Acessibilidade / Reportar erro

Traqueostomia na criança

Resumos

OBJETIVO: Apresentar revisão atualizada sobre a traqueostomia na idade pediátrica, com ênfase nas indicações, técnica cirúrgica, complicações e manejo da traqueostomia a nível hospitalar e domiciliar. FONTES DOS DADOS: Foram selecionados pelo site de busca médica (MEDLINE e PubMed) artigos originais e de revisão sobre traqueostomia na criança, utilizando as seguintes palavras-chave: tracheostomy, tracheotomy, children, newborn. SíNTESE DOS DADOS: A indicação de traqueostomia vem mudando progressivamente. No momento, ela é mais indicada na criança em ventilação mecânica prolongada. A faixa etária mais comum do procedimento também mudou, sendo atualmente mais comumente realizada em crianças menores de 1 ano de idade. Exceto em situações de emergência, a traqueostomia deve ser realizada em unidade cirúrgica, com a criança entubada. É preconizada a incisão transversa da pele e abertura longitudinal da traqueia, sem ressecção da mesma. Embora as complicações da traqueostomia na criança não sejam incomuns, elas, na maioria das vezes, não necessitam de tratamentos sofisticados ou mesmo de intervenção cirúrgica. Embora a mortalidade possa ocorrer em até 40% das crianças traqueostomizadas, ela é diretamente relacionada à traqueostomia em apenas 0 a 6% das crianças. CONCLUSÕES: A decisão de realizar traqueostomia na criança continua complexa e dependente de vários fatores. O procedimento é seguro e com menores complicações quando realizado em hospital terciário de referência e por equipe treinada e experiente.

Traqueostomia; entubação prolongada; criança; recém-nascido


OBJECTIVE: To provide an up-to-date review of pediatric tracheostomy, primarily focusing on indications, surgical technique, complications and hospital and home care. SOURCES: MEDLINE and PubMed databases were searched using the following keywords: tracheostomy, tracheotomy, children, newborn. SUMMARY OF THE FINDINGS: Indications for tracheostomy in children are changing. Today the most common indication is prolonged ventilation. The age at the time of the procedure has also changed, with a peak incidence of tracheostomy in patients less than 1 year old. Except under emergency conditions, pediatric tracheostomy should be performed in the operating room with the child intubated. A horizontal skin incision with vertical tracheal incision and no tracheal resection is recommended. Although post-tracheostomy complications are not uncommon, they usually do not need special treatment or surgical procedures. Tracheostomy mortality can occur in up to 40% of pediatric cases, however the tracheostomy-related mortality rate is only 0 to 6%. CONCLUSIONS: The decision to perform a tracheostomy remains complex, and depends on several factors. The procedure is safe and with a low number of complications if carried out at a tertiary hospital by a trained and experienced team.

Tracheostomy; tracheotomy; prolonged intubation; children; newborn


ARTIGO DE REVISÃO

Traqueostomia na criança

José Carlos FragaI; João C. K. de SouzaII; Juliana KruelIII

IProfessor associado, Cirurgia Pediátrica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Professor, Curso de Pós-Graduação em Medicina: Cirurgia, UFRGS, Porto Alegre, RS. Cirurgião pediátrico chefe, Serviço de Cirurgia Pediátrica, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Porto Alegre, RS. Cirurgião, Setor de Cirurgia Torácica Infantil, HCPA, Porto Alegre, RS

IIMédico cirurgião pediátrico, Hospital da Criança Conceição, Porto Alegre, RS. Doutorando, Curso de Pós-Graduação em Medicina: Cirurgia, UFRGS, Porto Alegre, RS

IIIAcadêmica de Medicina, UFRGS, Porto Alegre, RS. Aluna de iniciação científica, Curso de Pós-Graduação em Medicina: Cirurgia, UFRGS, Porto Alegre, RS

Correspondência Correspondência: José Carlos Fraga Rua Ramiro Barcelos 2350, sala 600 (6° andar) CEP 90035-930 - Porto Alegre, RS Tel.: (51) 2101.8232 Email: jc.fraga@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Apresentar revisão atualizada sobre a traqueostomia na idade pediátrica, com ênfase nas indicações, técnica cirúrgica, complicações e manejo da traqueostomia a nível hospitalar e domiciliar.

