Os termos transgênero e incongruência de gênero descrevem uma situação em que a identidade de gênero de um indivíduo difere da anatomia sexual externa no nascimento. Os objetivos da afirmação de gênero na mulher transgênero visam à supressão, dentro do possível, das características masculinas e à indução de características femininas. A afirmação de gênero pode incluir terapia hormonal (TH), por diversas vias, e cirurgias de afirmação, além de outros procedimentos, como depilação e fonoaudiologia1,2.
Em comparação a indivíduos cisgênero (ou seja, não transgênero), as mulheres transgênero têm maior prevalência de ansiedade, depressão, uso de substâncias ilícitas e tabaco e doenças sexualmente transmissíveis, como infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, e estima-se que mais de 40% tentaram suicídio em algum momento3. Esses dados podem ser explicados pela exposição a fatores de estresse, como a estigmatização (discriminação, rejeição e vitimização) e ocultação de identidade3.
Dados epidemiológicos sugerem que de 0,3 a 0,6% da população adulta é transgênero (cerca de 25.000.000 pessoas transgênero em todo o mundo)4-8, mas a real prevalência depende da definição usada na classificação dessa população. Por exemplo, em estudos que incluem apenas indivíduos que passaram por TH ou cirurgia de afirmação de gênero, a prevalência relatada foi de 7 a 9 por 100.000 pessoas7. No entanto, em estudos que incluem o status de transgênero com base em autorrelato, a prevalência foi de aproximadamente 871 por 100.000 pessoas7-9. O fornecimento de TH de afirmação de gênero orientada por médicos demonstrou melhorar a qualidade de vida e reduzir os transtornos citados nessa população3.
OBJETIVOS DA TH
O objetivo usual da TH na mulher transgênero é induzir mudanças físicas que combinem com a identidade de gênero10, mantendo os níveis hormonais na faixa fisiológica normal para o sexo-alvo. Isso inclui suprimir hormônios endógenos da identidade de gênero original e substitui-los com hormônios consistentes com o gênero sexual afirmado.
Os estrógenos utilizados na TH para mulheres transgênero basicamente se dividem em duas categorias: os humanos naturais (17β-estradiol [E2], estrona [E1] e estriol [E3]) e os derivados não humanos, que incluem derivados de urina de éguas grávidas (conjugados estrógenos equinos [CEE]) ou esterificados de fontes vegetais11. A dose utilizada, normalmente maior que a usada para terapia de reposição hormonal (TRH) na mulher cisgênero, depende das mudanças físicas desejadas, do tipo de estrógeno e da via de administração12.
Vários estudos demonstraram um risco aumentado de tromboembolismo venoso (TEV) nas mulheres transgênero em uso de TH, o qual está relacionado ao tipo e às doses utilizados e, principalmente, à via de administração11. Porém, a maioria dos dados é extrapolada de estudos clínicos avaliando contracepção e TRH11.
A administração por via oral induz o efeito de primeira passagem hepática, com aumento dos fatores pró-trombóticos, enquanto as vias não orais, particularmente a via transdérmica, não parece induzir aumento de TEV11. Isso pode ser determinante na escolha da TH, em que a via transdérmica passa a ser a via preferencial em mulheres transgênero com história pessoal ou familiar de TEV e/ou portadoras de trombofilias.
Vale ressaltar que, para essa população, a TH não é eletiva, mas sim uma necessidade absoluta para se obter o fenótipo desejado. Em muitos lugares, essas mulheres estão à margem da sociedade e não possuem acesso a profissionais habilitados para prescrevê-la. Como consequência, muitas vezes os estrógenos são obtidos de forma ilegal e ingeridos por conta própria, sem orientação profissional quanto à composição, às doses e às vias seguras. Outro ponto para reflexão é que as vias não orais da TH são usualmente mais caras do que a via oral e, portanto, inacessíveis para a maioria. Uma estratégia plausível para atenuar o risco de TEV em grupos de risco é o início concomitante da anticoagulação profilática com a TH, especialmente nos primeiros 6 a 12 meses de tratamento12.
