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Infecção pelo vírus da hepatite A: fizemos progresso, mas há mais trabalho pela frente

EDITORIAL

Infecção pelo vírus da hepatite A: fizemos progresso, mas há mais trabalho pela frente

Maureen M. Jonas

MD. Division of Gastroenterology, Children's Hospital Boston, Boston, MA, EUA

Correspondência Correspondência: Maureen M. Jonas, MD Division of Gastroenterology, Children's Hospital Boston 300 Longwood Avenue 02115 – Boston, MA – EUA Tel.: +1 (617) 355.5837 Fax: +1 (617) 730.0716

O vírus da hepatite A (VHA) tem uma distribuição global, sendo a causa mais comum de hepatite viral em todo o mundo. Aproximadamente 1,4 milhão de novas infecções são diagnosticadas a cada ano, mas se considera que a verdadeira incidência seja muito mais elevada devido à subnotificação. A América do Sul é considerada uma área endêmica, com alta prevalência de soropositividade, especialmente na população jovem. Nível socioeconômico baixo, superpovoamento, saneamento deficiente e tratamento de água inadequado são fatores geralmente associados a uma maior incidência e à infecção infantil assintomática em países em desenvolvimento. Portanto, as taxas de notificação de doenças nessas áreas são baixas e os surtos da doença são raros, já que a maioria dos adultos está imune. Em países com economia de transição e em algumas regiões de países industrializados, onde as condições de saneamento variam, as crianças podem não se infectar na primeira infância. Essas condições privilegiadas podem conduzir a uma hepatite mais evidente clinicamente, já que as infecções ocorrem em faixas etárias mais altas e com maior tendência a apresentar sintomas. Com isso, as taxas da doença serão mais altas. Uma grande população de adolescentes e adultos suscetíveis aumenta a probabilidade de surtos. Essa mudança na epidemiologia da infecção pelo VHA tem sido percebida em vários países1-3. Além disso, a adoção da vacina contra a hepatite A é variável, de forma que a interpretação da endemicidade por meio da soroprevalência do anticorpo contra o VHA (anti-VHA) é problemática.

Foi nesse contexto, investigando uma potencial alteração do padrão epidemiológico, que Krebs et al.4 realizaram um estudo epidemiológico sobre a soroprevalência do anti-VHA em crianças e adolescentes de Porto Alegre. O estudo foi um seguimento de uma pesquisa similar realizada na mesma região 10 anos antes5. O objetivo deste trabalho foi comparar a soroprevalência do anti-VHA nas populações pediátricas de dois laboratórios clínicos após demonstrar que a estrutura dos laboratórios e o sistema de pagamento justificam a divisão socioeconômica dos sujeitos. Além disso, as taxas de soroprevalência entre as faixas etárias foram comparadas para os dois períodos de estudo.

Durante um período de 10 meses a partir de abril de 2007, foram obtidas amostras de soro de 222 crianças e adolescentes que realizaram exames de sangue em um laboratório público e 243 que tiveram o sangue testado em um laboratório particular mediante pagamento com recursos próprios ou através de planos de saúde. Medidas apropriadas foram instituídas para identificar amostras duplicadas de um mesmo indivíduo e para excluir aqueles que não residiam na região de interesse. Os resultados foram comparados com resultados de números similares de sujeitos em duas coortes análogas que haviam sido descritas em 1996.

É interessante notar que a soroprevalência geral do anti-VHA não diferiu entre as populações nos dois laboratórios, ou seja, nos diferentes estratos socioeconômicos. Contudo, quando a amostra foi dividida por faixa etária, houve diferenças impressionantes. Na população selecionada para representar o grupo de baixo nível socioeconômico, a prevalência de anti-VHA claramente aumentou na faixa etária mais velha, provavelmente representando contínua exposição ao vírus e infecção ao longo do tempo. Porém, na população do laboratório particular, representando o grupo de nível socioeconômico alto, altas taxas do anticorpo foram encontradas na faixa etária jovem, com uma queda entre os adolescentes. Na seção Discussão do artigo, os autores mencionam um fator confundidor da vacina contra o VHA, a qual aparentemente não é subsidiada pelo governo, estando disponível somente para quem pode pagar por ela. Eles mencionam que a maioria das crianças entre 1 e 4 anos que foram vacinadas em uma clínica de imunização particular tinham recebido a vacina conta o VHA; obviamente, isso teria um impacto significativo na soroprevalência do anti-VHA. Embora o estudo seja válido do ponto de vista da quantificação de crianças não imunes que correm risco de serem infectadas pelo VHA, as taxas reais de exposição/infecção não podem ser inferidas com base nesses dados.