FONTES DOS DADOS: Foram selecionados pelo site de busca médica (MEDLINE e PubMed) artigos originais e de revisão sobre traqueostomia na criança, utilizando as seguintes palavras-chave: tracheostomy, tracheotomy, children, newborn.

SíNTESE DOS DADOS: A indicação de traqueostomia vem mudando progressivamente. No momento, ela é mais indicada na criança em ventilação mecânica prolongada. A faixa etária mais comum do procedimento também mudou, sendo atualmente mais comumente realizada em crianças menores de 1 ano de idade. Exceto em situações de emergência, a traqueostomia deve ser realizada em unidade cirúrgica, com a criança entubada. É preconizada a incisão transversa da pele e abertura longitudinal da traqueia, sem ressecção da mesma. Embora as complicações da traqueostomia na criança não sejam incomuns, elas, na maioria das vezes, não necessitam de tratamentos sofisticados ou mesmo de intervenção cirúrgica. Embora a mortalidade possa ocorrer em até 40% das crianças traqueostomizadas, ela é diretamente relacionada à traqueostomia em apenas 0 a 6% das crianças.

CONCLUSÕES: A decisão de realizar traqueostomia na criança continua complexa e dependente de vários fatores. O procedimento é seguro e com menores complicações quando realizado em hospital terciário de referência e por equipe treinada e experiente.

Palavras-chave: Traqueostomia, entubação prolongada, criança, recém-nascido.

Introdução

Traqueostomia é o procedimento cirúrgico que, através da colocação de uma cânula na traqueia, estabelece uma comunicação direta entre ela e o meio externo. Esse procedimento na criança, em especial no lactente e no recém-nascido, tem sido associado a maior morbidade e mortalidade quando comparado aos adultos1-3. Com o passar dos anos, ocorreu mudança no uso da traqueostomia na criança, observando-se indicações mais definidas e resultados mais satisfatórios no seguimento a longo prazo4. O objetivo deste estudo é realizar uma revisão da traqueostomia na criança.

História

A realização da primeira traqueostomia é atribuída a Asclepíades, em Roma, no século II antes de Cristo5. No século II depois de Cristo, a técnica de traqueostomia foi novamente definida por Antyllus, que salientava que a traqueia deveria ser aberta no terceiro ou quarto anéis. Entretanto, foi somente no século XVI que o médico italiano Antonio M. Brasovala relatou a realização com sucesso de uma traqueostomia em um paciente que com abscesso na traqueia5. Nicholas Habicot, em 1620, descreveu quatro traqueostomias realizadas com sucesso, sendo que um dos pacientes era um menino de 14 anos de idade. Caron, em 1766, relata a realização da traqueostomia em uma criança de 7 anos para remoção de corpo estranho. Essa é considerada a primeira traqueostomia realizada com sucesso em paciente com idade pediátrica6. Seguiram-se outros relatos de tal procedimento realizado com sucesso em crianças, descritos por Andree em 1782 e Chevalier em 18145.

Em 1833, Trousseau relatou ter salvado 50 crianças com difteria através da realização da traqueostomia6. Nesse relato, e pela primeira vez na história, ele também descrevia técnicas para cuidados pós-operatórios6. Como resultado desse uso satisfatório da traqueostomia em crianças com difteria, o manejo cirúrgico de problemas de via aérea aumentou em popularidade, mesmo sabendo-se que a mortalidade associada ao procedimento continuava elevada. Jackson, em 1921, mostrou redução da mortalidade quando a traqueostomia era realizada apropriadamente, especialmente se houvesse cuidado pós-operatório adequado7. Sua contribuição para a história da traqueostomia foi a redução das complicações através da ênfase na boa técnica cirúrgica e nos cuidados pós-operatórios e, consequentemente, maior aceitação dessa cirurgia. O próximo ímpeto para aumentar a utilização do procedimento foi realizado por Galloway, quando ele reportou a utilização da traqueostomia em pacientes com poliomiosite8.

Indicações

A traqueostomia foi inicialmente usada para alívio de obstrução aguda das vias aéreas, sendo realizada como procedimento de último recurso5. A partir do século XX, ocorreu aumento das indicações do procedimento, que passou a ser utilizado para tratamento ou melhora dos cuidados respiratórios ou mesmo para prevenção de estreitamentos da via aérea9,10. As principais indicações da traqueostomia na criança podem ser observadas na Tabela 15.