Diversos estudos mostraram que os CEE mais utilizados no Estados Unidos são mais trombogênicos do que o E2, que é o mais utilizado na Europa11. Em um estudo retrospectivo com mais de 1.000 participantes, a incidência de TEV foi de 2 a 6% em mulheres transgênero tratadas com etinilestradiol oral13,14, uma taxa aproximadamente 20 vezes maior do que a da população masculina cisgênero controle. Em um estudo de acompanhamento da mesma coorte, nenhum risco aumentado de TEV foi observado em usuários de preparações de estrógenos, exceto etinilestradiol4,15. Entre 214 mulheres transgênero que receberam estradiol por via oral, transdérmica ou gel de estradiol, foi observado TEV em 11 casos (5,1%)16. Nenhum evento foi observado nos grupos de controle de homens ou mulheres cisgênero16.
Um outro estudo de coorte baseado em prontuários eletrônicos incluiu 2.842 mulheres transgênero pareadas com aproximadamente 48.000 homens e 48.000 mulheres cisgênero e mostrou que as mulheres transgênero tiveram uma incidência maior de TEV do que ambos os controles17. A maioria das mulheres transgênero estava recebendo estradiol por via oral em dose diária média de 4 mg, a mesma administrada para aqueles que não tiveram TEV. A diferença foi mais pronunciada no seguimento desses pacientes, em que houve aumento do risco absoluto entre 2 e 8 anos de 4,1 e 16,7, respectivamente, por 1.000 pessoas em relação aos homens cisgênero e de 3,4 e 13,7, respectivamente, por 1.000 pessoas em relação às mulheres cisgênero. Esse padrão foi diferente daquele observado em mulheres na pós-menopausa usuárias de TRH, nas quais o risco de TEV mostrou-se maior no primeiro ano de uso, diminuindo progressivamente com o tempo. Esses dados sugerem que o monitoramento a longo prazo seria fundamental nessa população.
Embora os dados sobre o risco de TEV em mulheres transgênero em TH submetidas a cirurgia não estejam disponíveis, deve-se considerar interromper a TH de 2 a 4 semanas antes de cirurgias de grande porte com imobilização. Como essa pausa é indesejada para a maioria dos pacientes, uma alternativa é manter a TH e adicionar um ponto a mais no escore de Caprini, realizando a tromboprofilaxia de acordo com as diretrizes. Uma vez que esses indivíduos estejam totalmente recuperados e tenham retornado às suas atividades usuais, a TH com estrógeno pode ser retomada, normalmente, dentro de 4 semanas18. A prevalência de trombofilias parece ser a mesma na população transgênero e na população em geral. Portanto, a sua triagem de rotina pré-TH não é sugerida19.
TERAPIA DE SUPRESSÃO ANDROGÊNICA
A maioria dos regimes de TH para afirmação de gênero em mulheres transgênero inclui uma segunda droga, com o intuito de suprimir a produção ou contrapor os efeitos dos androgênios, particularmente da testosterona11. A droga mais utilizada para esse objetivo é a espironolactona, um diurético poupador de potássio que possui interação com receptores de esteroides hormonais, especialmente os receptores de androgênio, inibindo a produção de androgênios e da 5α-redutase, uma enzima conversora de testosterona em di-hidrotestosterona11. Outras drogas utilizadas para esse fim são os inibidores da 5α-redutase (finasterida), os bloqueadores dos receptores androgênicos (flutamida), as progestinas e os hormônios agonistas/antagonistas da secreção de gonadotropina. Não há associação clara entre esses medicamentos e aumento da incidência de TEV.
Por fim, é importante salientar que a população transgênero apresenta peculiaridades inerentes ao uso de TH em doses suprafisiológicas, dificuldade de acesso a serviços médicos especializados e uso de medicações inadequadas ao ser humano, o que, em última análise, expõe essa população vulnerável a maiores incidências de complicações subdiagnosticadas e subnotificadas. A ocorrência de TEV na população transgênero é uma das muitas vertentes com a qual a medicina moderna precisará se preocupar.
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Como citar: Marques MA, Teruchkin MM, Oliveira ALML. Tromboembolismo venoso em mulheres transgênero. J Vasc Bras. 2022;21:e20220120. https://doi.org/10.1590/1677-5449.202201201
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Fonte de financiamento: Nenhuma.
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O estudo foi realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Jan 2023 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
03 Set 2022 -
Aceito
18 Nov 2022