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Oclusão arterial aguda por derivados da ergotamina

Resumos

Os derivados da ergotamina compõem diversas drogas amplamente utilizadas no tratamento de ataques agudos de migrânea. A intoxicação por estas substâncias resulta geralmente de sua administração crônica, promovendo sintomas secundários ao espasmo arterial e à consequente isquemia distal. Neste artigo, é relatado o caso de uma paciente de 47 anos com diagnóstico de oclusão arterial aguda em membros inferiores secundária ao uso de derivados da ergotamina. Após a suspensão da droga e a prescrição de anticoagulantes, vasodilatadores e antiagregante plaquetário, a paciente evoluiu com melhora da dor, da parestesia e com o retorno da coloração normal e dos pulsos distais em membros inferiores.

Ergotismo; ergotamina; isquemia; insuficiência arterial; oclusão arterial


Ergotamine derivatives include several drugs widely used in the treatment of acute migraine attacks. Intoxication by these substances generally results from chronic administration, promoting symptoms secondary to arterial spasm and the consequent distal ischemia. The authors report the case of a 47-year old patient with acute arterial occlusion in lower limbs secondary to the use of ergotamine derivatives. After drugs were suspended and anticoagulants, vasodilators and antiplatelet drugs were prescribed, the patient progressed with improvement of pain, paresthesia and return of normal skin color and distal pulses in lower limbs.

Ergotism; ergotamine; ischemia; arterial insufficiency; arterial occlusion


RELATO DE CASO

Oclusão arterial aguda por derivados da ergotamina

Acute arterial occlusion caused by ergotamine derivatives

Edison Barreto de SouzaI; Márcia Marinho Gomes de AraújoII

ICirurgião vascular e chefe, Serviço de Cirurgia Vascular, Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel, Natal, RN

IIMédica residente, Cirurgia Geral, Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel, Natal, RN

Correspondência Correspondência: Edison Barreto de Souza Av. Rodrigues Alves, 861 - Tirol CEP 59020-200 — Natal, RN Tel.: (84) 3211-3887 Fax: (84) 3211-3829 E-mail: ebs@digi.com.br

RESUMO

Os derivados da ergotamina compõem diversas drogas amplamente utilizadas no tratamento de ataques agudos de migrânea. A intoxicação por estas substâncias resulta geralmente de sua administração crônica, promovendo sintomas secundários ao espasmo arterial e à consequente isquemia distal. Neste artigo, é relatado o caso de uma paciente de 47 anos com diagnóstico de oclusão arterial aguda em membros inferiores secundária ao uso de derivados da ergotamina. Após a suspensão da droga e a prescrição de anticoagulantes, vasodilatadores e antiagregante plaquetário, a paciente evoluiu com melhora da dor, da parestesia e com o retorno da coloração normal e dos pulsos distais em membros inferiores.

Palavras-chave: Ergotismo, ergotamina, isquemia, insuficiência arterial, oclusão arterial.

ABSTRACT

Ergotamine derivatives include several drugs widely used in the treatment of acute migraine attacks. Intoxication by these substances generally results from chronic administration, promoting symptoms secondary to arterial spasm and the consequent distal ischemia. The authors report the case of a 47-year old patient with acute arterial occlusion in lower limbs secondary to the use of ergotamine derivatives. After drugs were suspended and anticoagulants, vasodilators and antiplatelet drugs were prescribed, the patient progressed with improvement of pain, paresthesia and return of normal skin color and distal pulses in lower limbs.

Keywords: Ergotism, ergotamine, ischemia, arterial insufficiency, arterial occlusion.

Introdução

Desde a Idade Média apareceram as primeiras descrições da intoxicação por derivados da ergotamina. Eram descritas, naquela época, estranhas epidemias cujo sintoma característico era a gangrena das extremidades1,2.

O ergot é produto de um fungo, Claviceps purpurea, que cresce no centeio e em outros cereais. Os componentes ativos da droga são alcaloides, todos derivados do ácido lisérgico3,4. Seus efeitos colaterais são basicamente de três categorias: neurológicos — cefaleia, vertigem, psicose, convulsão e agitação; gastrointestinais — diarreia, náusea, vômito e dor abdominal em cólica; e vasculares2,4-7.

Apesar das múltiplas apresentações do ergotismo, a isquemia periférica secundária ao vasoespasmo é a forma mais comum e ocorre em 0,01-0,02% daqueles doentes em tratamento com alcaloides ergóticos2,5.

Os derivados da ergotamina compõem diversas drogas amplamente utilizadas no tratamento de ataques agudos de migrânea e de hemorragias pós-parto1,3,8. A intoxicação por estas substâncias pode ser decorrente de overdose aguda, do uso de doses terapêuticas em pacientes que apresentam reação de hipersensibilidade e, de forma crônica, em pacientes que fazem uso prolongado de doses terapêuticas1-3,9,10. Entretanto, nem sempre o grau de isquemia se correlaciona com a concentração sanguínea da ergotamina8.

Cerca de 90% da metabolização dos compostos ergóticos é hepática, e existem múltiplos fármacos de metabolismo hepático que podem aumentar o seu potencial vasoconstritor, como macrolídeos, propranolol, sumatriptano, ampicilina, contraceptivos orais e nicotina2,7,8.

O rápido desaparecimento do fármaco da circulação sanguínea e os efeitos prolongados sobre a árvore arterial sugerem que tanto a lenta separação do fármaco ao seu receptor como a presença de metabólitos ativos na circulação sanguínea prolongam o efeito vasoconstritor8.

Os principais efeitos farmacológicos da ergotamina são: a estimulação dos receptores α-adrenérgicos, dopaminérgicos e serotoninérgicos (5-HT) e a estimulação direta do músculo liso e da atividade simpatolítica central2-4,6,11,12.