Enquanto que as principais indicações de traqueostomia em crianças têm se mantido as mesmas nos últimos 20 anos, inúmeras tendências são aparentes em relatos de séries de casos durante esse período. Wetmore et al.11 relataram que a incidência da traqueostomia tem diminuído comparada com o número de admissões hospitalares, embora o número absoluto de traqueostomias por ano tenha permanecido inalterado. Esse mesmo estudo, juntamente com outro publicado recentemente12, mostrou que os pacientes têm ficado com traqueostomia por mais tempo, talvez porque sejam crianças submetidas à ventilação mecânica cronicamente.

A traqueostomia tem sido preconizada em crianças de qualquer faixa etária. Entretanto, ela é mais comumente realizada em crianças menores de 1 ano de idade11-14. O aumento da traqueostomia nessa faixa de idade tem sido atribuído à maior sobrevida de recém-nascidos prematuros e daqueles que requerem ventilação prolongada4.

A decisão de realização de traqueostomia na criança é complexa e depende de vários fatores, incluindo a gravidade da obstrução da via aérea, a dificuldade e o tempo de entubação e a condição médica subjacente da criança. Cada um desses fatores deve ser avaliado em conjunto pelo pediatra e pelo cirurgião, e a indicação da traqueostomia deve ser baseada nas condições individuais de cada criança5,15.

A partir da realização com sucesso da primeira traqueostomia pediátrica em 1766, o procedimento passou a ser realizado especificamente para crianças com obstrução da via aérea, tanto que era indicada no manejo de crianças com difteria, laringite e edema laríngeo9. A traqueostomia passou a ser indicada, a seguir, para facilitar a aspiração de secreções das vias aéreas de crianças entubadas por longo período. Tal indicação do procedimento foi bem descrita em crianças com poliomielite16. A partir da utilização das vacinas para difteria (1940) e poliomielite (1956), as indicações mais importantes da traqueostomia passaram a ser os processos inflamatórios agudos da laringe, tais como a laringotraqueobronquite e epiglotite aguda17. Com a melhora dos tubos e da técnica para entubação, bem como dos cuidados das unidades de tratamento intensivo, a partir da década de 80 a entubação passou a ser o procedimento preferencial em comparação à traqueostomia nessas crianças com processo inflamatório da via aérea5.

A utilização cada vez maior da entubação traqueal para manejo de crianças com problemas de via aérea, com consequente aumento da sobrevida de tais crianças, culminou com o aumento da incidência da estenose subglótica, que se tornou a partir daí na causa mais comum de traqueostomia na criança. Entretanto, o constante aprimoramento das técnicas cirúrgicas para correção de estenose subglótica, que passou a ser tratada sem a necessidade de traqueostomia prévia, associado a maiores cuidados com a via aérea da criança entubada, diminui muito a indicação desse procedimento em crianças com estenose subglótica. Atualmente, a indicação mais comum da traqueostomia na criança é a entubação prolongada5,18,19; em seguida, vêm a entubação realizada para limpeza traqueobrônquica e as malformações congênitas da via aérea5.

A criança que necessita de ventilação mecânica é inicialmente manejada com entubação traqueal, com a indicação de traqueostomia, dependendo da doença subjacente e da idade da criança. Recém-nascidos usualmente toleram entubação por meses, com mínimo edema ou inflamação laríngea5. Crianças maiores e adolescentes com doença subjacente irreversível, e sem perspectiva de extubação, indica-se traqueostomia após 10 a 14 dias de entubação; nas crianças dessa faixa etária, mas que apresentam doença primária com possibilidade de extubação, dependendo da evolução do quadro clínico, preconiza-se fibrobroncoscopia semanal após 10 a 14 dias de entubação, a fim de avaliar a condição da via aérea superior. Na presença de ulceração de mucosa ou de alterações isquêmicas da laringe ou traqueia, devido à presença do tubo traqueal, indica-se a realização de traqueostomia15.

Na criança com dificuldade de limpeza de secreções laringotraqueais, pode-se indicar a entubação para proteção da via aérea, embora ela não previna completamente a aspiração se houver uma laringe incompetente. Outras medidas protetoras são a alimentação por sondas nasogástricas ou de gastrostomia, a fim de diminuir as secreções originadas do mecanismo de deglutição, e o tratamento médico ou cirúrgico agressivo do refluxo gastroesofágico. Em casos raros, em que a traqueostomia não melhora a aspiração crônica, deve ser discutida a realização da desconexão laríngea20.

