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Delmiro, o "coçado" que curou a tuberculose (ou) A supervisão de boteco às vezes funciona

CARTAS AO EDITOR

Delmiro, o "coçado" que curou a tuberculose (ou) A supervisão de boteco às vezes funciona

Sra. Editora:

Os etilistas persistentes, tentando uma denominação cientificamente adequada ou politicamente correta, acabam por ser alcunhados de diversas formas de acordo com a região. Em São Paulo são "bebuns"; no Rio, "bêbados"; no Nordeste, "pinguços"; entre os portenhos, "borrachos", e no Pará, "coçados". Já tentei, mas até hoje não consegui descobrir a filologia do termo, sempre imaginei que expressava a coceira persistente de uma goela seca pela ausência do álcool, mas acredito que não passa de um meu imaginar...

Toda vez que Delmiro era consultado, lembrava dos "coçados" famosos da Cidade Velha, o bairro onde me criei em Belém das terras paraenses, que abriam e fechavam as tabernas (bares) das esquinas. Acabei por nomeá-lo de Delmiro Coçado. Além das lembranças da terra, Delmiro Coçado foi um dos meus grandes casos dos muitos que tratei, curei ou fui pela tuberculose derrotado. Um, que acabou se convertendo em caso-tipo, curei ou fui pela tuberculose derrotado. Um, que acabou se convertendo em caso-tipo, exemplo de solução que enriquece a experiência empírica da clínica nossa de cada dia.

Mas me apropriei do que herdei Delmiro Coçado, um tuberculoso "inadimplente recalcitrante", de tantas irregularidades e inúmeros abandonos, que há anos perambulava pelo Instituto Clemente Ferreira, desacreditado, provocando rebuliço entre os atendentes ao exigir um rápido atendimento, realizado relutante pelo médico da vez, ou do horário. Assumi-lo, na época, foi mais uma alternativa de vencer um desafio do que ganhar com a experiência. Hoje, tenho certo que o ganho foi maior que a vitória.

A questão era como curar Delmiro Coçado. Escarro, sempre positivo, variando as cruzes dependendo da maior ou menor hidratação, hídrica e não alcoólica, facilmente identificado pela intensidade do bafo etílico. Mantinha, para sua felicidade, testes sempre sensíveis às drogas usuais no tratamento da tuberculose. Nunca chegou a multirresistência... Deo gratias...

Inicialmente consegui "seduzi-lo", como bem recomenda uma colega e amiga para tratar pacientes com tuberculose. Não foi fácil, só o conquistei na terceira tentativa, num bar próximo ao instituto, ao verter com ele dois ou três "traçados" ou rabo-de-galo: cachaça + vermute eu, ele cachaça + Cinnar (um vermute de alcachofra de baixo teor alcoólico). Além da sedução, o beber junto acabou com uma inspiração inicial ao notar que a cor do Cinnar lembrava a cor da cápsula de rifampicina + isoniazida (drogas básicas do tratamento antituberculoso).

O segundo passo foi visitar, junto com Delmiro Coçado, o boteco da esquina de sua pensão, onde conheci seu Chiquinho, o dono, para quem meu paciente prestava serviços e sustentava sua dependência. Abusei dos "traçados", mas valeu. Retorno ao boteco do seu Chiquinho e oriento o mesmo para supervisionar as tomas dos remédios na primeira talagada, recomendando misturar água ao invés de cachaça com o Cinnar.

Última providência, convencer Delmiro de que ele poderia tomar remédios com o "traçado" providencial do seu Chiquinho, mostrando que as cores destes eram exatamente as da mistura que bebia, cápsulas vermelho-arroxeadas de rifampicina + isoniazida e do Cinnar e comprimidos brancos do etambutol e da pirazinamida (outras drogas do esquema de tratamento da tuberculose) que lembravam a cachaça. Até a proporção se igualava, mais cachaça que Cinnar, sete comprimidos para duas cápsulas.

Seis meses, seis telefonemas para seu Chiquinho e duas outras visitas a seu boteco, uma cura à tuberculose teimosa e persistente de Delmiro Coçado. Numa das visitas, seu Chiquinho me relata que nosso cliente reclamava da qualidade de sua cachaça e que ele lhe informara que era efeito dos remédios. Delmiro Coçado deve ter desconfiado da tramóia, mas a sedução foi mais forte.

Uma supervisão de boteco, foi assim que se deu a cura da tuberculose de Delmiro Coçado.

Não consegui, entretanto, acabar com sua dependência nem eliminar suas seqüelas. Delmiro Coçado continua me visitando a cada três ou quatro meses. Reclama da falta de ar quando sobe as ladeiras ou de um regaço feminino, sempre presente o bafo etílico. Este ausente, nas hemoptises, quando o medo da morte vence sua dependência. Já não provoca temores entre as atendentes e me chama de "Meu Paizão".

Confesso que, cada vez que atendo, particularmente, quando me pede uma "bombinha" para subir uma ladeira ou a "muquirana" de plantão, massageia meu ego. Este onanismo ideológico se metamorfoseia em sentimento de derrota, quando choroso e sóbrio relata a hemotise da véspera e reclama por providências.

É sintomático, me chama aqui de "Meu Paizinho"...

FERNANDO AUGUSTO FIUZA DE MELO

Médico do Instituto Clemente Ferreira e do

Hospital do Servidor Público Estadual São Paulo

Doutor em Medicina pela Escola Paulista de Medicina – Unifesp

Endereço para correspondência – Instituto Clemente Ferreira (ICF), Divisão de Tisiologia e Pneumologia Sanitária, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Rua da Consolação, 717 – 01301-000 – São Paulo, SP. Tels. (11) 257-8096, 258-7644, 257-6579; e-mail: fiuza@osite.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2002
  • Data do Fascículo
    Abr 2002
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