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Sequestro esplênico agudo em crianças com anemia falciforme

CARTA AO EDITOR

Sequestro esplênico agudo em crianças com anemia falciforme

Andréa Nogueira Araujo

Unidade de Pediatria, Hospital Regional de Ceilândia, Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Brasília, DF. andrea.noar@hotmail.com

Prezado Editor,

Com grande satisfação cumprimento os autores e o periódico pela publicação de "Sequestro esplênico agudo em coorte de crianças com anemia falciforme"1. Por se tratar de emergência médica, o tema é relevante para todos os que atuamos em pediatria geral. Outros méritos do trabalho são a apresentação de dados nacionais e, mais importante, como isso tem se dado no contexto da saúde pública em nosso país. Acho fundamental considerar esse aspecto, que influencia sobremaneira a boa prática da medicina.

Ressalto que, em unidades de pronto-atendimento pediátrico, o diagnóstico do evento de sequestro esplênico agudo (SEA) nem sempre é alcançado com base na definição clássica apresentada no artigo – "aumento súbito do volume esplênico, associado à queda de pelo menos 2 g/dL na concentração de hemoglobina e reticulocitose". Alguns fatores contribuem para isso, como: 1) o fato de os familiares nem sempre portarem, na emergência, os relatórios com dados clínicos e hematológicos basais das crianças, emitidos pelos serviços de referência em hematologia; 2) a inexistência de prontuário médico informatizado acessível a todas as unidades de atendimento, o que poderia superar o problema anterior; e 3) a impossibilidade de contagem de reticulócitos em muitos laboratórios de emergência. Especificamente quanto ao item 3, os resultados da Tabela 1 do artigo referido sugerem que esta foi uma dificuldade também nos casos estudados por Rezende et al.: a hemoglobina foi medida em 80% (138/173) dos eventos de SEA, enquanto a contagem de reticulócitos se deu em apenas 14% (24/173) deles.

Frente a essas limitações, o diagnóstico de SEA acaba sendo fechado com base em parâmetros clínicos, como esplenomegalia significativa, palidez intensa e descompensação hemodinâmica, além de evidência de anemia acentuada no hemograma.

Disso decorrem algumas situações:

- Os casos graves de SEA dificilmente passarão sem diagnóstico e serão tratados de forma adequada na emergência, com antecipação do retorno ao serviço de referência por ocasião da alta, para tomada de decisão quanto ao seguimento.

- Esses critérios extremos são insuficientes para o diagnóstico de casos leves de SEA. Na faixa etária mais sujeita ao evento, esplenomegalia, anemia e reticulocitose são próprias da doença de base, mesmo sem complicação. Se o pediatra da emergência não tiver acesso aos dados clínicos e hematológicos basais da criança, um quadro leve de SEA pode ser tomado como natural da doença de base, com possível exacerbação desencadeada por infecção, evento ao qual são mesmo mais sujeitos. Embora possa não comprometer a assistência na emergência, o subdiagnóstico, nessa situação, certamente resulta em seguimento inadequado da criança, que não será assistida dentro das opções possíveis – seja seguimento atento, programa de transfusões periódicas ou indicação de esplenectomia.

- Há possibilidade de confusão diagnóstica entre SEA e crise de aplasia medular, caso não se proceda à contagem de reticulócitos na emergência, antes da transfusão de concentrado de hemácias. Isso pode gerar erro para mais ou para menos na real frequência de SEA.

Tenho interesse em saber se alguns dados foram analisados nessa população e ainda não apresentados nesse estudo:

- A escolaridade do cuidador da criança e o local de residência da família (e acesso ao serviço de saúde) tiveram alguma associação com a letalidade do SEA?

- A imunização antipneumocócica teve algum efeito protetor aparente contra eventos de SEA?

- Foi realizada sorologia para parvovírus B19 nos casos estudados?

- Por fim, não relacionado ao tema central do estudo, o Programa Estadual de Triagem Neonatal de Minas Gerais consegue oferecer algum tipo de aconselhamento para os familiares de crianças detectadas com o traço falciforme quanto a eventuais riscos reprodutivos para o futuro adulto?

Parabenizo-os pelo pioneirismo na publicação dos dados, o que certamente contribui para fomentar a discussão e o conhecimento sobre o tema.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Resposta dos Autores

Paulo do Val RezendeI; Marcos Borato VianaII

IMestre. Serviço de Hematologia, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG. Fundação Hemominas, Belo Horizonte, MG.