Cânulas de traqueostomia

A cânula de traqueostomia ideal deve ter uma série de características5. O tubo deve ser mole o suficiente para se moldar à traqueia e ao pescoço sem ocasionar nenhuma pressão, desconforto, ou lesão da pele ou da mucosa traqueal. Entretanto, o tubo não deve ser tão amolecido para não ocorrerem dobras ou colapso, com consequente comprometimento de seu lúmen. O tubo deve ser confeccionado de material que ocasione mínima reação tecidual, de preferência com os mesmos tamanhos e numeração dos tubos endotraqueais correspondentes. As cânulas ideais devem possuir conector externo para adaptação nos equipamentos de ventilação mecânica e apresentar tubo interno que possa ser removido e limpo. Infelizmente, nenhuma das cânulas metálicas ou plásticas atualmente disponíveis apresentam todas essas características10. Apesar disso, a maioria dos autores prefere o uso de cânulas plásticas5,21.

Na escolha da cânula de traqueostomia, é importante considerar o diâmetro e o comprimento da mesma. Cânula com diâmetro muito largo pode ocasionar lesão da mucosa ou mesmo isquemia da parede traqueal. Isso pode ocasionar ulceração e posteriormente estenose fibrótica da traqueia. Pela mesma razão, as cânulas de traqueostomia usadas na criança não têm balonete, devido ao risco de injúria isquêmica e estenose residual. Os diâmetros das cânulas geralmente podem ser estimados de acordo com o diâmetro do tubo traqueal correspondente para a criança5.

O comprimento da cânula de traqueostomia também é importante, especialmente nos recém-nascidos e lactentes pequenos. Cânula demasiadamente curta pode facilitar decanulação acidental ou formação de falsa via; cânulas demasiadamente longas podem lesar a carena ou determinar entubação seletiva para um dos brônquios. Às vezes opta-se pelo uso de cânulas longas para tratamento de área de estenose traqueal baixa ou traqueobroncomalacia5.

Técnica cirúrgica

Exceto em situações de emergência, a traqueostomia na criança deve ser realizada preferentemente em ambiente cirúrgico, sob anestesia geral e com o paciente entubado. A sala de cirurgia oferece boa iluminação e o paciente pode ser adequadamente posicionado5. Broncoscópio rígido deve estar disponível durante o procedimento, caso haja necessidade de manipulação e controle da via aérea.

A criança é colocada em decúbito dorsal, com coxim sob os ombros para promover a hiperextensão do pescoço. Prefere-se a realização de incisão horizontal da pele, que permite melhor resultado estético. Na abertura da via aérea, é preferível a realização de incisão vertical nos terceiro e quarto anéis traqueais3,5,21,22. O colapso acima da traqueostomia e o estreitamento da traqueia são mais comumente observados com incisão traqueal horizontal, ou do tipo em "T" ou "H", bem como em caso de ressecção da parede traqueal22-24. Na criança, é muito importante a colocação dos pontos de reparo da parede traqueal no momento da realização da traqueostomia, pois os mesmos são fundamentais em caso de decanulação acidental no pós-operatório3,21,22. Em caso de necessidade de recolocação da cânula de traqueostomia, os mesmo são tracionados, permitindo abertura e anteriorização do orifício traqueal, facilitando a canulação da traqueia22.

Complicações

A morbidade e a mortalidade da traqueostomia são duas a três vezes maior na criança do que no adulto4,15,25,26. O número de complicações é ainda maior no período neonatal, particularmente no prematuro, sendo a traqueostomia nessa faixa etária considerada um procedimento de risco3. Isso, em parte, pode ser explicado pela utilização de tubos menores nessas pequenas crianças e também pelas doenças associadas, especialmente a displasia broncopulmonar3.

A incidência de complicações agudas da traqueostomia varia de 5 a 49%10,15,25,27-30 e inclui sangramento, pneumotórax, pneumomediastino, enfisema subcutâneo, decanulação acidental, obstrução da cânula, laceração de traqueia, fístula traqueoesofágica, infecção da incisão cirúrgica e abscesso cervical. As complicações tardias são descritas em 24 a 100% das crianças10,19,25,27-30 e incluem tecido de granulação, sangramento, infecção, pneumotórax, estenose traqueal, traqueomalacia, fusão das cordas vocais e fístula traqueoesofágica.