Os derivados da ergotamina podem lesar o endotélio vascular ao induzir a proliferação das células da camada arterial muscular por meio da estimulação do fator de crescimento plaquetário e, por outro lado, causam trombose e necrose da camada arterial média, que são características proeminentes da intoxicação por esta medicação2,4,9,11-13. O ergotismo causa deterioração da perfusão da parede arterial seguida de fibrose parietal, estenose arterial e aneurismas nos sítios destas estenoses11-13.

Os achados arteriográficos consistem em espasmo arterial, rede colateral e trombose in situ2,8,12. O espasmo ocorre mais frequentemente no sistema arterial periférico, as extremidades inferiores são mais afetadas que as superiores e o vasoespasmo induzido geralmente é bilateral, simétrico. As estenoses arteriais mais importantes, incluindo as oclusões arteriais totais, são mais comuns nas artérias de menor calibre das extremidades2,8,12 (cerca de 60-70%2,3,5) embora possam ocorrer nas artérias viscerais, coronárias, carótidas e oftálmicas2-5.

O objetivo do nosso estudo é relatar um caso de oclusão arterial aguda em membros inferiores como consequência do uso de tartarato de ergotamina, uma patologia pouco habitual, para que possamos estar aptos a diagnosticá-la e tratá-la da melhor forma e o mais precocemente possível.

Relato do caso

Paciente de 47 anos admitida com quadro de parestesia, de início súbito, em membros superiores e membros inferiores, com 4 dias de evolução. No momento do exame, a paciente apresentava perda da força muscular em membros superiores, dor de forte intensidade em membros inferiores, abaixo do joelho, cianose de pododáctilos e ausência de pulsos distais.

Não havia história prévia de tabagismo, doença cardíaca ou claudicação intermitente, mas a paciente relatava história de migrânea, com uso crônico de tartarato de ergotamina. Foi submetida a arteriografia, evidenciando em ambos os membros inferiores: sinais de severo espasmo nas artérias femoral superficial, femoral profunda, poplítea e tronco tibiofibular (Figuras 1 e 2); artérias fibular, pediosa e arco plantar não opacificados; e artéria tibial anterior e posterior com sinais de espasmo, visualizando-se até o terço distal. A paciente foi submetida à suspensão da droga, bem como ao uso de heparina, cilostazol e buflomedil. Evoluiu bem, com melhora da dor e da parestesia em membros superiores e inferiores, retorno da coloração normal e dos pulsos distais em membros inferiores, recebendo alta hospitalar no sexto dia de internamento hospitalar.



Discussão

O diagnóstico de isquemia induzida por derivados da ergotamina é baseado na história clínica do paciente, em achados do exame físico e em aspectos angiográficos. Os achados de espasmo arterial, especialmente se bilateral e simétrico, devem levantar a suspeita de intoxicação por ergotamina4. A suspeição diagnóstica aumenta se o paciente não possui antecedentes de estados de hipercoagulabilidade, cardiopatia, disfunção hepática e/ou renal, tireotoxicose, doença aterosclerosa ou alguma patologia associada a vasculites2.

O diagnóstico diferencial se faz necessário, tendo a doença aterosclerótica oclusiva, a doença tromboembólica, as arterites, a displasia fibromuscular e o fenômeno de Raynaud sintomas vasoespásticos semelhantes ao ergotismo2.

Embora o tratamento venha sendo realizado de forma empírica e com resultados variados, a suspensão imediata da droga é fundamental. O tratamento inclui desde anticoagulantes, como a heparina, vasodilatadores orais, antiagregantes plaquetários, bloqueios anestésicos, bloqueadores do canal de cálcio, oxigênio hiperbárico, até a expansão do volume intravascular2-6,8,10.

Apesar de o nitroprussiato ser considerado o antídoto do ergotismo por sua potente ação na musculatura lisa dos vasos, ele é reservado apenas para casos mais graves devido a problemas de dosagem, à necessidade de bomba de infusão e a seus múltiplos efeitos colaterais3,6-8,14. Mais recentemente, o uso de nitroglicerina injetável tem sido descrito como preferível devido a sua eficiência vasodilatadora associada a sua baixa toxicidade6.

Em publicações recentes, tem-se realizado a angioplastia percutânea como tratamento adjuvante do espasmo arterial; entretanto, devido ao risco de produzir lesões na camada íntima dos vasos, com a consequente trombose, ela deve ser evitada sempre que possível2,5,6.

A duração do tratamento depende da evolução individual de cada paciente e, em caso de persistência de vasoespasmo, deve-se investigar a possibilidade de o paciente estar utilizando derivados ergotamínicos para aliviar as crises de migrânea8.

Conclusão

O ergotismo é uma enfermidade causada, na grande maioria dos casos, pelo uso prolongado e indiscriminado dos derivados da ergotamina no tratamento de crises agudas de migrânea. A oclusão arterial aguda por derivados da ergotamina, apesar de condição clínica incomum, deve ser atentada como diagnóstico diferencial nas síndromes isquêmicas, sobretudo em pacientes jovens sem fatores de risco cardiovasculares, ou para embolia arterial aguda.

O primeiro e mais importante passo no tratamento é a suspensão do agente causal; no entanto, a terapia vasodilatadora tem importância fundamental na melhora do quadro clínico do paciente.

O diagnóstico e o tratamento precoces se fazem necessários a fim de evitar complicações graves e potencialmente fatais.

Artigo submetido em 22.03.09, aceito em 04.06.09.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

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  • Correspondência:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Recebido
      22 Mar 2009
    • Aceito
      04 Jun 2009
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