de forma incorreta. Essa observação foi feita por Nunes.7 Ele constatou quase 100% de casos classificados erroneamente.

Algumas publicações recentes sugerem a importância do ácido fólico para a prevenção de FO, porém isso ainda é controverso.9,29-31 Na América Latina, alguns países têm adotado política de fortificação alimentar com ácido fólico para reduzir a incidência de defeitos do tubo neural. O Brasil, com o auxílio de uma resolução do Ministério da Saúde, tornou obrigatória a fortificação da farinha com 1,5 mg/kg de ácido fólico a partir de 1º de julho de 2004 (RDC nº 344 de 13/12/2002). Avaliamos a incidência de FO não-sindrômica em pacientes tratados no CAIF e relacionamos ao período de início da fortificação das farinhas com ácido fólico no Brasil, e observamos uma redução nos casos de FO não sindrômica, principalmente em pessoas do sexo masculino com FL e FP. Tolarova foi a primeira autora a demonstrar o efeito do ácido fólico sobre a incidência de FO:31 ela mostrou uma redução de 65,4% na recidiva de FL ± P não sindrômica após suplementação de multivitaminas associada a doses elevadas de ácido fólico (10 mg). Uma meta-análise feita por Johnson e Little32 observou que multivitaminas durante o período periconcepcional reduzem o risco de FL ± P. Entretanto, não houve evidência significativa mostrando que apenas o ácido fólico poderia reduzir esse risco. Recentemente, Lopez-Camelo et al.,9 por meio de dados do ECLAMC, avaliou o efeito da fortificação alimentar com ácido fólico sobre a incidência de anomalias congênitas no Brasil, Argentina e Chile. Não houve variação significativa no número de casos de FO em nenhum país. Nosso trabalho parece mostrar que a fortificação da farinha de trigo com ácido fólico reduziu o número de casos de FO no estado do Paraná. Quaisquer outras variáveis que também poderiam influenciar a incidência e recidiva de FO não foram avaliadas.

Com base neste estudo, podemos estimar que aproximadamente 20 novos casos de FO ocorrem por mês no estado do Paraná/Brasil, e a maior parte não é registrada junto à agência nacional responsável. A maior parte desses pacientes apresenta FO não sindrômica, e a avaliação de um geneticista clínico pode melhorar o diagnóstico dos casos sindrômicos.

Financiamento

Este estudo recebeu auxílio do CAPES e do CNPq.

Conflito de interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

Agradecimentos

Agradecemos ao Projeto Crânio-face Brasil, em especial à dra. Vera Lúcia Gil da Silva Lopes, por sua assistência na análise cariotípica e citogenética molecular da Síndrome Velocardiofacial em alguns de nossos pacientes. Agradecemos à dra. Sandra Sinclair por sua assistência na edição deste texto. Agradecemos a todos os pacientes tratados no CAIF, e em especial ao dr. Lauro Consentino Filho, diretor e fundador do Centro, por possibilitar a realização deste trabalho. Este estudo foi patrocinado pela CAPES e pelo CNPq.

Recebido em 17 de agosto de 2012; aceito em 3 de outubro de 2012

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Abr 2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Ago 2012
    • Aceito
      03 Out 2012
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