É comprovado que as complicações da traqueostomia são reduzidas se ela é realizada em hospitais terciários de referência e por cirurgiões treinados no manejo de obstrução da via aérea de crianças2. Também reduz a incidência das complicações o treinamento específico dos profissionais de saúde que cuidam dessas crianças, bem como o ensino dos cuidados e manobras de ressuscitação também aos familiares e pessoas da comunidade que cuidam de tais crianças13. A mortalidade pode ocorrer em até 40% das crianças com traqueostomia, e a morte diretamente relacionada à traqueostomia varia de 0 a 6%15.

Cuidados com a traqueostomia

O ar inspirado deve preferentemente ser aquecido e umidificado para prevenir desconforto, espessamento das secreções e risco de obstrução da cânula de traqueostomia por rolha de secreção5. O clima também pode alterar a fluidez da secreção, assim como o aquecimento dos ambientes no inverno e o aparelho de ar-condicionado no verão, que tornam o ar mais seco e, assim, faz-se necessária uma umidificação mais frequente31.

Como a atividade da tosse é perdida na criança traqueostomizada, as secreções devem ser aspiradas artificialmente de uma maneira asséptica e minimamente traumática, a fim de reduzir a possibilidade de lesão interna da traqueia32. A aspiração de secreções deve ser realizada no mínimo duas vezes ao dia31 ou em maior número de vezes se houver grande quantidade de secreções que não possam ser expelidas pela tosse. Na aspiração, a sonda é introduzida com o vácuo desligado e a ponta da sonda progride até cerca de 0,5 cm abaixo da ponta distal da cânula. A seguir, o vácuo é ligado e a sonda é retirada suavemente com movimentos giratórios31.

A comunicação através da fala é perdida, e nas crianças maiores pode ser realizada por sinais ou através da escrita naquelas alfabetizadas5. Pode-se utilizar válvula fonatória nas crianças em que a cânula de traqueostomia não exceda dois terços do diâmetro traqueal e naquelas com quadro clínico estável, que não apresentem secreção espessa e que possuam alguma habilidade para vocalizar com a oclusão do tubo31.

Com a traqueostomia, o sistema respiratório fica mais susceptível a contaminação e a aspiração de corpos estranhos. Trocas frequentes das sondas de aspiração e a utilização de técnicas assépticas no manuseio da traqueostomia são importantes para reduzir a possibilidade de infecção33. Deve-se ter cuidado com objetos estranhos no orifício da traqueostomia, já que a presença de um orifício aberto na traqueia torna a criança mais suscetível a aspiração de materiais estranhos para a via aérea.

Em geral, a criança pode ser alimentada logo após a realização da traqueostomia, desde que esteja bem acordada e recuperada da anestesia. Entretanto, algumas crianças podem perder alguns reflexos laríngeos e apresentar pequenas aspirações ocasionais5.

A frequência da troca da cânula de traqueostomia depende da idade da criança, da quantidade de secreções e do tipo de cânula que está sendo usada. Em geral, cânulas plásticas devem ser trocadas, em média, após 4-6 meses de uso ou antes, se apresentarem algum grau de obstrução31. Nas crianças com traqueostomia que estejam em casa, é importante que os pais tenham duas cânulas disponíveis para troca de emergência: uma de mesmo calibre, e outra de calibre imediatamente inferior.

A troca do cadarço de fixação da cânula de traqueostomia deve ser realizada diariamente ou sempre que o mesmo estiver molhado ou sujo31. Durante a troca, uma pessoa deve segurar a cânula no lugar enquanto outra pessoa remove a fixação antiga e coloca uma nova.

Não é possível a retirada da traqueostomia de todas as crianças, tanto que algumas necessitam ir para a casa com a cânula. Para isso, os pais precisarão adquirir todo o equipamento necessário (aspirador portátil, luvas, sondas de aspiração estéreis, fonte de oxigênio, ambu e soro fisiológico) e também deverão ser treinados para realizarem os cuidados com a traqueostomia, bem como a detecção de complicações e técnicas de emergência. O trabalho da equipe de enfermagem é fundamental para proporcionar as orientações e facilitar o contato dos familiares com o hospital e a equipe médica. É importante salientar que a criança não pode ser liberada antes que os pais tenham aprendido todos os cuidados e procedimentos de emergência com a criança traqueostomizada, tampouco antes de o equipamento estar instalado e funcionando no domicílio do paciente.

