Avaliação do eixo hipotalâmico-hipofisário-tireoidiano em crianças com síndrome de Down
Assessment of hypothalamic-pituitary-thyroid axis in children with Down syndrome
Marília Martins Guimarães *
A síndrome de Down (SD) foi descrita inicialmente pelo médico inglês John Langdon Down, em 1866, em um relato intitulado "Observações sobre uma classificação étnica de idiotas", no qual refere sinais comuns em indivíduos, como retardo mental, face redonda, pele sem elasticidade e dando a impressão de estar em excesso, protusão da língua, epicanto, etc... Nesse trabalho, o autor escreve: "um grande número de idiotas congênitos são típicos mongóis. Isto é tão marcante que quando são colocados lado a lado é difícil acreditar que não são filhos dos mesmos pais"(1).
Essas alusões levaram a síndrome a ser conhecida como mongolismo, e os pacientes denominados de mongolóides. Esse termo foi considerado uma ofensa racial, e retirado em 1960, passando a ser denominado de apenas síndrome de Down, para uso científico(2,3).
A associação da síndrome à alteração cromossômica foi suspeitada em 1930, por Bleyer e Waaderberg, sendo confirmada em pesquisas independentes, 30 anos mais tarde, por Jerome Lejeune e Patricia Jacobs, que observaram a trissomia do cromossoma 21. A translocação e mosaicismo como causas da síndrome foram descritas cerca de 3 anos após(2,3).
A SD ocorre em aproximadamente 1 para 800 nascimentos vivos, em todas as raças e níveis socioeconômicos. É considerada a desordem cromossômica de ocorrência mais comum, e é importante causa de retardo mental. O cariótipo compatível com trissomia do cromossoma 21 possui uma estreita relação com a idade materna avançada(4). O diagnóstico já pode ser suspeitado desde a vida intra-uterina, pela ocorrência de baixos níveis maternos de alfa-fetoproteínas e estriol, e elevados de gonadotrofina coriônica, ou através da avaliação ultra-sonográfica das pregas da nuca do feto. Estes exames não são definitivos, e o diagnóstico final é confirmado na realização do cariótipo, seja por estudo em vilosidade coriônica (feito entre a 9a e a 11a semana de gestação), ou na amniocentese realizada após a 18a semana de gestação, ou, ainda, a partir do nascimento, quando surgir suspeita clínica(4).
Além das características inerentes à própria síndrome, são também observadas diversas co-morbidades, como cardiopatias, em cerca de 37% dos pacientes, doenças hematológicas (21%), perda de audição entre 66 a 89%, crises convulsivas em 5 a 13%, e outras doenças, assim como distúrbios imunológicos que afetam órgãos endócrinos (como a tireóide e o pâncreas) e não endócrinos(4-6). As alterações da função tireoidiana têm merecido atenção de pesquisadores, devido à grande freqüência (10 a 50%) em que são encontradas, quando investigadas(6,7). O tipo de distúrbio não é uniforme, e nem sempre pode ser explicado pela alteração imunológica. A presença de anticorpos antitireoidianos é encontrada em cerca de 13 a 30%, e pode acompanhar tanto a hipo quanto a hiperfunção tireoidiana(9-11).
Após o nascimento, o hipotireoidismo congênito pode ser detectado pelo teste do pezinho, ocorrendo 28 vezes mais que na população em geral, em incidência de 1:141 pacientes(12). O hipertireoidismo é uma doença rara na infância, e também o é na SD, havendo poucos casos descritos na literatura(6,7).
O diagnóstico clínico do hipotiroidismo é de extrema dificuldade, devido à semelhança do quadro clínico da hipofunção com as características habituais da síndrome, como a desaceleração do crescimento, o retardo mental, a constipação intestinal e a macroglossia(11), sendo o diagnóstico firmado quando são encontrados níveis elevados de TSH (hormônio hipofisário estimulador da tireóide) e níveis baixos de hormônios tireoidianos. Os pacientes devem ser tratados tão logo o diagnóstico seja feito, pelo risco de agravamento de seu retardo mental e piora da baixa estatura(6). Mas o mais intrigante nesta síndrome é a freqüência com que são encontrados níveis elevados de TSH com níveis normais de hormônios tireoidianos, sem sinais de doença auto-imune. Este perfil hormonal é denominado de hipotireoidismo subclínico, ou também de hipotireoidismo compensado, e ocorre em percentual alto nos pacientes estudados, em torno de 25 a 50%(11).
No nosso meio, são poucos os relatos sobre a função tireoidiana em pacientes com SD. Leão et al., em 1994, estudaram a função tireoidiana de 43 pacientes com SD comparados a 48 indivíduos normais, pareados por idade, sexo e nível socioeconômico, e encontraram um percentual de 27,9% com níveis elevados de TSH e hormônios normais. Nesta casuística, 37% dos pacientes apresentavam positividade de anticorpos(8).
A pesquisa de Oliveira et al., apresentada neste número do Jornal de Pediatria, enfoca o estudo de crianças com SD, com crescimento adequado ao padrão da síndrome e sem distúrbio auto-imune tireoidiano. O estudo avaliou em todos os pacientes os níveis basais de TSH, e a resposta desta trofina ao estímulo com TRH (o tripeptídeo hipotalâmico que estimula a secreção de TSH e prolactina). Foi encontrado um percentual de 64,2% de hipotireoidismo subclínico, quando avaliados os níveis basais de TSH e o mesmo percentual de hiper-resposta ao estímulo do TRH. Este percentual de hiper-resposta é bem mais elevado do que o referido na literatura, que é em torno de 30%(9,13). Esta disparidade talvez se deva à idade de seus pacientes, pois estudos longitudinais mostram uma normalização destes testes após os 3 anos de idade, sugerindo que ocorreria uma imaturidade hipotalâmica na SD(13-15). Nesse artigo, Oliveira et al. apresentaram uma excelente discussão, especulando as prováveis explicações para este comportamento do TSH, que ainda permanece obscura, tanto na SD como nos demais indivíduos que apresentam este padrão hormonal. Além da patogenia desconhecida, a necessidade de tratamento no hipotireoidismo subclínico é ainda mais polêmica e controversa. Para a SD, considerando suas limitações e padrão estatural, existem defensores do tratamento, baseados em estudos longitudinais em que observam a melhora da velocidade de crescimento(6,7). Há também outros autores que acham que o tratamento deve ser reservado aos casos mais graves, que este padrão hormonal poderia ser autolimitado e não teria efeito sobre o crescimento e desenvolvimento, ou prejuízo à saúde(10,15).
Apesar de todas as controvérsias em relação a tratar ou não o hipotireoidismo subclínico, existe consenso quanto à avaliação da função tireoidiana na SD. Deve-se solicitar anualmente a dosagem de TSH e dos hormônios tireoidianos, em caso de níveis hormonais normais; de 3 a 6 meses, quando são detectados níveis elevados de TSH; e caso sejam observados níveis baixos de T4 (especialmente o T4 livre), impõe-se imediatamente o tratamento para o hipotireoidismo.
Sobe
Referências bibliográficas
Sobe
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jan 2003 -
Data do Fascículo
2002