IIDoutor. Professor titular, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina, UFMG, Belo Horizonte, MG. vianamb@gmail.com

Prezado Editor,

Agradecemos os pertinentes comentários da Dra. Andréa Nogueira Araujo sobre nosso artigo1, o que demonstra um objetivo atingido pela publicação, que seria o de fomentar a discussão do tema entre pediatras.

De fato, os episódios de sequestro esplênico agudo (SEA), principalmente os casos leves, muitas vezes não são diagnosticados. Uma das dificuldades que tivemos durante a coleta de dados foi o não-preenchimento de dados durante as intercorrências clínicas, acompanhadas usualmente em serviços de urgência, o que pode ser explicado pela combinação de alguns fatores. Em alguns casos, o médico que atendeu a criança com o evento agudo não fez um relatório completo para o médico assistente no Hemocentro de Belo Horizonte (HBH), seja porque não tivessem sido solicitados todos os exames ou porque a estrutura local não permitisse a realização do exame. A contagem de reticulócitos, por exemplo, que é um dos critérios diagnósticos para o SEA, não é realizada durante o período noturno, finais de semana e feriados em muitos serviços de urgência vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Em outros casos, o relatório médico foi feito e entregue à família, que não o levou às consultas de controle seguintes no HBH. Finalmente, mesmo quando o relatório foi feito e levado à consulta, o médico assistente ocasionalmente não anotou todos os detalhes do episódio agudo no prontuário. Essa ausência de dados acaba limitando, de certa forma, a análise de dados em estudos retrospectivos. Além disso, a ausência de tais dados pode, como muito bem pontuado pela Dra. Andréa, prejudicar o adequado seguimento clínico dos pacientes.

As variáveis "escolaridade do cuidador da criança" e "local de residência da família" não foram analisadas em relação à letalidade do SEA. A distribuição dos casos de SEA por município de residência mostrou uma predominância da procedência de cidades do interior do estado (77,5%) em relação à capital (22,5%), que foi muito semelhante à distribuição da amostra geral estudada (23,9% residiam em Belo Horizonte e 76,1% no interior). Contudo, ao observarmos o local onde foi prestada assistência médica aos episódios de SEA, notou-se um predomínio do atendimento em Belo Horizonte em detrimento à assistência no interior do estado. Esse comportamento expõe a fragilidade do atual sistema de descentralização da saúde, cuja estrutura muitas vezes é insuficiente para um primeiro atendimento adequado aos pacientes com anemia falciforme.

Em relação à imunização antipneumocócica, não foi possível avaliar uma eventual associação com a presença ou gravidade de SEA. Atualmente, o calendário preconizado em nosso meio inclui as vacinas do esquema básico do Ministério da Saúde e as vacinas complementares, recomendadas pela Sociedade Brasileira de Pediatria. Portanto, a prescrição de profilaxia antimicrobiana e a indicação de vacinação especial ocorreram para todos os pacientes, conforme o Protocolo para Portadores de Síndromes Falciformes2. Não foi, entretanto, verificado com as famílias se o esquema havia sido completado conforme recomendação dos médicos assistentes.

A sorologia para parvovírus B19 não foi realizada nos pacientes estudados, uma vez que esse não é um exame disponível em nossa rotina ambulatorial.

A respeito da criança com traço falciforme, o Programa Estadual de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PETN-MG) tem como rotina o encaminhamento do recém-nascido portador do traço falciforme e de seus familiares para a unidade básica de saúde de referência, que fica responsável pelas orientações relacionadas à favorável evolução clínica nesses casos e aos eventuais riscos reprodutivos da criança no futuro, bem como pela orientação genética aos pais, visando gestações posteriores.

Gostaríamos de ressaltar ainda que uma política de saúde mais ampla é fundamental, com foco não somente no tratamento das complicações da anemia falciforme, mas na prevenção e detecção precoce das situações de risco, bem como na manutenção de uma estrutura organizada do SUS, capaz de atender os pacientes de forma global, em todas as suas necessidades biopsicossociais.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Referências (Resposta dos Autores) / References (Authors' Reply)

  • 1. Rezende PV, Viana MB, Murao M, Chaves AC, Ribeiro AC. Acute splenic sequestration in a cohort of children with sickle cell anemia. J Pediatr (Rio J). 2009;85:163-9.
  • 1. Rezende PV, Viana MB, Murao M, Chaves AC, Ribeiro AC. Acute splenic sequestration in a cohort of children with sickle cell anemia. J Pediatr (Rio J). 2009;85:163-9.
  • 2. Fundaçăo Hemominas. Protocolo para Portadores de Síndromes Falciformes. Brasília: Agęncia Nacional de Vigilância Sanitária - Ministério da Saúde; 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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