Obtenção da via aérea na emergência

A traqueostomia de emergência na criança não tem muitos adeptos, pois está associada a maiores riscos de perfuração da via aérea, sangramento e dificuldade na definição anatômica das estruturas5. A criança com falência respiratória, que necessita assistência ventilatória vital, pode ser inicialmente ventilada através do sistema de bolsa-máscara anestésica34. Esse sistema é mais seguro e tão efetivo quanto a entubação traqueal, desde que realizado de forma adequada e por curto período de tempo35. É muito importante a abertura da via aérea através de leve hiperextensão do pescoço e também a perfeita adaptação da máscara na face da criança, a fim de evitar vazamento de ar34. Assim que houver pessoa habilitada e experiente e todo o material necessário disponível, deve-se realizar a entubação traqueal36.

Caso a entubação traqueal não seja possível por inabilidade técnica ou devido a via aérea difícil, uma alternativa é o uso de máscara laríngea. Ela é tão efetiva quanto a entubação traqueal, mas apenas devem ser usadas por pessoal treinado37.

Outra alternativa para esses pacientes é a entubação traqueal por fibroscopia, em que o aparelho endoscópico é utilizado como guia para a introdução do tubo endotraqueal. A entubação com fibroscopia pode ser realizada em todas as faixas etárias e tem como vantagens permitir a avaliação da via aérea antes da entubação e evitar a entubação esofágica ou seletiva em um dos brônquios, além de confirmar a posição do tubo na traqueia38. Ela é contraindicada na presença de quantidade excessiva de sangue ou secreções que prejudiquem a visibilidade e naquelas crianças em que não seja possível a ventilação através do conjunto bolsa-máscara, de modo que não seja possível manter a oxigenação durante o procedimento38.

Quando há necessidade de intervenção cirúrgica para obtenção de via aérea na criança, prefere-se a realização de cricotireoidotomia5,39. A abertura da membrana cricotireoidea pode ser realizada por incisão ou por punção. A primeira, devido aos riscos de lesão das estruturas vitais do pescoço, deve ser realizada preferentemente por médicos com treinamento cirúrgico. A punção pode ser realizada por qualquer médico com treinamento em reanimação pediátrica39. Embora ainda haja debate sobre a real possibilidade de utilizar a ventilação através de punção com agulha calibrosa da membrana cricotireoide na ressuscitação, ela é procedimento recomendado pelo Suporte Avançado de Vida em Pediatria da Associação Americana de Cardiologia (American Heart Association)39. Para a realização do procedimento, a criança é colocada em decúbito dorsal, com coxim sob os ombros. A membrana cricotireoidea é localizada entre a porção final da cartilagem tireoide, e a inicial da cartilagem cricoide e é puncionada com cateter calibroso (abocath® números 14, 16 ou 18), na linha média, em direção caudal com ângulo de 30º. O cateter é conectado a uma seringa com pressão negativa durante a punção. Ao passar pela membrana cricotiroidea e entrar na via aérea, a agulha é removida, e a parte plástica do cateter é progredida distalmente. O cateter deve ser conectado preferentemente a um sistema de ventilação a jato transtraqueal38. A cricotireoidotomia por punção com ventilação a jato é mais rápida, mais simples e apresenta menor sangramento do que a cricotireoidotomia cirúrgica. Entretanto, ela tem caráter provisório e deve ser usada somente até a obtenção de uma via aérea definitiva38.

Retirada da cânula de traqueostomia

A retirada da traqueostomia da criança é um procedimento difícil e somente deve ser tentado após resolução da doença primária que indicou o procedimento5. A tentativa de decanulação deve ser precedida de fibrobroncoscopia, a fim de excluir doenças obstrutivas (estenose de laringe ou subglótica, granulomas, colapso traqueal acima da traqueostomia, entre outros) que impeçam a remoção da cânula. Se presentes, as alterações obstrutivas devem ser tratadas antes da remoção da cânula de traqueostomia. Depois de retirada da cânula, a criança deve permanecer internada no hospital em observação por, no mínimo, 24 horas.