Um percepção adicional e talvez ainda mais valiosa é alcançada ao se comparar as taxas de soroprevalência pediátrica desse estudo com as taxas documentadas 11 ou 12 anos antes. Há uma discreta mudança em todas as faixas etárias, exceto nos indivíduos mais jovens das coortes de laboratório público do estudo anterior e do atual (grupo de nível socioeconômico baixo), com a soroprevalência anti-VHA global diminuindo de 54,4 para 37,6%. Considerando-se que a vacinação não está acessível a todos desse grupo por razões financeiras, essa diferença pode ser atribuída a mudanças em termos de saneamento, segurança alimentar e, talvez, condição socioeconômica da população como um todo. Isso por si só já é um argumento convincente para o apoio aos esforços para se oferecer serviços contínuos de saúde pública nessas áreas. Todavia, ao se comparar os grupos de laboratório particular (nível socioeconômico alto) dos dois momentos distintos, é possível identificar uma diferença dramática, o que a princípio pode parecer paradoxal. Parece que as crianças da década de 1990 do estrato socioeconômico mais alto corriam um baixo risco de infecção pelo VHA ao longo do tempo, indicando a importância de fatores de saúde pública implicados anteriormente. Porém, atualmente, no grupo socioeconômico alto, a soroprevalência do anticorpo do VHA é alta. Contudo, provavelmente isso não representa um grande aumento da taxa de infecção natural desse grupo, já que muitas crianças eram soropositivas aos 4 anos. O mais provável é que isso se deva à disponibilidade e à acessibilidade da efetiva vacinação contra o VHA para essa população. Infelizmente, esse estudo não foi desenvolvido para explorar essa possibilidade.

Independentemente das limitações e dificuldades com a interpretação de alguns desses dados, alguns achados são claros: 1) as melhorias em termos de condições de vida que acompanham o avanço socioeconômico estão associadas a taxas mais baixas de infecção pelo VHA em crianças e provavelmente na população em geral; 2) uma grande proporção da população não está imunizada na vida adulta, quando a infecção pelo VHA apresenta morbidade considerável, tanto pelos efeitos diretos da doença e surtos quanto pelos efeitos indiretos sobre a produtividade e os dias de trabalho perdidos; 3) a vacinação contra o VHA diminui o número de indivíduos que correm risco de se infectar e pode-se esperar que diminua a morbimortalidade causada por essa infecção em crianças e adultos; 4) os países e as regiões geográficas com infecção endêmica pelo VHA deveriam apoiar fortemente as medidas de saúde pública desenvolvidas para melhorar a potabilidade da água, a segurança alimentar e a higiene global, assim como a vacinação universal contra o VHA, independente dos recursos financeiros dos indivíduos. Em longo prazo, os custos, tanto em termos financeiros quanto de saúde, irão diminuir, e os benefícios para a sociedade serão inegáveis.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Apoio financeiro: Bristol Myers Squibb (apoio à pesquisa), Novartis (apoio à pesquisa, consultora), Roche (consultora), Merck-Schering Plough (apoio à pesquisa).

Como citar este artigo: Jonas MM. Hepatitis A virus infection: progress made, more work to be done. J Pediatr (Rio J). 2011;87(3):185-186.

  • 1. Mall ML, Rai RR, Philip M, Naik G, Parekh P, Bhawnani SC, et al. Seroprevalence of hepatitis A infection in India: changing pattern. Indian J Gastroenterol. 2001;20:132-5.
  • 2. Al-Aziz AM, Awad MA. Seroprevalence of hepatitis A virus antibodies among a sample of Egyptian children. East Mediterr Health J. 2008;14:1028-35.
  • 3. Moisseeva AV, Marichev IL, Biloschitchkay NA, Pavlenko KI, Novik LV, Kovinko LV, et al. Hepatitis A seroprevalence in children and adults in Kiev City, Ukraine. J Viral Hepat. 2008;15 Suppl 2:43-6.
  • 4. Krebs L, Ranieri TMS, Kieling CO, Ferreira CT, da Silveira TR. Shifting susceptibility to hepatitis A among children and adolescents over the past decade. J Pediatr (Rio J). 2011;87:213-218.
  • 5. Ferreira CT, Silva GL, Barros FC, Fereira-Lima J. Soroepidemiologia da hepatite A em dois grupos populacionais economicamente distintos de Porto Alegre. GED Gastroenterol Endosc Dig. 1996;15:85-90.
  • Correspondência:

    Maureen M. Jonas, MD
    Division of Gastroenterology, Children's Hospital Boston
    300 Longwood Avenue
    02115 – Boston, MA – EUA
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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