Conclusões

Nos últimos anos é possível observar várias mudanças nas traqueostomias realizadas em crianças. A faixa etária dos pacientes operados mudou, com traqueostomia sendo realizada mais comumente na criança menor de 1 ano de idade. As indicações do procedimento também mudaram ao longo dos últimos 30 anos, sendo que no momento ela é realizada mais comumente em crianças com entubação prolongada, seguidas pelas crianças que necessitam de melhor limpeza traqueobrônquica e por aquelas com malformações obstrutivas das vias aéreas. A traqueostomia na criança é segura e, quando realizada em ambiente hospitalar terciário e por cirurgiões treinados no manejo da via aérea da criança, está associada a complicações menores, que usualmente não requerem intervenção cirúrgica adicional.

Artigo submetido em 23.04.08, aceito em 20.08.08.

Trabalho realizado no setor de Cirurgia Torácica Infantil/Serviço de Cirurgia Pediátrica, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Como citar este artigo: Fraga JC, de Souza JC, Kruel J. Pediatric tracheostomy. J Pediatr (Rio J). 2009;85(2):97-103.

  • 1. Gilmore BB Jr, Mickelson AS. Pediatric tracheotomy: controversies in management. Otolaryngol Clin North Am. 1986;19:141-51.
  • 2. Pereira KD, MacGregor AR, Mitchell RB. Complications of neonatal tracheostomy: a 5-year review. Otolaryngol Head Neck Surg. 2004;131:810-3.
  • 3. Ruggiero FP, Carr MM. Infant tracheotomy: results of a survey regarding technique. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2008;134:263-7.
  • 4. Alladi A, Rao S, Das K, Charles AR, D´Cruz AJ. Pediatric tracheostomy: a 13-year experience. Pediatr Surg Int. 2004;20:695-8. Epub 2004 Sep 21.
  • 5. Wetmore RF. Tracheotomy. In: Bluestone CD, Stool SE, Alpes CM, Arjmand EM, Casselbrant ML, Dohar JE, et al., editors. Pediatric otolaryngology. 4th ed. Philadelphia: Saunders; 2003. p. 1583-98.
  • 6. Gooddal EW. The story of tracheotomy. Br J Child Dis. 1934;31:167-76.
  • 7. Jackson C. High tracheotomy and other errors: the chief causes of chronic laryngeal stenosis. Surg Gynecol Obstet. 1921;32:392-8.
  • 8. Galloway TC. Tracheotomy in bulbar poliomyelitis. JAMA. 1943;123:1096-7.
  • 9. Swift AC, Rogers JH. The changing indications for tracheostomy in children. J Laryngol Otol. 1987;101:1258-62.
  • 10. Carter P, Benjamin B. Ten-year review of pediatric tracheotomy. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1983;92 (4 Pt 1):398-400.
  • 11. Wetmore RF, Marsh RR, Thompson ME, Tom LW. Pediatric tracheostomy: a changing procedure? Ann Otol Rhinol Laryngol. 1999;108 (7 Pt 1):695-9.
  • 12. Carron JD, Derkay CS, Strope GL, Nosonchuk JE, Darrow DH. Pediatric tracheotomies: changing indications and outcomes. Laryngoscope. 2000;110:1099-104.
  • 13. Corbett HJ, Mann KS, Mitra I, Jesudason EC, Losty PD, Clarke RW. Tracheostomy a 10 year experience from a UK pediatric surgical center. J Pediat Surg. 2007;42:1251-4.
  • 14. Gerson CR, Tucker GF Jr. Infant tracheotomy. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1982;91 (4 Pt 1):413-6.
  • 15. Kremer B, Botos-Kremer AI, Eckel HE, Schlöndorff G. Indications, complications and surgical techniques for pediatric tracheostomies un update. J Ped Surg. 2002;37:1556-62.
  • 16. Borman J, Davidson JT. A history of tracheostomy: si spiritum ducit vivit (Cicero). Br J Anaesth. 1963;35:388-90.
  • 17. Benjamin B. Tracheotomy in infants and children. J Otolaryngol Soc Aust. 1971;3:254-9.
  • 18. Butnaru CS, Colreavy MP, Ayari S, Froehlich P. Tracheotomy in children: evolution in indications. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2006;70:115-9. Epub 2005 Sep 16.
  • 19. Hadfield PJ, Lloyd-Faulconbridge RV, Almeyda J, Albert DM, Bailey CM. The changing indications for paediatric tracheostomy. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2003;67:7-10.
  • 20. De Vito MA, Wetmore RF, Pransky SM. Laryngeal diversion in the treatment of chronic aspiration in children. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 1989;18:139-45.
  • 21. Fraga JC, Contelli F, Kruel J, Costa EC, Backes A. Traqueostomia pediátrica: relato de uma série de casos. Revista AMRIGS. 2008;52:60-66.
  • 22. Fraga JC, Nogueira A, Einloft L. Procedimentos invasivos em UTIP. In: Piva JP, Garcia PC, editores. Medicina intensiva em pediatria. Rio de Janeiro, RJ: Revinter; 2005. p. 785-814.
  • 23. Fry TL, Jones RO, Fischer ND, Pillsbury HC. Comparisons of tracheostomy incisions in a pediatric model. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1985;94 (5 Pt 1):450-3.
  • 24. Antón-Pacheco JL, Villafruela M, López M, García G, Luna C, Martínez A. Surgical management of severe suprastomal cricotracheal collapse complicating pediatric tracheostomy. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2008;72:179-83. Epub 2007 Nov 14.
  • 25. Wetmore RF, Handler SD, Potsic WP. Pediatric tracheostomy. Experience during past decade. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1982;91 (6 Pt 1):628-32.
  • 26. Gilmore BB Jr, Mickelson AS. Pediatric tracheotomy. Controversies in management. Otolaryngol Clin North Am. 1986;19:141-51.
  • 27. Carr MM, Poje CP, Kingston L, Kielma D, Heard C. Complications in pediatric tracheostomies. Laryngoscope. 2001;111 (11 Pt 1):1925-8.
  • 28. Kenna MA, Reilly JS, Stool SE. Tracheotomy in the preterm infant. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1987;96 (1 Pt 1):68-71.
  • 29. Crysdale WS, Feldman RI, Naito K. Tracheotomies: a 10-year experience in 319 children. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1988;97 (5 Pt 1):439-43.
  • 30. Gianoli GJ, Miller RH, Guarisco JL. Tracheotomy in the first year of life. Ann Otol Rhinol Laryngol. 1990;99:896-901.
  • 31. Ruoppolo, GM. Guia de cuidados com a criança traqueostomizada [monografia]. Santo Amaro, SP: Faculdade de Fisioterapia de Santo Amaro; 2003.
  • 32. Schild JA. Tracheostomy care. Int Anesthesiol Clin. 1970;8:649-54.
  • 33. Stool SE, Beebe JK. Tracheotomy in infants and children. Curr Probl Pediatr. 1973;3:3-33.
  • 34. Zorzela L, Garros D, de Caen AR. The new guidelines for cardiopulmonary resuscitation: a critical analysis. J Pediatr (Rio J). 2007;83 (2 Suppl):S64-70. Epub 2007 May 15.
  • 35. Stockinger ZT, McSwain NE Jr. Prehospital endotracheal intubation for trauma does not improve survival over bag-valve-mask ventilation. J Trauma. 2004;56:531-6.
  • 36. Matsumoto T, Carvalho WB. Tracheal intubation. J Pediatr (Rio J) 2007;83 (2 Suppl):S83-90.
  • 37. Park C, Bahk JH, Ahn WS, Do SH, Lee KH. The laryngeal mask airway in infants and children. Can J Anaesth. 2001;48:413-7.
  • 38. Melhado VB, Fortuna AO. Via aérea difícil. In: Yamashita AM, Fortis EAF, Abrão J, Mathias LA, Cunha LB, Fáscio MN, editores. Curso de educação à distância em anestesiologia. São Paulo: Office; 2004. p. 15-107.
  • 39. Pediatric Advanced Life Support. Circulation. 2005;112:IV-167-87.
  • Correspondência:

    José Carlos Fraga
    Rua Ramiro Barcelos 2350, sala 600 (6° andar)
    CEP 90035-930 - Porto Alegre, RS
    Tel.: (51) 2101.8232
    Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Recebido
      23 Abr 2008
    • Aceito
      20 Ago 2008
    Sociedade Brasileira de Pediatria Av. Carlos Gomes, 328 cj. 304, 90480-000 Porto Alegre RS Brazil, Tel.: +55 51 3328-9520 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: jped@jped.com.br